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  ALIMENTAÇÃO A na  Maria Canesqui* CANESQUI,  A.M.  Antropologia  e  alimentação.  Rev.  Saúde  públ. S.  Paulo  22: 207-16,1988. RESUMO:  Analisa-se  a  produçã o antropológic a  referente  às  práticas,  hábitos  e  concepções  de  con- sumo alimentar  de  segmentos  de  trabalhadores  rurais  e  urbanos. Dimensiona-se  e  critica-se  a  aborda- ge m  antropológica contida  nos  diferentes  estudos,  apontando caminhos  a  serem  perseguidos  por  no - vas  pesquisas,  de  maneira  que a  área  de  nutrição,  alimentação  e  saúde  não  deixe  de  prescindir  das contribuições antropológicas. UNITERMOS:  Consumo  de  alimentos. Hábitos alimentares. Antropologia cultural. Trabalha- dores.  Saúde. *  Departamento  de  Medicina Preventiva  e  Social  e  Núcleo  de  Estudos  e  Políticas Públicas  da  Universidade Estadual  de  Campinas  -  Caixa Postal 6111  -13081  -  Campinas,  SP -  Brasil. N ão  é  recente,  no  Brasil,  o  esforço antro- pológico  de  focalizar  elementos culturais  e ideológicos  que  presidem  as  práticas  de  consumo alimentar.  O  presente texto  tem o  propósito  de rever alguns  estudos,  sem  pretender abarcar  a to- talidade  da  bibliografia produzida,  mas  relacio- nando  os  mais significativos  e  apontando  a  abor- dagem antropo lógica  qu e  eles  incorporaram. Os  estudos  de  comunidade, realizados princi- palmente  na  década  dos  anos  50,  o  as  mais  im- portantes contribuições empíricas  e  descritivas qu e  recolheram  um  elenco  de  informações sobre a  alimentação. Antes deles folcloristas também descreveram  a  culinária , enquanto aspecto  da cultura  local indígena  que se  mesclava  com a do colonizador  português  e dos  escravos 7,14 Várias  foram  as  populações urbanas  e  rurais estudadas  n a  perspectiva  da comunidade, ou  seja, enquanto  agrupamento  homogêneoe  orgânico  d a vida social  qu e  poderia  ou não  estar submetido  a processos  de  mudança  que o  desintegrasse. Os  antropólogos,  nos  estudos  da  comunidade, detinham  a  perspectiva  culturalista.  A  dimensão cultural  expressava-se  nos  padrões, crenças, idéi- a s  e  pensamentos  de que são  portadoras  as  culturas  tradicionais .  A  presença  ou  persistên- c ia  d o  conjunto  destes elementos  d e  corte  tradicional f oi  interpretada pelo culturalismo como  expressão  d e  mentalidade atrasada o u  obstáculo à  mudança. Isto pressupunha  que os padrões culturais tradicionais eram inadequa- dos e  distanciados  dos  existentes  nas  sociedades modernas . No  que se  refere  ao  consumo alimentar aqueles estudos detiveram-se  na  descrição  das fontes  d e  abastecimento alimentar, predominan- temente oriundas  da  economia  de  subsistência ou  extrativa  com  baixa dependência  do  mercado; das  práticas  e  crenças associadas  à  produção ali- mentar, da  composição  d a  dieta  e  formas  d e  pre- paro  dos  alimentos;  dos  hábitos  de  consumo  e dos  tabus  e  crenças relacionados  aos  alimentos. Os  estudos mostraram variações  no  consumo, conforme  a  oferta  alimentar  da  economia  de  sub- sistência  ou  extrativa  e a  renda  familiar  d e  dife- rentes  estratos,  o que  resultava numa dieta capaz de  preencher níveis calóricos, protéico s  e vi- tamínicos mais elevados apenas  nos grupos  de posição social mais alta (rendeiros  e  pro- prietários),  em  detrimento  dos  demais  (meeiros, pescadores  e  alugados),  cujo  consumo  de  nutri- entes deixava  a  desejar  (Ferrari 13 , Pierson 37  e Wa- gley 39 ).  Mostraram ainda  a  importância  feminina no  preparo alimentar, área  em que se  exercita- v am  a s  mulheres desde  a  infância,  no uso dos procedimentos culinários, basicamente  o  cozido e o  frito,  juntamente  com o  emprego  de  tempe- ros, extraídos  da flora  local. Os  estudos  de  comunidade explicaram  os ta- bus e  crenças alimentares enquanto regras arrai- gadas,  que se  impunham  à s  mulheres  nas si- tuações após  o  parto  ou nas  situações  de  doença, prescrevendo  o  consumo  de um  conjunto  de  ali- mentos qualificados como carrega dos , le ves ,  quentes e  frios .  Não se  detinham  a  fornecer explicações  sobre  a  origem destas categorias. Con- siderando-as enquanto patrimônio  d a  cultura

Antropologia e Alimentação - Ana Maria Canesqui

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ANTROPOLOGIA E ALIMENTAOAna Maria Canesqui*

CANESQUI, A.M. Antropologia e alimentao. Rev. Sade pbl., S. Paulo 22:207-16,1988. RESUMO: Analisa-se a produo antropolgica referente s prticas, hbitos e concepes de consumo alimentar de segmentos de trabalhadores rurais e urbanos. Dimensiona-se e critica-se a abordagem antropolgica contida nos diferentes estudos, apontando caminhos a serem perseguidos por novas pesquisas, de maneira que a rea de nutrio, alimentao e sade no deixe de prescindir das contribuies antropolgicas. UNITERMOS: Consumo de alimentos. Hbitos alimentares. Antropologia cultural. Trabalhadores. Sade.

No recente, no Brasil, o esforo antropolgico de focalizar elementos culturais e ideolgicos que presidem as prticas de consumo alimentar. O presente texto tem o propsito de rever alguns estudos, sem pretender abarcar a totalidade da bibliografia produzida, mas relacionando os mais significativos e apontando a abordagem antropolgica que eles incorporaram. Os estudos de comunidade, realizados principalmente na dcada dos anos 50, so as mais importantes contribuies empricas e descritivas que recolheram um elenco de informaes sobre a alimentao. Antes deles folcloristas tambm descreveram a "culinria", enquanto aspecto da cultura local indgena que se mesclava com a do colonizador portugus e dos escravos7,14 Vrias foram as populaes urbanas e rurais estudadas na perspectiva da comunidade, ou seja, enquanto agrupamento homogneoe orgnico da vida social que poderia ou no estar submetido a processos de mudana que o desintegrasse. Os antroplogos, nos estudos da comunidade, detinham a perspectiva culturalista. A dimenso cultural expressava-se nos padres, crenas, idias e pensamentos de que so portadoras as "culturas tradicionais". A presena ou persistncia do conjunto destes elementos de corte "tradicional" foi interpretada pelo culturalismo como expresso de "mentalidade atrasada" ou "obstculo" mudana. Isto pressupunha que os padres culturais "tradicionais" eram inadequados e distanciados dos existentes nas "sociedades modernas".*

No que se refere ao consumo alimentar aqueles estudos detiveram-se na descrio das fontes de abastecimento alimentar, predominantemente oriundas da economia de subsistncia ou extrativa com baixa dependncia do mercado; das prticas e crenas associadas produo alimentar, da composio da dieta e formas de preparo dos alimentos; dos hbitos de consumo e dos tabus e crenas relacionados aos alimentos. Os estudos mostraram variaes no consumo, conforme a oferta alimentar da economia de subsistncia ou extrativa e a renda familiar de diferentes estratos, o que resultava numa dieta capaz de preencher nveis calricos, proticos e vitamnicos mais elevados apenas nos grupos de posio social mais alta (rendeiros e proprietrios), em detrimento dos demais (meeiros, pescadores e alugados), cujo consumo de nutrientes deixava a desejar (Ferrari13, Pierson37 e Wagley39). Mostraram ainda a importncia feminina no preparo alimentar, rea em que se exercitavam as mulheres desde a infncia, no uso dos procedimentos culinrios, basicamente o cozido e o frito, juntamente com o emprego de temperos, extrados da flora local. Os estudos de comunidade explicaram os tabus e crenas alimentares enquanto regras arraigadas, que se impunham s mulheres nas situaes aps o parto ou nas situaes de doena, prescrevendo o consumo de um conjunto de alimentos qualificados como "carregados", "leves", "quentes" e "frios". No se detinham a fornecer explicaes sobre a origem destas categorias. Considerando-as enquanto "patrimnio da cultura

Departamento de Medicina Preventiva e Social e Ncleo de Estudos e Polticas Pblicas da Universidade Estadual de Campinas - Caixa Postal 6111 -13081 - Campinas, SP - Brasil.

de folk" (Ferrari13,1960). Ainda nas dcadas dos anos 40 e 50, cientistas sociais, associados ou no a nutrlogos, empreenderam, junto populaes urbanas36 trabalhadoras, inmeros inquritos nutricionais , analisando os nveis de vida, dentre eles a alimentao. Muitos destes inquritos subsidiavam a poltica estatal, seja no concernente poltica salarial da poca, cujo fulcro era a avaliao do salrio mnimo urbano recm institudo (decreto lei 399/1938), seja na definio de polticas alimentares de cunho educativo, dirigidas s camadas trabalhadoras urbanas. Resultaram estes inquritos na identificao das precrias condies alimentares de trabalhadores urbanos. No se constituindo em estudos propriamente antropolgicos, mas que incorporaram a seu modo parcela do conhecimento procedente daquela rea, os inquritos empreendidos pela Comisso Nacional de Alimentao do Ministrio da Sade28-32, nas dcadas dos anos 40, 50 e 60, descreveram o que designaram por elementos culturais nas prticas alimentares. Referiram-se estes aos conceitos (saber) e aos tabus (proibies). Quanto aos primeiros foram descritas noes valorativas, positivas ou negativas atreladas a certos alimentos, resultando ou no no seu consumo, por ocasio da gestao e da amamentao infantil. Quanto aos tabus (proibies), identificaram os referentes a certas misturas alimentares que acompanham o consumo dirio, as adequaes do consumo a certas horas do dia, a determinadas fases de vida (puberdade e infncia) e aos estados da vida reprodutiva feminina (puerprio). Os mencionados inquritos28-32 apontaram deficincias calricas, proticas e de componentes minerais, vitamnicos e de reboflavina na dieta das populaes investigadas. Responsabilizaramse pelas deficincias o baixo poder aquisitivo, os conhecimentos errneos e os tabus, procedentes de uma "herana cultural". Detiveram a viso da autonomia dos diferentes aspectos da vida social (infra e supra-estruturais) resultando em baixo poder explicativo, ademais de desconsiderarem o modo de organizao econmica da sociedade rural e sua relao com oferta e o consumo alimentar. Criticando as abordagens dos estudos de comunidade e das pesquisas oramentrias, Mello e Souza27 (1971) procurou acompanhar, desde a metade dos anos 40 aos meados dos anos 50, diferentes agrupamentos rurais de vrios Estados brasileiros, investigando e comparando traos da "cultura caipira" paulista, sua sociabilidade, os meios de vida e aspectos da mudana cultural (tecnolgica, crenas e valores) que se impem s sociedades tradicionais, graas ao desenvolvimento capitalista urbano-industrial.

Ao contrrio dos estudos de comunidade que enfocaram todos os aspectos da vida social e cultural, Mello e Souza27 abordou a produo dos meios de sobrevivncia e a organizao social e cultural decorrente. Assim, para o autor, algumas culturas no conseguiam ultrapassar um equilbrio mnimo entre o meio fsico e as necessidades, mantido graas explorao dos recursos naturais pelo emprego de tcnicas rudimentares, que por sua vez correspondiam a formas elementares de organizao social. Outras culturas comportavam nveis mais elevados de complexidade e de organizao medida em que se alterava a relao entre necessidade e meio fsico, podendo provocar tais relaes situaes de acomodao, anomia ou mudana. A despeito do aparato conceitual, hoje bastante criticado nas cincias sociais no Brasil - o funcionalismo empregado pelo autor -, o estudo foi capaz de mostrar o empobrecimento e a reduo do consumo alimentar de sitiantes e parceiros paulistas medida em que a produo tende a organizar-se sob a forma capitalista, voltada para o mercado e lucro. O fim do regime de autosuficincia econmica no permitia ao agricultor o provimento de todos os bens alimentares de que necessitava, passando a depender o seu abastecimento e consumo da aquisio de produtos no mercado urbano (caf, acar, sal, carne, trigo, macarro, peixe seco e banha). Neste processo muitos produtos e tcnicas tendiam ao desaparecimento sendo substitudas por outros. Restavam ainda outras modalidades de abastecimento alimentar complementares, seja a caa ou a pesca e os sistemas de solidariedade e de reciprocidade: os emprstimos e as trocas alimentares calcados nas relaes de vizinhana e parentesco. As festas pblicas tendiam a escassear, mas no deixavam de constituir-se em oportunidades peridicas ao consumo mais abundante de alguns alimentos (po e carne) e das bebidas alcolicas. Persistiam atenuadas certas restries alimentares de cunho religioso catlico, a exemplo da abstinncia da carne e do jejum durante a quaresma. Porm, as misturas de certos alimentos (aguardente com doce ou fruta, manga com pepino e as frutas que se excluem mutuamente) suscitavam ainda repulsa, impedindo a racionalidade da dieta. Neste particular, as restries alimentares de cunho religioso, as referidas ao emprego de misturas alimentares ou as relacionadas a situaes de doena ao parto eram interpretadas como irracionalidades comportamentais, presentes na cultura tradicional, constituindo-se em obstculos adoo da racionalidade alimentar, calcada no conhecimento mdico. Esta irracionalidade, produto da "ignorncia" e das "supersties popu-

lares" que se faziam presentes nas interpretaes de muitos autores dedicados anlise da cultura, comportava um vis cientificista e etnocntrico. Por outro lado, opunham os autores o saber popular ao saber erudito, valendo-se do critrio do nvel de cientificidade e da legitimidade deste ltimo, sem questionar as bases sociais e as origens do primeiro. Desde os anos 40 at meados dos anos 60 dominou a orientao social da alimentao na poltica estatal e nos estudos realizados. Esta tendncia reverteu-se 8para orientao 21 tcnica, entre 1964-1972 (Coimbra ,1982; L'Abbate ,1982), como decorrncia das modificaes polticas, econmicas e na estrutura do poder do Estado brasileiro, com repercusses nas contribuies dos cientistas sociais, nutrlogos sociais e da prpria antropologia, no que concerne ao tema objeto deste texto. Ademais, o interesse da antropologia voltavase para outros assuntos, que no o da alimentao e sade. Como bem apontou Da Matta9 (1983), referindo-se s dcadas precedentes aos anos 70, alm dos estudos de comunidade, "a antropologia cultural se resumia em estudos de 'brancos', 'ndios' e 'negros' com pouca consistncia crtica a respeito da contribuio destas categorias como objeto de estudo". NOVAS CONTRIBUIES ANTROPOLGICAS Foi a partir da metade da dcada dos anos 70 que revigoraram as pesquisas na rea das cincias sociais e nutrio. Interferiram neste processo elementos j apontados por Coimbra8, tais como: maior apoio pesquisa pelas fontes financiadoras governamentais, criao de agncias governamentais centralizadoras da poltica de alimentao pela definio da poltica na rea; e a progressiva institucionalizao das cincias da sociedade e seu papel nos rgos pblicos. Alm disto, pode-se agregar outros elementos como a implantao e consolidao de programas de psgraduao em cincias sociais, com resultados positivos na produo acadmica. Vale ainda ressaltar a retomada de preocupaes dos cientistas sociais com a deteriorao das condies de vida e sade das camadas trabalhadoras, enquanto expresses do modelo capitalista em expanso no pas, cujos efeitos "milagrosos" (1967-1973) assentaram-se na monopolizao e internacionalizao do capital, na expanso industrial de alguns setores, na maior adequao da agricultura ao capital monopolista, afetando o padro da produo agrcola e a concentrao da renda, em detrimento das camadas trabalhadoras. E tambm a partir da metade dos anos 70 que este modelo entra em crise recessiva.

Estudos oramentrios sobre o consumo alimentar mostraram entre famlias assalariadas urbanas paulistas a relao entre renda e o valor nutricional da dieta (DIEESE10, 1973). Insuficincia de nutrientes (clcio, vitamina A, tiamina, riboflavina e cido ascrbico) foram encontradas nas faixas de menores rendimentos, ao contrrio dos estratos mdios e superiores que conseguiam preencher os requisitos ideais, do ponto de vista nutricional quanto ao consumo de protenas e ferro. Ressaltou o estudo as baixas propores do consumo de nutrientes de origem animal e a importncia do feijo e no da carne como fontes proticas entre as camadas de baixa renda. Arroz e feijo consistiam nos alimentos bsicos da cesta de consumo, sendo as fontes mais importantes de nutrientes e dos gastos domsticos. Concluses similares procederam do Estudo Nacional de Despesas Familiares (FIBGE15,1974/ 1975) para So Paulo, Rio de Janeiro e Regio Sul, onde aqueles produtos participavam com, respectivamente, 27,9%, 21,8% e 26,6% dos gastos totais em alimentao na classe de menor dispndio de consumo em geral. Ao contrrio da classe de maior despesa, nos mesmos Estados e regio, as percentagens reduzem-se para, respectivamente, 3,7%; 3,3% e 3,9%. O mesmo comportamento no dispndio com alimentao por classe de despesa naqueles Estados e regio Sul aplica-se para outros produtos como trigo, mandioca, batata, acar e derivados, declinando os percentuais gastos conforme ascende-se para as classes de maior despesa. O contrrio d-se para carne, ovos, leite e queijo (Melo26,1983). Se o produto destas pesquisas mostravam as precrias condies de vida das camadas trabalhadoras e a importncia da alimentao nos gastos domsticos, no mbito da antropologia cresceu o interesse em voltar-se para "dramaticidade social", na expresso de Velho38 (1977), das situaes em que se inserem diferentes grupos sociais, bem como entender o seu modo de vida e as representaes e prticas dos agentes sociais desprovidos sobre dimenses da vida social. Neste particular e, nem sempre mantendo posturas tericas similares ou plenamente formuladas, inmeros estudos de caso empreenderam-se abarcando grupos urbanos e rurais. Um dos autores que associou a contribuio da antropologia cincias da nutrio foi Gross17,18 (1971), estudando as transformaes no modo de produo da agricultura do sisal e o gasto energtico dos trabalhadores e dos seus dependentes (no produtivos). Mostrou, entre os assalariados agrcolas, a insuficincia dos salrios auferidos na manuteno de uma dieta que desse conta de preencher o dispndio dos gastos energticos no tipo de trabalho manual desenvolvido. Tal insuficincia tinha impacto sobre a distribuio alimentar na famlia de modo a restar aos filhos da-

queles trabalhadores uma dieta de qualidade e quantidade inferiores em relao consumida pelos chefes das unidades familiares. Isto resultava em baixos nveis de crescimento e de desenvolvimento para os filhos daqueles trabalhadores, no atingindo os recomendados pela cincia nutricional. Este estudo introduziu a importncia da famlia no consumo alimentar, agregando uma preocupao antropolgica, at ento ausente nos estudos anteriores, a despeito da famlia na economia de subsistncia constituir-se, basicamente, em unidade de produo e consumo. Hbitos alimentares foram estudados por vrios autores abarcando diversas situaes camponesas, articulando-os aos domnios da produo e da comercializao dos alimentos, desvendando concepes e ethos de 34 cada grupo (Velho38; Lins e Silva22,1977; Pacheco ,1977; Marcier23,1977; Bastos1,1977). As concluses de Velho sobre estas pesquisas permitem demonstrar o envolvimento de todos os grupos camponeses nas relaes de mercado, referidas a relaes sociais concretas que definem nos diferentes circuitos de troca, de acordo com o produto, suas propriedades e destino. Os produtos camponeses comportavam alternatividade entre consumo e venda, varivel conforme o circuito do mercado e o destino dos produtos. Revelam os pesquisadores a dependncia quase integral do mercado de certas categorias de produtores para obteno de bens alimentares. Novas situaes de mercado podem responder pela modificao dos hbitos alimentares, ao que Velho38 exemplifica com a substituio da farinha seca por fub. Isto implica que a adoo ou rejeio de novos hbitos ser tambm produto da prtica e da experincia dos grupos sociais, bem como do que significam para eles. Velho38 no descartou a importncia do significado da relao natureza/sociedade para explicar os hbitos alimentares. Contudo interroga o que natureza e sociedade para os grupos pesquisados e qual a experincia destes grupos com o que natureza e sociedade. Esta colocao permite desvendar distintas atitudes e concepes de cada grupo diante do trabalho e para que serve a comida, com implicaes sobre a vida social e os hbitos alimentares. Trata-se de compreender os hbitos no conjunto das prticas dos diferentes grupos sociais que no se encontram diante da mesma natureza. A despeito destas observaes apontarem o risco do reducionismo estruturalista da oposio natureza/cultura, pesquisadores como Peirano35 (1976) atribuiram s classificaes alimentares analogias com o totemismo de Lvi-Strauss. Estas proibies entre pescadores referiam-se aos

alimentos "reimosos" (certos peixes), interpretadas pela aproximao simblica entre os domnios da natureza e da cultura: de um lado as espcies de peixes, de outro os seres humanos. As proibies alimentares aplicavam-se a certas pessoas em determinadas situaes e a estados fisiolgicos de sade e doena. Maus e Maus25 (1978) na sua anlise sobre representaes e tabus alimentares entre pescadores no chegaram a rejeitar as formulaes de Lvi-Strauss empregadas por Peirano para entender o modelo que preside a classificao dos alimentos "reimosos". Eles consideram a "reima" como um sistema para-totmico a despeito de darem-se conta da insuficincia desta explicao. Agregam a contribuio de Douglas11 (1976) sobre a oposio simblica "puro" e "impuro", considerada, por eles, como universal. Assim, alimentos impuros (reimosos) devem ser afastados de pessoas impuras ou poludas (em estados liminares), sob pena de agravarem a sua contaminao social, com danosas conseqncias para a sade. Apesar dos autores estarem atentos para as diferentes situaes e contextos em que emergem as proibies e as classificaes alimentares, incorreram no risco de reduzi-las a categorias polares do universo cultural, descuidando do sistema religioso, no qual muitas proibies inserem-se, conforme sugerem os seus prprios dados etnogrficos - a exemplo da relao entre proibies e os rituais xamansticos. Woortmann41 (1978) considera que as classificaes alimentares (quente/frio, forte/fraco, reimoso/descarregado) presidem as prescries, proibies e hbitos alimentares. Embora estas categorias comportem variabilidade regional e individual, o autor aponta a regularidade cognitiva das categorias na teoria popular que incorpora a relao entre o sistema alimentar e o sistema orgnico, extensivos s doenas e a outras categorias cosmolgicas (o dia, a noite; o sol, a lua; o racional e o emocional, e outros). A relao percebida entre o alimento e o organismo constitui-se para o autor41, numa teoria do alimento construda sobre os trs pares de oposio mencionados. Ela exprime uma oposio subjacente genrica entre natureza e cultura, inscrita num modelo "etno-cientfico tradicional". Alm disto, o universo alimentar comporta um modelo simblico da relao alimentoindivduo (ou categoria social). Assim, o conjunto de saberes e prticas no se constituem uma razo prtica. Conformam-se a um modelo cognitivo "holstico" de ordenao do mundo e da natureza. Mais do que a observncia dos "tabus", interessa ao antroplogo o fato daquele modelo exprimir uma teoria mdico-alimentar (Woortmann41, 1978). Por sua vez, os padres alimentares, para

Woortmann, "obedecem a uma lgica onde de um lado opera uma estratgia de subsistncia em que so maximizados os recursos e fatores dos quais depende a reproduo da fora de trabalho e a sobrevivncia da famlia e onde opera, de outro lado, um sistema de conhecimento e de princpios ideolgicos pelo qual se procura otimizar a relao alimento /organismo. Da conjuno de ambos esses planos resultam os padres que caracterizam os hbitos alimentares". A busca de um modelo etno-cientfico tradicional coeso e coerente, cognitivo e simblico para explicar saberes e prticas referidos alimentao ou mesmo sade e doena, no d conta de explicar as fontes que os produzem e sua historicidade. Permanece alheio s foras sociais que forjam as estruturas, que no so produtos do acaso. A busca da lgica e coerncia de um sistema tradicional dotado de autonomia, em relao a outros domnios do prprio conhecimento e da produo/consumo, quando levada s ltimas conseqncias, implica admitir o saber prprio (tambm autnomo) de certos grupos sociais. No se d conta dos fragmentos daquele saber, suas variaes e reinterpretaes a que est submetido pelas categorias sociais que o empregam. Por despolitizar significados simblicos e o prprio conhecimento, relega-se a dominao na sociedade, seus mecanismos e a prpria produo/consumo que passam a ser instrumentalizados mediante aes ou estratgias individualizadas de cunho adaptativo, maximizando o seu poder de contrariar determinantes conjunturais e da acumulao capitalista que afetam a produo e reproduo da fora de trabalho e portanto o consumo. Velho38 (1977), contrariando este ponto de vista, admite que as estruturas e regras que determinam os hbitos alimentares comportam vrios princpios classificatrios a serem verificados em cada caso. So princpios relativos relao entre alimentos e o binmio natureza/ sociedade, nas suas formas concretizadas. Os que se referem relao entre alimentos e organismo humano devem reportar a uma estrutura complexa socialmente definida de rgos e funes em que entram concepes particulares de sade e doena e finalmente princpios ligados prtica social de cada grupo. Com isto descarta o carter de um sistema nico classificatrio determinante dos hbitos alimentares. preciso enfatizar que embora possa haver certa margem de manobra individual diante do consumo alimentar, comportando estratgias de sobrevivncia entre camadas trabalhadoras, o seu carter sempre de subordinao aos determinantes conjunturais e da acumulao de um estilo de desenvolvimento. Tal considerao descarta o carter de sua autonomia, como se os sujeitos transitassem livremente pela sociedade,

como o querem alguns autores. A pesquisa de Brando4 (1981) mostra as representaes de lavradores expropriados e migrados para a periferia da cidade de Mossmedes, no Estado de Gois, sobre as condies de produo de alimentos e a prtica de consumo alimentar. Esta prtica, para o autor, obedece a padres sociais que se apresentam sob a forma de hbitos alimentares. A ideologia alimentar, por sua vez, entendida como parte do conhecimento social da populao. Comporta representaes das crenas e dos padres sociais de uso e das restries alimentares. A comparao entre o "tempo antigo" e os "dias de hoje" servem para os entrevistados explicarem as relaes de trocas sociais (passadas e atuais) das pessoas entre si e com a natureza da regio na produo alimentar. O "tempo antigo" idealizado. As relaes entre os homens, por analogia com a relao homem/natureza, tendem desarmonia, deixando implcita a idia de desordem. De uma relao de convivncia hostil com a natureza (a terra), que dificultava o provimento alimentar, os lavradores hoje sem terra explicavam um "tempo de fortuna". A vida na fazenda, onde detinham parcela de terra "cedida" para o plantio era idealizada por eles e comportava relaes solidrias e harmnicas dos lavradores com os homens (proprietrios) e com a prpria natureza, definida como "frtil", "forte" e "sadia". Tal situao era valorizada como ideal e foi-se deteriorando medida em que certos processos sociais alteraram as condies de acesso terra, impondo ao lavrador novas relaes de trabalho e modificaes na sua dieta. Esta, ao invs de ser produzida por ele, passa a depender cada vez mais da compra de bens e servios. Para o lavrador o empobrecimento da natureza, a dificuldade do acesso terra, a reduo na oferta de empregos, a introduo do mercado e a "ambio" dos patres que o empurram para a cidade. Considera sua vida na cidade repleta de carncias, ao contrrio do tempo de "fartura" de antes. A ideologia alimentar comporta vrios domnios: 1) da natureza apropriada e domesticada para uso do homem, opondo-se natureza no apropriada; 2) do comestvel conforme a procedncia e produo do alimento e do modo como pode ser consumido; 3) da qualidade do alimento quanto a seus efeitos sobre o corpo e o psiquismo do sujeito. Congregam-se no pensamento dois sistemas: um classificatrio incorporando os itens 1 e 2 e outro etiolgico, referido no item 3, comportando classificaes dos alimentos em "forte ou fraco; quente ou frio; reimoso ou semreima; gostoso ou sem gosto". Este ltimo sistema exprime o valor ou qualidade da dieta por re-

ferncia aos efeitos produzidos sobre o corpo ou ao equilbrio bio-psquico. Envolve ainda avaliaes sobre os modos como so transformados os alimentos em "comida". Ao contrrio de outros autores Brando4 no atribui uma uniformidade e coerncia ideologia alimentar, mesmo no que se refere s regras de uso de evitao que, ao invs de obedecerem unicamente a um sistema, incorporam, a seu ver, uma tica de uso que se determina na prtica, mais por condies de acesso e de gosto do que pelos atributos alimentares. Brando4 muito bem adverte o pesquisador do "perigo de uma anlise classificatria de domnio restrito, a respeito do universo alimentar de uma sociedade ou de um dos seus segmentos, oferecer a falsa impresso de que a categoria descrita a determinante na produo de sries classificatrias e de regras de uso e evitao". A despeito da falta de unanimidade das classificaes alimentares4e da tica de uso elas respondem, para Brando , s finalidades de definio social da rea do comestvel e da comida e estabelecem bases para os princpios de acesso, modificaes e uso de alimentos. Estas bases partem de crenas e convices sobre as relaes de troca entre o homem e a natureza, traduzindo partes de uma viso de mundo que incorpora efeitos sobre o equilbrio do sujeito medida em que o homem incorpora parte da natureza para comer, e sobre o habitat, medida em que o homem transforma e destri a natureza para comer. Ainda que reste na anlise do autor certa influncia estruturalista, no se prende exclusivamente a ela. Vale-se ainda de outras abordagens que incorporam a necessidade do antroplogo decifrar as teias de relaes entre os sujeitos sociais entre si e com os outros, por meio de seus smbolos, poderes e suas instituies (Brando3, 1987). Particularmente, na anlise que se empreendeu da produo e consumo alimentar resta uma concepo desta enquanto ncleo de atividade e de relaes, implicando prticas, aes e representaes, 27 que a aproxima da o anlise de Melo e Souza e de algumas idias funcionalistas. Vale contudo, ressaltar a qualidade etnogrfica do estudo, dentre as contribuies do presente tema. CONSUMO ALIMENTAR QUOTIDIANO Estudos de caso sobre segmentos da classe trabalhadora urbana analisaram as prticas e representaes de consumo alimentar, concretizando a maneira como reproduzem, seu modo 24 vida de e sobrevivncia (Canesqui520 1976; Marin , 1977; , Oliveira33,1977; Guimares , 1979; Guimares19, 1983; Canesqui6,1987). As pesquisas acima citadas incorporam dife-

rentes enfoques tericos e interpretaes, porm destacamos os seus elos comuns. Elas inscrevem o consumo alimentar nas oportunidades diferenciais de vida, ou seja, de salrios e rendimentos auferidos, que expressam inseres diferenciais da fora de trabalho familiar no mercado de trabalho, sendo a alimentao elemento bsico de recomposio, manuteno e de sobrevivncia. por referncia famlia que se realiza e organiza o consumo alimentar, ainda que os seus determinantes no se esgotem neste nvel. As pesquisas mostram a famlia trabalhadora enquanto locus da organizao do consumo, enfocando-a primeiramente enquanto unidade de rendimentos. Assim sendo, seus membros compartilham um oramento domstico comum, composto da somatria de salrios e rendimentos, oriundos de inseres diferenciais no mercado de trabalho e de subordinao, tambm, diferente s relaes capitalistas de produo, que se combinam com relaes no capitalistas. O padro de consumo alimentar depende e varia conforme modos de insero no mercado de trabalho, as oportunidades de rendimentos, associando-se a certas caractersticas do grupo familiar (forma de organizao, nmero de membros aptos ou no para o trabalho, idade dos membros e etapa do ciclo de vida) e eventualmente de fontes adicionais de renda (Exemplo: aluguel entre favelados). O expectro da fome e do consumo alimentar, reduzido aqum do mnimo socialmente necessrio definido pelos diferentes grupos pesquisados, faziam-se presentes nas unidades domsticas nucleares dependentes exclusivamente do salrio mnimo do chefe, trabalhador manual, com maior nmero de dependentes ainda inaptos para o trabalho ou nas situaes de desemprego e de aposentadoria. Estas eram mais freqentemente encontradas na etapa recessiva do que no perodo de expanso econmica. Ao contrrio, maiores possibilidades de realizao do consumo detinham as famlias ampliadas ou nucleares do operariado fabril especializado, em que o oramento domstico no dependia exclusivamente do chefe, compondo-se pelos salrios dos filhos maiores de 18 anos, eventualmente da mulher e de parentes agregados (no caso de famlias extensas). A importncia da famlia para o trabalhador sobreviver e obter rendimentos foi apontada pelas pesquisas. Diante da insuficincia dos salrios ou ganhos do chefe-principal provedor impunha famlia trabalhadora a alocao de mais membros no mercado de trabalho, podendo ou no rearranjarem-se os papis familiares. Alm disto, enquanto meios compensatrios aos baixos salrios, os chefes aumentavam a sua jornada de trabalho, empregavam o dinheiro das frias para o pagamento de dvidas acumuladas, usavam fon-

tes alternativas de rendimentos, mediante associao entre trabalho assalariado e autnomo no mercado informal ou ainda ampliava-se o grupo familiar. Estes arranjos configuram-se em estratgias de sobrevivncia tambm identificadas por outros pesquisadores que se dedicaram ao estudo de famlias trabalhadoras (Bilac2, 1978; Woortmann40, 1984; Goldemberg16; Fausto Neto12,1982). O uso de oramento domstico implicava a diviso dos papis familiares, resultando na atribuio do homem colocar comida em casa e da mulher gerenciar e controlar o consumo domstico. As despesas compartilhavam-se entre os membros da unidade domstica. Por outro lado, a hierarquia de consumo impe-se, manifestando-se concepes e avaliaes sobre as necessidades ideais e o consumo efetivo, dimensionadas frente insuficincia dos salrios. Se certas prioridades de consumo da famlia podem sofrer variaes conjunturais, as situaes investigadas mostram a maior importncia da alimentao, seguida pela casa e os gastos com gua, luz e gs. Os demais itens, a despeito de valorizados e necessrios (transporte, sade, educao e vesturio) tornam-se secundrios no escalonamento de prioridades. As fontes de abastecimento alimentar, organizadas na economia urbana, pela combinao de formas mercantizadas e no mercantizadas, esto presentes nos modos de aquisio alimentar das unidades domsticas. No o supermercado, que comporta formas mais capitalizadas de produo, a principal fonte de abastecimento alimentar, mas o armazm e o pequeno comrcio que circundam os bairros perifricos urbanos. Prevalece nas modalidades de abastecimento das famlias os arranjos econmicos entre consumidores de baixa renda e os comerciantes; a compra a crdito e em pequenas pores; o uso do pequeno comrcio mais prximo s residncias; a combinao de diferentes fontes de abastecimento (armazm e supermercado) conforme a disponibilidade de dinheiro e do sistema promocional de vendas dos supermercados e avaliaes sobre o preo (Canesqui6, Oliveira33). No se excluem outras fontes complementares e transitrias de abastecimento aumentar calcadas nos padres de solidariedade dos grupos pesquisados, na produo domstica dos quintais e na poltica assistencial (pblica ou privada), conforme apontaram todas as pesquisas. A aquisio de alimentos nos grupos pesquisados comporta o estabelecimento de hierarquias de necessidades, que se expressa na classificao de produtos considerados "mais necessrios" arroz, feijo, sal, acar, farinha, leite, po, leo e outros "menos necessrios" hortalias e carnes. Tal hierarquia incorpora critrios

econmicos referentes ao preo dos alimentos e a disponibilidade de dinheiro que obriga a restringir ao mnimo as compras alimentares e a substituir produtos mais caros pelos mais baratos, os mais nutritivos pelos menos nutritivos, observando-se a regra bsica de controle e economia. Implica ainda critrios que avaliam o costume alimentar, a oferta, a qualidade e atributos dos alimentos do ponto de vista nutricional e suas adequaes de consumo, os regionalismos e a preservao ou ruptura das identidades sociais (Marin24, Guimares20, Oliveira33). A gerncia e o controle da alimentao do grupo familiar so atribuies femininas, como vimos. As pesquisas mostram a diviso dos papis sexuais na organizao e realizao do consumo alimentar familiar pela segregao entre sexos na gerncia dos gastos e no preparo de alimentao e pela complementao e diviso de responsabilidades entre seus membros, no caso das compras alimentares. Alm disto o trabalho feminino no preparo da alimentao rege-se por regras: de economia e controle, morais, estticas e de higiene, permeando o prprio trabalho domstico referido cozinha, ao uso dos equipamentos domsticos, aos cuidados com os alimentos e casa e alimentao da famlia. Comporta ainda aquele trabalho o dispndio de tempo, uma organizao especfica, capacitao e treinamento. Este obtmse mediante um processo de socializao no mbito da famlia, resultando na produo e reproduo de atuais e futuras donas de casa, incorporando-se regras e concepes que presidem o trabalho domstico e o prprio consumo (Canesqui6). Quanto inculcao das prticas de consumo na famlia, Guimares20 lembra o quanto as crianas so nelas socializadas, no sem resistncias. Oliveira33, por sua vez aponta regras de economia e controle, de no comer fora de casa e fora de horrio. Destitudas as pesquisas de preocupaes com a contabilidade do consumo, elas analisaram os contedos dos cardpios cotidianos e as refeies. Do contedo dos cardpios resulta uma dieta montona, restrita ao arroz e feijo, "comida" propriamente dita e a algumas "misturas" (ovos, batata, macarro e verduras) e raramente a carne. Trata-se da "comida que pobre come todos os dias", conforme define-se, detendo a nvel ideolgico significados referidos por alguns autores, identidades sociais e prpria sobrevivncia e, por outros, aos modos de pensar as condies de vida e a posio que ocupam na sociedade. De qualquer forma a alimentao sempre concebida como medida de privao dimensionado-se as limitaes salariais para sobrevivncia e o padro alimentar possvel de ser obtido. Esta avaliao tambm incorpora ideais de consumo pela incorporao de necessidades renovadas e de

ascenso social, numa perspectiva centrada no indivduo e no nas foras sociais organizadas. O cardpio comporta variaes que se realizam dentro dos limites estreitos financeiros, s quais interpem-se os componentes referidos a organizao do trabalho na sociedade industrial (tempo de trabalho, descanso e lazer), a eventos de natureza religiosa, a comemorao de datas biogrficas e sociais, propiciando a diversificao e maximizao do consumo. Certas refeies marcam os rituais familiares, o estreitamento de laos de parentesco e amizade, o tempo de lazer e a reunio familiar, embora sejam cada vez mais escassas. O cardpio pode ainda variar conforme a idade, sexo, a condio diante do mercado de trabalho de certos estados fisiolgicos, de sade e doena. Aqui entram concepes especficas , correlacionando-se propriedades e atributos alimentares expressos atravs de um raciocnio de oposies entre alimentos "fortes/fracos";"pesados/ leves"; "ofensivos/no ofensivos" e "vitamina" e suas adequaes ou no de uso s situaes e estados orgnicos apontados. Alguns destes atributos - "forte/fraco", "pesado/leve", "vitamina", "gostoso/sem gosto" - servem para qualificar a dieta consumida ou idealizada, por referncia concepo de pobreza que comporta desigualdades entre iguais (os pobres) e os outros (os ricos). A desigualdade entre iguais implica, do ponto de vista dos entrevistados, escalonar a condio de trabalhadores pobres mediante critrios que incorporam o quantum de salrio, a apropriao de bens de consumo, as formas de insero e qualificao diante do mercado de trabalho e a construo de identidades sociais. Restam diferentes graus de pobreza, que no chegam a ultrapassar uma condio geral de empobrecimento e a avaliao de uma dieta "fraca", que o pobre dispe, a despeito da valorizao da "comida forte", pesada, "com vitamina" e "sem vitamina". Por sua vez, a desigualdade referida aos outros (os ricos) no incorpora os mecanismos de explorao, mas estabelecida mediante comparaes entre o que os ricos podem adquirir, pelo fato de disporem de dinheiro: "boa comida, muitas bebidas, sobremesa, carne todos os dias e comida variada". Sendo o resultado no apenas uma dieta de melhor qualidade, mas principalmente de uma dieta que representa uma condio de vida melhor em termos de aspirao de um padro de consumo. O mesmo raciocnio aplica-se na avaliao da dieta referida desigualdade entre iguais, recusando o padro inferior alimentar referido aos "pobrezinhos" e aspirando e valorizando um padro alimentar superior, possvel de ser al-

canado pelos estratos superiores, identificados com o operariado fabril no manual. As representaes sobre consumo no recusam a condio de trabalhador. A avaliao da dieta, da maneira como feita pelos entrevistados, revela uma forma de pensar a alimentao dentro dos parmetros das condies de vida e trabalho, do prprio consumo, do corpo socialmente posicionado, dos atributos alimentares e da construo de identidades sociais, que contraditoriamente favorecem ou negam a condio de ser pobre. A comida valorizada, que se dispe, aquela "capaz de sustentar o corpo, dar fora e energia para trabalhar, a que enche a barriga, deixando a sensao de estar alimentado". Trata-se enfim da "comida de pobre", cuja lgica da insuficincia e da "barriga cheia" preside as prticas de consumo alimentar, sempre conjugadas aos determinantes gerais e especifcos do consumo alimentar, concomitantemente de natureza econmica, ideolgica e cultural. As concepes mostram invariavelmente, entre os trabalhadores urbanos pesquisados, a importncia da alimentao para "viver, trabalhar e sobreviver". similaridade das concepes sobre sade, detidas por aqueles grupos sociais, comporta a alimentao a mesma instrumentalidade do corpo para o trabalho e a garantia da sobrevivncia, vida e crescimento da futura gerao (Canesqui6). CONSIDERAES FINAIS Os estudos antropolgicos apresentados neste texto mostram a importncia das contribuies dessa rea de conhecimento na elucidao das prticas, concepes e saberes sobre a produo e consumo alimentar entre setores sociais que representam as foras de trabalho urbana e rural despossudas, com as quais as pesquisas estiveram comprometidas. Elas remeteram particularmente aos aspectos materiais e no materiais, que envolvem a produo dos meios de sobrevivncia e a reproduo da fora de trabalho, na sua dimenso concreta e cotidiana, da qual a alimentao componente fundamental. Assim, a questo dos hbitos alimentares, noo empregada por alguns autores e as prticas de consumo de acordo com outros autores, devem ser entendidas no conjunto de prticas dos diferentes grupos sociais, com o cuidado de no particulariz- los e isol-los dos determinantes de ordem scio-econmica e de natureza ideolgica que modulam a prpria produo, distribuio e o consumo em nossa sociedade, comportando especificidades e heterogeneidades conforme realiza-se concretamente o modo de produo capitalista.

A respeito da necessidade de no se tomar os hbitos alimentares e as prticas de consumo isoladamente, Velho38 adverte bem: "numa sociedade em que esto presentes formas de produo diferentes e dominncias de vrias ordens que se superpem e se combinam, seria preciso abrir espao para considerar adequadamente outras possibilidades relevantes, referentes, tambm, em ltima instncia, internalizao das condies de ordem scio-econmica, mas mediadas pelo estabelecimento de hegemonias que podem, inclusive, ser puramente setoriais, diferentes de acordo com o domnio e o contexto, mas que estabelecem sistemas complexos de balanceamento e de compensaes". Esta observao aponta para a dimenso cultural no contexto ideolgico e para a dimenso poltica que se torna expressiva quando se considera prticas de consumo ou mesmo os hbitos que no comportam autonomia dos designos da produo, que por sua vez gera necessidades sempre renovadas que tendem a pressionar por maior valor da fora de trabalho, modulando

ainda as prticas de consumo. As contribuies antropolgicas analisadas deixaram um alerta aos estudiosos do campo da nutrio quanto aos limites e inadequaes das abordagens que circunscrevem a cultura aos tabus e crenas alimentares, conforme criticamos no decorrer do texto. Resta ainda um elenco de estudos nesta rea que no pode prescindir do conhecimento antropolgico, sempre que se tenha em jogo ultrapassar a dimenso estritamente biolgica da questo nutricional e alimentar. Cabe ainda ao trabalho antropolgico nesta rea, entre outros temas, contribuir elucidao do impacto das polticas governamentais alimentares dirigidas a certos grupos da populao uma vez que dizem respeito aos meios coletivos de consumo; aprofundar a relao famlia e consumo e compreender as prticas que se consolidam nos aparelhos produtores de ideologias que, embora constantemente recriadas, imprimem uma certa direo s prticas de consumo das camadas subalternas.

CANESQUI, A.M. [Anthropology and eating]. Rev. Sade pbl., S. Paulo, 22: 207-16,1988. ABSTRACT: The anthropological literature on the practices, habits and conceptions of eating of rural and urban workers in Brazil. Was critically analysed, suggesting theoretical paths to be pursued by further research. In this way, the anthropological method can offer a relevant contribution to the development of the health sciences as far as nutrition and eating are concerned. UNITERMS: Food consumption. Food habits. Anthropology, cultural. Workers. Health.

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Recebido para publicao em 11/6/1987 Reapresentado em 16/12/1987 Aprovado para publicao em 29/3/1988