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903 Estudo de caso sobre a experiência com a “pressão alta” | 1 Ana Maria Canesqui | 1 Doutora em Ciências e Livre-Docente em Ciências Sociais Aplicadas à Medicina. Departamento de Saúde Coletiva. Faculdade de Ciências Médicas. Universidade Estadual de Campinas, Brasil. Endereço eletrônico: canesqui@fcm. unicamp.br Recebido em: 16/04/2013. Aprovado em: 15/09/2013. Resumo: Aborda-se a experiência com a “pressão alta” e enfermidades associadas postas como sofrimentos físicos e morais na totalidade da pessoa que vive, reflete e atua em meio às circunstâncias de vida que a afetam. Trata-se de estudo de caso integrante de uma investigação qualitativa sobre narrativas e significação da “pressão alta”, feita com 17 homens e 20 mulheres diagnosticados há mais de um ano com hipertensão arterial, usuários de uma unidade de Saúde da Família de uma cidade interiorana paulista. Dois motivos nortearam a seleção do caso: estar incluído entre os sete indivíduos entrevistados que mencionaram ter descoberto a hipertensão na ocasião em que passaram pelo infarto cardíaco ou pelo derrame cerebral e pertencer ao gênero feminino. As informações foram obtidas mediante entrevistas semiestruturadas sobre as condições percebidas de saúde, a descoberta da enfermidade, as explicações sobre sua gênese, os itinerários terapêuticos, os apoios sociais recebidos; as relações com os serviços de saúde e outros agentes de cura e o gerenciamento das prescrições médicas. Demonstram-se as interconexões da experiência pessoal e singular do adoecimento com os contextos socioculturais mais amplos, com os valores morais, relações sociais e as representações sociais sobre corpo, saúde, doença e cuidado compartilhados com a classe trabalhadora. Palavras-chave: experiência com a enfermidade; hipertensão arterial, ciências sociais e saúde; pesquisa qualitativa em saúde.

Pressãoalta Canesqui

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Estudo de caso sobre experiencia com hipertensão arterial na perspectiva socioantropologica

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  • 903Estudo de caso sobre a experinciacom a presso alta

    | 1 Ana Maria Canesqui |

    1 Doutora em Cincias e Livre-Docente em Cincias Sociais Aplicadas Medicina. Departamento de Sade Coletiva. Faculdade de Cincias Mdicas. Universidade Estadual de Campinas, Brasil. Endereo eletrnico: [email protected]

    Recebido em: 16/04/2013.Aprovado em: 15/09/2013.

    Resumo: Aborda-se a experincia com a presso alta e enfermidades associadas postas como sofrimentos fsicos e morais na totalidade da pessoa que vive, reflete e atua em meio s circunstncias de vida que a afetam. Trata-se de estudo de caso integrante de uma investigao qualitativa sobre narrativas e significao da presso alta, feita com 17 homens e 20 mulheres diagnosticados h mais de um ano com hipertenso arterial, usurios de uma unidade de Sade da Famlia de uma cidade interiorana paulista. Dois motivos nortearam a seleo do caso: estar includo entre os sete indivduos entrevistados que mencionaram ter descoberto a hipertenso na ocasio em que passaram pelo infarto cardaco ou pelo derrame cerebral e pertencer ao gnero feminino. As informaes foram obtidas mediante entrevistas semiestruturadas sobre as condies percebidas de sade, a descoberta da enfermidade, as explicaes sobre sua gnese, os itinerrios teraputicos, os apoios sociais recebidos; as relaes com os servios de sade e outros agentes de cura e o gerenciamento das prescries mdicas. Demonstram-se as interconexes da experincia pessoal e singular do adoecimento com os contextos socioculturais mais amplos, com os valores morais, relaes sociais e as representaes sociais sobre corpo, sade, doena e cuidado compartilhados com a classe trabalhadora.

    Palavras-chave: experincia com a enfermidade; hipertenso arterial, cincias sociais e sade; pesquisa qualitativa em sade.

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    Introduo bastante pertinente abordar a experincia com as enfermidades de longa

    durao consideradas crnicas pela biomedicina, geralmente invisveis,

    multifatoriais, cujas causas nem sempre so conhecidas, e que impem aos

    adoecidos prolongado convvio com elas, demandando encontros frequentes com

    os mdicos e profissionais de sade, sem a eles se restringirem. Essas doenas

    produzem impactos sobre as vidas dos sujeitos e seu entorno, em funo de

    suas especificidades e transtornos ocasionados. Anselm Strauss foi o primeiro

    socilogo a abordar os significados e a experincia com essas enfermidades,

    afirmando que as doenas crnicas so de longa durao, incertas, mltiplas,

    requerem paliativos, porque so incurveis (STRAUSS; GLASER, 1975, p. 16).

    A hipertenso arterial sistmica, clinicamente apresentada como assintomtica,

    crnica, multifatorial, de risco para outras enfermidades (cardiovasculares,

    complicaes renais, cerebrovasculares e outras leses) incurvel, porm

    controlvel pelas tecnologias mdicas. crescente problema de sade pblica

    e seu controle, vigilncia e monitoramento so objeto da poltica nacional de

    sade. Sua prevalncia abrange 35% da populao jovem e adulta acima de 40

    anos (BRASIL, 2006).

    Nas anlises sociolgicas das enfermidades crnicas, destacam-se no contexto

    anglo-saxo as abordagens da experincia da enfermidade revistas por Pierret

    (2003). A autora aponta uma fase inicial das pesquisas centrada na experincia

    subjetiva, abordando as metforas, representaes cognitivas, imagens e

    aprendizagem em relao ao adoecimento, formas de enfretamento e os manejos

    para amenizar seus efeitos. Os estudos tambm incluram nesta fase o estigma,

    a vergonha e a perda do eu em torno de algumas enfermidades e anlises das

    narrativas. Outra fase das investigaes centrou-se nas interaes dos pacientes

    com os demais, incluindo a organizao familiar e as atividades ocupacionais; as

    diferenas de gnero, tnicas e sociais; as aes de coping, estilo e normalizao,1 integrantes das modalidades ou estratgias de ajustamento enfermidade,

    apontando-se mais recentemente a necessidade de relacionar a experincia pessoal

    e subjetiva com os contextos polticos, econmicos e socioculturais mais amplos.

    Compartilha Pierret das sugestes do socilogo ingls Michel Bury (1991, p.

    453), sobre a necessidade de as pesquisas relacionarem as experincias singulares

    e os significados com a organizao do cuidado mdico, a interferncia da mdia,

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    905das associaes e movimentos de pacientes e com o consumismo, a que esse autor

    designa de externalidades contextuais experincia, enquanto Pierret prefere

    report-los genericamente estrutura social2 (2003, p. 8). Sugere a autora que

    esse tipo de anlise deve ultrapassar a anlise dos fatores sociais e econmicos

    para incluir os efeitos dos pertencimentos de classe social, gnero, etnia, idade

    e as influncias do contexto geral na experincia da enfermidade, assim como

    os efeitos sobre a organizao do cuidado, das instituies e no saber mdico,

    sempre mutveis no tempo e na histria das sociedades.

    Pierret admite a raridade de estudos anglo-saxes nesta direo, que aderem

    s perspectivas sincrnicas e anistricas. Entretanto, menciona algumas

    investigaes britnicas como exemplares da ultrapassagem da experincia

    subjetiva e individualizante da enfermidade, enfocando os impactos do contexto

    socioeconmico e das ideologias sociais mais amplas na construo de certos

    eventos vitais (menopausa e envelhecimento) e doenas; o papel da poltica

    de sade, do sistema de cuidado, do conhecimento mdico e dos modelos e

    imagens corporais difundidos pela mdia sobre a experincia com a enfermidade.

    Acrescenta a necessidade de os estudos abordarem a relao entre a biologia, as

    emoes e o corpo na experincia da enfermidade e incapacidade.

    A sociologia est mais presente do que a antropologia nas investigaes anglo-

    saxnicas sobre a experincia com as enfermidades de longa durao. Entretanto,

    a antropologia mdica norte-americana aproximou-se do paciente, afirmando ser

    a doena profundamente individual por alcanar o mundo subjetivo, corporal

    e ntimo, inscrevendo-se nas biografias dos sujeitos e nos contextos cultural e

    moral (KLEINMAN; SEEMAN, 2000), sempre localizados nos tempos e nos

    espaos sociais historicamente construdos, transcendentes ao mundo prtico e

    imediato. Uma parte desta literatura abordou a relao da experincia pessoal

    com o sofrimento e os construtos socioculturais, morais e relacionais sem se ater

    to somente dimenso pessoal/subjetiva e orgnica.

    relativamente escassa a produo acadmica nacional sobre a hipertenso do

    ponto de vista da investigao qualitativa em interlocuo com as cincias sociais e

    humanas. Uma reviso a respeito nas bases eletrnicas de informaes cientficas

    como Lilacs e Biblioteca Virtual de Sade Pblica identificou 146 artigos,

    teses de doutorado e dissertaes de mestrado na palavra-chave hipertenso

    (CANESQUI, 2007). Distribuiu-se esta produo cientfica, segundo os tipos

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    de estudo, em: epidemiolgicos (40%); servios mdicos-assistenciais (17,0%);

    clnicos, experimentais e farmacolgicos (13,0%); adeso/no adeso aos

    tratamentos mdicos (2,5%); psicologia e cognio (2,5%); cincias sociais e

    humanas (8,0%); outros (17,0%). Incluram-se nesta ltima categoria os estudos

    reportados palavra-chave hipertenso, sem abord-la exclusivamente.

    As investigaes relacionadas s cincias sociais e humanas, geralmente feitas

    entre mulheres pertencentes s classes trabalhadoras de baixa renda, aproximaram-

    se mais raramente da anlise da poltica de sade dirigida hipertenso, mas

    principalmente da pesquisa antropolgica, enfocando o modelo de signos,

    significados e aes; a anlise de narrativas; as representaes da enfermidade;

    a identidade e localidade, perpassando os discursos sobre a enfermidade e as

    relaes com os tratamentos mdicos. Os estudos se deram a partir do final

    da dcada de 1980 em diferentes contextos urbanos e regies do pas, sendo

    seus autores cientistas sociais ou profissionais de sade. No se registraram nesta

    reviso da literatura pesquisas sobre a experincia com a presso alta.

    Investigaes sobre o uso de servios de sade em reas cobertas pela Estratgia

    de Sade da Famlia (ESF) no municpio de So Paulo apontam certo nvel de

    acesso e uso dos servios de sade na populao residente em reas empobrecidas

    daquele municpio, mesmo que no cobertas pela ESF (GOLDBAUM et al.,

    2005). Admitem os autores que esta estratgia foi capaz de reduzir os efeitos

    das condies sociais desiguais, medidas atravs de variveis socioeconmicas

    e demogrficas selecionadas sobre o perfil do acesso e de uso dos servios de

    sade com melhora da equidade social. Acrescentam tambm que, uma vez

    efetivamente implantada, esta estratgia produz impactos no perfil do acesso e

    uso dos servios de sade (GOLDBAUM et al., 2005).

    Voltando a ateno a uma parcela de hipertensos usurios de uma unidade da

    ESF da cidade de Amparo, Estado de So Paulo, no se investigou localmente

    a implementao desta estratgia, vigente h 11 anos na cidade no momento de

    realizao da pesquisa que deu origem ao estudo de caso abordado neste texto.

    Entretanto, avaliaes e pesquisas sobre os vrios aspectos daquela estratgia

    apontam os obstculos e efetiva implementao no territrio nacional, em especial

    a desejada mudana do modelo assistencial, admitindo possibilidades de superao

    dos problemas encontrados (CAMARGO JR., 2008). Apontam tambm as

    avaliaes empreendidas diferenas na cobertura populacional, a importncia no

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    907acesso das populaes empobrecidas ateno bsica, os problemas relacionados

    ao financiamento, a implementao parcial de algumas atividades previstas, alm

    de outros aspectos (BRASIL/MS, 2002a; 2002b; 2005).

    Esse tipo de ateno bsica procura submeter os pacientes s normas mdicas

    no controle da hipertenso arterial e na preveno de seus riscos. Apesar disto,

    importante abordar a complexidade da experincia com a enfermidade. Trata-se

    de um processo atravessado por mltiplas dimenses: situacionais, sociais, morais,

    afetivas, relacionais sempre permeando os contextos das vidas dos sujeitos, de seu

    entorno e grupo social, vivendo sob determinadas condies sociais e de sade,

    de classe e gnero.

    Este trabalho se centra na experincia com a presso alta e outras doenas

    coadjuvantes e consequentes, ancorado em um estudo de caso, integrante de

    uma pesquisa socioantropolgica e qualitativa sobre narrativas e significados da

    presso alta realizada em 2009, entre 17 homens e 20 mulheres diagnosticados

    com hipertenso arterial h menos de um ano, segundo informaes do Cadastro

    Hiperdia de uma Unidade de Sade da Famlia (CANESQUI, 2010).3

    Os informantes desta pesquisa eram de baixa renda e pertencentes aos

    segmentos da classe trabalhadora urbana, descobertos pelos planos de sade

    privados e primordialmente dependentes dos servios pblicos e filantrpicos de

    sade. Residiam nos diferentes setores territoriais de uma rea coberta por aquela

    unidade. Sem abrir mo da interpretao da pesquisadora, enfoca-se o relato na

    primeira pessoa de uma mulher diagnosticada com hipertenso arterial sistmica.

    Seleo do caso, procedimentos e instrumentos da investigaoA ESF, dirigida s famlias empobrecidas da cidade de Amparo, permite

    aos hipertensos cadastrados na unidade de sade acessar periodicamente a

    ateno clnica, obter medicamentos e ser acompanhados por uma equipe

    multiprofissional, atuante na prpria unidade e nos domiclios. Nestes ltimos

    do-se principalmente a visitao e os aconselhamentos mdicos e teraputicos

    pelos agentes comunitrios de sade aos adoecidos cadastrados.

    As informaes para o estudo de caso procederam de trs entrevistas

    feitas mediante roteiro semiestruturado. Elas foram gravadas, transcritas e

    analisadas. Extraiu-se o caso do universo de 37 entrevistados do mencionado

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    estudo, selecionando-o por dois motivos: encontrar-se entre os sete indivduos

    entrevistados que mencionaram ter passado pela experincia de infarto cardaco

    ou de derrame cerebral, como momentos primordiais de descoberta da hipertenso

    arterial e pertencer ao gnero feminino.

    Esse tipo de estudo qualitativo circunscrito e no pretende generalizar seus

    resultados. D-se sempre em torno de uma unidade (pessoa, instituio, classe

    de crianas, grupo, comunidade, entre outros). O estudo de caso, segundo Stake

    (2000), microscpio, localizado, particular e organizado em torno de um

    pequeno nmero de questes, comportando sempre um recorte. Para o autor, o

    propsito do relato de caso no representar o mundo, mas representar o caso

    (STAKE, 2000, p. 448). Sua anlise transcende a experincia pessoal/subjetiva,

    permitindo dialogar com o contexto mais amplo onde se insere.

    A tcnica de relato oral foi utilizada, sem conferir total autonomia ao

    entrevistado medida que os temas so sugeridos e controlados pelo pesquisador

    (QUEIROZ, 1987). Os relatos orais so sempre verses da experincia com o

    adoecimento e os eventos que a cercam. Eles foram fornecidos pela entrevistada

    pesquisadora e por ela interpretados. Vislumbra-se, portanto, uma anlise do

    ponto de vista socioantropolgico em torno da experincia com o adoecimento e

    os sofrimentos fsicos e morais.

    A exposio do caso, atravs da leitura da experincia com a enfermidade,

    ultrapassa a doena como fato biologicamente informado, inserindo-a no contexto

    sociocultural, econmico, moral, relacional e biogrfico de quem age, reflete e

    atua diante dos eventos, no destitudo das capacidades reflexiva, interpretativa e

    da ao. Este estudo de caso pontual nos aspectos da experincia da enfermidade

    considerados, tais como: as interpretaes das condies de sade no momento

    da entrevista; o uso dos conhecimentos eruditos e no eruditos (do prprio grupo

    social); as explicaes gnese da enfermidade; representaes e significaes da

    enfermidade e da condio de adoecimento; a mobilizao de recursos de cura

    (itinerrios teraputicos), os apoios sociais recebidos; a descoberta da presso

    alta; as formas de control-la e de interpret-la.

    LucianaLuciana (nome fictcio) nasceu em Amparo, onde reside h 58 anos. Casada, mora

    em casa prpria com o marido e uma filha. Os demais filhos casados residem

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    909em outras cidades. Cursou o ensino fundamental e trabalhou como faxineira

    diarista durante algum tempo. Dedicava-se, no momento das entrevistas, apenas

    aos afazeres domsticos no remunerados, apresentando-se como do lar. A

    renda familiar soma trs salrios mnimos e meio, advindos da aposentadoria do

    marido e de alguns servios feitos por ele como bicos remunerados.

    Apesar de hipertensa diagnosticada, omitiu esta enfermidade quando

    discorreu sobre seu estado de sade atual, enfatizando os problemas cardacos,

    as dores (no peito e na coluna) e os problemas vaginais, atribudos ao clima frio,

    que segundo o senso comum, responsvel pelos desequilbrios da temperatura

    ambiental com o corpo quente, impedindo-a sentir-se sadia. Submeteu-se

    cirurgia cardaca h dez anos. Relembra este evento marcante em sua vida,

    que lhe alterou as rotinas dirias, a prpria vida, as condies percebidas de

    sade, a capacidade de trabalhar como faxineira e a identidade social de pessoa

    considerada anteriormente sadia. Nas palavras de Luciana:Eu no ia ao mdico, eu estava com a sade perfeita, sade boa. Eu trabalhava, eu cuidava de tudo, fazia de tudo. A aconteceu aquele sangramento. Fui correndo para o hospital. Passaram algumas horas e o mdico mandou voltar para a casa e procurar um cardiologista. Fiz cateterismo, a enfermeira me levou para So Paulo e melhorei um pouco. Mas no teve jeito. Passei por muitos exames, fiz duas angioplastias, exames de sangue, exame do corao. Sofri bastante. No teve jeito. Operei o corao. Voltei a casa e estava bem, mas eram muitos problemas na famlia [...]. Depois faleceu meu filho, h trs anos. Eu sofro muito. Sinto falta dele, mas minha tristeza porque quem morava com ele no cuidava dele e eu no podia cuidar. Sabe o que pensar no filho desde a hora que levanta at quando vai dormir?Tomo remdio, levanto, penso de novo nele o dia inteiro. No me esqueo dele... e a fiquei pior porque aumentaram as dores.

    A centralidade no relato de Luciana das dores, dos eventos relacionados ao

    corao e s perdas (da sade e do filho) traduz sofrimentos fsicos e morais.

    Ao lado disso, o corao condensa simbolismo socialmente compartilhado

    como rgo sede da vida e das emoes, compreendendo as significaes e a

    importncia da cirurgia neste rgo nas suas explicaes e os efeitos simblicos e

    concretos sobre seu corpo e pessoa.

    Alm do sangramento, simbolizando perigo de vida e necessidade urgente

    de atendimento mdico, ela relata detalhadamente o atendimento obtido no

    hospital por ocasio da cirurgia cardaca. Exceto a cirurgia, os demais atos

    mdicos aos quais se submeteu por ocasio da internao hospitalar no foram

    inteiramente inteligveis. Refere-se s frequentes manipulaes de seu corpo nos

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    atos de examinar, de controlar os sinais vitais feitos por mdicos e enfermeiros, aos

    vrios exames laboratoriais e por imagem aos quais se submeteu, a administrao

    frequente de medicamentos nos horrios previstos e a maior concentrao naquele

    espao de profissionais, especialistas e tecnologias mdicas.

    Este conjunto de atos mdicos e o uso de tecnologias mais sofisticadas

    forneceram Luciana certeza de ter sido examinada exaustivamente, solucionando

    temporariamente os problemas e as dores no peito. O hospital, nas representaes

    do senso comum, lugar onde se dispe de bom atendimento, ou seja, do

    acesso s tecnologias mdicas, aos mdicos especialistas e aos exames sofisticados

    (CANESQUI, 1992), todos indisponveis na ateno bsica. tambm espao

    pouco familiar s pessoas das classes trabalhadoras.

    No tempo decorrido aps a cirurgia, Luciana reitera seus esforos permanentes

    e contnuos de procurar os servios de sade, da frequente relao com os mdicos

    para resoluo dos males fsicos e morais que a afligem, vendo-se transformada

    de pessoa forte (disposta para o trabalho e resistente, segundo o senso comum)

    em pessoa nervosa, fragilizada fsica e moralmente. Relata: faz dez anos, no

    fiquei bem mais. Passa uma semana, semana passa e eu fao as coisas e voc pode

    ver. No so como eram antes.

    A ruptura biogrfica, na expresso de Bury (1982), inclui a experincia com

    as condies crnicas na qual a estrutura da vida cotidiana, seus significados e

    formas de conhecimento so interrompidos, levando o adoecido a questionar o

    sentido de sua existncia, a autoimagem e as explicaes do adoecimento e de

    sua condio. Este processo no estanque comporta a reorganizao biogrfica

    contnua no desenrolar do tipo de enfermidade, das circunstncias de vida e de

    seu entorno e, provavelmente, no contato com as intervenes mdicas regulares.

    Os itinerrios teraputicos percorridos por Luciana incluem, alm da

    medicina, dos mdicos e servios de sade, os agentes religiosos e o uso de

    recursos informais de cura. Este conceito se refere busca de cuidados, s aes,

    interpretaes e significao no submetidas a um nico padro. Mass (1984)

    lembra as mltiplas variveis (situacionais, sociais, psicolgicas, econmicas,

    ideolgicas e culturais) envoltas na procura e busca de cuidados mdicos tambm

    circunscritos, tanto pela ideologia e valores, quanto pelo perfil do acesso e

    disponibilidade de tecnologias.

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    911No caso da hipertenso arterial, os itinerrios teraputicos investigados

    apontam a valorizao do sistema formal de sade e do saber mdico especializado

    (TRAD et al., 2010) sem que o processo interpretativo seja esttico e inicialmente

    apreendido em um dado momento das vidas dos adoecidos. Luciana circula entre

    os vrios servios pblicos ou filantrpicos de sade ofertados na cidade sem

    encontrar soluo para as queixas, sofrimentos e obteno do exame de raios X,

    considerado indispensvel. Nas suas palavras:Fui trs vezes, trs semanas em seguida ao Grmio (servio mdico do Sindicato). Fui l porque no aguento ir ao postinho de manh. Eu no aguento ir cedo. Fui ao Grmio, tomei injeo que tira a dor. A o mdico passou Dipirona com Benzetacil. Tomei, mas a dor voltou aps alguns dias. Fui l de novo. A o mdico falou: no precisa vir mais, no precisa voltar aqui para fazer exame mais minucioso para ver esta dor nas costas porque a dor no peito j foi operada. Eu no voltei. Vou voltar l dia trinta. Vou passar com a enfermeira. A eu tenho que tirar radiografia, tem que pedir. Eu acho que tenho que tir-la com urgncia.

    As dores no cessam na interpretao do sofrimento de Luciana. Ela insiste

    em encontrar soluo junto aos mdicos e servios de sade. Dirigiu-se a um

    pronto-socorro na expectativa de obter o pedido de raios X. Diante da nova

    recusa do mdico, justificada, por ela, pelo fato de no apresentar dor na coluna

    no dia da consulta, no desistiu. Planejava retornar unidade de Sade da Famlia

    para solicitar aquele exame. A relao com os mdicos, os servios e profissionais

    de sade, com seus saberes, informaes e intervenes tambm compem o

    universo da experincia com o adoecimento, seja para legitimar, demandar ou

    recusar as intervenes mdicas.

    De um lado, a experincia do sofrimento fsico e moral de Luciana

    expresso nas queixas frequentes e insolveis das dores so deslegitimadas pela

    biomedicina, empurrando-a para o limbo diagnstico (CORBIN; STRAUSS,

    1985) ou na incerteza existencial (ADAMSON, 1977). Alm disso, observa-

    se nas investigaes feitas com pacientes cardacos atendidos em uma unidade

    de pronto-atendimento na cidade de So Paulo que, aos classificados como

    poliqueixosos (CHAMM, 2000) pelos profissionais de sade, imputam-se

    dores imaginrias ou psicolgicas e a busca frequente dos vrios servios de

    sade. Ele observa que esse tipo de paciente: [...] constantemente envolto em processos por ele prprio denominado de procura pela cura rotinizando aes, perfazendo trajetrias, ritualizando costumes, ilustran-

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    do situaes, descrevendo o prprio corpo adoecido segundo as instncias de seu imaginrio alimentado pelas condies inumerveis de convivncia com as doenas. Procurando fazer-se compreender espera, em vo pela ateno mdica e consequente diagnstico favorvel aos seus desejos de ser, ao mesmo tempo, ouvido, seduzido e amado (CHAMM, 2000, p. 277).

    No dispomos de informaes se Luciana foi categorizada poliqueixosa pelos

    profissionais de sade. Mas sabe-se pelo seu relato que, apesar de ser hipertensa

    diagnosticada e de ter passado por problemas cardacos, suas queixas e insistentes

    dores expressando o sofrimento fsico e moral so pouco ouvidas pelos mdicos. A

    presena de dores expressa a condio de adoecimento, segundo os parmetros de

    Luciana e do seu grupo social. No casual que ela se queixe, demande remdios

    e raios X insistentemente. Tesser (2010, p. 64) observa que: atravs do contato

    exotrico, a metamorfose de sentido d-se sob maior simplificao e maior grau

    de anomias vivenciais nas interpretaes e tratamentos mdicos dos adoecidos.

    Alm dos servios de sade acionados, Luciana, contrariando a opinio do

    marido, retornou aps a cirurgia religio catlica em busca de proteo e de

    amparo divinos, que acredita serem eficazes para acalm-la e minimizar os

    sofrimentos. Oraes, as palavras do padre e a frequncia ao ritual catlico (missa

    aos domingos) possibilitam manejar e amenizar a experincia com os sofrimentos

    fsicos e morais que a acometem. As observaes de Loyola (1984) sobre os agentes

    religiosos catlicos enquanto recursos de cura so pertinentes:[...] as religies onde a separao matria e esprito, corpo e alma, maior, os agentes religiosos (padre, religiosas, pastores) tendem a se limitar cura da alma, o papel que exercem no domnio do corpo, consistindo apenas em reforar o ato mdico; onde a autonomia do corpo menor, o espiritual acaba por encontrar a prpria autonomia, a matria a submeter-se ao esprito. (LOYOLA, 1984, p. 18).

    Alm de obter o apoio do marido e de uma filha, sempre premidos pelas obrigaes

    e deveres familiares e pelo prprio valor da famlia para as classes trabalhadoras,

    Luciana recorre a uma amiga que ouve seus lamentos, dores e queixas, ao contrrio

    dos profissionais de sade que se recusam a ouvi-la. O apoio da amiga ancora-se na

    solidariedade e ajuda, como valor moral das classes trabalhadoras, permeando as

    relaes sociais. Referindo-se a esta amiga, Luciana relata:Eu tenho uma amiga desde que eu fiquei doente ela nunca me deixou. amigona mesmo. Ela conversa, s vezes estou aborrecida eu vou l. Eu descarrego tudo nela: converso, conto e choro. Olha, mas no foi fcil estes trs anos. No foi fcil e

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    913nunca ser. O Dr. X fala para mim: cuide-se mais. A senhora nova. No sei o qu a senhora tem. A senhora precisa deixar de usar roupa preta. Mas, eu no consigo. Eu sou assim e vai ser assim...

    Luciana persiste no luto simbolicamente expresso no uso de roupa preta, publicamente anunciado e comunicado, insistindo junto aos mdicos a obteno do exame de raios X, sem xito. Acredita na eficcia deste tipo de exame para diagnosticar as dores permanentes na coluna e no peito, que a afligem. similaridade dos demais componentes de sua classe social, deposita na medicina, nos mdicos, nos exames e nos remdios esperanas de resoluo do estado de perturbao fsica e moral em que se encontra.

    Vale observar a magia exercida nas representaes e demandas do senso comum dos exames de raios X e de sangue, assim como das cirurgias (representadas como extrativas do mal) fortemente valorizados, no apenas pela extenso do acesso aos processos de diagnstico e teraputico, mas pelo fato de responderem lgica da concretude e no da abstrao posta por Lvi-Strauss (1970) em relao ao pensamento selvagem. Aquele exame permite ao mdico visualizar as imagens do interior do corpo e, segundo as representaes de Luciana, compartilhadas com seu grupo social, tambm poder fornecer-lhe visualizao e concretude s inexplicveis, recorrentes e persistentes dores na coluna e no peito, associadas por ela cirurgia cardaca e perda do filho, mobilizando seus lamentos e sofrimentos fsicos e morais.

    Luciana relata no conversar com outras pessoas sobre a presso alta, exceto com a amiga, que a atribui ao nervoso, explicao que tambm endossa. Acredita que o nervoso deve ser evitado pelo esquecimento das aflies, pela ingesto de calmante, pela prtica de relaxamento e feitura de trabalhos manuais (confeco de panos de prato). Acrescenta ao relato do prprio estado de sade o suor que lhe escorre pelo pescoo, pressupondo-o gerado pela falta de hormnios, ressentindo-se do fato de o mdico no receitar remdios para alivi-lo. O suor desperta vergonha e incmodo, acompanhando-a em todos os lugares. Deteriora e macula publicamente a autoimagem de pessoa asseada e limpa, cuja visibilidade quer evitar. Lembra-se que asseio e limpeza so socialmente valorizados em relao imagem da mulher pertencente aos grupos sociais trabalhadores.

    A extenso das categorias higiene e limpeza tambm se aplica casa, comida e aos objetos domsticos, sempre sob os cuidados e obrigaes das esposas e mes

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    de famlia (CANESQUI, 2005). Ao lado do suor, Luciana se autorrepresenta

    atacada de tudo, de depresso, de obesidade, dos problemas de tireoide, sempre

    aludidos ao tempo decorrido aps a perda do filho e a cirurgia, como expresses

    dos sofrimentos fsicos e moral que a afligem.

    A descoberta da presso alta e as explicaes sobre sua gneseLuciana detalhou a descoberta da presso alta respondendo interrogao

    da pesquisadora. Associou-a aos sinais corporais de sangramento, quando

    acometida de infarto, simbolizando perigo de vida, gravidade e necessidade de

    busca imediata dos servios mdicos. Ela hesitou associar os eventos cardacos s

    consequncias da hipertenso arterial, postos pelo saber biomdico. Mencionou

    ter sido diagnosticada anteriormente de hipertenso, somente em outro momento

    da entrevista. Discorreu detalhadamente o sangramento, a cirurgia, o atendimento

    hospitalar e a busca contnua dos servios de cura.Como eu descobri a presso alta? Porque uma vez eu estava dormindo, eu acordei cedo quando saiu sangue pelo nariz. Comeou a sair sangue pelo nariz, pela boca, todo coalhado; coisa que eu sujei toda a cama. No vencia toalha de banho. No ven-cia toalha de rosto. Ento meu marido me levou correndo para o hospital. No hospital falei para o mdico: olha como estou. Ele falou: d graas a Deus que est saindo sangue pela boca e pelo nariz. Sabe, saiu sangue at pelo nus. A ele falou: se tivesse sado pelo olho e ouvido voc teria morrido. A ele me encaminhou ao Dr. X e come-cei a fazer tratamento aos 45 anos. Eu fiz tratamento, no adiantou. O meu corao no estava aguentando mais. A ele me mandou para So Paulo. Operei o corao.

    Luciana interpretou que aps a cirurgia do corao, a presso alta

    tambm pudesse estar curada, tal como a extrao do mal por esta tcnica

    mdica, dispensando a ingesto de remdio prescrito para ser tomado para

    toda a vida. Revelou ter sido anteriormente diagnosticada como hipertensa

    (denominao da doena usada tanto pelos profissionais de sade quanto pelos

    adoecidos), afirmando que:Olha, eu tinha 31 anos e fui ao mdico. Ele falou que eu estava com presso alta, mas eu no liguei. Eu achei que no era; eu era nova ainda. Eu no tomei remdio. Da veio aquele problema, saiu sangue [...]. Eu achei que no era, continuei comendo o que tinha que comer, a veio este problema. Eu fui ao mdico que cuida de mim at agora, quando eu vim de So Paulo. No deixei de ir. Ele sabe tudo. Sabe?

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    915Uma das explicaes do senso comum sobre a gnese da presso alta,

    compartilhada com o grupo social, associa-se ao envelhecimento visto como processo

    natural. O fato de Luciana considerar-se jovem e sadia, quando fora diagnosticada de

    hipertenso pela primeira vez, provavelmente interferiu no descrdito do diagnstico

    e na recusa de tomar os medicamentos prescritos na ocasio.

    insuficiente a comunicao do diagnstico mdico para que o adoecido

    reconhea e assuma a condio de adoecimento. Este um processo envolto

    nas circunstncias da vida, nas representaes de sade/doena, nas condies

    corporais percebidas, na identidade e na prpria biografia da pessoa. frequente

    o desconhecimento da hipertenso pelos adoecidos, segundo atestam as vrias

    pesquisas populacionais quantitativas feitas localmente ou nas diferentes

    regies brasileiras.

    No incomum homens e mulheres das classes trabalhadoras ignorarem e

    desconfiarem do diagnstico da hipertenso arterial sistmica, especialmente

    quando no contam com as sensaes corporais. Geralmente desconhecem esta

    enfermidade e suas consequncias, deixando de trat-la e de control-la pelo

    uso de remdios e de outras medidas preventivas de seus futuros e agravantes

    efeitos, dentre eles os problemas cardiovasculares e o derrame cerebral, sempre

    advertidos pelos mdicos.

    Boltanski (1979) referiu que as classes populares francesas subordinam o uso

    do corpo s funes sociais, manifestando a doena brutalmente porque no

    percebem os sinais precursores ou porque se recusam a perceb-los; a doena

    vista como acidente imprevisvel. A ausncia das sensaes corporais percebidas,

    quando fora diagnosticada de hipertenso, tambm explica em parte o descrdito

    de Luciana no diagnstico mdico.

    Pode-se, entretanto, estender esta explicao corporal a outros domnios, como

    sugere Barsaglini (2011, p. 149) reportando-se interpretao da experincia

    em determinado ponto ou circunstncias de vida atrelando-se, portanto a

    descoberta da enfermidade no somente informao do diagnstico mdico

    ao paciente. Luciana, quando fora diagnosticada como portadora de hipertenso

    arterial sistmica, no se convencera. Julgou-se jovem e ativa para estar acometida

    da enfermidade. Reportou-se histria da hipertenso na famlia, envolvendo

    seus genitores, uma de suas filhas e o marido, sem associar esta condio

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    hereditariedade, como o fazem os mdicos, reiterando a importncia do nervoso

    e dos comportamentos alimentares na gnese da enfermidade.

    Observam-se nas representaes sociais das classes trabalhadoras sobre o

    nervoso as mltiplas configuraes dos signos associados, isto : os relacionais,

    de violncia, isolamento, agitao, alteraes no discurso, problemas no campo da

    percepo (delrio e alucinao), ataques e crise, desempenho de papis sociais,

    aparncia e comportamentos bizarros (RABELO; ALVES; SOUZA, 1999, p. 45).

    Esse conjunto de signos se associa s concepes de loucura abordada por

    aqueles autores, enquanto Luciana ao referir-se como pessoa nervosa reporta-

    se ao conjunto das aflies de vida que a acometem, materializadas fisicamente

    nos problemas do corao, nas dores sentidas e em outras queixas, associadas

    simbolicamente perda do filho e ao estado geral de sofrimento. Duarte (1986)

    tambm lembra as inmeras perturbaes fsicas e morais em torno do cdigo do

    nervoso nas classes trabalhadoras, expressando os embaraos da prtica da vida.

    Revendo as pesquisas qualitativas nacionais de hipertenso feitas entre mulheres

    das classes empobrecidas (CANESQUI, 2007), nelas figuram explicaes da

    gnese da presso alta, os signos relacionais, as emoes contidas, os conflitos

    e as preocupaes domsticas e familiares (MACIEL, 1988; FIRMO; COSTA-

    LIMA; UCHOA, 2004; CARVALHO et al.,1998; VIEIRA, 2004).

    Pode-se condensar que esta gnese se reporta simbolicamente aos acmulos

    dos excessos (sangue, emoes, preocupaes, nervoso, conflitos e dificuldades

    familiares) que necessitam sair, cuja conteno gera exploses em partes do

    corpo. As mulheres das classes trabalhadoras geralmente as contm em virtude

    da preservao moral da famlia, mantendo-se em silncio. Entre mulheres negras

    de New Orleans (HEURTIN-ROBERTS; RUSIN, 1983), o temperamento e

    as emoes estavam entre as explicaes das causas da hipertenso, um idioma

    expressando a interao entre a pessoa e o ambiente social.

    Luciana tambm reitera a importncia da alimentao na gnese da presso

    alta dialogando com as informaes mdicas aprendidas no controle no

    medicamentoso da doena, de restringir a ingesto de comidas gordurosas, de sal e

    de bebidas alcolicas. Ela reproduz os julgamentos dos profissionais de sade sobre

    estes hbitos, que consideram errados e postos como responsabilidade moral dos

    sujeitos, representando a doena como sano moral conduta desviante. Essas

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    917explicaes tambm so compartilhadas com o grupo social de pertencimento de

    Luciana, aplicando-se gnese da presso alta e de outras enfermidades.

    Entretanto, as explicaes de homens e mulheres sobre a gnese da

    hipertenso do grupo de pertencimento de Luciana foram mais amplas,

    incluindo, alm dos conflitos e dificuldades familiares e no trabalho, o nervoso e o tipo de alimentao, a hereditariedade, as causas externas (clima e o tipo de

    vida na cidade) juntamente com o envelhecimento/menopausa (CANESQUI,

    2010, p. 34). Luciana no dispensa tais referncias, mobilizando-as segundo

    interpreta a condio prpria do adoecimento e do sofrimento, sempre somada

    s circunstncias de vida e sua biografia.

    O senso comum reproduz expresses da linguagem usada pelos mdicos

    nas comunicaes com a clientela, referindo-se presso alta como doena

    traioeira, silenciosa, grave, imprevisvel e incurvel. Para o senso

    comum, ela se explica basicamente pela movimentao e qualidade do sangue e

    dos nervos (CANESQUI, 2010).

    A relao de Luciana com os tratamentos mdicos prescritosO controle da hipertenso arterial pelo saber mdico inclui o uso regular de

    medicamentos, a prtica de atividades fsicas, a verificao regular da presso

    arterial, o acompanhamento mdico peridico e a restrio do consumo de

    alguns alimentos, tabaco e bebidas alcolicas. Os mdicos e as agentes de sade

    da ESF recomendam mudar o estilo de vida, combater o sedentarismo, alterar

    os hbitos alimentares, tomar remdio diariamente e submeter-se aos controles

    e acompanhamento mdico regularmente. Luciana no dispensa inteiramente

    esses aconselhamentos, gerenciando-os segundo suas interpretaes, experincias

    corporais, conhecimentos de senso comum e convenincias da vida diria.

    Ela relata ingerir medicamentos para controlar a presso alta, regulando

    seu uso segundo interpreta e observa as sensaes corporais. Acessa os anti-

    hipertensivos gratuitamente na unidade de Sade da Famlia, cuja disponibilidade

    irregular, segundo opera a poltica governamental de doao de medicamentos s

    populaes de baixa renda portadoras de hipertenso arterial sistmica. Acredita

    que tanto os remdios, quanto as restries alimentares, ao lado do autocontrole

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    do nervosismo, do descanso e do lazer favorecem equilibrar a presso alta,

    cuja cura significa libertar-se do consumo de remdios e da restrio alimentar.

    Em contrapartida, a dependncia dos remdios e a necessidade de adotar dietas

    especficas associam-se representao de estar doente, cuja superao no

    dispensa a f em Deus, nos mdicos e na medicina simultaneamente.

    Luciana no pratica exerccios fsicos. V-se impedida desta prtica pelos

    problemas cardacos, cujos esforos corporais demandados a cansam. Tambm

    no usa outros tratamentos caseiros, endossando a viso cosmolgica do mundo

    regido por um ser superior capaz de castigar, recompensar e proteger. Neste sentido,

    evoca a proteo divina preservao da prpria sade e de seus familiares. Como

    responsvel pela sade da famlia, relata atender s recomendaes mdicas,

    alterando a forma de preparar e selecionar as comidas (reduo do sal, introduo

    de legumes e verduras na alimentao, recomendados pela nutricionista), em

    parte facilitadas pela presena da mesma doena no grupo domstico.

    Essas mudanas no acontecem sem conflitos e tenses com o marido e os

    filhos, que demandam observar seus gostos pessoais e as tradies alimentares do

    grupo social em que foram socializados. Luciana gerencia com flexibilidade as

    restries alimentares recomendadas, burlando-as para favorecer o prprio gosto

    e das demais pessoas do grupo domstico, preservando tambm as tradies

    alimentares aprendidas e as formas de lidar com o processo sade, doena e os

    cuidados com o corpo, a alimentao e a sade.

    Refere preparar comidas fortes, significando as que so capazes de saciar a

    fome, de fornecer a sensao de saciedade por tempo prolongado, de proporcionar

    maior energia ao corpo para trabalhar e as mais nutritivas pelo fato de possurem

    vitaminas, segundo o senso comum. Costuma preparar macarronada farta de

    molho de tomate e usar pimenta, que acredita elevar a presso. No dispensa

    consumir torresmo, muito apreciado por todos e consumido parcimoniosamente

    (pelo menos uma vez ao ms) embora no desconhea as recomendaes mdicas

    e nutricionais de restringir o consumo de comidas gordurosas, como forma no

    medicamentosa de controlar a hipertenso arterial.

    Comer bem, ou seja, ingerir quantidade abundante de comidas,

    consideradas fortes e saborosas, segundo as escolhas e os gostos alimentares

    valorizados pelo grupo social, ope-se ao comer mal nas representaes das

    classes trabalhadoras. Isto significa dispor de pequenas quantidades de alimentos

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    919e da ausncia no prato dos alimentos fortes (as carnes e alimentos gordurosos,

    principalmente). Comer mal reporta-se ainda s restries alimentares,

    associadas simbolicamente penria, privao e misria, dispensando tambm

    os alimentos que satisfazem o gosto, os sabores e as escolhas alimentares capazes

    de preservarem a identidade de pertencer a um grupo social (CANESQUI,

    2005). Razes como esta conduzem compreenso de uma das dificuldades

    de homens e mulheres das classes trabalhadoras de seguir as recomendaes

    dietticas restritivas.

    Se as normas dietticas de tratamento no medicamentoso da hipertenso

    arterial prescrevem reduzir o sal, o consumo de alimentos com gorduras saturadas

    e das bebidas alcolicas, as recomendaes de substituio por outros itens

    alimentares aspiram reorientar o comportamento alimentar, implicando sempre

    a resocializao do gosto e das escolhas alimentares cultivados ao longo das vidas

    e do processo de socializao dos sujeitos na famlia. Se, de um lado, a atribuio

    de falta de educao dos pacientes serve extenso da rede biomdica e a seus

    interesses no controle dos riscos e das doenas (TESSER, 2010, p. 68), de outro,

    Boltanski (1979, p. 69) lembra que:[...] o efeito de legitimidade do conhecimento biomdico no tem um peso suficiente para impedir que os agentes sociais mantenham um discurso qualquer sobre a doen-a, ou, pelo menos [...] reconstruir um discurso com materiais fragmentados e hete-rclitos, palavras mal entendidas, frases desconexas, arrancadas do discurso mdico.

    A experincia de Luciana com a doena vivida de forma destrutiva,

    correspondendo ao que se d com o doente:[...] a partir da interrupo da atividade provocada pela mesma, que se acompanha tanto pela destruio dos laos com os outros como as perdas diversas em suas ca-pacidades e em seus papis ele no consegue visualizar nenhuma possibilidade de reconstruir sua identidade, dependente inteiramente da integrao social. (ADAM, HERZLICH, 2001, p. 78).

    A condio de adoecimento por certas enfermidades de longa durao afeta

    profundamente a identidade da pessoa, impedindo reconstru-la de forma positiva.

    Apesar dos sofrimentos morais e fsicos que acompanham esta experincia e a

    prpria vida de Luciana, agravados pelo fato de ela no se julgar inteiramente

    atendida em suas demandas e queixas pelos mdicos e servios de sade, ela

    tambm se julga bem atendida e cuidada por eles. Condensa este cuidado e a

    confiana com a frase: Para mim valeu. Est bom!.

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    Para concluir, observa-se que a presso alta figura, nas representaes do grupo investigado, entre aquelas enfermidades que permitem conduzir normalmente a vida. Luciana no interpreta os acontecimentos fsicos de maneira isolada e abstrada dos contextos, acontecimentos e circunstncias da vida pessoal e social, como faz a biomedicina, mas conjuga a experincia com a enfermidade, com o corpo, sade e doena e as aflies de vida aos sofrimentos morais, perturbadores de sua existncia fsica, social, afetiva e relacional ou seja, pessoa concebida como totalidade.

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    Notas1 Pierret compreende a relao no causal e determinista, mas circular e recproca da experincia sin-gular da enfermidade com a dinmica da estrutura e organizao da sociedade dadas pelas condies polticas, econmicas, ideolgicas e sociais, mutveis nas diferentes pocas e contextos histricos. Estes elementos coletivos e macro-estruturais interferem tanto na organizao do cuidado mdico,

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    923no saber e instituies mdicas e nas vises de mundo coletivas, quanto nas diferenas de gnero e origem social dos adoecidos (dadas em termos de condies ou dos modos de vida, dos valores e re-presentaes individuais e coletivas sobre corpo, sade e doena e s formas concretas de convvio e de ajustamento s enfermidades integrantes da experincia com a enfermidade.Critica as investigaes anglo-saxnicas sincrnicas, formais e atemporais da experincia da enfermida-de que no a inscrevem na dinmica social, mutvel no tempo e inscrita nas referncias sociais, na his-tria social, nas transformaes institucionais, do saber e prticas mdicas de uma poca, sempre per-meadas da interferncia das condies polticas, econmicas, ideolgicas e sociais (PIERRET, 1988).Outras referncias experincia com a enfermidade (HERZLICH; PIERRET, 1984), extradas da produo acadmica francesa, ultrapassam a dimenso individual medida que cada sociedade possui suas doenas e seus doentes, sendo a doena e a experincia socialmente construdas e historicamente si-tuadas. Sua anlise demanda articular a histria social com a sociologia, o recurso a diferentes fontes de informaes e o acompanhamento longitudinal e comparativo das doenas e das diferentes categorias sociais de doentes na sociedade. As doenas tambm encarnam simbolicamente a relao do indivduo com a sociedade, abandonando, portanto, sua materialidade nos corpos, posta pela biomedicina.Para Pierret (2012), a sociedade que est na origem das categorias sociais fundadas nas desigualda-des sociais bsicas expressas nos lugares ocupados pelos grupos e indivduos na organizao social, nas condies de vida, nas diferenas em relao educao ou aos tratamentos mdicos, assim como em relao aos valores de referncia. Trata-se de incluir a experincia nestes condicionantes de natureza social, mdico-institucionais e valorativos.Estudo sobre a experincia de enfermos de Aids (PIERRET, 2007) aborda a evoluo da construo social e mdica da doena no contexto histrico da sociedade francesa no perodo 1990 a 2000; a gnese da mobilizao miditica e associativa dos enfermos; as consequncias dos modos de vida e dos recursos mobilizados pelos adoecidos; as representaes sociais da conduo da vida normal com a enfermidade, ao lado das representaes flutuantes vigentes no contexto concreto da sociedade, do estado do conhecimento mdico e da experincia concreta de convvio com a enfermidade, incluindo tambm os diferentes modos de ajustamento condio de enfermo. 2 As investigaes anglo-saxnicas sobre as estratgias de ajustamentos s enfermidades crnicas em geral se valem do conceito de coping, que se refere ao processo de aprendizagem individual de convvio ou tolerncia com os efeitos das enfermidades, que segundo Bury (1991), ancora-se nos fatores psicolgicos e relacionais. Estilo outro conceito usado e entendido como a forma como as pessoas manejam no presente a enfermidade, os regimes e os tratamentos (BURY, 1982). Radley & Green (1985), influenciados pelo trabalho de Pierre Bordieu sobre os estilos de classe que acom-panham os comportamentos corporais ou do self, referem-se ao estilo aos significados e s prticas sociais das diferentes classes sociais afetando as formas de manejar as enfermidades. Normalizao, no sentido biomdico, associa-se adaptao, enquanto para os socilogos o conceito reporta-se a um conjunto de aes e de interpretaes que possibilitam construir uma nova atitude natural (ADAM; HERZLICH, 2001, p. 125).3 O estudo original do qual se extraiu o caso analisado foi aprovado pelo Comit de tica da Fac-uldade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas. Foi tambm financiado pelo CNPq (processo n 471418-2007-2), ao qual a autora agradece pelo apoio recebido.

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    Physis Revista de Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 23 [ 3 ]: 903-924, 2013

    A case study about the experience with high blood pressureThis paper discusses the experience with high blood pressure and associated diseases posited as physical and moral sufferings in the whole person who lives, works and reflects amid life circumstances that affect him. This is a case study of a qualitative research on narrative and meaning of high pressure, made with 17 men and 20 women diagnosed for over a year with hypertension, users of a Family Health Unit of an inland city in So Paulo state. Two reasons guided the case selection: being included among the seven interviewees who mentioned having discovered hypertension at the time spent by the heart attack or stroke, and being female. Data were obtained through semi-structured interviews about perceived health conditions, discovery of the disease, explanation of its genesis, therapeutic itineraries, social support received; relations with health services and other curing agents and management of medical prescriptions. This study displays the interconnections and unique personal experience of illness with the broader socio-cultural contexts, moral values, social relations and social representations of the body, health, illness and care shared with the working class.

    Key words: illness experience; arterial hypertension; social sciences and health; qualitative research on health.

    Abstract