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S ão B oaventura REVISTA FILOSÓFICA

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São Boaventura

REVISTA FILOSÓFICA

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São BoaventuraRevista Filosófica

São Boaventura, Curitiba, v. 5, n. 2, p. 1-130

julho/dezembro 2012

ISSN 1984-1728

FAE - Centro Universitário

Instituto de Filosofia São Boaventura

Curitiba 2012

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Copyright © 2008 by autores

Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

FAE - Centro Universitário Instituto de Filosofia São Boaventura

Instituto mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ) R. 24 de maio, 135 – 80230-080 – Curitiba PR

http://www.saoboaventura.edu.br/ E-mail: [email protected].

Reitor: Fr. Nelson José Hillesheim Diretor geral do Grupo Bom Jesus: Jorge Apostolos Siarcos

Pró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo Resende Pró-reitor administrativo: Regis Ferreira Negrão

Diretor do IFSB: Dr. Jairo Ferrandin Editores: Dr. Vagner Sassi e Dr. Enio Paulo Giachini

Comissão editorial: Dr. Roberto H. Pich Ms. Vicente Keller Dr. Jaime Spengler Dr. João Mannes

Dr. Marcelo Perine

Conselho editorial: Dr. Osmar Ponchirolli

Dr. Mauro Simões Dr. Antônio Joaquim Pinto

Dr. Écio Elvis Pizzeta Dr. Leonardo Mees

Ms. Solange Aparecida de Campos Costa Dr. Renato Kirchner

Revisão: Editoria

Diagramação: Sheila Roque

Capa: Roland Cirilo

Catalogação na fonte

Revista filosófica São Boaventura/ FAE - Centro Universitário Franciscano do Paraná. Instituto de Filosofia São Boaventura.

v. 1, n. 1, jul/dez 2008- . Curitiba: FAE - Centro Universitário Franciscano do Paraná, 2008- v. 23

SemestralISSN 1984-17281. Filosofia – Periódicos. I. FAE - Centro Universitário. Instituto de Filosofia São Boaventura.

CDD - 105

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SumáRio EDITORIAL Enio Paulo Giachini .........................................................................................................7

ARTIGOS “Dupla transcendência e historicidade: a dívida de Heidegger para com Mestre Eckhart” José Carlos Michelazzo ....................................................................................................11

Fé e temporalidade na carta de Paulo aos Gálatas Sergio Wrublevski ...........................................................................................................29

Fenomenologia da Religião? Hermógenes Harada ........................................................................................................41

Deus e o homem louco Emmanuel Carneiro Leão ................................................................................................71

Cristologia Franciscana Dr. Frei Aldir Crocoli ........................................................................................................79

Cuidado e respeito: Reflexões sobre o prolongamento assistido da vida Léo Peruzzo Júnior ..........................................................................................................97

TRADUçõES Respostas da alta escolástica Bernard Welte .................................................................................................................111

RESENHAS .......................................................................................................................121

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7Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 5, n. 2, p. 7, jul./dez. 2012

EditoRial

Enio Paulo Giachini

A intenção deste número da revista era reunir escritos que debatessem o tema da filosofia da religião. Em parte, esse objetivo se cumpriu, na medida em que os artigos levantam a discussão sobre diversas questões relativas ao tema. Em parte, ficamos aquém da proposta, uma vez que a amplidão do tema nos recoloca nos limites de nossa pobre caminha-da, começando e recomeçando a cada vez a aproximação à grande questão da abordagem das questões de fé por meio do instrumental do pensamento.

Os artigos nos remetem para o diálogo com M. Eckhart, Heidegger, Nietzsche, Paulo apóstolo, Francisco etc.

Apesar de parecer e ser uma afirmação extemporânea credo ut intelligam tem sua atualidade, mesmo na época da morte de Deus, e continua sendo um desafio para o pensamento de todos os tempos.

Como haveremos de nos consolar de tamanha ousadia de termos matado a Deus. É a provocação nietzschena, sempre ainda não pensada, é o nihilismo incompleto nos provocando a pensar.

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ARTIGOS

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Resumo: Sabemos que as ligações de Heidegger com Mestre Eckhart não se limitam apenas aos usos esporádicos de termos ou expressões que ele faz do místico medieval, mas, ao contrário, servem de inspiração para a sua ousada concepção da essência do homem, interpretada a partir de sua co-pertinência (Zusammen-gehörigkeit) com o ser e orientada pelo movimento circular de uma dupla transcendência. Dentre esses vários círculos, presentes no pensamento do filósofo, está o da historicidade, foco central deste trabalho, no horizonte do qual a existência tem a sua origem no abismo do porvir (primeira transcendência), de cujo interior germina o último gesto humano possível, o seu morrer. Para que o homem apreenda esse seu derradeiro gesto em seu caráter autenticamente historial (geschichtlich), ele precisa ter a coragem de apropriar-se do peso de sua finitude a fim de que ele possa alcançar a liberdade de existir, guiado por um “futural-vigor de ter sido” [zukunftig--Gewesenheit] (segunda transcendência).

Palavras-chave: dupla transcendência, analogia, Dasein, tempo-ralidade, finitude, historicidade.

abstract: We know the Heidegger’s relations with Master Eckhart don’t reduce only to sporadic employments of words or expressions that he does of medieval mystic, but on the contrary, serve as inspi-ration for his audacious notion of man’s essence that is interpreted from its common-pertinence (Zusammengehörigkeit) with Being and oriented by a circular movement of double transcendence. In the midst of this various circles, so present in the philosopher’s thought, there is the circle of historicity, central aim of our paper, which affirms that existence originates from abyss of future (first transcendence). From that abyss germinates the last human possible gesture, his death. In order to the man to be able to apprehend this final gesture in your authentically historical (geschichtlich) character, he needs the courage to take over the weight of his finitude and then to reach a free existence guided by a “futural-vigorous past” [zukunftig-Gewesenheit] (second transcendence).

Key-words: double transcendence, analogy, Dasein, temporality, finitude, historicity.

* Graduado em Filosofia e em Psicologia. Mestre em Filosofia pela PUC de São Paulo. Doutor em Filosofia pela UNICAMP. Pesquisador do Programa de Pós-Doutorado da PUC de São Paulo, com financiamento do CNPq. Psicoterapeuta com for-mação em Análise Existencial (Daseinsanalyse). Professor e autor de artigos em revistas nacionais. Autor do livro: Do um como princípio ao dois como unidade – Heidegger e a reconstrução ontológica do real. São Paulo: FAPESP-Anna-blume, 1999. Ex-coordenador adjunto dos eventos anuais do Colóquio Heidegger realizados na Unicamp. A atual linha de pesquisa é orientada para o diálogo entre o pensamento ocidental, especialmente Heide-gger, e o pensamento oriental representado pelo Zen-Budismo e pensadores japoneses da Escola de Kyoto. E-mail: [email protected]

“dupla transcendência e histo-ricidade: a dívida de Heidegger para com mestre Eckhart”

José Carlos Michelazzo*

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Todos nós conhecemos a profunda influência que a mística eckhartiana exerceu

sobre o pensamento de Heidegger. Esta influência, mais visível no início de seu iti-

nerário, tal como vemos no seu Habilitationsschrift de 1915-16 sobre Duns Scotus,

segue posteriormente mais elaborada e oculta sob o vocabulário complexo de um

Aristóteles, de um Leibniz ou de um Kant.

Talvez a principal influência que dotou Heidegger de uma intuição poderosa, em

torno da qual ele constrói suas principais teses, é a de que o pensamento não é uma

faculdade do homem, mas uma comunicação, uma co-pertinência com o ser. Com

Eckhart e Heidegger uma transcendente realidade volta a fazer parte do homem. Tal

realidade, todavia, não é interpretada de maneira antropológica, mas ontologicamen-

te; e a forma de participação do homem não é a de estar em uma simples relação

com ela, mas a de ser o lugar de seu acontecer.

Os dois pólos da relação – alma e Deus (Eckhart), homem e ser (Heidegger) –,

apesar de não pertencerem ao mesmo âmbito, estabelecem, contudo, entre si um

vínculo de co-pertença na medida em que cada um guarda com o outro elementos de

semelhança e de distinção. Essa perspectiva de pensamento, batizada posteriormente

por Heidegger de diferença ontológica, nasce da doutrina medieval de analogia que

ele examina neste seu escrito de habilitação que, por sua vez, pode ser considerado

como marco inaugural propriamente dito do caminho do filósofo, produzindo ecos

em seus trabalhos posteriores para além de Sein und Zeit.

A via de acesso a essa relação constitutiva entre homem e ser, mediatizada pela

doutrina da analogia, é realizada pelo jovem Heidegger, no seu referido trabalho de

habilitação, por meio da doutrina das categorias e do significado do Doctor subti-

lis. Tal empreendimento tem o intuito de dar um passo adiante à sua problemática

ontológica despertada nos tempos de estudante no ginásio Bertold (1907), ou seja,

retomar o problema capital da metafísica que é o da unidade do ser na pluralidade

de suas significações, inspirado no livro de Franz Brentano Sobre o sentido múltiplo

do ente em Aristóteles (1862). “A filosofia”, dirá ele na conclusão deste seu trabalho,

“não pode carecer por muito tempo de sua ótica autêntica, a metafísica” (HEIDEGGER,

1978, GA 1, p. 406).

Todavia, esta metafísica que Heidegger quer resgatar em sua ótica autêntica já

não era mais aquela da tradição que sempre interpretou o real de modo cindido entre

sensível (temporal) e supra-sensível (intemporal) e que ensejou todas as formas de

dualismo presentes ao longo de sua história: imanência e transcendência, existência

e essência, realismo e idealismo, materialismo e espiritualismo etc. O caminho para

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a recuperação de uma perspectiva mais originária da metafísica dar-se-á, por con-seguinte, através da doutrina da analogia, por meio da qual Heidegger aproximará o par “homem-ser”, à maneira do par eckhartiano “alma-Deus”, numa relação de transcendência bi-transitiva, do tipo “mão-dupla”, não mais, porém, nos moldes do dualismo clássico, mas, ao contrário, desconstruindo-o, não apenas ele, mas também a noção clássica de transcendência do tipo “mão-única” que sempre o acompanha.

Nesse nosso trabalho, essa questão da dupla transcendência será examinada como plataforma de sustentação de um dos últimos temas de Ser e Tempo, o da historicidade, seguindo o desenvolvimento de três passos: Mestre Eckhart e os dois movimentos da transcendência (1), Duns Scotus e a doutrina da analogia (2) e, o

caráter temporal-historial do homem (3).

1 – mestre Eckhart e os dois movimentos da transcendência

No contexto do pensamento do místico medieval, a unio mystica é apresentada em duas versões. A primeira, cristã, é aquela em que Deus (Gott), Uno e Trino, brota na alma humana por meio do nascimento do Logos (o Filho, enquanto a segunda pessoa da Trindade). A segunda, neoplatônica, é mais originária e precede a interpretação cristã e é aquela em que a Deidade (Gottheit) – o mysterium tremendum, o Uno ou a Mente divina interpretada como pura simplicidade, como fundo abismático, oculto e misterioso ou, ainda, como terra desértica que transcende todos os nomes – brota no fundo da alma (Grund der Seele).

A Mente divina teria dois movimentos. O primeiro, centrífugo, é aquele que par-te da unidade para a multiplicidade, seguindo a corrente de efluxo, de emanação e diferenciação, tanto para as pessoas da Trindade, quanto para as coisas criadas que, além daquelas presentes na natureza, englobariam também os sinais, as imagens, os símbolos, presentes de maneira singular para cada intelecto humano (haecceitas). O mundo seria, então, como um livro de palavras mágicas escritas pela mão invisível de Deus ou uma espécie de espelho em que a infinidade de imagens (multiplicidade), presente no seu interior, não fosse senão o reflexo da face oculta de Deus (unidade). Em todo fundo da alma há sempre, ainda que de forma oculta e latente, o traço desta Mente divina que Eckhart chama de centelha (Fünklein), como encarnação da grande Luz do Logos encarnado.

A vida em geral e a vida do homem, neste sentido, nasceria deste simples e gratuito

brotar incessante, desta potência de estar constantemente em obra e, como tal, teria arti

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seu princípio em si mesmo e, por isso, seria “sem porquê”, ou seja, sem um funda-

mento externo a esse processo, exterior a si mesmo. Neste sentido, interroga Eckhart:

Se perguntássemos à vida durante mil anos: “por que tu vives?” e se ela pudesse responder, diria apenas: “eu vivo por viver!”. Isso provém de que a vida vive de seu próprio fundo; é por isso que ela vive sem um porquê; ela se vive somente nela mesma (MESTRE ECKHART, 1987, p. 84).

Mas há também um segundo movimento da Mente divina, o centrípeto, no qual a corrente segue o sentido do influxo e isso significa que as criaturas e a alma do homem têm uma participação nesse processo de singularização, sendo co-autoras e co-atualizadoras de um tornar-se cada vez mais o que se é. Mas para que se dê um tal acontecimento há a necessidade de uma disposição do homem – denominada por Eckhart de Gelassenheit, o deixar-ser, a serenidade – que, por sua vez, congrega em si mesmo dois movimentos: um negativo, o desprendimento (Abgeschiedenheit) da alma em relação a todas as criaturas, ou seja, deixar os entes irem, partirem (lassen-gehen) e; outro positivo, a entrega, o abandono (Hingabe) da alma à Corrente divina, ou seja, deixar, permitir, que a segunda venha ao encontro da primeira (lassen-kommen). O homem, neste sentido, só poderia ser si mesmo, em seu mais alto grau, livrando-se do apego das coisas como condição de entrar em contato com a Corrente divina que o impeliria ao seu ser mais singular; assim, diz Eckhart, “(...) estar vazio de toda a criatura é estar cheio de Deus e estar cheio de toda criatura é estar vazio de Deus” (MESTRE ECKHART, 1991, p. 152).

A Vida divina, portanto, se apresenta como esse processo de superabundância que vai desde o abismo da Deidade (unidade), passa pela emanação diferenciadora do Logos e chega até a realização dos acontecimentos nas criaturas e no cotidiano do homem (multiplicidade). A alma desprendida, diz Eckhart, mesmo nas suas ati-vidades mais simples do cotidiano deve ser sempre capaz de pressentir a presença desta unidade divina. Há, então, um fio invisível que liga oração e trabalho, abismo e superfície, recolhimento e diversão, eternidade e ponteiros do relógio, de tal forma que “(...) quem traz Deus verdadeiramente consigo, o traz em todos os lugares, na rua e no meio da multidão, tão bem quanto se estivesse numa igreja ou no deserto ou em seu quarto. (...) nada pode distrair esta pessoa, nem dispersá-la” (Ibid., pp. 105-106). Deste modo, o fundo (sem fundo) da alma e o abismo da Deidade se en-contram, pertencem a uma mesma totalidade, pois aí “(...) o fundo de Deus é meu fundo e meu fundo, o fundo de Deus” (MESTRE ECKHART, 1987, p. 84).

Este duplo movimento, em que Deus e alma são colocados em relação, não é

transposto diretamente para o pensamento de Heidegger. Não se trata, portanto, de

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uma simples apropriação do misticismo eckhartiano pelo filósofo. Tal acontecimento

será, todavia, possível por intermédio da doutrina da analogia do pensador escolás-

tico, Duns Scotus.

2 – duns Scotus e a doutrina da analogia

O que mais atrai Heidegger para a escolástica medieval é a sua psicologia, a sua

doutrina do conhecimento, que nada tem de semelhante com a idéia de introspecção

subjetiva, presente no pensamento moderno; trata-se, antes, de um entendimento

ontológico do homem que subordina o conhecimento ao ser. O aspecto fundamen-

tal que sustenta esta psicologia “é a experiência do homem medieval de pertencer a

uma ordem imutável que tem sido estabelecida independentemente dele” (CAPUTO,

1986, p. 147).

Daí a sua entrega e abandono incondicionais do conhecimento ao ser, e nenhuma

forma de vida medieval expressa isso de modo mais exemplar do que a atitude da

mística e da ascética. Nesta absoluta entrega, entende Heidegger, está ancorada uma

atitude de subordinação tanto da vontade à vida divina, praticada pelo místico em

um nível heróico, quanto do conhecimento ao ser, a equivalente atitude especulativa

praticada pelo pensador escolástico. Ambas as atitudes, mística e escolástica, conser-

vam entre si o traço harmônico entre vida e pensamento, piedade e conhecimento,

ascese e epistemologia, enquanto expressão daquilo que atraía tanto Heidegger para

os medievais, ou seja, o elemento vivo da experiência da vida concreta, fáctica. Entre-

tanto, para deixar mais explícita esta conexão entre mística e escolástica, precisamos

dar também algumas indicações, à maneira do misticismo eckhartiano, da doutrina

medieval da analogia apresentada por Heidegger no seu Habilitationsschrift.

Para o homem medieval, diz Heidegger, tanto o mundo natural e sensível quanto

o sobrenatural e supra-sensível, com todas as suas relações mútuas, são concebidos

sob uma ordem, cuja articulação é comandada por meio da analogia (HEIDEGGER,

1978, GA 1, p. 255). Esta pode ser compreendida de duas formas. Uma primeira,

mais elementar, é aplicada a diversos domínios da realidade, guardando entre si

certa igualdade, mas também certa distinção. Heidegger dá um exemplo por meio

das palavras principium e causa. Tais palavras têm entre si qualquer coisa de comum,

embora tenham seu uso aplicado a domínios diferentes: a primeira (principium),

no âmbito da lógica, para significar “fundamento (Grund)”; a segunda (causa), no

domínio da realidade concreta, para significar “coisa originária (Ursache)”. Por esta

proximidade de significados, elas podem até ser intercambiáveis, sendo possível, en- arti

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tão, a palavra princípio ter um uso analógico tanto para fundamento, quanto para

causa (Ibid., p. 256).

Uma segunda forma de analogia, no entanto, é aquela na qual os elementos que

formam a analogia se encontram “numa determinada relação de comum-pertinência”

(Ibid., p. 257). Aqui, os elementos analógicos, os analogata – diferentemente da

anterior que primam pela proximidade, pela semelhança –, não são nem totalmente

diferentes, nem totalmente idênticos. Os traços constitutivos desta analogia, diz

Heidegger, são:

[...] certa identidade de significação e, contudo, uma diferença de acordo com o

âmbito de aplicação. Nessa identidade de significação – nessa unidade de ponto de

vista, em que pode ser apreendido um homogêneo que se encontra em todos os

analogata –, está o elemento da analogia que funda a ordem. Na medida em que “o

comum” é descoberto como distinto nos diferentes âmbitos, fica também conservada

na analogia a multiplicidade. [... Assim, aí,] homogeneidade e heterogeneidade estão

entrelaçados de uma maneira singular. Apesar de certa unidade de ponto de vista,

mantém-se a multiplicidade; esta, por seu lado, é tal que não exclui a identidade da

relação. Resulta, assim, uma peculiar unidade na multiplicidade e uma multiplicidade

na unidade (Ibidem).

É nesta segunda forma da analogia – em que identidade e diferença estão numa

relação de co-pertença, onde o caráter homogêneo é aquele que reúne, aglutina os

elementos múltiplos, dando-lhes um centro, uma ordem, uma totalidade; e, ainda,

onde o caráter heterogêneo que, apesar deste domínio comum, se conserva ao

preservar a singularidade de cada membro da multiplicidade – que, na opinião de

Heidegger, o homem medieval entende o caráter metaphysicum do pensamento que

engloba e entrelaça o mundo sensível e o mundo supra-sensível num todo analógico.

E é, portanto, por essa doutrina da analogia, presente na escolástica escotista,

que Heidegger se apropria da mística de Eckhart com o propósito de desenvolver a

sua questão da unidade do ser na multiplicidade de seus significados. Assim, na on-

tologia de Scotus, mutatis mutandis, Deus, o absoluto, é ser que, enquanto princípio

criativo e ativo, comunica ser às coisas criadas. Ele é “a mônada” que contém a “fonte

da multiplicidade em relação à forma e à essencialidade dos objetos constituídos”

(Ibid., p. 258). O ser é uma atribuição específica de Deus e apenas de forma derivada

o ser é comunicado às coisas criadas. A multiplicidade dos objetos criados pelo ser se

produz por divisão “per sui comunicabilitatem” (Ibidem). Assim, “criador e criatura,

embora ambos sejam reais [caráter homogêneo], o são, contudo, de modo diferente

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[caráter heterogêneo]” (Ibid., p. 260); em outras palavras, o ser de Deus e o ser das

coisas criadas não são unívocos, isto é, idênticos, nem equívocos, isto é, diferentes –

mas análogos, ou seja, se assemelham, mas em diferentes graus.

Esta estrutura analógica do pensamento escolástico – que estabelece uma ordem

para o mundo sensível e supra-sensível, hierarquizando-os em diversos graus de ser;

de um lado, o movimento de reunião, de homogeneização (unidade) e, de outro, o

movimento de dispersão, de heterogeneização (multiplicidade) – nos remete à no-

ção do nascimento do Logos de Eckhart. Esta, tal como vimos anteriormente, possui

também dois pólos analógicos: a grande luz da Vida divina (unidade) e a centelha

da alma (multiplicidade). Nessa noção também há dois movimentos analógicos: o de

efluxo, de emanação, do abismo da Deidade para a vida em geral e para o âmbito

do histórico – os indivíduos em seu cotidiano, as concepções de mundo, as épocas,

os acontecimentos em geral, sejam políticos, artísticos ou religiosos1 –, como o mo-

vimento contrário, o de influxo, que requisita o desprendimento e a entrega da alma

em seu acesso à misteriosa fonte da Deidade. Neste sentido, diz Heidegger:

A transcendência não significa nenhum distanciamento radical em que o sujeito se

perderia; ela se constitui, ao contrário, numa relação de vida edificada sobre a correla-

tividade que, como tal, não é petrificada numa direção em sentido único, mas, antes,

comparável ao vai-e-vem da fluida torrente da vivência que junta individualidades

espirituais numa afinidade eletiva [...] A posição de valor não gravita, pois, exclusi-

vamente, em direção ao transcendente, mas, antes, é igualmente refletida daquela

plenitude e absolutidade para repousar no indivíduo (Ibid., p. 409).

Portanto, a noção de transcendência, nesta perspectiva analógica do pensamento

medieval, sai do esquema clássico de “mão única” – do sensível ao supra-sensível – para

incorporar o sentido inverso. Assim, transcendência é tanto o movimento do influxo

ou do afluir da pluralidade das coisas e dos indivíduos para a unidade da torrente

da plenitude, quanto o movimento contrário do efluxo ou do emanar da plenitude

para a diferenciação.

Ora, é esta noção mais completa de transcendência de influxo e efluxo, expressa

neste vai-e-vem da fluida torrente, que faz com que o pensamento medieval seja,

para Heidegger, tão atraente, na medida em que ela lhe permite fazer uma analogia

entre o “modo medieval de vida e pensamento” e “experiência em geral”. O primeiro,

1 Ereignis, apesar de ser uma importante palavra da segunda etapa do pensamento de Heidegger, a partir dos anos 30 – que ele emprega para significar, de modo exclusivo, o acontecer epocal, historial (geschichtlich), da História do ser –, ela, contudo, já é empregada neste período num sentido bastante amplo para significar todos os acontecimentos, desde o aparecimento de épocas da história, quanto aqueles da vida cotidiana. ar

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expresso tanto pela mística (Eckhart) – efluxo da Vida divina que nasce do abismo

da Deidade para o nascimento do Logos no fundo da alma e o conseqüente influxo

presente na atitude da absoluta entrega da alma no seu retorno à Deidade –, quanto

pela escolástica de Scotus – efluxo como processo de diferenciação analógica da

mônada, com os seus diversos graus hierárquicos de ser presente nas criaturas, e o

conseqüente influxo, expresso no mergulho do pensamento no material noemático

por meio de categorias ontológicas, como forma de acesso ao absoluto, a Deus. O

segundo elemento da analogia, a “experiência em geral”, é a tentativa de Heidegger

de trazer este modo medieval de vida e pensamento para a sua problemática onto-

lógica da unidade do ser na multiplicidade dos seus significados. A experiência em

geral – que inclui esta comum-pertinência entre viver e pensar – seria, então, para

Heidegger, esse nexo de um todo analógico de identidade-na-diferença, desde as ati-

vidades mais triviais do cotidiano concreto até as mais refinadas reflexões do espírito,

atraído pelo absoluto misterioso.

Este é o projeto de Heidegger para esta etapa de seu itinerário de pensamento:

vida e filosofia no horizonte do mistério – o viver a multiplicidade dos afazeres e

cuidados do cotidiano prático, recolhido numa totalidade que dê a cada uma das

experiências em geral e a cada uma das coisas do mundo natural um centro, uma

ordem, sob o contínuo zelo e vigilância da genuína perspectiva do pensar meta-

físico; uma espécie de ontologia teológica com “retoques” de neokantismo e de

fenomenologia. É sob esta tensão do vai-e-vem da dupla transcendência, emanação

e entrega, em que se dá a comum-pertinência entre os dois pólos do real – Deus e

mundo, universal e singular, eternidade e tempo –, que Heidegger quer alicerçar o

seu projeto de resgatar a metafísica. Tensão esta que se encontra “afrouxada” tanto

na identidade monística, sem diferença, própria da Weltanschauung cosmológica dos

gregos, quanto no pensamento da absoluta diferença heterológica, sem identidade,

presente no subjetivismo moderno.

A metafísica de Heidegger seria, portanto, nem monismo, nem dualismo, mas

um analogismo místico-filosófico, sustentado pela “tensa” identidade-na-diferença.

Tal projeto de metafísica seria, então, encabeçado pelo conhecido dito de Novalis que

Heidegger coloca como epígrafe da Conclusão de seu Habilitationsschrift: “procura-

mos por toda parte o Incondicionado e encontramos sempre apenas coisas” (Ibid.,

p. 399). E a filosofia seria este difícil ofício da procura incessante pela totalidade

incondicionada, como forma de reunir o que, em nossa vida prática, está sempre do

nosso lado em grande profusão – a multiplicidade das coisas. Todavia, a relação que

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podemos ter com as coisas é sempre mediatizada por um sentido enquanto inter-

pretação histórica daquela procura. Não encontramos o Incondicionado, ele mesmo;

nem as coisas, elas mesmas. Precisamos, contudo, do Incondicionado para guiar a

experiência da nossa procura como condição para encontrarmos as coisas, sempre

intermediadas pelo sentido interpretado historicamente.

É evidente que não podemos reduzir o pensamento de Heidegger – especialmente

desta sua primeira etapa, que o levará até Sein und Zeit –, a uma espécie de mera

continuação ou adaptação do pensamento medieval, uma vez que sobre esse início de

itinerário acrescentar-se-ão ainda as suas pesquisas do cristianismo primitivo (Lutero,

Kierkegaard, Agostinho e epístolas paulinas), dos escritos de Dilthey sobre o tempo,

assim como dos escritos práticos de Aristóteles – com o intuito de apreender em cada

uma dessas pesquisas o caráter fáctico da existência histórica.

Mas é inegável que essa poderosa intuição de uma co-pertinência entre homem

e ser – pautada por uma dupla transcendência (efluxo e influxo) que forma um todo

analógico de identidade-na-diferença –, marcará definitivamente seu pensamento,

tanto na primeira quanto na segunda etapa de seu caminho, dotando-o de uma

estrutura binária, mediante a qual é articulado um modo de pensar que caminha

pendularmente entre um pólo e outro – mostrar-ocultar, lembrar-esquecer, pensado-

-impensado, verdade-não-verdade –, de forma que cada um desses movimentos

polares não exclua o outro, mas, ao contrário, mantenha com o oposto uma tensão

permanente.

Esta estrutura binária é também a base do caráter circular do pensamento de

Heidegger, em torno do qual estão enredados os diversos círculos, entre outros: o da

noção circular de existência (ek-sistere); o círculo da compreensão ou hermenêutico

(Da-sein); o círculo da verdade, enquanto desvelamento e velamento (a-létheia); o

círculo da temporalidade e da historicidade ek-státicas (o advir, o sido e o presentar).

E é para este último círculo – o da temporalidade e da historicidade ek-státicas – que

a nossa exposição se dirigirá a seguir.

3 – o caráter temporal-historial do homem

Tomemos como noção exemplar dessa dupla transcendência o homem ser in-

terpretado como Da-sein, isto é, como um ente não encerrado em si mesmo, mas

que se constitui a partir de uma relação de comum-pertinência com o ser ou, mais

propriamente, de uma abertura ou clareira (Da), por meio da qual o ser (Sein) dos arti

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entes se manifesta e ganha presença. Ser homem é ser, portanto, a abertura para

o movimento centrífugo do efluxo do ser, na medida em que acolhe o que vem ao

encontro e – ao mesmo tempo, entregar-se ao movimento centrípeto do influxo do

ser, enquanto aceita a convocação que emerge desse encontro para ser o que é.

Todavia, esses dois movimentos, centrífugo e centrípeto, são fruto do caráter

temporal que promove a abertura do Dasein, dotando o homem de uma existência

ek-stática – expressa em sua raiz latina ex-sistere –, cuja essência é a de ser um ente

que se sustenta (sistere) na condição de estar constantemente desalojado para fora

(ex) de si mesmo, nesta relação bi-transitiva com o ser. “Sustentar para fora”, “ser

desalojado para fora de si mesmo”, como expressões nascidas da interpretação on-

tológica da existência, por sua vez, não mais cabem dentro do princípio de realidade,

isto é, nada mais conservam do traço de substancialidade estática daqueles antigos

conceitos metafísicos – essentia e existentia. Tais expressões, ao contrário, trazem

em seu bojo o caráter de transitividade, que o conceito husserliano de intencionali-

dade preparou, à medida que falam que o essenciar (das Wesen) do homem, como

ek-sistência, não pode mais ser interpretado como uma coisa, uma realidade, um

substrato, um ente do mundo natural.

Por isso, já na Introdução de Sein und Zeit, Heidegger indica que terá de colocar

toda a sua analítica sob um princípio mais originário que o da metafísica, ao afirmar

que “mais elevada do que a realidade está a possibilidade” [Höher als die Wirklichkeit

steht die Möglichkeit] (HEIDEGGER, 1977, Sein und Zeit, GA 2, § 7, pp. 51-52). Decidir

pelo primado do princípio de possibilidade não é, todavia, uma simples questão de

escolha ou de estilo do filósofo, mas, muito antes, está profundamente enraizada

na sua interpretação originária do tempo (Zeit) – como horizonte de manifestação

e de retração (alétheia) do ser (Sein) – contra a fixidez do princípio de realidade da

metafísica, tomado no horizonte de um tempo ontificado, apreendido como mera

presentidade.

Ser Dasein, portanto, para além de qualquer substrato, é ser uma relação tempo-

ral ex-tática de abertura ao ser, por meio da qual o ser também se revela ao Dasein.

Mas como se dá, propriamente, esse princípio de possibilidade ao qual o Dasein está

entregue? Se nos acercarmos da existência de forma direta, pensa Heidegger – isto

é, das condições sob as quais se encontra a existência do homem concreto, de “carne

e osso”, e instrumentados pela fenomenologia hermenêutica –, nos daremos conta

de que esta existência não pode ser interpretada à maneira da existência de outros

entes, tomada como simples presença real. De fato, essa nossa aproximação nos diz

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que o fenômeno da existência é um contínuo superar de seu estado atual (presente)

para os seus outros horizontes temporais, seu advir (futuro) e o seu ter sido (passado),

que se mostram possíveis, ao mesmo tempo, tanto na forma de uma ausência como

na de uma presença.

O possível, por conseguinte, seria precisamente esse horizonte de dupla transcen-

dência, no interior do qual a existência torna-se histórica, isto é, na medida em que

acolhe o que nasce e se manifesta desse fundo sem-fundo temporalizante de seu ser

(futuro), recuperando o seu ter sido (passado) e, ao mesmo tempo, aceitando ser o

que é sempre prometido a um depois, sempre disposto na forma de um projeto, de

um poder-ser ou ainda de um ter que ser. Portanto, é por meio desse caráter ek-stático

de seu ser – expressos por esse duplo traço da transcendência (efluxo e influxo) –

“... que o homem se manifesta e se desoculta como possibilidade que supera toda

a atualidade ou presença [simplesmente] dada [Vorhandenheit, Existentia, Ousia,

Substantia]” (KEARNEY, 1997, p. 109).

Ora, esse privilégio assumido por Heidegger do possível sobre o real é uma das

mais notáveis contribuições de Ser e Tempo, uma vez que provoca um deslocamento

no horizonte de interpretação do tempo, com profundas conseqüências para o pro-

blema da história2. E a pedra angular deste deslocamento está localizada no caráter

futural da existência, no seu morrer, apreendido no seu quíntuplo aspecto, ou seja,

enquanto “[...] a possibilidade mais própria, irreferente, certa e como tal indetermi-

nada e insuperável do Dasein” (HEIDEGGER 1977, § 52, p. 343). É no caráter finito

da temporalidade, portanto, que Heidegger coloca o “[...] fundamento velado da

historicidade do Dasein. (Ibid., § 74, p. 510)”. Em outras palavras, a fundamento da

historicidade do homem, nasce desse caráter futural do Dasein – da transcendência

como efluxo, isto é, a existência nascendo do abismo do futuro –, que, por sua vez,

passa agora a outorgar um sentido próprio e autêntico ao passado.

Com isso, Heidegger provoca a desconstrução do privilégio concedido à inter-

pretação metafísica, que toma os fatos do passado como realidades efetivas, dentro

de um contexto cultural ou mundial. A partir de agora, estes fatos perdem o seu

primado em favor de uma interpretação de um passado que só poderá ter acesso a

2 Em Heidegger o problema da História sofre uma mudança radical de foco: ela deixa de ser encarada como ciência historiográfica, enquanto estudo do passado que procura identificar estruturas causais que justifiquem o apareci-mento dos fatos e acontecimentos históricos ocorridos – para ser compreendida a partir de uma nova ontologia do homem (Dasein), cuja vivência do tempo não pode mais ser interpretada como medida linear e sucessiva de passado, presente e futuro, mas enquanto manifestações ek-státicas do ser (Sein) no âmbito do aberto (Da) da existência humana, geradas circularmente a partir do futuro. ar

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uma autêntica compreensão se ele estiver enraizado em suas possibilidades futuras.

Por isso, “[...] a história não tem o seu peso essencial nem no passado, nem no hoje e

nem em seu ‘nexo’ como o passado, mas sim no acontecer próprio da existência, que

surge do porvir do Dasein (Ibidem)”. Pois é somente na perspectiva de uma repetição,

interpretada no horizonte das possibilidades futuras, que o passado pode revelar o

seu sentindo autêntico.

Todavia, assevera Heidegger, não é essa historicidade futural que o Dasein tem,

inicialmente, acesso, uma vez que é difícil para ele suportar a experiência nadificadora

e fundante de seu “ser-para-a-morte”. E a dificuldade desse suportar, ontologicamente

falando, consiste no fato de nos darmos conta de que a abertura que somos (Da)

não é guiada por nós – nem tampouco controlamos o aparecer, o vigir e o retrair

dos entes nesta abertura –, mas pelo caráter temporal de nosso ser (Sein). Isso nos

permite concluir que somos, tão-somente, uma abertura temporal nadificadora, à

qual temos acesso por meio da disposição afetiva básica (Grundstimmung) da angús-

tia que acontece em nós quando o ser dos entes recua em bloco. Damo-nos conta,

então, que ser Dasein “não é algo que o homem ‘possui’, como uma propriedade ou

característica, mas, ao contrário, algo que possui o homem e que torna possível o seu

relacionamento com outros entes” (CAPUTO 1986, p. 158). Damo-nos conta, em última

instância, que o pensamento do homem não detém a causa, nem a posse da razão

suficiente das coisas, o que significa que a presença das coisas em nós, lembrando

aqueles termos-chave eckhartianos, têm uma origem sem causa, um fundamento

“sem fundo” (Ab-grund), uma razão “sem porquê” (ohne warum).

Por isso, tomar consciência da carga que representa essa essência ek-stática e

finita faz com que o Dasein acabe por refugiar-se em um outro traço fundamental

denominado por Heidegger de “queda” (Verfallen), que se refere à maneira superficial

em que ele permanece mergulhado no tríplice modo cotidiano de existência, sob o

domínio do “impessoal” (Man): o “falatório” [Gerede] (HEIDEGGER, 1977, § 35, p.

222ss), a “curiosidade” [Neugier] (Ibid., § 36, p. 226 ss) e a “ambigüidade” [Zwei-

deutigkeit] (Ibid, § 37, p. 230 ss). Este tríplice traço da “queda”, entende Heidegger,

é a dimensão imprópria da abertura (Da) do Dasein em seu ser-no-mundo, na qual

habitualmente se encontra perdido no frenesi de suas ocupações diárias, guiadas

pelo impessoal. A queda é, portanto, um estado em que o Dasein se encontra sob

constante “tentação” (Versuchung), pois lhe dá a sensação de “sossego” (Beruhigung)

e “segurança” (Sicherheit), duas importantes bases que ele está sempre à procura

para apoiar a sua existência. O que sustenta o Dasein neste aparente bem estar é a

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sua suposta crença de que isso significa “ser autêntico”, que sendo assim ele é “ele

mesmo”, mas isso, segundo Heidegger, não passa de um esforço de adaptação ao

impessoal; ao invés de autenticidade, ela mesma, o que ele faz, na verdade, não é

senão fugir dela.

Entretanto, é neste horizonte de impropriedade que o Dasein tem uma primeira

interpretação de sua historicidade, compreendendo, “[...] de imediato, sua história

como história do mundo” (Ibid, § 75, p. 514). No interior desta história, enquanto

encontra-se disperso no burburinho das atividades cotidianas, o futuro lhe aparece na

forma de uma esperança temerosa ou carregada de expectativas; o passado lhe vem

na forma do esquecimento, uma vez que ele é compreendido a partir do presente e;

este, por sua vez, sempre voltado para uma atualização do hoje. Preso a este hori-

zonte de impropriedade, a historia do Dasein é tecida de apelos comuns: o passado,

repleto de fatos e acontecimentos esparsos, que poderiam ser também os dos outros,

se transformaram em despojos estranhos; o futuro, feito de projetos tomados aqui e

ali de clichês vigentes e; o presente, ditado por uma rotina que diz pouco ou nada de

seu genuíno modo de ser, mas que, mesmo assim, é levada adiante em busca de sua

frenética atualização para atender às pressões do mundo público (Ibid, § 75, p. 516).

O acesso a outra condição histórica, no seu sentido originário, só acontecerá

quando o Dasein se dispuser a fazer o enfrentamento dessa ameaça latente de

sua finitude, ou seja, entregando-se ao movimento de influxo da transcendência,

enquanto aceitação daquilo que constitui a possibilidade mais própria, irreferente,

certa, indeterminada e insuperável de seu ser (morte). Ao sermos tocados pela expe-

riência desta extrema possibilidade, na opinião de Heidegger, isso transforma todas

as possibilidades de nossa vida. Em outras palavras: a suprema impossibilidade dá a

tônica à existência, ou seja, banha todo o seu horizonte com os traços de finitude e

de contingência.

Todavia, diz Heidegger, essa angústia que abre ao Dasein o morrer mais próprio

não lhe é dada “de graça”, ele precisa “lutar” por ela, empenhar-se para conquistá-

-la, pois “o impessoal não deixa surgir a coragem para assumir a angústia diante da

morte” (Ibid., § 51, p. 338). Esta coragem do Dasein que antecipa a possibilidade

de seu morrer é denominada pelo filósofo de “decisão” (Entschlossenheit), que lhe

permite abrir e desentranhar com determinação o seu próprio poder-ser que antes

estava fechado, trancado na sua condição de queda no impessoal. Esta decisão an-

tecipadora, por outro lado, enquanto expressão do movimento de influxo da trans-

cendência de seu ser, possibilita ao Dasein duas experiências de plenificação, a sua arti

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haecceitas e a sua totalitas, na medida em que ela “[...] singulariza o Dasein e, nessa

singularização, torna certa a totalidade de seu poder-ser” (Ibid., § 53, pp. 352-53).

Contudo, a decisão antecipadora não é um ardil inventado por Heidegger para se

esquivar da morte, mas “[...] a compreensão que [...] libera a possibilidade da morte

apoderar-se da existência do Dasein e de, no fundo, dissipar todo encobrimento de

si mesmo [...]” (Ibid., § 62, p. 410).

E quando a finitude apodera-se da existência, o Dasein decidido se descobre com

raízes históricas pertencentes a uma herança, transformando-se em um ente historial.

Ser historial seria, portanto, “[...] o acontecer dessa decisão, ou seja, a repetição que,

antecipadamente, transmite a herança de possibilidades” (Ibid., § 75, p. 516), presente

de modo latente no seu ser-lançado, recolocando o Dasein no seu vigor de ter sido

que, por sua vez, pode vir na figura de modelos ou heróis, enquanto expressões de

existência paradigmática da comunidade histórica à qual ele pertence, repetindo ou

retomando os passos e desempenhos daquelas figuras.

Essa repetição, que reconecta o Dasein às raízes históricas de seu ser-lançado,

retiram-lhe os liames que o vinculam ao impessoal, pois os afetos e ligações, as pres-

sões e aprovações oriundas deste não mais oferecem segurança alguma ao Dasein,

destruindo, assim, aquela antiga influência, poder e tirania que exercia sobre este.

Só aí, então, ele se dá conta de que por trás daquele envolvimento acolhedor de sua

vida na publicidade do impessoal, descortina-se um mundo cheio de regras tirânicas,

carregado de rotinas insuportáveis e exigências familiares, eivado de exemplos de

oportunismo e irresponsabilidade. Educado nessa primeira escola da historicidade

imprópria do mundo, o Dasein percebe que se tornou calculista e altamente eficiente,

convencido de que se for servil e ardiloso tudo pode conseguir, sem saber ao certo o

sentido desse tudo e, muito menos, o que faz a sua vida valer a pena. Somente agora

pode ele compreender que ser si-mesmo, contrariamente ao que pensava antes, é

na verdade, “[...] uma desatualização do hoje e uma desabitualização dos hábitos

impessoais” (Ibid., § 75, p. 517).

Ao acolher o seu estar-lançado como repetição, o Dasein ganha também um

destino, enquanto rumo, orientação e constrangimento (em relação à sua dispersão

no impessoal), pois passa a compreender que em sua existência não mais poderá-ser

qualquer coisa ou todas as coisas, tal como antigamente assim era pensado, mas

limitado a um âmbito restrito de possibilidades, no interior de um horizonte mais

vasto de tradições, valores, crenças, modelos de uma comunidade histórica à qual ele

pertence. Somente na medida em que o Dasein for capaz de se interpretar no interior

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deste alinhamento “porvir-vigor de ter sido” (zukunftig-Gewesenheit), presente na

repetição – isto é, por um lado, ter a coragem de suportar o peso da finitude de sua

existência e, por outro, repetir e reintegrar um passado que lhe libera o vigor das

possibilidades mais genuínas de seu ser-lançado –, “(...) é que ele pode existir no

modo do destino, ou seja, é que ele pode, no fundo de sua existência, ser historial”

(Ibid., § 74, p. 509). E diferentemente do que antes acreditava, ele se dá conta de que

agora, em sua vida, “tudo começa pelo futuro!” (HEIDEGGER, 1987, p. 204). Percebe,

também, que a posse de um destino retira a estranheza do âmbito de seu passado,

sempre compreendido no modo do esquecimento. A estranheza agora está no âmbito

da própria existência, interpretada não mais como esquecimento, mas como enigma,

como mistério, dando a ela, ao mesmo tempo, vigor e densidade, alegria discreta e

austeridade, grande perigo e simplicidade, tal como nos mostra o trecho de uma crô-

nica de Clarice Lispector intitulada “Perfil de um eleito”, contida no livro “Descoberta

do mundo”, na qual ela descreve o processo de transformação do ser [aí]:

Ainda muito jovem era um ser que elegia. Entre as mil coisas que poderia ter sido, fora se escolhendo. Num trabalho para o qual usava lentes, enxergando o que podia e apalpando com as mãos úmidas o que não via, o ser fora escolhendo e por isso indiretamente se escolhia. [...] Às vezes comia o pior: a escolha difícil era comer o pior. Separava perigos do grande perigo, e era com o grande perigo que o ser, embora com medo, ficava: só para sopesar com susto o peso das coisas. Afastava de si as verdades menores que terminou por não chegar a conhecer: queria as verdades difíceis de su-portar. Por ignorar as verdades menores, o ser já começava a parecer aos outros como rodeado de mistério: por ser ignorante, era um ser misterioso. Tornara-se uma mistura do que pensavam dele e do que ele realmente era: um sabido ignorante; um sábio ingênuo; um esquecido que muito bem sabia de outras coisas; um sonso honesto; um pensativo distraído; um nostálgico sobre o que deixara de saber; um saudoso pelo que definitivamente, ao escolher, perdera; um corajoso por já ser tarde demais e já se ter escolhido. Tudo isso, contraditoriamente, deu ao ser uma alegria discreta e sadia de um camponês que só lida com o básico. E tudo isso lhe deu a austeridade involuntária que todo trabalho vital dá. Escolha e ajustamento não tinham hora certa de começar nem acabar, duravam mesmo o tempo de uma vida (LISPECTOR, 1999, p. 386).

Conclusão

O itinerário que seguimos para ligar as duas obras de Heidegger, A doutrina das

categorias e do significado de Duns Scotus e Ser e Tempo, foi, ao mesmo tempo,

distante e próximo. A distância, por um lado, fala de um Heidegger jovem ligado às

correntes da época do neokantismo e da fenomenologia, longe ainda de um caminho arti

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próprio. A proximidade, por outro, fala de um Heidegger que permanece em dívida com o pensamento especulativo do místico medieval: Mestre Eckhart. O recorte que aqui fizemos procurando aproximar a noção da dupla transcendência tomada na perspectiva analógica do pensamento medieval e a interpretação da historicidade em Ser e Tempo procurou apontar para essa dívida de Heidegger.

Tanto Heidegger quanto Eckhart rejeitam tomar a essência do homem na dimensão antropológica, tal como é apreendido aristotelicamente, enquanto animal rationale, no interior da qual o homem é tomado como um ente entre outros, distinto apenas por sua faculdade racional. Ambos não são contra este conceito, ele apenas não apreende o homem em sua natureza originária (Eckhart), pois é apenas um conceito representacional (Heidegger). Ao contrário, o foco perene de suas atenções é para o ser do homem: para o primeiro, Dasein; para o segundo, Grund der Seele. Por isso, a grandeza do homem não é de caráter propriamente humano, nem antropológico, mas relativo ao fato dele ocupar um espaço por onde cruza a dupla transcendência, pautada, tal como vimos, em uma co-pertinência entre os dois pólos constitutivos de uma mesma relação: Gott e Seele para Eckhart, Sein e Dasein para Heidegger – ambos se pertencem e um encontra no outro seus próprios traços de identidade. O primeiro par, torna-se um no sentido de que cada um é simples e puro o suficiente para unir-se ao outro; o segundo, não são dois entes ligados um ao outro, mas pólos de uma mesma relação.

Entretanto, também para ambos, o homem só participará dessa dupla trans-cendência que o convoca para ser o que é, em seu sentido originário, se ele vier a conquistá-la, ou seja, penetrar nesse círculo bi-transitivo de seu ser (efluxo-influxo). Em outras palavras, homem só compreenderá o movimento centrífugo da primeira transcendência (efluxo) que fala da vinda de Deus à alma (Eckhart) ou do aproximar--se da possibilidade do morrer do Dasein (Heidegger), se ele se dispuser a realizar o movimento centrípeto da segunda transcendência (influxo). Mas para que isso aconteça é preciso, antes, que ele seja capaz de desprender-se das obras exteriores, libertando-se da sedução que elas exercem sobre ele, como rupturas advindas de sua entrega a isso que o convoca: o nascimento do Filho no fundo da alma (Eckhart) – ou, então, ser capaz de afastar-se de sua aderência aos entes e de sua submissão ao impessoal, como frágeis rotas de fuga com que ele sufocava a angústia de seu ser mortal, enquanto frutos de sua decisão em aceitar isso que o convoca: suportar o peso de sua finitude, como expressão de sua existência historial (Heidegger).

Entre Eckhart e Heidegger, distantes na perspectiva de um olhar historiográfico,

próximos do caráter historial de dois modos de pensar. O próprio Heidegger em 1953

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admite essa sua herança historial ao reconhecer um débito para com a teologia no

seu conhecido diálogo com o professor japonês, no qual admite – numa espécie de

autoaplicação de sua concepção de historicidade –, que “sem essa proveniência teo-

lógica, eu jamais teria chegado ao caminho do ser. Proveniência, entretanto, é sempre

porvir” (HEIDEGGER, 1971, p. 96).

Mas para compreendermos originariamente a expressão “proveniência teológica”

em Heidegger, é necessário, porém, não tomá-la de maneira historiográfica, em que

são privilegiados aspectos de sua biografia passada, no sentido de ter recebido uma

educação formal e religiosa dentro da esfera confessional do catolicismo – como filho

de pais católicos, como interno em Konstanz ou como seminarista estudando teologia

em Freiburg –, nem mesmo se refere aos múltiplos usos que fez, ao longo de seu

itinerário de pensamento, de palavras e esquemas oriundos do âmbito da teologia,

especialmente da teologia-negativa, católica ou protestante. Tudo isso, apesar de ser

historicamente verdadeiro não é, contudo, ainda, o mais essencial para compreender

aquela expressão.

A proveniência teológica de que fala Heidegger não vem do passado, mas do

porvir, porque nascida do alinhamento destino-repetição da circularidade historial

que podemos apreender nas suas duas perspectivas. Pelo lado do destino, pode ser

compreendido pelos passos trilhados pelo filósofo ao longo das duas etapas de seu

caminho de pensamento, enquanto resposta à sua contínua convocação para pensar

a questão do ser para além dos limites da tradição metafísica. Pelo lado da repetição,

iluminada pela convocação porvindoura, de todas as influências teológicas presentes

em sua formação religiosa, a teologia negativa de Mestre Eckhart tenha sido, talvez,

aquela que mais lhe marcara, não de modo acidental, uma vez que o místico já ha-

via introduzido no final da Idade média, tal como vimos anteriormente, o tema da

diferença ontológica da essência do divino (Gott-Gottheit), como tentativa de ultra-

passar os limites da tradicional interpretação teológica de Deus. Só por esse destino

comum – expresso por esse esforço que visa ultrapassar os limites da compreensão

vigente desta transcendente realidade: Deus (Eckhart) e ser (Heidegger) –, é que o

filósofo moderno entrevê a possibilidade de repetir os passos do místico medieval,

recebendo dele inspiração para o seu próprio caminho de pensamento. Só por essa

proveniência futural é que Heidegger e Eckhart puderam, em última instância, se en-

contrar e dialogar não sobre as mesmas questões, que pertenciam a épocas distintas,

mas em torno do Mesmo. arti

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ReferênciasCAPUTO, John D. The mystical element in Heidegger’s throught. New York: Fordham University Press, 1986.

HEIDEGGER, Martin Unterwegs zur Sprache. Pfullingen: Günther Neske, 1971 [1959]. Trad. franc. Acheminement vers la Parole. Paris: Gallimard, 1976.

HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. GA 2. Frankfurt am Main: V. Klostermann, 1977 [1927].

HEIDEGGER, Martin. Frühe Schriften. GA 1. Frankfurt/M.: V. Klostermann, 1978 [1912-16]. Trad. parcial: Traité des catégories et de la signification chez Duns Scot. Paris: Gallimard, 1970.

HEIDEGGER, Martin. Zollikoner Seminare. GA 89. Frankfurt/M.: V. Klostermann, 1987.

KEARNEY, Richard. A poética do possível – fenomenologia hermenêutica da figuração. Trad. de João Carlos Silva. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999.

MESTRE ECKHART. Oeuvres de Maître Eckhart – sermons, tratés. Trad. par Paul Petit. Paris: Gallimard, 1987.

MESTRE ECKHART. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1991.

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O apóstolo Paulo foi e continua sendo uma das

figuras mais controversas do movimento cristão. Isto

ele o foi na sua vida biográfica, e voltou a sê-lo nos

últimos tempos. H. S. Chamberlain, por ex., chama

Paulo de “talvez o maior homem do cristianismo” ,

o “grande arquiteto do cristianismo”. Segundo ele,

quando se investiga suas grandes convicções funda-

mentais, aparece, na sua concepção religiosa e antro-

pológica, claramente a direção genial de espírito da

tradição indo-européia1. Friedrich Gogarten entende

que Paulo, ao construir o primeiro modelo de teologia

científica, salvou o cristianismo de permanecer uma

mera seita2. Nesta direção Paulo tem sido festejado em

estudos recentes, como um dos grandes articuladores

da concepção de fundo da cultura ocidental européia.

Segundo esta leitura, Paulo seria o grande gênio de

seu tempo ao integrar tradições judaicas, estóicas,

madaísticas a partir da experiência significativa do

movimento cristão, no qual via uma perspectiva de

integração destas tradições a partir de uma univer-

salidade da história e da cultura. Numa direção bem

1 CHAMBERLAIN, H. Stewart. Die Grundlagen des 19 Jahrhunderts, p. 578.2 GOGARTEN, Friedrich. Die Verkuendigung Jesu Christi. Tuebingen, 1965.

* Doutor em Filosofia pela UFRJ, professor de Filosofia do IFITEPS

Fé e temporalidade na carta de Paulo aos Gálatas

Sergio Wrublevski*

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Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 5, n. 2, p. 29-40, jul./dez. 2012

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diversa se situa a leitura crítica que, por ex. Nietzsche faz de Paulo. Segundo Nietzsche,

Paulo seria o verdadeiro e próprio negador do evangelho, da “boa mensagem” (eu-

-angélion), e o inventor de uma “mensagem ruim” (dys-anghélion), uma mensagem

centrada na idéia do pecado, da vingança de Deus, da necessidade de uma expiação,

com a qual Paulo teria, através do ressentimento, envenenado todo o mundo cristão.

Nietzsche tenta sintetizar o núcleo da teologia paulina que chegou a nós, homens

modernos, a partir da carta aos Romanos: Apesar e dentro da motivação da Lei dada

a Moisés, o pecado atinge todos os homens, que são, por isto, incapazes de justiça,

ou seja de alcançar justificação. Paradoxalmente, a própria observância da lei leva o

homem a este orgulho, àquela presunção de justiça, àquela confiança nas próprias

forças autônomas, que constitui o pecado mais grave, enquanto ato de independên-

cia nos confrontos com Deus. Mas Cristo, morrendo pelos homens, expiou o pecado

de Adão e abriu assim ao homem a possibilidade de justificação; esta não acontece

pelas obras do homem mas pela fé no próprio Cristo3. A pergunta que logo somos

levados a fazer é: Uma tal síntese fala da experiência de fé de Paulo ou da recepção

que a doutrina paulina experimentou na tradição teológica moderna, especialmente

nos movimentos protestantes do século XIX?

1 Gênese da experiência da fé

Paulo nasceu em Tarso da Cilícia por volta do ano 10 d.C. Era proveniente de uma

família judaica da tribo de Benjamin, mas ao mesmo tempo cidadão romano. Em Jeru-

salém recebeu na juventude uma profunda educação religiosa segundo a doutrina dos

fariseus, especialmente junto ao mestre Gamaliel. Num primeiro momento participa

com grande zelo da perseguição da jovem igreja cristã. Depois de presenciar o assas-

sinato de Estevam, Paulo teria se transformado profundamente quando, no caminho

para Damasco, teria experimentado uma aparição de Cristo. Este evento, ocorrido

pelo ano 36 d.C., lhe revelou a verdade da fé cristã, dando-lhe uma nova identidade

e uma tarefa toda própria: a de anunciar aos não-judeus, isto é, aos pagãos, a nova

experiência da verdade do movimento cristão. Depois de uma estadia na Arábia e uma

volta a Damasco, vai a Jerusalém pelo ano 39, depois do que se retira na região da

Síria-Cilícia, a partir de onde Barnabé o chama para Antioquia. Realiza uma primeira

missão apostólica entre os anos 45-49 passando por Chipre e Ásia Menor, indo até

o sul da (Panfília, Pisídia e Licaônia). É nesta época que, segundo Lucas (At 13,9),

3 NIETZSCHE, Friedrich, o Anticristo 47, capítulos 42-48.

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Saulo de Tarso começa a usar o nome grego Paulo, e começa a ter ascendência sobre

Barnabé. Quatorze anos depois da conversão, no ano 49, Paulo vai a Jerusalém para

participar do concílio apostólico, onde se admite e se sanciona que a lei judaica não

obriga os cristãos convertidos do paganismo. Ao mesmo tempo a autoridade de Paulo

como apóstolo dos pagãos é reconhecida oficialmente pelas autoridades supremas

do movimento cristão. Nos anos 49-52 acontecem a segunda viagem missionária pela

região da Turquia (partindo de Antioquia, Síria), norte da Grécia, Atenas, Corinto e

Éfeso, e nos anos 52-55 a terceira pela região da Turquia (partindo de Antioquia),

Grécia, chegando até Corinto e retornando por Mileto até Jerusalém. No ano 58 Paulo

é preso em Jerusalém, levado como prisioneiro para Cesaréia da Palestina até o ano

60, quando, sob escolta, é enviado a Roma. Lá permanece preso por dois anos, do

ano 61 a 63. Com a conclusão do processo Paulo é absolvido e libertado. Viaja para a

Espanha. Pelas cartas pastorais pode-se concluir que Paulo possa ter realizado viagens

para o Oriente. Por último, Paulo é preso em Roma, onde sofre o martírio atestado

por tradições muito antigas e que pode ter acontecido no ano 67.

É a estas comunidades que Paulo recorda a tradição religiosa judaica e às quais

anuncia Jesus Cristo como uma experiência originária da verdade. É neste contexto

temporal-espacial e histórico que Paulo busca, num engajamento cada vez singular,

explicitar a experiência da verdade enquanto experiência da fé em Jesus Cristo, a partir

de cujo evento todas as relações recebem seu significado.

O testemunho do espírito de Cristo, assim o entende Paulo, presencializa a expe-

riência histórica da Verdade como uma epifania do divino, testemunhada por uma

dinâmica de prontidão e de acolhida desta manifestação cada vez concreta na sua

originariedade. Tal prontidão e acolhida para a manifestação singular se torna difusa,

quando reduzida à realização de uma doutrina ou de uma sistematização científica,

conhecida mais tarde como metafísica. Não se trata, pois, do anúncio de um conteúdo

doutrinário, mas da acolhida do divino na existência concreta e singular inspirada

no Cristo, entendido como fonte e protótipo de um encontro realizado e manifesto

cada vez numa práxis de relações oriundas desta acolhida da dinâmica do divino. Tal

acolhida do divino de Cristo se dá no modo de um encontro, realizado no médium

da finitude, exercitado e antecipado, paradigmaticamente, pelo Jesus histórico. O

Jesus histórico é, enquanto perfazer-se da plenificação na finitude da existência hu-

mana, “Christós”, o Ungido. Embora Paulo não tenha visto Jesus histórico, ele diz

tê-lo “visto”, isto é, ter intuído imediatamente o espírito do Cristo vivo nas ações e

testemunhos dos primeiros cristãos e de suas comunidades. Trata-se de uma dinâmica arti

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de espírito encadeada numa realização cada vez singular-factual e, ao mesmo tempo,

sustentada, renovada e plenificada por uma medida de espírito que, desde o início, e

anteriormente a toda concreção, já se manifestou e já foi acolhida no seu todo. Paulo

expressa esta experiência cada vez pessoal de diversos modos, sempre acenando para

a fonte desta experiência mística-cósmica, que é trabalhada na receptividade finita

e, sem este trabalho na finitude, não acontece. Uma das frases sintetizadoras desta

experiência é: “Estou pregado à cruz de Cristo. Eu vivo, mas já não sou eu, é Cristo

que vive em mim” (Gl 2,19-20).

Se esta epifania do divino, enraizada na concreção fáctica, não se deixa com-

preender como a realização de um conteúdo doutrinário, nem como parte de uma

explicação metafísica, ela remete para uma dinâmica de desvelamento que se dá como

consonância entre o pensamento da fé (sempre como atitude criadora) e o conteúdo

do pensamento na realização da Vida da fé. É o que parece estar proposto na sentença

que sintetiza a experiência originária da verdade do próprio Jesus histórico e de todo

encontro com a imensidão do eu de Cristo na concepção do quarto evangelista: “Eu

sou o Caminho, a Verdade, a Vida” (Jo 15,1). Como Blaise Pascal interpreta, trata-se

de uma dinâmica de desvelamento do real que se dá através de uma concordância

cada vez mais radical entre um caminho (odós, meth-odos), cada vez promissor, ple-

no de possibilidades, que se instaura na medida em que se faz concreto e originário

desvelamento (alétheia), realizado no aqui-agora, na existência finita singular. Quanto

mais a forma do caminho e a forma do conteúdo se entrelaçam numa única dinâmica,

tanto mais a Vida, a Verdade como Vida (Jo 14,6) se manifesta a si mesma em toda

a sua imensidão, plenificação, unidade e retraimento.

Nesta dinâmica de desvelamento e retraimento do real, o cristão não intenciona

transcender os limites do mundo, instaurados por Deus ou pelo destino. Em lugar

desta transcendência típica da cultura grega, enquanto realização do homem univer-

sal, o cristão reconhece a limitude, a vigência dos limites, e aí exercita uma decidida

transcendência interior. Finitude, limitação significa, então, para o homem não algo

que pode ser superado e que fica para trás. Superação significa então mudança e

elevação de dimensão. Deste modo o cristão não se resigna, não se isola, não fica

indiferente, antes, cresce com o próprio processo para dentro da própria finitude e

infinitude. Ele permanece prisioneiro de uma limitação casual, mas ele a supera no

médium interior. Com este engajamento interior na finitude, ela a aceita, tirando

dela sua dureza e brutalidade. Ele a supera no mesmo modo como Cristo ensinou a

superar o mundo, deixando-se justamente pregar nele. Exteriormente o cristão não

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se diferencia de outras exigências parciais, mas vive interiormente de modo diverso

sua finitude. Esta se torna lugar de uma universalidade fundamental e originária,

oriunda justamente da aceitação consciente e decidida da finitude e de sua peculiar

transcendência. Universalidade da fraqueza, força na fraqueza, fraqueza que se revela

como força mais forte do que a força da universalidade do homem.

Quando o cristão acolhe a limitude, rompendo com sua dureza e fazendo-a

transparente, ele não se refugia numa concepção sem tempo nem história, antes, ele

se deixa envolver em seu tempo e para dentro de seu tempo, transformando-o nos

limites. Transformação e superação acontecem aqui através do engajamento histórico

finito e revelador da Universalidade da própria história, apreendida aqui de modo

historial, ou seja, como historiar-se que é tarefa para nós, para o eu de cada vez.

2. a atitude criativa da fé e o tempo

Já na saudação aos Gálatas, Paulo descreve sua identidade religiosa como ori-

ginada por um princípio anterior, seja a ele próprio, seja a qualquer determinação

humana, e que ele chama de “Deus Pai” e de “Cristo Jesus”. Paulo se entende como

“um enviado” (apóstolos) pela força de “Jesus Cristo e de Deus Pai” e não apenas

pela força dos homens.

Na segunda frase, Paulo sintetiza na fórmula de saudação toda a experiência

hermética da fé como um desvelamento significativo de tudo a partir do princípio

“Deus Pai nosso” e “Senhor Jesus Cristo”. Segundo o princípio “Senhor Jesus Cristo” é

Cristo, com sua imensa fé, que origina em nós a experiência da fé e da justificação. Fé

e justificação não são aqui sinônimas. Fé diz a confiança de quem se entende colhido

pela experiência da fé. Justificação é o sentido que se instaura para a fé confiante,

cuidadosa deste desvelamento de vida originária. A fé indica uma experiência que

não se atém à justiça subjetiva, mas à justiça que vem de Deus em referência à fé, à

justiça que vem através da fé do Cristo. Por isto é preciso que o homem sustente a

fé que lhe foi gratuitamente concedida, sem o que a fé se torna fideismo subjetivo

do homem. É Deus quem faz instaurar-se o sentido da fé, somente ele pode justificar

a própria experiência da fé. Esta justificação não se dá como um esquema formal, e

sim como justificação apreendida na conformação com a existência finita do “Senhor

Jesus Cristo”. É no conformar-se com o “Senhor Jesus Cristo” que experimentamos a

dinâmica de elevação que vem do modo como ele assumiu a morte, o sofrimento, o

inesperado das situações existenciais.

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Enquanto a justificação se dá sempre num determinado sistema de valores e sig-

nificados religiosos, ela não depende do sistema. É antes a própria justificação que se

manifesta de si e por si mesma. E por que a lei é considerada por Paulo insuficiente

para criar a justificação da fé? A lei é uma forma de consciência na qual entra acentu-

adamente a arbitrariedade do homem (na forma de moralidade, rituais, nacionalismo

etc.), e que não consegue colocar a justificação que vem sempre instaurada de si

mesma, isto é, a partir de Deus, mas através da presencialização da fé.

Na passagem paradigmática de Filipenses 3,12 Paulo distingue estes três mo-

mentos de constituição da gênese da fé cristã. A atitude da fé está unida a Cristo e à

plenificação que a epifania do divino irradia em toda concreção finita da experiência

da fé. Assim descreve Paulo a experiência de gênese da fé: “Sigo de tal maneira a

alcançar a plenificação no que já fui alcançado por Cristo (Jesus)” (Fl 3,12). Aqui o

perfazer-se da fé do cristão se descobre sempre já tendo sido colhido por uma experi-

ência de fé mais ampla e abissal, que dá à experiência finita da fé sua intencionalidade

fundamental. “Mas, continua Paulo, sigo esquecendo o passado e antecipando o

futuro segundo a meta, para a coroa da vocação suprema de Deus no Cristo Jesus”.

O que significa esta referência última a Deus para o perfazer-se histórico da existência

na fé através da conformação com a experiência paradigmática de fé? Não se trata,

evidentemente, como muitas vezes foi interpretado o texto, de uma realização que

acontece num instância metafísica, para além de todo o tempo humano. As intuições

não-metafísicas de Blaise Pascal nos podem aqui ajudar. Pascal escreve: “Conhecemos

não somente Deus unicamente através de Jesus Cristo, mas também Vida e Morte

conhecemos unicamente através de Jesus Cristo. Sem Jesus Cristo não sabemos nem

o que é nossa vida, nem o que é nossa morte, nem o que é Deus, nem ainda o que

somos nós”4. Poderíamos, então, no sentido paulino, acrescentar: Também o tempo

– finito e infinito –, só compreendemos neste confronto cada vez novo e radical com

o sentido do Deus de Jesus Cristo, em nossa vida e morte, na pergunta cada vez nova

sobre o que somos e não somos.

Deste modo a ação da fé se dá como uma positividade de significado, na qual

se instaura a necessidade última de sentido no médium da facticidade temporal e

espacial. É a vigência de uma dimensão anterior a todo o tempo, vigência instantânea

do tempo imensurável no tempo finito. Aion, que mais parte foi traduzido com a

palavra aeternus ou semper-aeternus, diz justamente esta singular e total novidade

4 PASCAL, Pensées, n. 548.

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de sentido5. Por isto, aion recebeu usualmente o significado tanto de tempo infinito,

eterno, como também o significado de tempo realizado pelo homem (no sentido de

idade, época, geração, durada da vida, destino da vida). Mas não se trata de duas

instâncias como usualmente se compreende, seguindo um viés metafísico: o eterno

em oposição ao temporal. Paulo fala, antes, da concreta evidência de um significado

histórico finito possibilitado justamente pelo acesso ao supremo aion. A santidade

da fé não está completa aqui, mas é guiada por uma confiança e uma esperança

toda próprias. Paulo fala de um “correr sem cessar” por uma meta, con-sciente de

não poder perder o tempo. Correr como quem, em correndo, acerta o passo finito

e singular para não perder o pulso da integração com o sentido infinito, eterno. O

texto fala também de uma confiança forjada a partir de uma pura amorosidade6.

É esta mesma referência à fonte de todo o significado singular-universal que torna

possível a consonância na diferença de identidades tão heterogêneas como a práxis

evangelizadora de Pedro e Paulo. Como a tradição sempre destacou, o anúncio de

Pedro soube captar a verdade da boa mensagem na integralidade e especificidade,

sem tornar-se apreensão unilateral, justamente e na medida em que permaneceu na

radicalidade de escuta do aion na sua concreção finita, e é a mesma atitude que se

torna possível entender a obra anunciadora de Paulo, com uma intuição essencial bem

diversa da de Pedro, mas dotada da mesma característica singular-universal. O texto

de Gálatas, ao falar deste contraponto entre a obra de Pedro e Paulo, fala justamente

da “verdade do Evangelho” (2,5), identidade e diversidade possível a partir da pura

abertura receptiva da gratuidade (2,9).

3. Fenomenologia da experiência originária da fé cristã e temporalidade em Paulo

O acesso de Paulo à experiência da fé cristã se dá através de uma compreensão

da religião, que necessita aqui ser explicitada. O conceito usual de religião (religio)

como uma forma institucional de organizar o sagrado surgiu na cultura ocidental a

partir dos romanos. Qual o sentido radical que o termo “religião” pode ter e a partir

de onde se torna possível tal investigação?

Uma religião investigada na sua estruturação de sentido é o que pretende toda

moderna filosofia da religião. Uma filosofia da religião crítica intenciona interpretar

5 Aion é uma palavra proveniente de a-ídios: o alfa privativo diante da palavra “particular”, “próprio” diz justamente a abertura inesperada e imprevisível no seu todo, que torna cada concreção ela própria.6 Pístis energouménh di’agaphs (Gl 5,6). ar

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o significado das religiões como uma ciência objetiva, ou seja, como uma ciência

que interpreta todo o conjunto de materiais histórico-religiosos a partir de uma pos-

sibilidade de compreensão do seu significado manifesto a uma inteligibilidade livre

de prejuízos e opiniões prévias, bem como livre de todas as tendências do presente.

Quando queremos, porém, explicitar a tendência fundamental de uma fenomeno-

logia das religiões historicamente dadas, nos damos conta de que uma tal concepção

não se evidencia a partir de dados factuais objetivos nem a partir de uma determinada

filosofia da religião, com a qual são interpretados os fatos históricos numa concepção

racional-objetiva, mas fundamentalmente vaga. Decisivo para uma colocação mais

nítida do problema é a “idéia diretiva prévia” com a qual os fatos históricos são in-

terpretados e igualmente os conceitos fundamentais de uma filosofia da religião são

elaborados em conexão com a história. Ambos os momentos pertencem à circularidade

da apreensão do significado religioso de uma determinada concepção religiosa. Assim

a estruturação da “convocação”, do “anúncio”, da “doutrina”, da “admoestação” e

dos mais diversos componentes da práxis religiosa se acham estruturados a partir

desta “idéia diretiva prévia” em sua concreção histórica cada vez própria. Por isto

se diz, com razão, que toda religião é “seguimento”, enraizado numa determinação

histórico-local própria, e sustentado por uma idéia diretiva única e originária.

A partir desta estruturação unitária, podemos distinguir diferentes componentes

desta dinâmica unitária tais como: a) quem anuncia: é o homem que, colhido e sus-

tentado pela unidade estruturante, busca sustentar-se, transformar-se e encontrar-se

a partir desta mesma dinâmica; b) o que é anunciado: o conteúdo, as motivações, as

explicitações, a “doutrina” estruturados a partir da necessidade que a idéia diretiva

prévia exige, torna possível e plausível; c) como é anunciado: o modo qualitativo (o

“como”) da realização tem um significado fundamental, pois não se trata de algo

objetivo a ser anunciado na indiferença acerca de como se anuncia; é, antes, neste

modo de captar o tempo histórico, a partir do que a unidade estruturante instaura

em sua necessidade, que se dá o acerto qualitativo do que há que ser anunciado e do

modo como o anunciante é convocado a anunciar o essencial que se instaura em sua

necessidade. d) a quem é anunciado. Compreendido a partir da idéia diretiva prévia,

o outro do anúncio é o outro homem participante e co-nascente do mesmo evento

originário que reúne anunciante e receptores do anúncio. e) o mundo circundante

do comum. Nesta unidade de estruturação o mundo é o conjunto de significados no

qual os homens experimentam conjuntamente as peripécias da unidade originária de

sentido instaurada e sustentada pela idéia diretiva prévia.

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Desde modo no fenômeno do anúncio se fazem manifestas – na imediata relação

de vida do mundo próprio de Paulo, concentrado nas exigências originárias do anún-

cio –, as possibilidades promissoras do outro, e do mundo significativo etc., reunidas

enquanto estruturação realizadora da vida na sua cada vez concreta originariedade.

Assim, a compreensão fenomenológica da religião não consiste numa projeção

apresentada de algum modo em meio a um nexo objetivo (como uma forma de

assegurar-se (por ex. através de provas), ou com a certeza do modelo científico, como

asseguramento do que está sendo apresentado como significativo). A apreensão fe-

nomenológica do religioso também não consiste numa possibilidade de determinar

definitivamente o ponto de partida de toda a compreensão. Resquícios desta pretensão

científica de compreender a religião encontramos ainda no modo, em muitos aspectos

digno de admiração, como Mircea Eliade (1907-1986), por ex., quando compreende a

religião como a possibilidade de desvendar e vivenciar a Realidade num determinado

modo e nível. Para Eliade, cada coisa pode se tornar algo de sagrado. “Para o homem

religioso, a natureza jamais é somente ‘natural’. Ela é sempre impregnada de um

significado proveniente do sagrado. O mundo é criado de tal maneira que o homem

religioso, quando ele o contempla, descobre as múltiplas formas do sagrado e com

isto do ser”7. Assim, todo o cosmos aparece como uma manifestação do sagrado, uma

“hierofania”. O sol, a terra, a água, a montanha, a floresta, a fonte revelam ao homem

o sagrado e o introduzem na realidade fundamental da existência. Nas aparições e

configurações do mundo se revela ao homem religioso o transcendente. Ele está sub-

jacente às coisas, e, quando levado a se manifestar, impregna de sentido o seu caráter

cultural ou natural. Como o objeto de uma manifestação do divino, também o rito

religioso é capaz de revelar o sagrado. O rito repete uma “ação arquetípica” realizada

pelos ancestrais e pelas figurações do divino no início da história. Na repetição atual

do ritual dá-se uma coincidência do rito com seu “arquétipo”, e assim o tempo pro-

fano é superado e transformado. Deste modo, para Eliade, tanto a estrutura espacial

do universo como seu desabrochar temporal tem um caráter sagrado. A presença do

sagrado cria no espaço terreno um centro de referências, ao qual o espaço está ligado,

no qual o espaço está fundado. Mas não se trata aqui de uma teoria cosmológica, no

sentido usual. O sagrado pode se manifestar em qualquer lugar ou evento. O lugar,

onde o homem experimenta o sagrado e o vivencia é a experiência humana que une

a dimensão temporal e a eterna numa unidade. As religiões naturais tematizam esta

presença do sagrado numa forma unitária, cada vez peculiar, de entender a essência

7 ELIADE, M. Das Heilige und das Profane. Vom Wesen des Religioesen, Frankfurt, 1990, p. 103. arti

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religiosa. A experiência do sagrado está, assim, referida ao horizonte sempre presente

do mundo simbólico e significativo para o homem.

A compreensão da experiência da fé cristã em Paulo não se deixa determinar

de uma maneira definitiva, como acontece com o modelo de explicação formulado

pela “ciência da religião” de Eliade. De modo similar a explicação de Rudolf Otto

(1869-1937) sobre a religião como sendo uma experiência do “Irracional na Idéia do

Divino” revela-se uma tentativa de fundar as explicações racionais sobre os signifi-

cados religiosos no irracional, como algo já dado. Aqui irracional é colocado como

o âmbito do misterioso, que, em seu contraponto com o racional, não deixa de ser

parte da explicação racional. Este irracional na idéia do divino acaba impossibilitando

o racional, por ser uma pressuposição do próprio racional.

A idéia diretiva única e necessária não é guiada por um conceito definitivo e

já fixo de religião, mas diz antes o círculo hermenêutico entre o histórico-factual e

as possibilidades originárias deste conteúdo perfazer-se, guiado pela idéia diretiva

prévia. Guardar esta co-pertença destes dois momentos num perfazer-se cada vez

mais otimal é possível tão-somente como a captação do necessário no tempo, onde

cada concreção significativa é o próprio perfazer-se da medida otimal. Captar esta

co-pertença de ambos os momentos só é possível como a acolhida instantânea do

eterno no tempo, como o correr a partir do Aion que faz tudo ter seu cada vez pleno

acerto e singular significado na dinâmica total da história.

É a idéia diretiva única e necessária que torna possível entender religião de modo

mais originário do que o conceito romano religio, seja na sua versão apresentada

por Cícero ou na versão de Ulpiano. Na medida em que a experiência do divino tem

a ver com o evento significativo-fáctico, trazendo-o cada vez ao seu mais originário

significado, em seu enraizamento espacial como temporal, a partir do que se reno-

vam e se ampliam as possibilidades abissais da própria compreensão do divino: tal

circularidade é o que diz o conceito de con-criatividade. Com este novo conceito

talvez seja possível guardar as referências de renovação radical de sentido tanto do

anúncio como da auto-elucidação, tanto do outro como do outro de si mesmo, tanto

do necessário como do histórico-factual e do radicalmente outro, que como não-

-outro, envia todo o sentido necessário-fáctico, sem que o homem venha a se fixar

unilateralmente num destes momentos.

A colocação paulina pensa o anúncio como criação a partir do eterno no tempo,

e remete, assim, para a experiência criativa grega como evento de ser e do tempo.

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É no contexto desta estruturação que a experiência cristã do anúncio e da parousia

recebe sua clareza.

Os gregos usaram 3 palavras para descrever aspectos da experiência do tempo

na sua unidade, tal como ao homem é dado tematizar: aión, chrónos e kairós. Aión

tematiza a proveniência, a constituição e a duração que o tempo realiza numa deter-

minada concreção de sentido, como, por ex., na vida biográfica, numa obra, numa

comunidade (familiar, jurídica etc.) ou numa época etc. Em todos estes níveis de

realização, aión diz a dinâmica significativa que se instaura com o tempo, que pode

irromper, crescer, chegar ao seu ápice e decair, preparando uma nova e imprevisível

irrupção. Aión significa, então – para dentro da dinâmica de constituição –, o núcleo

de realização que se instaura entre a força de ordenação e o ordenado da ordenação,

entre significação e significado. Chrónos tematiza a evolução, o movimento dinâmico

de realização do tempo na direção de sua plenificação. Chrónos diz, então, a medi-

da interna das relações conduzidas pela e para a medida linear da temporalidade.

É o que encontramos na medição da idade, no tornar-se velho, como uma medida

homogênea entre pontos, com os quais se dá o cálculo do tempo. Uma crono-logia

é uma ciência que mede o transcurso do tempo para o homem. Kairós tematiza, por

sua vez, o envio singular do tempo no contexto em que se manifesta o lugar, o sen-

tido absolutamente singular e irrepetível do tempo. Diz, portanto, o tempo maduro,

pleno de possibilidades e absolutamente singular que torna cada concreção o lugar

em que se dá o todo do tempo e do ser.

Deste modo a experiência unitária e diferenciada do tempo não se restringe a um

destes aspectos apreendidos fragmentariamente, como por ex. a dinâmica de transbor-

damento, a duração do tempo acessível à interioridade da consciência temporal, ou ao

imediatismo de cada concreção temporal. Antes deste seccionamento, a experiência

humana do tempo sonda as possibilidades de uma experiência radical de criação, que

se dá num transbordamento de ser, capaz de dar à dinâmica de relações a oportuna

co-pertença de constituição e constituído, como o reflexo do eterno no tempo. Cada

realização do tempo tem seu próprio eixo, sem ser repetição ou antecipação de qual-

quer outra realização, mas permanece numa tensão de identidade e diferença com

os outros eixos em suas realizações. É a indiferença entre tempo e eternidade que faz

cada realização ser acerto criativo na totalidade cada vez em sendo concreção plena

de sentido. É porque sempre já estamos nesta possibilidade de uma referência ao

tempo aiônico, que podemos reconhecer cada realização como uma pura prontidão

para o sentido último e primeiro (em prosthen tou theou – 1 Tess.) no aqui e agora. arti

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introdução

Como indica o título, esse trabalho gostaria de se caracterizar pelo ponto de interrogação. Sem a interrogação, o título promete um trabalho que fale sobre a disciplina filosófica denominada hoje feno-menologia da religião. Na perspectiva, porém, do ponto de interrogação a fenomenologia da religião indica um interrogatório a que esta disciplina vai ser submetida. Aqui, na presente reflexão, a expressão fenomenologia da religião assinala uma disciplina do saber filosófico que costumamos chamar de filosofia da religião. Por sua vez, o termo religião indica, não religião em geral, mas especificamente a religião cristã. E religião cristã implica fé e teologia cristãs.

Assim determinado o título Fenomenologia da religião?, o que está sob a interrogação é o relacio-namento entre Fenomenologia e religião cristã. O que há entre a fenomenologia, um saber filosófico que quer ser radicalmente teorético-racional, a ponto de achar insuficientemente teorética toda a compreensão que se tem na filosofia do racional e a religião cristã, que tem tudo a ver com a fé e crença? Eis a questão.

Nossa colocação da questão, onde o relacio-

namento entre fenomenologia e religião cristã é

* Escrito póstumo, a partir de material de preparação de aulas.

Fenomenologia da Religião?

Hermógenes Harada*

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questionado, o interrogatório já encontra dois “réus” demarcados de antemão

como fenomenologia e religião cristã. Surge assim uma pergunta anterior: o que é

fenomenologia; e o que é religião cristã? Na medida em que essas perguntas forem

respondidas e divisarmos assim cada vez melhor o perfil de ambas, a pergunta pelo

seu relacionamento se resolve por si mesmo... Mas talvez seja exatamente o contrário:

na medida em que começamos a distinguir nitidamente o que é fenomenologia e o

que é religião cristã, o relacionamento de ambas é colocado no crisol do questiona-

mento, pois a diferença entre elas se torna tão acentuada, que o próprio conceito de

relacionamento entra em questão.

O ponto de interrogação que fecha o título desse trabalho, na realidade, atinge e

abre cada termo componente do título, de sorte que poderíamos exagerar o formato

do título, escrevendo <Fenomenologia (?) da (?) religião (?)>? Mas, se assim, tudo

é interrogado, a própria pergunta entra no lance da questão, por não saber o que

pergunta. É que por não saber o que pergunta, o próprio perguntar começa a girar

vazio em si mesmo, sem saber o que é a pergunta, sem onde, como e o que começar.

O ponto de interrogação do título desse trabalho, indica portanto uma questão que

não questiona apenas sobre isto ou aquilo, mas em fazendo esse interrogatório, busca

captar o início da própria questão, na acribia de não deixar intacta nenhuma posição,

sobre cuja base se comece, se cresça e se consume na questão. Esse empreendimento

é comparado muitas vezes com a façanha impossível do Barão de Münchhausen que,

a cavalo, ao se afundar na areia movediça, levanta conjuntamente a si e à montaria,

puxando-se pelos cabelos para fora do perigo. É que para isso seria necessário um

ponto de apoio fora dele mesmo, para de lá então se acionar, como a partir de um

fundamento apriori, anterior, inteiramente diferente dele mesmo. Essa tentativa im-

possível de querer começar tudo de novo, a tal ponto de querer começar a própria

possibilidade de começar, a saber, começar o que já começou como se a possibilidade

de começar e de ter começado pudessem ser começadas a modo de um primeiro

passo do processo, nos faz cegos para perceber que só podemos pretender começar

tudo de novo, porque já “!estamos começados”: só se pode ser a radicalidade da

novidade do começo, em sendo radicalmente dentro, até o abismo mais profundo

do que ali já está começado. Não se trata, pois, de sair do perigo da areia movediça,

mas sim, antes, nele se afundar ou se apro-fundar.

Fenomenologia e religião cristã já começaram há muito tempo. A pergunta que

pergunta pelo relacionamento de ambas está até ao pescoço ‘enterrada’ nisso que

já, há muito tempo, começou e se chama fenomenologia ou filosofia e religião cristã.

HARADA, Hermógenes. Fenomenologia da Religião?

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Interrogar o relacionamento entre fenomenologia e religião cristã e perceber que,

para interrogar o relacionamento é necessário antes ou ao mesmo tempo perguntar

por aquilo que os relacionados são realmente, parece ser um procedimento óbvio, sem

problemas mais fundamentais. Pois, por mais dificuldades que nos cause tal pesquisa

interrogante, trata-se aqui de constatar fatos: fato fenomenologia, fato religião cristã,

fato relacionamento entre ambas. No entanto, a interrogação que fecha o título do

nosso trabalho, que ao fechar atinge, abrindo para a sua raiz de fundo desconheci-

do, a cada um dos componentes do título, nos mostra que aqui a interrogação, ao

interrogar pelo fato, já está afetada por uma busca de aprofundamento, cujo fundo

não tem mais o modo de ser do saber usual, mas sim o modo de um não-saber todo

próprio. Talvez a clareza do próprio indagar, a clareza do que seja fenomenologia e

religião cristã e a clareza do que seja o relacionamento entre elas, venha desse fun-

do do não-saber, em cuja profundidade a compreensão dos componentes do título

do nosso trabalho, portanto, nós mesmos que colocamos o ponto de interrogação

estamos ‘enterrados’ até o pescoço.

Se fosse uma interrogação que pesquisa e verifica o relacionamento entre fenome-

nologia e religião cristã, deveríamos começar ‘definindo’, i. é, demarcando limites, o

contorno do fato fenomenologia e do fato religião cristã, para então constatar como

é e como se dá o relacionamento entre elas. Tal pesquisa seria um ingente trabalho.

Pois a fenomenologia e religião cristã já se iniciaram há muito tempo e estão emara-

nhadas inteiramente em implicações e pressuposições de tudo quanto delas se tem

de interpretações. Defini-las, realçá-las desse fundo emaranhado de complicações

criticamente, i. é, a modo de distinção e nitidez de diferenciação entre uma ‘coisa’ e

‘outra’ exige muito conhecimento, acuidade e pulso na captação do essencial. Essa

segurança da crítica científica na constatação de fatos falta inteiramente a esse traba-

lho. Além disso, já de antemão, o ponto de interrogação, colocado no seu título, cria

hesitação em iniciar de forma assim tão clara e segura, na vontade de ir construindo

sem mais nessa positividade, constatando fatos. Isso porque a própria vontade de

averiguação da realidade está minada pela desconfiança de que para além, ou melhor,

para aquém dessa acribia crítica de distinguir entre coisa e coisa, há outro rigor de

menor saber, mais tateante, mas talvez mais vivo, mais nascente, que vislumbra na

e-vidência finita o tênue fio de diferença, não mais entre coisa e coisa, mas sim de

inter-ferência de um médium, de um entremeio da coisa com a sua causa, do ente

com o sentido do seu ser. arti

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Considerações sobre a ciência das religiões

1. Os títulos como ciência das religiões, ciência sistemática das religiões, ciência comparada das religiões, “fenomenologia” das religiões são de alguma forma sinô-nimos. Esta última, a “fenomenologia” da religião não deve ser identificada com outra disciplina chamada fenomenologia da religião que é uma disciplina filosófica. Portanto, distinguir bem a “fenomenologia” da religião, como disciplina científica, e a fenomenologia da religião, como disciplina filosófica. A fenomenologia da religião própria do curso de filosofia é uma disciplina filosófica. O que viemos falando até agora como “fenomenologia da religião” é uma disciplina da ciência positiva que recebe também o nome de ciência das religiões. Até agora falamos somente sobre a “fenomenologia” da religião no sentido de ciência positiva, porque muitas vezes se confundem essas duas disciplinas. Assim, à guisa de introdução preparatória à dis-ciplina filosófica fenomenologia da religião e informação de cunho cultural, demos uma visão panorâmica da ciência das religiões (“fenomenologia” da religião), para evitar confusão e para, uma vez que seja, ter ouvido falar dessa ciência, que, ao lado da antropologia cultural, história das religiões, psicologia e sociologia, começa a ter muita importância na busca de uma compreensão mais global do ser humano.

2. Como conclusão dessa introdução preparatória à fenomenologia da religião propriamente dita como disciplina filosófica, podemos enumerar algumas caracterís-ticas e pressuposições da ciência das religiões (“fenomenologia” da religião), quando ela aborda e analisa uma determinada religião ou um determinado grupo de religiões.

3. Tudo isso aula vale também com maior razão, quando a ciência das religiões aborda e analisa o fato religioso como tal, que está presente como algo comum em todas as religiões.

Nessa tarefa, a ciência das religiões procede da seguinte maneira:

a) Tenta descobrir em todas as religiões linhas mestras, em torno das quais gira o resto dos aspectos religiosos, que, devidamente realçados, dissipam a primeira impressão de um emaranhado confuso, que apresenta ser a história das religiões. Busca assim visualizar a estrutura comum a todas as religiões.

Essa descoberta da estrutura é, na linguagem husserliana, a redução eidética, i . é, a busca do eidos (Gestalt, configuração básica, typus) de um fenômeno obtido pela comparação de suas manifestações.

b) Uma vez obtida essa configuração ou estrutura comum, há um segundo mo-

mento, para além da redução eidética, que é o ponto o mais importante na pesquisa

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da ciência das religiões: o de constituir uma compreensão concreta do fenômeno

religioso. É o que na linguagem husserliana se chama constituição.

Trata-se mais ou menos do seguinte:

O fato religioso (enquanto humano) não contém simplesmente uma estrutura

do tipo, p. ex., de cristal ou mesmo de um organismo vivo. Pois ele é fato, mas não

um fato físico no sentido usual, mas uma factualidade toda própria humana. O fato

humano, a fortiori religioso, constitui uma estrutura, digamos, significativa, i. é, um

conjunto de elementos certamente materiais, mas portadores de uma significação

ou uma intenção humana significativa existencial. Nesse sentido, nenhum fenômeno

humano religioso se esgota nos elementos que uma análise puramente empírica pode

descobrir, por mais detalhada e aguda que ela seja. Assim, o fato humano religioso se

inscreve num mundo específico, determinado pela intenção que o sujeito põe no jogo

de relacionamento com ele. Dito na linguagem da fenomenologia de Husserl, cada

fenômeno está constituído por um noema (o aspecto objetivo descoberto, iluminado

e determinado pela intenção humana) e por uma noesis (a pregnância intencional).

Aqui não existe um fato objetivo simplesmente ali presente, independente de refe-

rência à intencionalidade do homem. Aqui todo o fato já é um material constituído,

dentro da significação existencial, que o impregna como um momento significativo

do todo, chamado a presença do homem no mundo (a intencionalidade). Noema e

noesis, juntos, ambos os aspectos numa única fusão concreta, determinam os distintos

mundos, as diferentes regiões da experiência humana. Assim, uma mesma realidade

material pode dar lugar a diferentes fenômenos, conforme à intenção humana que

a descubra. A referência dos aspectos materiais de um fato (realidade) à intenção

específica do homem proporciona a significação ou sentido do mesmo. Daí, a busca

da estrutura do fenômeno, juntamente com a atenção sobre a intenção que a es-

pecifica, tornam possível, para a “fenomenologia” da religião ou ciência da religião,

a descoberta da estrutura significativa do fato religioso através de suas múltiplas

manifestações historiais.

c) Tudo isso, esse aspecto constitucional do fenômeno traz uma tarefa toda pró-

pria ao pesquisador, a saber, dar uma atenção toda específica e própria à dimensão

intencional do fato: a pura descrição deve se converter em compreensão verdadeira

do fato. Aqui não basta pois a fidelidade de um espectador neutro. Não basta, de

fora do fato, analisar objetivamente todos os aspectos e realizar uma visão empírica

panorâmica. Exige do intérprete a capacidade de comunhão com a intenção religiosa

determinante do mundo específico no qual se inscrevem todas as suas manifestações. arti

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É penetrar numa outra existência, deixando suspensa a atividade do simples espec-tador. Exige-se aqui pulso e finura da “consonância” (Stimmung, Eifühlung, feeling). É conviver com o movimento genético e estruturante dos mundos.

4. Tal colocação e abordagem fazem questão de se contrapor à filosofia da reli-gião e à teologia. Rejeita a colocação filosófica e teológica como sendo dogmática e especulativa. Faz questão de ser radicalmente positiva e empírica num sentido mais vasto e profundo do que o empirismo e positivismo do passado, quando a ciência das religiões estava no início de suas pesquisas. Por isso, em vez de ciência, se denomina “fenomenologia”. E se permanecermos na compreensão da ciência como usualmente a temos, a partir do modelo das ciências físico-matemáticas, a “fenomenologia” da religião não pode mais ser chamada de ciência no sentido estrito. Mas, pode ser que, no modo de ser da “fenomenologia” da religião, esteja aos poucos sendo mostrado como o conceito da ciência evoluiu e se transformou num modo de abordagem muito mais fino, diferenciado, dinâmico e concreto do que os modos que tivemos com o conceito “tradicional” da ciência até hoje.

5. Examinemos como a ciência das religiões enquanto “fenomenologia” da reli-gião, depois de marcar a sua emancipação da filosofia da religião e da teologia, tenta demarcar a sua diferença diante de ciências particulares dentro da ciência das religiões.

Tanto a “fenomenologia” da religião como as ciências particulares que compõem a ciência das religiões têm a preocupação de manter-se em contato com os dados positivos oferecidos pela história religiosa da humanidade. Para ambas o método é empírico.

Mas: as considerações de cada uma não são empíricas no mesmo grau nem na mesma maneira. Há diferenças consideráveis quanto à compreensão do ato e no nível de interpretação do fato e do que seja o fato. A “fenomenologia” da religião busca intensamente constituir-se como ciência sistemática que dá uma interpretação cada vez mais global do fato religioso a partir dos dados colhidos pela história das ciências; considera a totalidade, tentando fazer aparecer o concreto do todo em suas manifestações; ao passo que as ciências particulares dentro da ciência das religiões se ocupam de um aspecto parcial do fato religioso: do devir histórico (história das religiões); do aspecto social (sociologia das religiões); do aspecto psíquico (psicolo-gia religiosa) etc. Ocupam-se de cada aspecto, nitidamente diferenciado a modo de diferença entre um ente e outro ente.

6. Assim colocada, a “fenomenologia” da religião (a situação em que se acha a

ciência das religiões), embora rejeite a colocação da filosofia da religião, pode estar

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se aproximando, sem se confundir com ela, da verdadeira impostação da filosofia

da religião. E isto, da filosofia da religião, não enquanto ela fala sobre a religião ou

sobre as religiões, mas enquanto, em interrogando a religião, busca o sentido do

ser da religião. Não se aproxima dessa busca do sentido do ser diretamente, mas

enquanto o modo de compreender o fato, o modo de abordar e analisar a finura de

diferenciação dos fenômenos.

7. Coloquemos a seguir uma tabela de divisão das diferentes colocações do saber

sobre o fenômeno religioso:

Estudos positivos do fato religioso: ciência das religiões:

- Nível científico: estudos analíticos a partir de diferentes perspectivas:

- História das religiões

- Sociologia das religiões

- Psicologia das religiões

- Nível fenomenológico: estudo sintético, global do fenômeno religioso:

- “Fenomenologia” da religião.

Reflexão normativa sobre o fato religioso: “filosofia” da religião e teologia.

Reflexão ontológica na busca do ser da dimensão religiosa: filosofia da religião; fe-

nomenologia (filosófica) da religião, ontologia regional (teologia natural ou teodicéia).

Reflexão ontológica, enquanto questão do ser, e o momento onto-teológico da

precompreensão metafísica do ser: ontologia fundamental.

8. Colocação da questão:

As ciências positivas distinguem entre ente e ente a partir de uma diferença (critério

geral): generalização. É o positum em diferentes níveis de generalização.

a) ente entre outros entes; b) área própria, regiões toda especial de entes; c) Deus

como positum, o fundamento da área religiosa; d) Deus como fundamento do

universo; como a profundidade absoluta; como a causa primeira; e) a colocação

onto-teológica da questão do ser: meta-physica; ontologia; ontologias regionais:

cosmologia, antropologia filosófica, teologia natural; f) O ser como o que é digno

de ser pensado: o pivô mais radical da questão do ser.

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Fenomenologia da religião como disciplina filosófica

1. Tentemos caracterizar o próprio da disciplina filosófica chamada fenomenologia

da religião. Como disciplina filosófica, o que a diferencia da fenomenologia da reli-

gião como ciência das religiões é o seu caráter filosófico. O que é pois o filosófico, o

que caracteriza a filosofia como um saber todo próprio diferente do saber da ciência

positiva?

2. O que caracteriza a filosofia é um modo de conhecer, ou melhor, um tipo de

busca teorética (cf. a reflexão acerca do que é theoráo), que na tradição do Ocidente

recebeu o nome de metafísica. O vigor essencial e fundamental da filosofia é meta-

física. A metafísica contém em si a essência da filosofia.

3. Mas metafísica aqui não coincide diretamente com a disciplina escolar ou

matéria chamada metafísica no ensino usual da filosofia. Diz sim respeito ao modo

de ser que desde o início da filosofia com Platão e Aristóteles anima e impulsiona

o Ocidente até hoje, tomando diferentes formas em diferentes épocas da história.

4. Tentemos compreender melhor em que consiste esse modo sui generis do saber

teorético que se caracteriza como metafísico ou filosófico.

No I século cristão, houve uma tentativa de ajuntar, colecionar, ordenar e publicar

escritos de Aristóteles. Classificaram as obras, seguindo a divisão de disciplinas filosó-

ficas, estabelecida pelos estóicos: epistéme logiké; epistéme physiké; epistéme ethiké:

lógica, física e ética. Entre os escritos (preleções e reflexões = akróasis) aristotélicos,

havia um grupo de escritos que falava dos temas sobre coisas da física, mas ao mes-

mo tempo pareciam ir aquém ou além desses temas. Na perplexidade diante dessa

dificuldade de entender bem de que se tratava, colocaram-se esses escritos depois

dos escritos que falavam das coisas da física, i. é, depois de tà physiká. Como depois,

em grego, se diz metá, surgiu então a expressão metà tà physiká, que empacotada

dá metafísica. Mas logo depois, a palavra metá ou post, cuja significação era apenas

físico-espacial de localização dentro de uma série de classificação dos livros, recebeu

um significado indicativo de conteúdo. Metá então foi interpretado não mais como

post, depois, mas sim como além, trans. Assim, os livros metafísicos de Aristóteles

tratariam de coisas que estão para além das coisas físicas (tà physiká), a saber, das

coisas supra-sensíveis, supra-mundanas, sobre-naturais. Essas coisas sobre-naturais,

transcendentes, foram aos poucos fixadas, principalmente com a Idade Média, como

alma, espírito, Deus e tudo que se refere a ele. Assim, a inquietação originária que

impregnava esses escritos metafísicos de Aristóteles e que aparecia na ambigüidade

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de suas colocações, sempre incompletas e abertas ao questionamento, foi esquecida.

Em vez de perplexidade e espanto de um indagar o ser, a metafísica se transformou

numa doutrina sobre os entes espirituais, principalmente sobre alma, espírito, imor-

talidade, Deus etc. Temos assim o esquema da disciplina escolar chamada metafísica

(o núcleo do ensino da filosofia) que se divide em metafísica geral, que fala do ente

enquanto ente, e em metafísica especial, que fala da natureza, do homem e de Deus

(cosmologia, psicologia racional e teologia natural ou teodicéia). É da cosmologia

que fala da natureza, que surgiram então, depois, da emancipação das ciências da

filosofia, as ciências naturais; e da psicologia natural e da teologia natural, surgiram

as ciências humanas. Numa tal colocação, a filosofia, no nosso caso a teologia natural

ou teodicéia, que é uma subdisciplina da metafísica especial, não se diferencia fun-

damentalmente da ciência das religiões. Para captar a diferença, do que é o próprio

do filosófico ou metafísico, é necessário recuperar de novo, de alguma maneira, a

inquietação e a perplexidade da colocação originária de Aristóteles, quando falava de

um tema estranho que parecia falar das coisas físicas, mas que, no entanto, implicava

em algo diferente, mais profundo e misterioso. Para captarmos essa diferença, vamos

primeiro entender melhor o que significam propriamente as coisas físicas, tà physiká.

Physis indicava entre os gregos a totalidade dos entes no seu surgir, crescer e

consumar-se, cada vez pleno, todo e concreto: cada ente no seu ser (i. é, na dinâmi-

ca do ser). Portanto, não se tratava de natureza entendida como o diferenciado do

mundo humano, p. ex., a natureza virgem, ainda não tocada pela indústria humana.

Não no sentido da natureza que se opõe à e se distingue da cultura e da civilização.

Physis abrangia tanto a natureza como a cultura, portanto, a totalidade do ente no seu

ser. Por isso, a física ou as coisas da natureza ou tà physiká não é a física e natureza

no sentido das modernas ciências físico-matemáticas (cf. Edmund Husserl, Filosofia

como ciência de rigor, I capítulo, a descoberta moderna da natureza: unidade do ser

no tempo e no espaço, segundo as leis exatas naturais). Mas também não se tratava,

como foi dito acima, da natureza no sentido cotidiano usual, em oposição à cultura

e à civilização.

Mas, então, em que sentido? Num sentido muito mais abrangente e vital-con-

creto, no sentido antigo de kosmos, i. é, a totalidade dos entes no seu surgir, crescer

e consumar-se, o sendo no seu ser, o ente no seu ser. Aqui não se trata apenas de

colecionar dados, ajuntar os fatos, as experiências particulares, mas sim originaria-

mente refletir, ponderar, pensar e sopesar a lei e a estrutura interna de cada área da

imensidão variegada do ente no seu ser. Aqui, na física, nesse sentido originário, se arti

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pergunta: o que é vida? O que é a psyché? O que é genesis e phthora, nascimento e

morte; o que é o movimento, o lugar, o tempo, o vazio, o movimento como tal no seu

todo, o que é o primeiro motor, a última e a primeira causa. O saber acerca do ente

no seu ser, enquanto a totalidade dos entes no seu todo, se chamava então epistéme

physiké. Nessa investigação da totalidade dos entes no seu todo, a totalidade, o todo

é o tema, é o que se busca. Mas, se observarmos atentamente a compreensão do

todo aqui operante, percebemos uma ambigüidade e perplexidade na determinação

do que seja o todo. É que o todo, uma vez é entendido na direção do comum, geral,

extensional, do abrangente de todos os entes sem excluir nenhum; e outra vez como

o primeiro e o último princípio, a causa fundamental e básica, a profundidade. O todo

na linha horizontal do comum e geral recebe o nome de ón he ón; ens quatenus ens,

i. é, o ente enquanto ente. O todo na compreensão vertical de profundidade recebe

o nome de theion, daí o divino ou Deus. Essa ambigüidade inicial da filosofia, que

expressa uma inquietação e um espanto diante da imensidão e da profundidade da

vigência do ser, se caracteriza com o adjetivo: onto-teológico. A totalidade, o todo ou a

totalidade dos entes ou o ente no seu todo, é o que denominamos com o termo Ser. A

inquietação e o espanto diante do Ser, a paixão de busca do sentido, i. é, da dinâmica

de desvelamento do todo (Ser) é a saudade, o móvel da filosofia como metafísica.

Essa saudade, essa paixão de busca pelo sentido do todo, portanto, pelo sentido

do ser do ente se chama em grego ho lógos. O homem é o vivente, a vitalidade, a

vigência que está atinente, engajado ao lógos. Nesse sentido o homem se define, i. é,

se determina, se decide como tò zõon lógon échon; na tradução latina animal ratio-

nale. Filosofia ou a metafísica indica então aquele modo de ser essencial do homem

que é estar inteira e continuamente na disposição atenta e atinente ao todo, ao ser

do ente, ao sentido desvelado e velado da totalidade dos entes no seu ser.

5. É por isso que Novalis diz no fragmento 21 do 2º volume das suas obras com-

pletas (editadas por J. Minor, Jena 1923: “A filosofia é propriamente saudade, um

impulso de estar em casa em toda parte”.

Saudade e impulso de estar em casa: saudade aqui Heim-weh (Heim = o lar; Weh

= dor). Só se pode ter dor e saudade de ter impulso de estar em casa, quando se está

ainda longe do seu lar. A filosofia somente pode ser uma saudade e um impulso, se

nós que filosofamos, em nenhum lugar estamos em casa.

Mas o que significa, estar em casa em toda parte, em todos os lugares? Estar em casa não somente aqui e ali, hoje e ontem e amanham, em sucessivos lugares,

um após outro, mas em toda parte em casa significa: a cada momento e ao mesmo

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tempo estar no todo. Este todo, este ser no todo, esta totalidade do ente, do sendo

no seu ser é o tema da filosofia, sua busca, sua paixão.

Razão no sentido tradicional

A realidade do universo que existe em si, antes e independente do homem é algo óbvio e natural. O universo é povoado de milhares e milhares de diferentes entes, e entre esses entes há um ente todo próprio, destacado de modo todo excelente, dotado de faculdades chamadas razão, vontade e sentimento, através das quais entra em relacionamento com os entes que estão ao seu redor, consigo mesmo e com o todo do universo, no sentido de o conhecer, o buscar, o querer e o transformar, na medida e no âmbito de sua possibilidade. Nesse relacionamento cognitivo e volitivo de si e dos entes no seu todo, o homem compreende o que é e como é cada ente e os entes no seu todo, busca compreender tudo de modo cada vez mais unitário, coerente, numa fundamentação cada vez mais bem concatenada, tenta descobrir a última razão, o último porque de todas as coisas. E nessa busca pode descobrir uma presença anterior a todas as coisas, anterior ao próprio homem, que busca o sentido de todas as coisas. A essa presença, ele chama de diversos modos, como p. ex. de espírito, vida, Deus, universo cósmico, alma do mundo etc. Essa presença anterior pode ser considerada como a razão derradeira e primeira, o móvel e a orientação fundamental de todos os entes no seu todo, como fonte de existência, de permanência e consumação de todas as coisas, que foram, são e serão. O próprio homem seria então como que colaborador dessa presença anterior, na participação e na busca de realização, tornando-se cada vez mais adequado a essa presença anterior e ao seu modo. O homem, assim colocado, dentro de tal moldura do universo já prejacente e naturalmente dado, possui como sua tarefa e prerrogativa essa participação na grande razão do universo ou na razão transcendente ao homem e ao universo. A essa participação e a essa responsabilização pelo espírito, chamamos de razão no sentido tradicional.

Seria de importância examinar nessa colocação o esquema da predominância do espiritual, do inteligível, do transcendente e transcendental sobre o sensível, o material visível e o empírico.

Razão no sentido moderno

Essa situação tranqüila da existência em si do universo como um fato, dado óbvia

e naturalmente, entra em questão. Pergunta-se pela fundamentação da certeza dessa

crença na realidade do universo como um dado óbvio e natural. arti

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Duvida-se da validade do conhecimento sensível: externo e interno.

Duvida-se da validade do posicionamento da realidade como em si.

Duvida-se da validade dos objetos ideais: estruturas lógico-matemáticas.

Duvida-se da realidade da presença anterior e transcendente a todas as coisas e ao próprio homem. Também podemos examinar o que se pode duvidar além de todos esses níveis de “realidades”.

O que sobra como indubitável? O Cogitans: o ser do cogitans. Como entender esse Cogito ergo sum?

O Sum como substância (Espinoza), como razão pura (Kant), como espírito (Hegel), como vontade do poder (Nietzsche) etc.

O estágio final de consumação da predominância do espiritual, do inteligível, do

transcendente e transcendental sobre o sensível, o material visível, o empírico.

Redução da razão ao fato das ciências naturaisCom a redução do homem a uma coisa entre outras coisas da natureza e com a

descoberta da natureza das ciências naturais, a razão se transforma num epifenômeno de dados empíricos bio-fisiológicos do corpo físico humano.

No entanto, o princípio que norteia e determina nas ciências naturais o que deve valer como verdade é o princípio de autopresença do espírito nele mesmo, o princí-pio de evidência da autodoação da coisa ela mesma: res cogitans = res extensa = duas modalidades do mesmo = autopresença = autoidentidade = dinâmica do eu transcendental = existência e existencial = transcendência = liberdade.

Trazer à tona a estrutura da existência no seu ser (liberdade) é a tarefa da analítica da existência.

Sobre o sentido da filosofia da religião

1. Religião como coisa do pensar

A fenomenologia ou a filosofia da religião é um pensar. Pensar que se atem à coisa, i.é, à causa que se chama religião. Assim, a fenomenologia ou filosofia da religião in-vestiga (i. é, vai atrás de vestígios, de rastros) a essência, as propriedades, o modo de ser, em suma, o ser da religião. Essa investigação, essa ação de ir à busca de, se expressa na pergunta: O que é isto, propriamente, religião?

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2. Religião e o pensar humano

Para que a filosofia da religião possa ponderar, sopesar a coisa e a causa da religião

ou mais exatamente o ser da religião, é necessário que ao pensar seja dada a religião.

a) O que é esse ser dado da religião?

Os entes ao nosso redor, eu mesmo como ente entre outros entes, são captados,

compreendidos, porque são primeiro dados à nossa percepção. Quando percebemos,

sentimos, julgamos, apreendemos, representamos, queremos, amamos, odiamos,

cremos ou duvidamos, já temos o ente ali presente como dado diante de nós, diante

de nossos atos de captar. A esse ente simplesmente dado chamamos de fato. Que

os entes ali estejam antes de todo o nosso ato de captar é um fato, uma realidade.

Assim, em vez de fato, dizemos também realidade ou o real.

b) Usualmente esse modo de os entes serem dados como ali presentes, existentes

em si, é um modo da doação do ente que não nos chama atenção, pois vivemos e ope-

ramos nesse modo de doação do ente tão rotineiramente que achamos tudo normal

e óbvio. No entanto, há modos e modos de doação, diferentes, de o ente ser dado.

c) Um modo de o ente se dar, bem determinado, cuja captação se chama repre-

sentação ou objetivação, faz com que o ente se nos apresente como objeto. Portanto,

na representação captamos o ente como objeto. Quando um ente é dado como ob-

jeto da representação, esse ser dado e ser captado são produto de todo um processo

que fica oculto, processo denominado de objetivação ou representação (cf. o termo

alemão para representação = vor-stellen; cf. a dupla implicância da terminação -ção).

No processo de objetivação ou representação, o que fica oculto é o horizonte de um

projeto previamente lançado, que predetermina o que pode ou não pode aparecer

dentro e a partir desse horizonte como um objeto do interesse do projeto.

d) Os entes que são enlaçados dentro de um projeto na objetivação ou

representação,e aparecem como os seus respectivos objetos, ali estão já antes de

serem dados como objetos de representação ou objetivação, como coisa. Por isso, é

necessário distinguir entre objeto e coisa.

e) As coisas são também dadas, mas esse modo de se dar não é o da representação

ou objetivação. O modo de se dar dos entes como coisa denominamos de constitui-

ção da realidade. Usualmente, quando falamos da realidade, falamos de fato já na

forma de objeto da representação. A coisa, a res (realidade) é dada cada vez como o

concreto, denso e compacto de todo um mundo que se abre em leques de paisagem, arti

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constituindo um todo, pluriforme, variegado, diferenciado, como mil e mil diferentes

elementos, constelações de elementos, cada qual como concreções cada vez próprias

e diferenciadas do todo. A coisa no seu dar-se não tem mais as características dos

objetos da representação, mas sim do constituir-se do mundo, que me toca na sua

abrangência, me envolve, me convida a abrir-me ao todo, como quem sente com

todo o seu ser a totalidade que o impregna, o contém, auscultando o sentido que

permeia todas as coisas, principalmente e inclusive a mim mesmo; todas as coisas, a

saber cada coisa, na sua diferença, dando-lhes a presença plena, a doação inteira de

ser. Aqui, a captação do sentido de ser não é mais apenas a captação do projeto e

seu objeto, mas sim o estar aberto na disposição de acolhida das coisas e causas do

mundo, na ausculta do sentido de ser que se manifesta de muitos modos. Assim, diz

Aristóteles: to on legetai pollakwV, (o ente vem à fala de muitos modos de doação)

(cf. Ser e tempo, de Martin Heidegger, & 7 B).

f) Como tal, esse doar-se da coisa no sentido de ser é anterior à objetivação ou

representação, anterior à consciência do eu como sujeito e agente do lance do pro-

jeto; é, sim, um apriori do vir ao encontro do sentido do ser, através da doação do

ente como coisa, através do dar-se como concreção do todo, i. é, como mundo. Esse

modo de doar-se é que está expresso na dupla implicação da palavra coisa, a saber,

coisa e causa.

A religião é, pois, uma realidade que vem à fala nesse modo de dar-se como coisa

e causa, como a totalidade do mundo, portanto, realidade que propriamente não

salta, nem foi produzida ou dada pelo pensar filosófico.

E na época onde a religião foi vivida intensamente, ela não foi acompanhada

ou fomentada pela filosofia. Assim, a religião não é filosofia, ela é o radical-outro

da filosofia: “O filósofo chega sempre depois do golpe, depois da existência, depois

da história, depois do dado. Ele não pode apoderar-se a não ser do que já está ali,

do sentido já proferido, já instituído” (Duméry, H. Phénoménologie et religion, Paris,

1958, p. 99).

Não parece, pois, que a filosofia é supérflua para a religião? Ou até perigosa?1

No entanto, a própria religião influenciou intensamente o pensar filosófico, como p.

ex., no pensamento medieval: Fides quaerens intellectum. E, no entanto, exatamente

lá onde se deu um relacionamento sui generis entre a religião e o pensar “filosófico”,

1 Cf. Blaise Pascal: “Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos e sábios”; cf. Pensées, n. 556; e a teologia dialética (K. Barth, Ed. Thurbeysen, Fr. Gogarten, E. Brunner, R. Bultmann).

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como no caso do pensamento medieval, vemos também nitidamente, e isto princi-palmente numa “religião” como a do cristianismo, que existe uma diferença radical e absoluta entre, p. ex., a fé cristã e a filosofia! Como está, pois, o relacionamento entre a religião e a filosofia?

A religião se contrapõe ao pensar filosófico como o seu totalmente outro e an-terior. Ao mesmo tempo, porém, por mais que a religião seja ela mesma, a partir da sua origem, limpidamente, ela se processa e realiza como um acontecimento humano e uma forma de vida humana, como existência humana. A religião se dá portanto no horizonte do homem. São pois sempre homens, os seres humanos, que crêem e se reúnem para o culto divino. Mas o que se realiza no horizonte da vida humana e da existência humana se realiza também no horizonte da autocompreensão do homem e da sua compreensão do ser. Diz Welte: “Homens se compreendem a si mesmos de alguma forma, p. ex., na sua crença em Deus, e eles compreendem – por menos ex-plicitamente que isto aconteça –, o que é isto, quando eles crêem em Deus. Por isso a autocompreensão do homem e sua compreensão do ser é viva no todo, no caso da religião. Sempre, lá, onde a religião é viva, por mais que ela seja também um presente que vem de cima e com isso a partir da sua própria origem, ela vive na compreensão humana, que compreende, cada vez a si mesma e sua coisa, como o que é.

Se o homem faz uso da sua autocompreensão e compreensão do ser, então ele pergunta: o que é isto, religião? E, em pensando, vai atrás da questão. Pensar que pergunta assim sobre o ser da coisa da religião é, porém, pensar filosófico. Por essa razão, o pensar filosófico sobre a religião é sempre possível lá onde religião é com-preendida por homens, seja qual for o seu modo.

Esta conjuntura é também a razão por que o homem tem responsabilidade diante da sua própria crença, diante do seu próprio culto e da religião vivida por ele. Aqui, não deveria se entregar a ela cegamente, à toa, sem pensar e sem a examinar. Ele não tem certamente que produzir ele mesmo a religião. Mas ele tem para com ela respon-sabilidade, na medida em que a religião se realiza no médium da autocompreensão do homem e da sua compreensão do ser, como uma forma da existência humana2.

Porque a autocompreensão humana e a sua compreensão do ser na religião

estão ativadas num modo todo próprio, por isso a religião se expressa na linguagem

2 Cf. Welte, Bernhard, Heilsverständnis. Philosophische Untersuchung einiger Vorausetzungen zum Verständnis des Christentums (Compreensão da salvação. Investigação filosófica de algumas pressuposições para a compreensão do cristianismo). Freiburg i. Br. 1996; Die Wesensstruktur der Theologie als Wissenschaft (A estrutura essencial da teologia como ciência), in: Auf der Spur des Ewigen. Philosophische Abhandlungen über verschiedene Gegenstände der Religion und der Theologie (No rastro do eterno. Tratados filosóficos sobre diferentes temas da religião e da teologia). Freiburg i. Br. 1965. ar

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humana, em categorias e possibilidades de pensar humanas, ela vive nas formas da

realização humana. Somente a partir daí se deve esclarecer o fato manifesto de que

a religião, a seu modo, participa também da mudança histórica da autocompreensão

do homem e da sua compreensão do ser e de que, assim, a religião possui uma his-

tória humana e entrementes uma história demasiadamente humana, embora Deus,

a partir de quem a religião se compreende, esteja imutável e acima de tal história.

Justamente por isso, o homem pode e deve sempre de novo se perguntar: O que

é isto propriamente, religião? E, antes de tudo: O que é isto: a minha religião, que

eu realizo como minha forma de vida? A pergunta pelo “é” é a grande pergunta,

que se levanta da humana compreensão do ser. Ela é segundo a sua estrutura, uma

pergunta filosófica, mesmo que a coisa, à qual ela investiga, seja exatamente o outro

da filosofia e esteja sobre sua própria raiz.

Esse pensar a religião é, porém, não um fato na necessidade fatual, mas sim

facticidade, i. é, a necessidade da liberdade.

3 O tempo da reflexão filosófica sobre religião

O possível não é propriamente o necessário. A questão expressa e temática da

essência da religião e a sua elaboração sistemática não são propriamente uma ne-

cessidade, mas se mostrou como questão possível. A religião pode formar a sua vida,

sem filosofia, e o faz e o fez principalmente lá onde a sua vida é e era intensa.

Onde, porém, a religião não mais possui a sua originária e inicial obviedade, e

lá onde o pensar filosófico autônomo se desenvolveu de modo intenso e absoluto,

talvez surja uma necessidade todo própria de pensar a religião de modo mais temá-

tico e responsável.

Essa necessidade de um confronto temático e responsável no pensar com o fe-

nômeno religião se torna aguda e urgente, diante do que costumamos denominar a

“morte de Deus”. Falemos rapidamente da morte de Deus.

O que é a “morte de Deus”? A expressão vem de Nietzsche. A morte de Deus ou

“Deus está morto” indica o âmago da filosofia de Nietzsche. Contem 4 momentos

principais que receberam o nome de: O nihilismo europeu; a eversão de todos os

valores; a vontade do poder e o eterno retorno do igual.

Na obra póstuma A vontade do poder, aforismo 2 (1887) Nietzsche pergunta: “O

que significa nihilismo?” E responde: “Que os valores supremos se desvalorizaram”.

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E acrescenta: “Falta a meta; falta a resposta para ‘por quê?’” E no quarto livro da

obra A gaia ciência, intitulado “Nós, os intrépidos”, Nietzsche assinala o aforismo

343 com as palavras: “O que há com a nossa jovialidade”. E o texto inicia: “O novo

evento máximo – que ‘Deus está morto’, que a crença no Deus cristão perdeu a sua

credibilidade –começa já a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa”.

Usualmente entendemos o nihilismo como uma atitude e concepção particular e

subjetiva, na qual se vê tudo a partir e na direção do negativo, do nada (nihil). É algo

como rejeição pessimista e depressiva da vida. O nihilismo do qual fala Nietzsche se

chama, no entanto, nihilismo europeu. Não se trata, pois, de atitudes ou concepções

subjetivo-particulares. Mas tampouco se refere propriamente à mundivisão, muito

espalhada na Europa do século XIX, ao positivismo, que afirma: somente o que é aces-

sível pela apreensão sensível é real e verdadeiro. O adjetivo “europeu” do nihilismo de

Nietzsche não se refere à Europa geográfica. Refere-se sim à história, ao destino do

Ocidente. Nihilismo europeu é, portanto, o termo usado por Nietzsche para indicar o

movimento que caracteriza e domina a história do Ocidente, ou melhor, o movimento

que é a própria história do Ocidente, e isto, desde os seus primórdios, com os gregos,

até os nossos dias do Ocidente-europeu. Trata-se, portanto, de um processo, cujo

evento máximo, cuja consumação se expressa e se resume nas palavras “Deus está

morto”. Portanto, o nihilismo de Nietzsche não é opinião ou mundividência, doutrina

de um sujeito chamado Friedrich Nietzsche ou de um grupo de pessoas. Não é apenas

um fato histórico entre outros, uma corrente “espiritual”entre ou ao lado de outras,

como p. ex., iluminismo, ateísmo, humanismo. É o próprio ser, o próprio destinar-se

do Ocidente. É o movimento de fundo da história do Ocidente, um movimento sub-

terrâneo que vem de longe, e que somente agora começa a lançar as suas primeiras

sombras sobre a Europa.

Mas o que caracteriza esse evento? Diz Nietzsche: A morte de Deus, i. é, a perda

da credibilidade no Deus cristão. Aqui a falta de credibilidade no Deus cristão não

está apenas indicando a rejeição e a negação do Deus cristão, por parte dos ateus,

anticlericais, livre-pensadores ou mesmo pelos “cristãos indiferentes”. Tal falta de

credibilidade no Deus cristão, assim interpretada, seria um episódio inocente, parti-

cular e caseiro, diante do evento mencionado por Nietzsche. Uma vez que todos esses

fenômenos negativos acima mencionados não são ainda o nihilismo europeu como

evento-causa, mas apenas alguns dos seus efeitos.

Deus cristão em Nietzsche indica o sobre-natural (o metá físico), o mundo supra-

-sensível, o mundo de valores, de ideais e idéias que constituem a meta, o fim para arti

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o qual tende a vida. Não é, portanto, apenas o fato e a situação de não se crer mais

na revelação da Bíblia, no Deus e na Igreja do cristianismo. O fato de o cristianismo,

com tudo que implica, não ter mais vez, de não mais atuar nem possuir a força de

colocar uma possível meta para a humanidade, não altera essencialmente em nada o

fato de a humanidade ocidental, desta ou daquela forma, viver a estrutura da opção

preferencial pelo mundo sobre-natural, viver a estrutura da predominância do mundo

de ideais e idéias, de metas, de princípios e fins, razão da existência do mundo natural,

sensível e terrestre. Mesmo que o n. 1 do mundo sobre-natural, o Deus cristão, tenha

sido ou seja destronado ou morra inane, o próprio trono vazio permanece. Assim,

se tenta sempre de novo reintronizar os substitutos do Deus cristão, como p. ex., o

estado, a consciência, a sociedade, a razão, a humanidade, o progresso, o mundo

melhor e toda sorte de diferentes -ismos.

Essa tentativa de preencher, sempre de novo, o vazio deixado pelos diferentes

valores supremos desvalorizáveis, por meio de valores substitutos do Deus cristão, é

denominada por Nietzsche de nihilismo incompleto. Assim, diz Nietzsche em a Vontade

do Poder, aforismo 28 (1887): “O nihilismo incompleto, suas formas: nós vivemos bem

no meio dele. As tentativas de esquivar-se do nihilismo, sem everter os valores que

eram válidos até agora: trazem o efeito contrário, tornam mais agudo o problema”.

O descrédito do Deus cristão quer dizer, portanto: a determinação do sentido do

ser que tem sua mais consumada e absoluta manifestação no Ente Supremo (Deus),

em todas as suas variantes e modalidades de interpretação, perdeu poder sobre o

ente e suas determinações. Assim, “com o ‘Deus cristão’, caem do trono também,

juntos, todos os ideais, normas, princípios, regras, fins, metas, valores que foram e

ainda são por algum tempo estabelecidos sobre o ente, para lhe dar no seu todo

um fim, uma ordem, um sentido. Por isso, diz Nietzsche: “...os valores supremos se

desvalorizam”...”falta a meta, falta a resposta para “por quê?”.

Mas o que é necessário para que o nihilismo não fique a meio caminho, e sim

que chegue à sua consumação? O nihilismo completo, consumado e pleno deve não

somente constatar e considerar a desvalorização de todos os valores supremos, mas

também vigiar atentamente que não se volte aos valores antigos, substituindo-os por

valores novos, similares. E deve antes de tudo efetuar a eversão de todos os valores.

Eversão de todos os valores, aqui, não significa inverter, revirar ao contrário os

valores que ocuparam ou ocupam os lugares da hierarquia de valores, estabelecida

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como o escalonamento dos entes no seu todo. Não se trata, pois, de por de cabeça

para baixo a ordem do “sistema” de dois mundos, do mundo sensível: passageiro,

relativo, provisório e ilusório, e do mundo supra-sensível: eterno, absoluto, definitivo

e verdadeiro. Eversão significa estabelecer uma mudança total, não somente nos

valores, mas sobretudo no ser da estrutura que aparece como o escalonamento do

“sistema” de dois mundos. Isto significa revolver, revolucionar a totalidade da valência

para colocar tudo novo, desde a raiz, buscar um novo princípio da própria valorização,

fundar um “novo céu e uma nova terra”, onde o “céu e a terra” não são mais dois

reinos hierarquizados como meta-físicos, mas como uma inteiramente nova pátria

da Terra dos Homens, à qual Nietzsche dá o nome de Terra, Vida, Corpo. Somente

quando se der essa eversão e a fundação da nova ordem da afirmação da Terra, da

Vida, o nihilismo chega à sua consumação e se torna completo. Temos então o que

Nietzsche chama de nihilismo clássico, o nihilismo europeu.

1. Assim, estamos no tempo da reflexão filosófica da religião: tempo da indigência

da “morte de Deus”.

2. Aqui, negligenciar ou até deixar de lado a reflexão crítica filosófica acerca da

religião, portanto, querer viver uma imediatez irrefletida da vida religiosa, se torna

extremamente perigoso. Se deixarmos de lado a reflexão crítica filosófica, principal-

mente nesse tempo de diminuída força do salto originário da religião e da força de

reflexão do pensar altamente exigente no seu rigor crítico, facilmente poderemos

decair até uma situação na qual a religião irrefletida e incontrolada se torne de tal

modo arbitrária que não corresponde mais à sua essência.

3. Na filosofia da religião, a religião não é, pois, premissa; não é pressuposição

da reflexão filosófica. A religião não pode, pois, entrar na reflexão filosófica como

argumento ou razão de uma explicação. Ela é apenas para a mira filosófica um reino,

uma região, um ente que é dado, não como pressuposição, mas sim como o ente

que deve ser interrogado e aclarado no seu ser. Quando, porém, a religião é base,

premissa, pressuposição para a autocompreensão de si mesma, não temos mais a

filosofia da religião, mas sim a teologia.

4. Isto significa que há uma reflexão esclarecedora da religião que brota e vem

dela mesma, como o vir à luz, vir à fala da religião na sua “razão”, portanto, uma

autoevidenciação da religião por e para ela, nela mesma.

5. Surge, assim, a questão: o que quer a filosofia esclarecer ou dizer sobre a religião

mais do que a própria religião pode esclarecer e dizer a partir da sua autoevidenciação? arti

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6. Trata-se aqui de ver, diante da religião, a legitimidade da filosofia como o pen-

sar, no sentido da busca incondicional e autônoma do sentido do ser, por causa do

seu desvelamento ele mesmo; trata-se, pois, da filosofia como a questão do ser, ou

melhor, questão do sentido do ser; legitimidade da filosofia e seu questionamento em

referência à autocompreensão, à autoreflexão, à autoevidenciação da religião como

teologia. O que quer dizer: a filosofia busca o sentido do ser da religião, enquanto

filosofia, e não ser a experiência fáctica ou existencial da religião como vivência crente

da religião? Qual a diferença entre “como questão do sentido do ser, estar na abertura

disposta de colher o sentido do ser da religião que se revela como ela se revela” e

“viver a própria religião imediatamente como crente esclarecido”?

7. No tempo do salto originário da religião, onde a religião é vivida na plenitude

do seu ser, por estar na plenitude, não permite nem necessita da questão do ser da

religião.

8. No entanto, no tempo da indigência da religião, onde a religião perdeu a sua

credibilidade, o que aparece como religião, sem ser o ser da religião na sua plenitude,

é um ente que necessita ser colocado em questão e ser interrogado acerca do seu ser.

9. Esse questionamento filosófico não pressupõe a religião como seu fundamento.

Mas tampouco a questiona a partir e dentro de um determinado sentido do ser, o

qual toma como medida e critério para julgar a religião.

10. A filosofia, no seu vigor essencial de busca límpida e precisa do sentido do

ser, ali está na sua autonomia, na disponibilidade da espera do vir à fala do sentido

originário do ser da religião. Mas esse deixar ser o sentido do ser da religião, lá onde

a religião não mais se acha na legitimidade pura do seu salto originário, lá onde se

sobrecarregou de outras colocações que não vêm do seu ser, a filosofia pode e deve

exercer o seu rigor crítico de destruição das pressuposições inadequadas, inanalisadas

e prefixadas.

11. Esse problema do relacionamento entre filosofia e religião, filosofia e fé,

filosofia e teologia possui várias tentativas de solução. Uma dessas soluções, talvez a

mais conhecida, é a solução pretensamente atribuída aos medievais, designada pela

expressão: Fides quaerens intellectum (a fé procurando a compreensão).

12. Dissemos acima, “solução pretensamente atribuída aos medievais”, pois a

compreensão dessa expressão fides quaerens intellectum é usualmente interpretada

a modo da explicação neoescolástica como uma tentativa de síntese entre fé e razão.

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13. Aqui, não interpretamos essa expressão como o faz a neoescolástica. Nós a

entendemos como expressão da autoevidenciação da fé, a partir e dentro dela e nela

mesma, portanto, é uma expressão teológica.

14. Mas vamos conhecer, como informação, a maneira como a neoescolástica en-

tende essa expressão. É que essa interpretação é muito conhecida e é aceita de modo

geral entre nós, mas ela não satisfaz, no rigor e na precisão filosófica, as exigências do

questionamento moderno acerca desse assunto. Segundo a neoescolástica, a filosofia

que se caracteriza pela expressão fides quaerens intellectum se chama filosofia cristã.

A necessidade da reflexão filosófica no tempo de indigência da religião, indigência

denominada “morte de Deus”, nos convida a conscientizar-nos bem da nossa situa-

ção de habitantes do nihilismo europeu e, a partir de uma clara consciência da nossa

situação epocal, nos confrontarmos com a questão do sentido do ser da religião. A

partir do que foi refletido acima, vamos resumir a nossa situação.

1. Com o advento do nihilismo europeu, onde os valores supremos que sus-

tentavam o homem ocidental se desvalorizaram, o ser do homem não lhe é mais

pro-posto, i. é, colocado diante dele, digamos, como idéia a priori ou ideal. Não há

mais, portanto, um ponto final, uma meta fixa, plena de significação, importância e

fascínio, que mobilize o homem a doar-se na busca do ideal, deixando de lado todo

o particular, o “pessoal”, o “subjetivo”. Nesse sentido, temos a pergunta e a resposta

de Nietzsche, já mencionadas anteriormente: “O que significa nihilismo?”, e responde:

“Que valores supremos se desvalorizaram”, e acrescenta “falta a meta; falta a resposta

ao “por quê?”3 Para onde vai então todo o élan vital do homem, se não há o “para

onde”, o “por quê”, que lhe dê uma meta, que dê um ideal à humanidade? Segue-se

portanto, para o nada, o nihil, o nihilismo?

2. Na concepção antiga do sentido do ser humano, tanto grega como medieval

cristã, o “por quê”, a meta, o ideal aparecia diante do homem como valores, i. é,

como todo um conjunto de forças mobilizadoras da humanidade no seu viver, fazer,

sentir e pensar. Essas forças estavam como que ordenadas numa hierarquia de po-

tências, unificadas e sustentadas na sua dinâmica por um valor supremo (ou valores

supremos). O valor supremo era pois o ideal do homem, a idéia, i. é, a prefiguração,

o arquétipo que é colocado de antemão para ser buscado e seguido: o ideal. No

Ocidente, o valor supremo recebeu diversos nomes: Espírito, Deus. Essa força mobi-

lizadora, ainda plena, vigorosa, assentada em si, dominadora no sentido de possuir

3 Vontade do poder, aforismo 2, 1887. arti

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em si ainda o fascínio, o encanto, sim, a potência de se impor por si mesma, a partir de si, atraindo tudo a si, formava e estruturava a busca do homem por realização. O homem se submetia de boa mente a tal dominação, a procurava, nela crescia, se tornava cada vez mais perfeito na identificação total com o ideal que estava sempre para além dele (meta-física). Assim, o ser do homem, a essência do homem, o espírito do homem era substancioso e substancial, possuía dentro de si um élan que o lançava para fora de si, na busca desse valor supremo: o homem era ser; era essência; era espírito: era substancial. Aqui, tudo era firme, determinado, decidido, sólido, o que não significa fixo, imóvel, estático, bitolado, fanático; mas sim substancial, intenso na dinâmica da autoidentidade. Esse modo de ser na Idade Média se chamava: in se, i. é: substância. Com o advento do nihilismo europeu, toda essa autoidentidade começou a entrar num movimento de entropia do sentido do ser. Por isso, no livro A gaia ciência, Nietzsche intitula o aforismo 343 com as palavras: “O que há com a nossa jovialidade”, e continua: “O novo evento ‘máximo – que ‘Deus está morto’, que a crença no Deus cristão perdeu a sua credibilidade – começa já a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa”.

3. Voltemos à pergunta acima colocada: para onde vai o élan vital do homem, quando o valor supremo e seus valores dele dependentes se esvaziam? Aqui, tudo se torna um nada vazio? Nessa nihilização podemos observar dois momentos de de-senvolvimento: Um é o fenômeno da aparente entropia, i. é, da aniquilação gradual do élan vital, de tal sorte que ali nada mais resta do que a pura carcaça do que foi antes. Sobra assim o conjunto do arcabouço da construção, mas sem nenhuma vida, dinamismo ou élan dentro dele. Portanto, apenas um conjunto de esquemas mortos. Mas, enquanto próprios esquemas, ainda possuem certa vitalidade, enquanto unidade ou clarividência lógica; se os valores se esvaziam completamente, então nem sequer temos carcaça que seja como conjunto logicamente ordenado de formalidades, mas sim um caos, uma total indeterminação amorfa, de tal modo que aqui nem mesmo o próprio caos possui força de conter a promessa de uma ordenação. Esse estado de inanidade radical, a morte por dissolução total no nada nadificado, é o “ultimo homem” em Nietzsche.

4. Essa total entropia da vigência interna no homem como espírito, essência e ser, no entanto, não é necessária e simplesmente um dado, uma ocorrência como ausência de vigor. É ou pode ser, se pode, ao mesmo tempo uma liberação de força que não encontra em nenhuma parte apoio, centro ou meta do seu dinamismo. Assim o élan vital se extravasa num rodopiar frenético ao redor da sua própria vitalidade, girando

sempre mais intensamente no vazio de si. Deixemos por enquanto esse processo

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assim, para retomá-lo noutro lugar, pois esse rodopiar aparente num círculo de uma eterna roda morta do realejo, que gira no igual, pode ocultar a espiral de um modo de ser inteiramente novo. Antes, porém, de esse esvaziamento se tornar um extra-vasamento do élan vital, num rodopiar ao redor de si, ele passa pelo que Nietzsche chama de nihilismo incompleto, a saber, luta e trabalha na tentativa de recuperar a vigência do valor supremo que perdeu a sua dinâmica interna. E isto o homem faz de várias maneiras, p. ex., tenta voltar de novo ao valor antigo, buscando reativá-lo como o foi antes. Mas, como esse valor supremo não possui em si o seu vigor origi-nário, essa volta ao antigo cai no vazio, só dando a ilusão por algum tempo de se ter recuperado o vigor originário.

5. A tentativa mais freqüente é a de substituir o valor supremo antigo por valores novos, atuais e presentes, p. ex., nazismo, socialismo, capitalismo, catolicismo (= tradi-cionalismo ou progressismo), progresso, razão, ciência, “religiões”, humanidade global unificada e interligada pela Internet etc. Mas, aqui também, todas essas substituições são apenas “soluções” paliativas, de tal sorte que, de substituição em substituição, cresce a averiguação frustrante da inocuidade de tais tentativas de recuperação. Assim, apesar de toda e qualquer tentativa de retomada da dinâmica originária dos valores supremos do Ocidente europeu, inexoravelmente vai se processando uma lenta desertificação do sentido do ser, enquanto valores, estabelecendo-se sempre mais a entropia da energia do ser substancial.

6. É dessa devastação interna essencial do vigor ocidental que fala Nietzsche: “O deserto cresce... Ai daquele que oculta os desertos”. Comentando essa frase de Nietzsche, diz Martin Heidegger no seu livro O que evoca pensar:

Isto quer dizer: a desertificação se espraia. Desertificação é mais do que destruição. Desertificação é mais sinistra do que aniquilação. A destruição elimina apenas o que até agora cresceu e foi construído. A desertificação, porém, impossibilita o crescimen-to futuro e impede todo o construir. A desertificação é mais sinistra do que a pura aniquilação. Também esta elimina e quiçá até também ainda o nada, enquanto que a desertificação exatamente estabelece a impossibilitação e espraia o impedimento. O Saara na África é apenas uma maneira do deserto. A desertificação da Terra pode ir junto com a consecução do mais alto Standard da vida, tanto como a organização de um estado de felicidade uniforme de todos os homens. A desertificação pode ser o mesmo com os dois e conviver com os dois, do modo o mais sinistro, a saber, pelo fato de se esconder. A desertificação não é apenas um escorrer em areias. A desertificação é expulsão da Mnemosyne, que gira em aceleração da mais alta rotação4.

4 Was heisst Denken, Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1961, p. 11. arti

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7. Essa desertificação, levada às últimas conseqüências, quando começa, não

somente a atingir os valores supremos e todos os seus substitutos, mas também a

própria estrutura do modo de ser da transcendência, i. é, meta-física da humanidade

até hoje, se chama em Nietzsche: A eversão de todos os valores. E quando essa eversão

é sustentada, se dá a transformação do élan vital que, em se extravasando na busca

do para além, em direção à transcendência, não consegue se livrar do modo de ser

da estrutura meta-física do seu extravasar. O élan vital que assim se transforma se

chama a vontade do poder. E com isso se estabelece o retorno do igual, que constitui

na filosofia de Nietzsche o ponto de consumação do seu pensar e prepara o ser do

homem da antropologia filosófica estrutural.

8. A compreensão moderna do homem, cuja palavra principal que caracteriza o

homem é a subjetividade, só é compreensível plenamente quando abordada através da

transformação operada pela desertificação descrita por Nietzsche. É que, usualmente,

quando falamos do homem como subjetividade, nós o entendemos como sujeito no

sentido do subjetivo, do individual-“pessoal”, do eu-egoista, digamos no sentido da

nossa prática “devocional-espiritual” ou “caseiro-particular”. Assim, confundimos a

categoria-chave da filosofia moderna, que se chama subjetividade, com o subjetivis-

mo. Esse subjetivismo não tem nada a ver com a subjetividade da filosofia moderna.

Mas sobre tudo isso, vamos refletir numa outra ocasião.

autointerpretação natural do homem - visão de Heinrich Rombach

À “antropologia” científica e filosófica, precede uma autointerpretação natural

do homem, que já é dada com a sua pre-sença. Esta autointerpretação tem fundos

e níveis muito diferentes e abrange tanto as reflexões ocasionais de cada um em

particular, como também a subliminar impostação de fundo de todos. Esta impos-

tação carrega, como o mais baixo fundamento nunca inteiramente superado, todas

as exteriorizações de vida de um determinado círculo de homens. A impostação de

fundo perfaz, com as intenções mais ou menos refletidas dos homens sobre homens,

um todo, de alguma maneira coerente, que determina a partir de dentro a forma de

fundo cada vez historial da cultura. Usualmente, porém, o homem não “sabe” de

modo próprio e específico da sua forma de fundo, mas a realiza ao mesmo tempo

com naturalidade, a saber, vive-a como o “óbvio”. Caso a impostação de fundo deva

ser captada, então – ela, que não aparece ela mesma, mas que se afirma somente

como o fundo dos fenômenos historiais –, deve ser lida dos traços principais da cul-

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tura. Este “ler” tem seus problemas. Pode-se entender o todo das ciências humanas

como esse ler no texto de fundo da pre-sença; as questões metodológicas preliminares

das ciências humanas, que nunca podem ser conduzidas até o fim, são como reflexo

da complexidade do texto de fundo. Seja como for, o relacionar-se com tudo isso,

a explicitação científica e filosófica do homem, a “antropologia” não pode resultar

sem uma ponderação de retorno sobre a autointerpretação natural do homem. E isto

não somente porque tudo isso fosse um fato que pertence ao seu objeto, mas antes

de tudo porque nisso tudo estão contidas as decisões de fundo, que determinam

inclusive a objetivação científica. A explicação científica e filosófica é a elaboração

de uma autointerpretação já dada, como também vice-versa, a explicação científica

e filosófica atua de volta sobre a autointerpretação natural. Seria uma ingenuidade

da antropologia considerar-se como que estando fora dessa autointepretação, toda

doada à pura observação. A observação crítica exige, pelo contrário, a referência de

retorno ao aviar-se historial da pre-sença humana.

a tomada de conhecimento: a experiência fática da vida

Quando falamos de “tomada de conhecimento”, tomamos o conhecimento como

algo conhecido e óbvio. Há diversos tipos de conhecimento: os cotidianos, os cientí-

ficos, os filosóficos etc. Assim, a tomada de conhecimento na experiência fáctica da

vida seria aquele tipo de conhecimento cotidiano, o mais concreto, vital, imediato.

Trata-se, pois, da experiência da vida. Os termos, portanto, conhecimento e vida nos

são óbvios, conhecidos imediatamente.

Como tomamos conhecimento desse conhecimento imediato do conhecimento

e da vida? O que chamamos de experiência fáctica da vida, a vivência da vida como

ela é, coincide com a vida? O nosso pretenso conhecimento do conhecimento e da

vida responde: não coincide, pois a vida é uma coisa, ao passo que o conhecimento,

a experiência, a vivência da vida é outra coisa. Pois conhecimento, experiência, vi-

vência dizem respeito ao sujeito homem, ao passo que a vida em si existe por si só,

independente do homem. Nessa colocação há algo interessante e estranho, a saber: a

vida aqui, enquanto existente por si, não está clara. Significa a vida biológica? a vida

psíquica? a vida da planta? do animal? do homem? Sim, tudo isso? Mas essa vida

biológica, vida psíquica, vegetal, animal, humana são vidas que eu observo em mim,

nos outros entes como objeto da minha captação. Essa captação de todas essas vidas,

o que é? Respondemos: ora, conhecimento, experiência, vivência. A que tipo de vida

pertence essa captação? Dizemos: psíquica; espiritual; intelectual etc. O interessante arti

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e estranho em tudo isso é que nesse tipo de explicação, não aclaramos nada, apenas

estamos girando em círculo, dentro de uma pressuposição não analisada, a saber: há

uma realidade em si, diante de mim; há um sujeito que capta a realidade; a captação

da realidade, seja qual for o nome que damos a essa captação, é um ato do sujeito.

Esse pressuposto, essa base sobre a qual tudo explicamos, é considerado por sua vez

como a realidade óbvia, realidade em si e por si, anterior a todo e a qualquer tomada

de conhecimento. Assim, quando dizemos “experiência fáctica da vida” pensamos em

atos do(s) sujeito(s) homem(ns) que capta os fatos da vida. E por vida aqui entendemos

o percurso da história do homem enquanto dura a sua vida biológica.

Se permanecermos nesse posicionamento da “realidade” óbvia factual, jamais

entenderemos de que se trata, quando o texto de Heidegger nos fala da experiência

fáctica da vida e da sua tomada de conhecimento. É que, segundo Heidegger, toda

essa “realidade” óbvia factual já é produto de um tipo de conhecimento, denomi-

nado por ele de “teorético”5. Mas atenção, o nosso conhecimento do conhecimento

não-teorético, como p. ex., da vivência, experiência etc., é também já “teorético” ...

Mas, então, de que se trata, quando se fala da experiência fáctica da vida?

Trata-se aqui de ver, apenas ver. Mas ver não já compreendido “teoreticamente”

como um ato do sujeito homem, diferenciado de outros atos de captar, como ouvir,

sentir, tatear etc.

Trata-se de ver, experienciar, de vivenciar não um objeto, não um sujeito(-objeto),

não um ato (-objeto), mas sim a própria presença, a própria abertura, a clareira que é

o próprio experienciar, o próprio vivenciar, o manifesto, a aparecência, o phainóme-

non: o Da-sein ou o ser-no-mundo. É o que na fenomenologia de Husserl se chama

intencionalidade ou ato ou vivência ou mesmo apercepção da coisa ela mesma. É o

que no texto de Heidegger se assinala como facticidade (daí o adjetivo fáctico) ou

experiência fáctica da vida.

A experiência fáctica da vida aqui não é nem subjetivo (do sujeito), nem objetivo

(do objeto), nem um “ato” do sujeito. Mas sim o manifesto. Mas então o que é? O

que é, percebemos, só em o vendo.

Através de um exemplo, tentemos ilustrar de que se trata, quando dizemos ex-

periência fáctica da vida:

5 “teorético” aqui se refere à impostação das ciências. Teorético, no sentido grego da palavra theoria, se refere a um ver originário todo próprio.

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Uma situação preocupante: estou perdido, sozinho, numa excursão à mata atlânti-

ca. A noite se aproxima. O que é aqui, nessa situação o sujeito? e o objeto, o subjetivo

e o objetivo? Usualmente dizemos como a coisa mais óbvia do mundo: o sujeito sou

eu, só, perdido na imensidão da mata. O objeto são: esta árvore, esta pedra, aquele

ruído sinistro que vem de não sei donde; o burburinho de um riacho que se oculta

na floresta, a mata atlântica que me cerca, que por sua vez é conjunto de árvores e

outras coisas que a constituem. Eu, sujeito, cá. Lá, o objeto, diante de ou ao redor

de mim. Eu sujeito, aqui dentro dessa carcaça chamada meu corpo, com todas as

suas sensações, emoções, idéias e vivências; e lá, o objeto, ali presente, indiferente

à minha angústia, a coisa em si, brutalmente ali real. O que é o real, o que é a coisa,

o objeto diante de mim, nos parece evidente. Ali, tudo é obviamente, naturalmente

claro, objetivo, em si, real e verdadeiro. Mas, e o sujeito? Dizemos: o sujeito sou eu.

Quem? Eu! E me aponto a mim mesmo: este sujeito cá; diante dele, aquele objeto,

aquela coisa lá. Eu! e o dedo apontado...para onde? Para o meu peito. Mas e esse eu,

para o qual eu aponto, onde está? Ora, aqui! Aqui...mas onde? Quando eu aponto a

mim mesmo, onde está, nisso que eu aponto como sujeito, este “mim mesmo”? Atrás

do coração? dos pulmões? Dentro do estômago, acima do fígado?...E começamos a

ficar um tanto perplexos e confusos. Pois, então, sigamos o percurso do movimento

que termina nesse ato de apontar, com o dedo indicador sobre mim mesmo. Tenho

diante de mim, ou melhor, ao redor de mim a floresta que me envolve. Dentro da

floresta sou eu um ponto minúsculo, que está diante de um tronco caído. A floresta é

objetivo. O tronco também. Estou vendo o tronco; entre o tronco e mim está o chão

úmido que me molha os pés. Os meus olhos rastreiam o tronco, passo a passo o chão

molhado encontra os pés, sobe pelo corpo até a altura do pescoço, desce seguindo o

braço direito e chega na extremidade do dedo indicador, que está apontando o meu

peito. E digo: eu, aqui, o sujeito!?...

A essa altura perguntemos: tudo que meus olhos rastrearam, etapa por etapa,

os meus próprios olhos, e eu mesmo, o eu mesmo apontando com todos os ‘seus’

órgãos internos, não são objetos, não são objetivos? E o que é esse sujeito eu que

tudo isso observa, julga, sente, valoriza em o apontando? Se está em mim, o que é

esse “mim”? O corpo? a alma? o espírito? consciência? Dizemos: ...mas alma, espírito,

consciência, tudo isso é invisível, insensível...!? Mas então o que é? É nada? Fumaça

de ilusão? É real, realmente? E se o é, é objeto? Um objeto chamado sujeito...?! Mas

sujeito, como? em que sentido? “Quem” é, o que é, como é o ser desse quem que é

um ponto dentro da imensidão da floresta, que por sua vez é uma minúscula área da

Terra, a qual é um grão de areia na vastidão abissal do universo... E, no entanto, um arti

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ponto infinitamente pequeno, perdido nesse universo, que é capaz de julgar, pensar,

avaliar todo esse universo infinito, dentro do qual está.

Esta estranha coisa que somos nós mesmos, que tudo abrange, tudo capta, inclu-

sive a si mesma; tudo representa como isto e aquilo, seja coisa visível ou invisível...é

ela objeto? ou é sujeito?

De repente, se me ilumina a “mente” e me surge uma resposta ‘genial’...: É objeto e

sujeito ao mesmo tempo; é objeto enquanto captado e observado; é sujeito, enquanto

capta e observa. Mas, se com isso, representamos o sujeito, o observador como um

objeto “diante de mim” e assim ficamos marcando os passos, não dissemos nada,

não vimos nada, nem sentimos nada. Na realidade, isso que chamamos de sujeito,

opondo-o ao objeto, não é nada dessas coisas que vemos. A coisa ela mesma é muito

mais simples, e por isso mesmo difícil de ser percebida e ser dita.

....é objeto, enquanto observado e captado; ...é sujeito, enquanto capta e observa;

e o observador, enquanto captado e observado, é objeto... de um outro observador

que é por sua vez observado, e é objeto e assim indefinidamente...!?

Ora, nada disso acontece. É que... a situação, a facticidade é essa:

Estou inteiramente perdido na mata atlântica. Já é noite. Uma densa escuridão me

envolve, os estranhos ruídos por toda parte, os gemidos, os suspiros da mata virgem...

De súbito, estalo seco de galhos pisados... depois, silêncio... De novo estalido..., algo

se aproxima! Não consigo me orientar, donde me vem a ameaça. Tento dominar o

pânico que me sobe do fundo obscuro de mim mesmo... Objetivo? Subjetivo? Ob-

servado e observador? Enquanto capta, sujeito? Enquanto captado, objeto?...Essas

questões não se dão. Se se dão, não de imediato. De imediato sou todo inteiro uma

presença, um “corpo teso”, prenhe, atingido e afetado pela angústia da noite na

floresta. Aqui, nem mim, nem eu, nem a mim, nem floresta, nem os estalidos dos

galhos pisados, nem cada momento do meu sentir, imaginar, pensar e vivenciar são

objetos que um sujeito apavorado tem.

Tudo e cada “coisa”, tanto “dentro” de mim como “fora”, não são outra coisa

do que pulsações, modificações, tonâncias de toda a extensão, de toda a presença e

pregnância de ser, cuja intensidade e densidade perfaz todo um mundo de situação,

a qual no nosso exemplo acima descrito nomeamos desajeitadamente de “perdido

inteiramente na mata atlântica”: presença povoada de mil e mil diferentes perspectivas

e profundidades da vida e da morte, abrangendo, implicando tudo, todos os entes

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na sua totalidade. Esse modo de estar manifesto, aberto, essa totalidade imediata e

concreta é a facticidade, portanto, a experiência fáctica da vida.

Segundo o texto mencionado, essa experiência fáctica da vida é o elemento,

dentro e a partir do qual se abre a filosofia.

No entanto, a experiência fáctica da vida e a filosofia não se identificam simples-

mente. Na medida em que a filosofia surge da experiência fáctica da vida, e se torna

ela mesma, filosofia, há uma tomada de conhecimento. Essa tomada de conhecimento,

porém, não se deve afastar da experiência fáctica da vida, antes ela deve caracterizar

a própria filosofia como essa tomada de conhecimento que não se identifica com a

experiência fáctica da vida, porque entre esta e aquela há uma transformação, trans-

formação que caracteriza a filosofia. Mas exatamente por causa dessa transformação,

a filosofia se torna mais próxima à experiência fáctica da vida. Dito de outro modo,

a filosofia salta da experiência fáctica da vida e volta a ela.

Nessa busca da tomada de conhecimento, ao modo adequado à participação

cada vez mais clara à experiência fáctica da vida, há na própria experiência fáctica da

vida uma tendência ambígua. Ela implica num modo todo próprio de vir à fala, modo

todo próprio de vir a si, tornar-se ela mesma como tomada de conhecimento de si

mesma. Essa tomada de conhecimento não é um saber sobre si mesma, não é uma

tomada de conhecimento a modo “teorético”, mas em sendo, se saber, vir à fala como

desvelamento de si, se manifestar. É o tematizar-se da experiência fáctica da vida em

operação. Mas tematizar, que é uma incandescência do operativo a partir de si, no

desvelamento cada vez mais claro de si mesmo: o vir a si. Como deve ser pois esse vir

a si como o clarear-se da própria experiência fáctica da vida, se conhecemos usual-

mente somente um modo de tomada de conhecimento a modo do saber “teorético”?

A dificuldade aumenta mais e mais porque, segundo o texto, a própria experiência

fáctica da vida tem a tendência de, no desvelar-se, no eclodir como um leque (mundo)

de estruturações, em vez de vir à fala como mundo, começa a se encaminhar para

objetivação coisificante, e depois objetivante, constituindo a hipostatização como

coisa, objeto-coisa, objeto, significação, conceptualização, representação etc., cobrin-

do a totalidade dessas objetivações com uma camada aparentemente homogênea e

mediana de coisidade.

A experiência fáctica da vida e sua tomada de conhecimento no sentido originário

é o que está expresso no slogan da fenomenologia: (Volta) à coisa ela mesma. arti

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Ela não tem nada a ver com o preconceito do positivismo; nem com a expressão

da tese que diz: toda filosofia é necessariamente fruto concreto da sua situação factual

espiritual; nem com a assim chamada fenomenologia descritiva.

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Antes de tudo, uma preliminar se impõe sobre o

modo radical de pensar do pensamento. É uma pre-

liminar que nos vem de Nietzsche. Uma anotação do

outono de 1883, para o Zaratustra, nos mostra que

toda experiência radical de pensamento se embrenha

pelas raízes da própria possibilidade de pensar as

realizações do real no e pelo mistério da realidade.

Escreve Nietzsche com grande apuro de estilo e

pensamento:

Fui atrás das origens – o que me afastou de todas

as venerações e tudo ao redor se tornou solitário

e estranho para mim. Por fim do seio do próprio

real rebentou de novo o mistério da realidade – e

eis que me nasceu a árvore do futuro. Agora vivo

sentado em sua sombra.

É a preliminar. As presentes reflexões se põem

sob a égide e na direção desta experiência originária.

Vivemos os primeiros anos de um novo milênio.

Nossa presença neste início é de princípio. Exige rasgar

um horizonte de questionamento e abrir dimensões

de interrogação. Toda tarefa de pensar radicalmente

está neste rasgar horizontes e abrir dimensões. Pois

o pensamento é a presença incômoda e desconcer-

tante da realidade na consciência. E como se trata de

* Doutor em Filosofia pela Uni-versidade Antonianum, Itália, professor emérito de filosofia da UFRJ.

deus e o homem louco

Emmanuel Carneiro Leão*

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pensamento da realidade, requer muita concentração e pouca impaciência. Somente

na acolhida serena da paciência é que se poderá tomar posse e incorporar em nossas

vidas o que já nos é dado sempre de novo, a saber, o mistério da realidade em toda

realização do real. O predomínio da consciência na realização ocidental do homem

moderno faz com que o caminho mais longo seja aquele que nos leva ao mais pró-

ximo do que somos e não somos, e a última caminhada seja aquela, que, em todo

caminho, nos deixa no princípio de tudo. É a lição que nos deixou o maior discípulo

de Platão, na famosa distinção entre o “primeiro no processo de constituição e o

primeiro para nós”.

Duas são as perguntas a serem aqui propostas, ambas referentes à mesma questão,

presente em todo questionamento atual, a saber, o domínio da consciência em tudo.

A primeira pergunta é: não será que as crises deste início de milênio não são crises

de nenhuma consciência em particular, mas da consciência, como tal, da consciência,

como consciência? Por ser e para ser consciência, toda consciência não gera crise?

Não instala conflito? Não provoca angústia? – É a primeira pergunta.

A segunda pergunta tem a ver com a primeira, a saber: para se superar a crise

de hoje, superar, no sentido dialético, de suspender, aufheben, não seria necessário

inscrever na própria carne da História, que toda crise, sendo sempre crise de e da

consciência, não já estaria radicalmente superada pela criatividade própria do pen-

samento, a partir do mistério da realidade?

Todo milênio e todo século, todo ano e todo dia, qualquer instante é sempre, em

cada passo de sua passagem, matutino e vespertino, simultaneamente. Neste nosso

tempo de transformações radicais, vivemos mais do que as façanhas matutinas, as

sanhas vespertinas do segundo milênio. A história da humanidade se tem movido

em ciclos de 25 séculos. A cada dois milênios e meio se fecha um ciclo, se atinge um

clímax, se instala um fim, fim no tríplice sentido de término, plenitude e transfor-

mação. É o instante propício para uma nova realização do real, onde poderemos vir

a ser mais livremente tanto o que já fomos como o que somos na abertura do que

seremos. Pois tudo se torna fluido e nada se fixa. Os velhos padrões se esboroaram e

novos ideais ainda não se instalaram. Aparecem, então, as limitações da consciência

e se fazem mais sensíveis as perdas das realizações. O mundo todo entra em transe

dionisíaco, sente o convite e vive o apelo de passar. Não foi por acaso que, há dois

mil e quinhentos anos atrás, surgiram Buda na Índia, Lao-Tzu na China, Zaratustra na

Pérsia e os pensadores originários, chamados de pré-socráticos, na Grécia.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Deus e o homem louco

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Hoje nos primórdios deste terceiro milênio, estamos de novo nos interstícios da

História, de passagem para outro Dia Histórico. Novamente, todos os parâmetros

desvaneceram, todos os valores se gastaram, os princípios de ordem perderam força.

Vivemos em estado fluido e maleável. O antigo já não tem a importância que tinha,

o passado enfraqueceu seu poder e o futuro se, de certa forma, já veio, ainda não

se instalou de todo. Estamos, de certo modo, num hiato de História. É tempo de

desinstalação. É dia de criação. Na crise não apenas de todos os fundamentos, mas,

sobretudo, do fundamento, como fundamento, medram as primeiras experiências de

desprendimento da prepotência da consciência. Na convocação de Nietzsche, começa

a descida de Zaratustra, para anunciar ao “último homem,” o Super-homem. O que

nos traz de escatológico, numa escatologia de ser e realizar-se, i.é, de radicalmente

novo, este Super de Super-homem? Não será o desprendimento da consciência e a

descolagem de sua dominação para se poder decolar na direção de outras realiza-

ções da História? É o que nos convida a pensar, com tudo que não sabemos, nem

conhecemos, o prólogo do primeiro livro do “Zaratustra. Um livro para todos e para

ninguém”, com palavras de morte e ressurreição, dirigidas ao mistério de ser e não

ser do Sol, que, desde Platão, aparece iluminando nossas vidas!

Fala Zaratustra:

Queria presentear e distribuir até que os sábios entre os homens se tenham alegrado

do mistério de seu não saber e os pobres de saber entre os homens se tenham alegrado

com a riqueza de sua pobreza. Para tanto tenho de descer ao fundo, como tu fazes

ao fim do dia, quando afundas no mar e levas luz para o mundo de baixo, Tu, Astro

acima de qualquer riqueza e\ou pobreza.

É neste sentido que estamos em transição de princípio. Sentimos a passagem para

outro dia da História, após o longo ocaso do Ocidente! O movente essencial desta

passagem é a pergunta: se é possível uma passagem realmente transitiva, sem se

saber qual é o verbo da história, será ser e crer, ou será fazer e agir, ou será calcular

e produzir, ou será fadar e destinar, ou será encaminhar e esperar? Qual será mesmo

o verbo que a história conjuga? – Pressupor todos ou qualquer um não será a gran-

de artimanha da consciência, buscando desvencilhar-se da História na pretensão de

poder dominá-la?

No último quartel do século XIX, no ano de 1882, Nietzsche publicou os quatro

livros da “Gaia Ciência”. O Aforismo 25 do Terceiro Livro traz o título, “O homem

Louco”, Der tolle Mensch. Nietzsche, o pensador apaixonado por Deus, denuncia a

morte de Deus, mas não, a morte natural de Deus. Por sua natureza, Deus não pode arti

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morrer. Deus só pode morrer no coração dos homens. É o assassinato de Deus em

todos nós. Deus morre no seio da história de morte violenta. Vale a pena meditar

o sentido atual de todo o aforismo, cuja conclusão é: ”nós o matamos, vocês e eu.

Todos nós somos seus assassinos”!

Que Deus só possa mesmo ser assassinado na vida biográfica e histórica dos

homens, o Homem Louco nos diz implicitamente numa série de perguntas retóricas,

que ele formula assim:

Como é que fizemos isso? Como pudemos sorver todo o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? O que fizemos nós quando separamos a terra do sol? Para onde se move ela agora? Será para longe de todo sol? Não caímos continuamente, para frente, para trás, para os lados, em todas as direções? Ainda há um em cima e um embaixo? Não erramos por um nada sem fim? Não nos bafeja um espaço vazio? Não faz mais frio? Não sobrevém noite e mais noite? Não se deve acender lanternas em pleno meio-dia? Ainda não escutamos a algazarra dos coveiros que sepultaram Deus? Ainda não sentimos o apodrecimento de Deus? – Pois também Deus apodrece! Deus está morto. Deus continuará morto! E fomos nós que o matamos! Como é que haveremos de nos consolar, nós os assassinos de todos os assassinos? O mais santo e o mais poderoso, que o mundo jamais conheceu, sangra agora sob nossas espadas! Quem nos poderá limpar o seu sangue? Com que água lustral haveremos de nos lavar? Em que cerimônias sagradas haveremos de encontrar uma propiciação? Não será que a grandeza deste feito é grande demais para nós? Não deveríamos nós mesmos ser Deus para parecer apenas dignos de tamanho feito? Nunca houve um feito maior e quem nascer depois de nós pertencerá por este mesmo feito a uma história superior a toda história até aqui.

Tais são as perguntas retóricas da angústia do “homem louco”, que somos todos nós!

Quatro anos depois, em 1886, Nietzsche acrescentou aos quatro livros da Gaia

Ciência de 1882 um quinto livro com o título: “Nós os Destemidos”. O primeiro afo-

rismo do novo livro começa com a pergunta: “que está havendo com a inocência de

nossa jovialidade?” – O texto responde, dizendo: “o maior dos acontecimentos mais

recentes, que Deus está morto, que a fé no Deus cristão se tornou indigna de fé, já

começa a lançar sobre a Europa as primeiras sombras”.

Hoje em dia, neste início de milênio, as sombras da morte violenta de Deus no

coração do homem vêm cobrindo com o estado de violência a história humana. A

violência deixou de ser ato violento de indivíduos. Que é estado de violência? É o es-

tado em que todos nós somos, ao mesmo tempo, atores e vítimas. Não há inocentes.

Só há culpados e vítimas.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Deus e o homem louco

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Não apenas a religião foi junto. A ética também, a arte também, a moral também,

a filosofia também, a política também, em uma palavra, a dignidade e a liberdade

do homem também. Nenhuma grandeza história escapa ao arrastão deste tsunami.

Esgotaram-se as fontes da criação e todos os espaços vão sendo progressivamente

ocupados pela repetição automática de autômatos finitos: próteses, substitutos, su-

cedâneos. Multiplicam-se os robôs. Nos laboratórios criam-se células autoreplicantes

que a dificuldade de pensar radicalmente confunde com células vivas. Se na sociedade

o crime não compensa, nos laboratórios o creme compensa, acenando com um futuro

totalmente controlado. Está dominado, está tudo dominado.

A história nos leva hoje a conjugar cada vez mais os verbos de calcular e compor

poderes de combinação. O progresso da técnica e o desenvolvimento da ciência escon-

dem do homem o mistério da vida e o verbo criador da História. Disso tivemos uma

demonstração recente com a notícia estrepitosa de se ter criado vida em laboratório.

Com toda a empáfia da prepotência humana, o cientista J. Craig Vender proclamou

para o mundo estupidificado que uma célula com núcleo sintetizado por computador

era a primeira espécie autoreplicante cujo pai fora um computador. A decadência

provocada pela morte de Deus no coração humano se tornou tão decadente que se

perdeu cada vez mais até a condição de se identificar a decadência e avaliá-la como

decadência. Considera-se até a decadência como progresso e crescimento.

Quando se questiona a possibilidade de um processo tecnológico poder criar vida,

logo surge a pergunta revoltada: por que a manipulação bio-tecnológica não pode

criar vida e a fecundação de um óvulo por um espermatozóide pode? – A resposta

é simples e radical. E como toda resposta radical não elimina o vigor interrogativo

da pergunta, mas o aprofunda. A vida é mistério do conhecido e desconhecido. A

fecundação é natural e a manipulação é artificial. É na vida que aparece, com mais

clareza, que, no ser, no vir a ser e não ser de todo real, mora um mistério desconhe-

cido e não sabido.

E mistério, que é isso?

Mistério não é, nem isso, nem aquilo e, assim, não se pode, realmente, perguntar

que é isso, mistério, embora, em todo isso e/ou em todo aquilo, viva o mistério da

realidade. Mistério está, pois em tudo. É tudo que se diz e não se diz, que se conhece

e não se conhece, que se é e não se é fora das possibilidades de ser e conhecer, de

pensar e dizer, embora o que quer que se diga ou seja, que se pense ou faça já esteja

no mistério que nós, seres finitos, por acaso, somos e não somos.

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Para L. Wittgenstein, o homem não é só cidadão de um mundo de idéias e

conhecimentos, de afazeres, técnicas e folguedos, o homem transfere os feitos e

fatos do mundo para o mistério do desconhecido e o desconhecido do mistério. Pois

pensar não é levar uma realização obscura do real para o âmbito claro e definido da

razão e do conhecimento científico. Esse é o papel de ciência. Pensar, ao contrário,

é reconduzir o que se pretende já saber e conhecer para sua proveniência no e do

desconhecido e não sabido. Porque não se pode saber tudo de nada, não significa

que não se possa saber nada de tudo, tal é a experiência que nos proporciona a todo

instante o mistério da realidade.

Ao homem não foi dado criar vida com os poderes naturais de seu engenho e

arte. Ao homem só foi dado reproduzir vida em obediência à lei da morte e com

subordinação aos limites e dons de sua finitude. Para o homem poder criar artificial-

mente vida, seria necessário não haver mistério, nem para ele, nem nele, nem fora

dele. Para criar, o homem deveria poder ser tudo, saber tudo, fazer tudo, sem limite

de espécie alguma. Pois criar, em sentido próprio, supõe um nada absoluto ou como

diziam os medievais, o “nihil sui et subjecti”, o nada em todo sentido, nada de ma-

téria, forma, fim, meio ou processo. Assim, o princípio “ex nihilo nihil fit”, “ de nada

não se cria nada”, só vale para as transações do já criado. Para o processo criador,

em sentido próprio, vale o inverso, aqui o princípio é “ex nihilo omnia fiunt”, é do

nada que tudo se cria”. Por isso é que Mestre Eckhart, o pai da mística renana, podia

dizer: “esse est Deus” e “Deus est nihil”, “ser é Deus e Deus é nada”. É essa também

a lição de criação, em sentido relativo, que nos deixou com Sócrates uma mulher

profética, Diotima, a sacerdotisa de Mantinéia, segundo o testemunho de Platão no

Diálogo Simpósio (205b):

... sabes, Sócrates, que criação é algo múltiplo e diverso: tudo que responder pela

passagem de não ser para ser, qualquer que seja, é criação, de sorte que as obras de

todas as artes são criações e seus obreiros todos, criadores!

Muitas vezes se diz que o ateísmo e com ele a irreligiosidade e o niilismo nasce-

ram com a expansão do inconsciente para a consciência, como o supremo tribunal

de julgamento para qualquer absoluto. Não é bem assim. Na verdade, ateísmo, como

niilismo, é um possibilidade constitutiva do modo de ser da condição humana em

todos os tempos, se não explicitamente, ao menos, como possibilidade inscrita no

comportamento e nas atitudes dos homens. Nos Salmos 14 e 53, está escrito na versão

latina da Vulgata de São Jerônimo: “dicit insipiens in corde suo non est Deus”, diz o

insipiente consigo mesmo em seu coração: Deus não existe”!

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Deus e o homem louco

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O profeta Davi, a quem se atribui a autoria destes dois Salmos, considera o ho-

mem sem Deus “insipiens”, um ignorante. Hoje não é assim. Nos tempos da morte

de Deus no coração do homem, a regência universal da razão instrumental, como

fundamento de tudo e de todos, não considera o homem sem Deus “insipiens”, um

ignorante. Ao contrário. Considera-o “solus sapiens”, “o único sábio”, por já ter e com

já haver reduzido todo saber ao conhecimento objetivo da ciência e ao desempenho

operativo da técnica. O sábio moderno é pedante, por arvorar-se dono de um poder

assintoticamente absoluto e infinito.

Homem sem Deus, porém, não deve ser identificado simplesmente com homem

moderno. Nem mesmo todo aquele que hoje professa o ateísmo e se diz ateu é sem

Deus. O homem ateu de hoje é sobretudo uma mentalidade difusa pela e na cons-

ciência de uma racionalidade de sujeito e objeto. Com a pretensão dos estreitos e a

presunção das modas constitui a ideologia de comportamentos anônimos e atividades

impessoais nos diversos processos dominantes e nas instituições de poder vigentes,

tanto entre leigos, como entre religiosos. São padrões coletivos de ação e reação que

se acham autosuficientes em suas atitudes e não inscrevem nenhum mistério na índole

de seus comportamentos. Isto, porém, não impede que seus agenciadores professem

Deus tradicionalmente em gestos, palavras e conduta: Deus te favoreça, fica com

Deus. Se o homem sem Deus é uma possibilidade vivenciada na vida de todos nós,

está em causa um paradoxo vivo, um paradoxo inscrito “na carne de nossa história

com letras de sangue” na formulação lapidar do Kafka da Colônia Penal, repetindo

o Zaratustra de Nietzsche.

O homem sem Deus em todos nós levanta-se, como Zaratustra, ao nascer do sol

e, no segredo de seu coração, como o ateu do Salmo de Davi, dirige a Deus uma série

de apóstrofes, para convencer a si mesmo de seu ateísmo:

Deus, onde estás que não se vê, em que nuvem, em que mundo te escondes, enca-

puzado no céu?

Se Tu existes realmente, fala comigo!

E eis que os pássaros começam a cantar!

Deus, se Tu existes de verdade, deixa-me ver-te!

E eis que um relâmpago, rompendo uma nuvem, atravessa o céu.

Deus, se Tu de fato existes, faz um barulho ou emite um som!

E eis que o trovão rompe o silêncio das trevas.

Deus, se Tu existes de veras, deixa-me sentir tua presença!

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E eis que os raios do sol inundam-lhe os olhos de luz.

Deus, se Tu existes na real, mostra-me um milagre!

E eis que uma criança nasce no meio da noite.

Deus, se Tu existes mesmo, dobra a prepotência do orgulho humano!

E eis que o amor acende um fogo no coração do homem que, crescendo sempre,

toma conta de toda sua vida.

Deus, se Tu existes de verdade, acaba com a podridão no mundo.

E eis que a flor de lótus sobe de um pântano.

Deus, se Tu de fato existes, tira a dor do coração humano!

E eis que, no fundo de todo sofrimento, se escuta o grito primal da vida.

Deus, se Tu concretamente existes, apaga a violência da história, afasta a fome e as

doenças da humanidade!

E eis que a esperança no outro de todos alimenta de fé o perfume que exala das

próprias entranhas do mal.

Deus, se Tu existes realmente, livra o homem da morte!

E eis que do seio da própria morte nasce a imortalidade da vida.

Rio de Janeiro, novembro de 2011.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Deus e o homem louco

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introdução

Este pequeno ensaio é um trabalho a muitas

mãos. É fruto de uma busca conjunta de aprofun-

damento de Cristologia Franciscana, assumido por

um grupo de pessoas integrantes do Curso de Espe-

cialização em Franciscanismo na Estef1, nos anos de

2009 a 2011, que se reuniu, mensalmente, para tal

finalidade durante um ano. Nasceu aí o desejo de

seguir aprofundando a compreensão de Jesus Cristo,

a paixão da vida de Francisco. E quer singelamente

oferecer aos leitores alguns desses elementos que de-

senham a figura de Jesus Cristo aos olhos de Francisco,

levantados ao longo dos encontros de estudo. Não

tem a pretensão, de forma alguma, de ser um texto

completo, e sim realçar alguns elementos.

A pessoa de Jesus Cristo não é uma figura unísso-

na, mesmo para quem professa a mesma fé. Segundo

Pablo Richard, no Novo Testamento existem ao menos

doze cristologias diversas. Ao longo da história, se-

gundo as circunstâncias específicas de cada período,

1 Eis os nomes dos componentes do grupo: Edna dos Santos Rodrigues, Eduardo Pazinatto, Eugênio Hansen, Janete Rosane Roiek, Leila Lucini, Maria Aparecida Marques e Aldir Crocoli, professor.

Cristologia Franciscana

Dr. Frei Aldir Crocoli, capuchinho [email protected]

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predominavam visões diferentes de Jesus Cristo. Nos primeiros séculos de cristianismo

pode-se dizer que predominou o Cristo pobre, o Cristo pastor, o Cristo Redentor e

Salvador. A primeira imagem conhecida de Cristo era a do pastor com uma ovelha

nos ombros. Depois do Edito de Constantino, quando a Igreja se aliou à hierarquia

do poder político, a figura de Cristo foi ganhando esplendor e realeza. Ao cabo de

alguns séculos será o Cristo Pantocrator a dominar suas imagens. Seguem-no as pri-

meiras imagens e compreensões de sua humanidade, no início do segundo milênio

com o crucificado e, logo após, as do seu nascimento e infância. É este o momento

histórico de Francisco de Assis.

A Escolástica, a partir do século XIV, vai introduzindo e solidificando uma maneira

metafísico-filosófica de ver Jesus Cristo, muito distante do povo que se atém às várias

imagens da humanidade de Cristo: natal, paixão, eucaristia e, por extensão, Maria. A

“devotio moderna” do século XV vem confirmar esta perspectiva. Nos séculos XVI a

XVIII, com o incremento da escravatura, acentua-se a figura do “Bom Jesus”, calcado

nos vários momentos de sua paixão, expressando a mensagem de que se deve sofrer

como Jesus, sem reclamar. Nada de estranhar que o espírito científico da modernidade

tenha começado a difundir a necessidade de retornar ao Jesus histórico, pois o Cristo

da fé, ensinado pela teologia de então, não satisfazia. O aparente fracasso da nova

busca gerou a antítese: que só o Cristo da fé nos basta, devido à impossibilidade

de reconstruir o Jesus histórico. Apenas em meados do século XX foi possível uma

aproximação maior de ambas perspectivas.

Lembrando toda esta diversidade de cristologias se quer mostrar que é possível

uma visão do Cristo de Francisco. Sendo pessoa de pouca cultura acadêmica, Fran-

cisco não apresenta um tratado de cristologia. Nunca lhe terá passado pela cabeça

tal hipótese. Nosso método para delinear uma cristologia franciscana consistirá em ir

recolhendo e ajuntando as referências a Jesus Cristo, quais pedrinhas de um grande

mosaico, e depois sistematizá-las, dando-lhe forma, com o necessário cuidado para

não forçar o encaixe dos detalhes. E, como na cabeça dessas pessoas de pouca cultura

acadêmica não estão esquemas racionais e sim histórias e fatos da vida, optamos

aqui por seguir os principais momentos da vida de Jesus Cristo, observando seu modo

específico de descrevê-los. O método mais adequado para este objetivo então será

a teologia narrativa, ou, como aqui em nosso caso, a cristologia narrativa. Trata-se

de contar a vida de Jesus, vista por Francisco, mostrando os momentos e cenas que

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possibilitam configurar a imagem de Jesus Cristo. Cremos que isto vai delinear a visão

cristológica de Francisco.

Preferimos também não pesquisar em outros autores franciscanos, seguidores

de Francisco, mesmo se renomados teólogos, como Boaventura, Scotus, Ockam etc.

Ativemo-nos quase exclusivamente aos escritos de Francisco, ou ao que dizem biógra-

fos próximos a ele, que podem ajudar montar nosso mosaico cristológico. Seguiremos

estes momentos da vida de Jesus: natal, vida pública (Jesus pastor, lava-pés, identifi-

cação com os pobres), paixão e morte e a eucaristia. Por último, queremos chamar a

atenção para a visão holística de Jesus Cristo que Francisco sempre apresenta, jamais

separando um fato ou momento da globalidade do viver de Cristo.

1 Natal de Jesus Cristo e a solidariedade com as criaturas sofredoras

No contexto histórico de Francisco estava começando na Igreja a valorização da

humanidade de Jesus Cristo. Um século antes, Bernardo de Claraval, monge cister-

ciense, enfatizava a humanidade do nascimento e dos sofrimentos da paixão. Mas,

no dizer de Norberto Nguyen-Van-Khanh, essa visão de Jesus Cristo limitava-se ao

espaço dos mosteiros. À grande massa do povo oferecia-se, sobretudo, a divindade

e a soberania de Jesus Cristo. A imagem do Cristo Pantocrator, geralmente sentado

em trono dourado, supremo mestre e Senhor da história, dominava os edifícios e

construções religiosas. Por isso, sua fragilidade, suas lutas e sofrimentos eram pouco

recordados. Francisco, pelo contrário, mesmo sem diminuir a grandeza do Senhor

Jesus, consegue passar uma imagem de um Jesus Cristo mais próximo, mais humano,

identificado com os pequenos e pobres.

Pelo que se pode deduzir dos biógrafos e mesmo dos escritos do santo2, o nas-

cimento e os momentos iniciais da vida de Jesus Cristo emergiram na espiritualidade

de Francisco nos últimos anos de sua vida. Em 1223, três anos antes de sua morte,

Francisco combinou com um amigo, de nome João, realizar o presépio em Greccio.

Celano conta que uns quinze dias antes da solenidade pediu que fosse preparada

ambientação, numa gruta junto a um bosque, para a celebração da festividade do

2 O Salmo natalício do Ofício da Paixão foi o último adendo ao Ofício da Paixão, iniciado por volta de 1215, e teria sido composto em torno de 1223, ano em que fez o presépio de Greccio. ar

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Natal do Senhor, pois ele queria, de algum modo, ‘ver’ com os olhos carnais “os apu-

ros e necessidades da infância dele, como foi reclinado no presépio e como, estando

presentes o boi e o burro, foi colocado sobre o feno” (1Cel 84,8). Francisco não visu-

aliza o contexto do nascimento de Jesus de forma cênica para sentir a jovialidade e a

ternura da festa natalina como nós costumamos observar com os presépios moder-

nos, iluminados, dentro das casas ou das igrejas. Francisco faz uma reconstituição do

momento do nascimento de Jesus para poder sentir a dificuldade que Jesus passou

por não ter as coisas necessárias para um nascimento digno, seguro e confortável.

Por isso a ambientação é feita junto a uma gruta da floresta, longe do ambiente hu-

mano de acolhida, com a presença dos animais, ainda que estes pertençam apenas à

tradição popular e não bíblica3. Fala-lhe a premência da necessidade, não o encanto

da poesia. Toca-lhe o coração, de modo especial, a insensibilidade humana que não

oferece um espaço adequado ao Salvador, recebendo, em compensação, acolhida

junto aos animais. É, pois, segundo Celano, a dimensão da rejeição e do sofrimento

da exclusão o objeto da meditação do Natal para Francisco.

É bem verdade que depois o hagiógrafo se prolonga em descrever a alegria por

sentir a grandeza da solidariedade de Deus vindo ao encontro da humanidade neces-

sitada de redenção (1Cel 86,2-5). E não tem como não se alegrar com um gesto desta

envergadura da parte de Deus: Faz Francisco proclamar: “Este é o dia que o Senhor fez

para nós” (OP 15,6). Essa expressão poderia significar: este é o gesto por excelência

que revela sua solidariedade com a humanidade! Ou ainda: A encarnação é a expres-

são mais calorosa da bondade de Deus! Ao retomar o fato do Natal na sua Segunda

Vida, vinte anos mais tarde, o biógrafo acrescenta que Francisco “queria nesse dia

que os pobres e famintos fossem saciados pelos ricos e que aos bois e burros fossem

concedidos ração e feno mais do que de costume” (2Cel 200,1-2). Ele, se pudesse,

até solicitaria ao imperador para emanar um decreto pedindo que todos aqueles que

puderem atirem pelas ruas trigo e grãos, a fim de que no dia de tão grande solenidade,

os pássaros tenham fartura, principalmente as irmãs cotovias. Como percebeu Raoul

Manselli, Francisco entendeu que a generosidade e a solidariedade de Deus com o

sofrimento humano foi tamanha que a humanidade deveria retribuir com o mesmo

3 Esses animais acabaram incluídos entre os integrantes do presépio porque Isaías 1,3 diz que o “boi conhece seu proprietário e o jumento a manjedoura da casa do seu dono, mas Israel não conhece seu Senhor”. Como Lucas diz que não havia lugar para eles nas hospedagens, o senso popular associou as duas passagens, gerando a tradição de que estavam presentes o boi e o burro no presépio.

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gesto em relação aos pobres, animais e aves (três categorias de sofredores, no inverno

europeu). A Compilação de Assis (CA 14,2-8) e o Espelho de Perfeição (2EP 114,1-4)

também ligam essa mesma paráfrase, da qual Celano provavelmente elaborou a sua,

a um contexto de sofrimento4 devido à insuficiente alimentação para os pobres (bóias

frias)5 e para os próprios animais (problema da fome).

No salmo natalino composto por Francisco, encontramos a expressão “nasceu

por nós no caminho e foi colocado no presépio porque ele não tinha lugar na hos-

pedaria” (OP 15,7). É importante aqui frisar dois aspectos: nascer no caminho e não

ter lugar. Para Francisco, Jesus nasceu ‘no caminho’6 como um peregrino, fora de

casa. É provável que Francisco tenha resgatado esta expressão “no caminho” do papa

Leão Magno. Nascer no caminho significaria a insistência na contemplação de Jesus

Cristo pobre e peregrino, forasteiro e hóspede, peregrino. Também para Luiz Carlos

Susin, o nascimento no caminho rompe toda a ilusão de um retorno a um paraíso

infantil, para localizar o nascimento num desígnio de ‘caminhada’, começo de uma

peregrinação cheia de riscos, de dores e de aventura evangélica. Por outro lado, ser

“colocado numa cocheira porque não havia lugar na hospedaria”, na visão de Lucas

retrataria a marginalização social de Jesus Cristo já no momento de seu nascimento.

Para o teólogo González Faus, Lucas não teria inserido este detalhe, se não fosse para

destacar a experiência sofrida de Jesus Cristo em ser rejeitado desde os primeiros

momentos de vida pelo povo.

A mesma perspectiva encontramos na Segunda Carta aos Fieis. Aí Francisco es-

clarece que a “Palavra santa e gloriosa” (2Fi 4-5) recebeu no útero da Virgem Maria

“a verdadeira carne de nossa humanidade e fragilidade”. E com sua Mãe “escolheu

a pobreza”. Entrar na história humana pelo espaço dos excluídos e marginalizados

não foi casualidade e sim escolha. Expressa o jeito do próprio Deus, como nos revela

a experiência fundante da Bíblia, no Êxodo (Ex 3). O sentido da encarnação do Verbo

na figura humana de Jesus foi assunção da fragilidade humana, como magistralmente

expressa a Carta de Paulo aos Filipenses (Fl 2,5-11).

4 Não se poderia deduzir ainda que Francisco perceba a existência de tanto sofrimento como consequência da grande desigualdade econômico-social pelo fato de “pedir que os pobres sejam saciados pelos ricos”?5 A menção aos bóias frias aqui deve-se à semelhança de situação com os pobres do tempo de Francisco, que também no tempo do inverno dificilmente encontravam trabalho.6 “À beira do caminho”, dizia a tradução brasileira anterior da Editora Vozes (1981, p. 130). Este modo de traduzir se torna mais compreensível, permite captar melhor a marginalização experimentada por Jesus. ar

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Todas estas passagens levam à conclusão de que Deus se fez carne em Jesus de

Nazaré, pobre entre os pobres, em solidariedade aos pobres, para ser sua força e

coragem na luta contra todo o sofrimento.

2 o seguimento da humildade e da pobreza de Jesus Cristo

Francisco, desde seus primeiros momentos de conversão7, olhou para Jesus como

referência máxima para seu modo de ser. Propõe-se seguir não apenas a doutrina,

isto é, o que a Igreja falava e ensinava de Jesus nas diversas áreas da evangelização,

mas decide seguir as suas “pegadas”, expressão haurida da Carta de Pedro (1Pd

2,21). Na Regra não Bulada, construída coletivamente ao longo de mais de dez anos,

se afirma que “a regra e a vida destes irmãos é seguir a doutrina e as pegadas de

Nosso Senhor Jesus Cristo” (RnB 1,1)8. Este pensamento parece ser um “leitmotiv”

na vida de Francisco, por ser retomado seis vezes em seus escritos9. E, seguramente,

é a ideia mais decisiva para a vida de Francisco. Seu primeiro biógrafo relata que “a

mais sublime vontade, o principal desejo e supremo propósito dele era observar em

tudo e por tudo o santo Evangelho, seguir perfeitamente a doutrina e imitar e seguir

os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo com toda a vigilância, com todo o empenho,

com todo o desejo da mente e com todo o fervor do coração. Recordava-se em as-

sídua meditação das palavras e com penetrante consideração rememorava as obras

dele” (1Cel 84,1-2). Alguns fatos são eloquentes deste seu modo de proceder. Entre

eles este da Compilação de Assis: “O Senhor, quando esteve no deserto, onde orou e

jejuou por quarenta dias e quarenta noites, não mandou que aí se construíssem cela

ou casa alguma, mas ficou sob uma rocha da montanha. E por isso, a exemplo de

Cristo, ele (Francisco) não queria ter nem mandou que se lhe construísse nem casa

nem cela neste mundo” (CA 57, 14-15).

7 É o que se pode deduzir da oração da conversão, onde, depois de pedir as três virtudes teologais, na sua parte final, pede “bom senso e inteligência para cumprir tua santa e verdadeira vontade”.8 A menção aos três votos foi, como é consenso atualmente, um acréscimo bem posterior, talvez em 1221, depois que Honório III publicou a Cum secundum consilium (20.09.1220), ali ele pede que todos os religiosos emitam os três votos.9 O pensamento se encontra ainda em RnB 22,2; na Carta a Frei Leão (Le 3), na Carta a toda a Ordem (Ord 51), na Segunda Carta aos Fieis (2Fi 13) e no Fragmento da Regra no Código de Worcester (1Fg 1). Exceto a Carta a Frei Leão, os demais textos são normativos, dirigidos à Fraternidade como um todo, como proposta de vida.

CROCOLI, Dr. Frei Aldir. Cristologia Franciscana

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O que Francisco via ou lia no evangelho, sem cair no fundamentalismo, se empe-

nhava em colocar em prática. Se andava descalço, com uma só túnica, sem dinheiro,

sem bolsa etc. devia-se ao fato de que o evangelho narra que o enviado deveria ir

sem sandálias nos pés, sem duas túnicas e sem bolsa10. Se anda pobremente é por-

que vê Jesus de Nazaré “escolhendo com sua mãe a vida de pobreza” (2Fi 5). Se ele

alterna períodos de missão com períodos de contemplação, nos muitos eremitérios

que se conhece, é para traduzir em sua vida o que o evangelho de Marcos cita: Jesus

alternava intensa atividade missionária (atendimento ao povo) com momentos de

profunda solidão com seu Pai (cf Mc 2, 32-39). Como Celano conta, Francisco andava

sempre com sua atenção focada em Jesus Cristo. Revelador desta atitude é o fato de

estar ele andando certo dia pelas Marcas de Ancona quando viu uma ovelha pastan-

do entre bodes e cabras. Chama seu companheiro, aponta-lhe a cena e lhe diz: “Por

acaso não vês esta ovelhinha que anda tão mansa entre estas cabras e bodes? Assim

te digo que nosso Senhor Jesus Cristo andava manso e humilde entre os fariseus e

príncipes dos sacerdotes” (1Cel 77,4-7). Como pessoa de baixa cultura acadêmica,

Francisco não faz grandes elucubrações, mas busca traduzir para a vida o que vê e

sente de Jesus. Apropriadamente disse F. Accrocca que sua cristologia é sua prática,

mais que sua doutrina.

Para Francisco, este seguimento não pode ser apenas um entre tantos objetivos

na vida de alguém. Antes, deverá ser o objetivo catalisador de todos os demais, o

verdadeiro projeto de vida, que abrange a integralidade do viver humano. Os outros

objetivos lhe devem ser subalternos, como bem expressam os capítulos 22 e 23 da

Regra não Bulada, as duas versões da Carta aos Fieis11 e outros textos mais. É, pois,

uma opção que engloba todas as dimensões do ser humano: a dimensão racional,

a dimensão emocional-afetiva, a organização prática do econômico e do tempo no

cotidiano... tudo enfim. Tudo deveria estar centrado nesta meta de viver: a busca de,

de todos os modos possíveis, progredir sempre no seguimento a Jesus Cristo. Assim,

afeiçoado à pessoa de Jesus Cristo e seu projeto de sociedade, o ser humano apropria-

-se dos seus valores, adota as mesmas posturas sociopolíticas, deseja viver a mesma

10 Cf. Mc 6,8; Lc 9, 2-3; 10,4; Mt 10, 9-10; 1Cel 22-2-4; LTC 25,2-7.11 Estes textos são reconhecidamente sanfranciscanos, isto é, do próprio Francisco. O capítulo 22 da RnB é uma grande admoestação, talvez mesmo uma espécie de testamento diante da possibilidade de não retornar vivo, escrito antes da partida para a Cruzada no Egito, que ele acabou inserindo na Regra ao retornar e ser solicitado pelo Cardeal Hugolino a reescrever a Regra. Na mesma ocasião teria inserido o capítulo 23. E nas Cartas aos Fiéis, mesmo que tenha recebido apoio na redação, as ideias são indiscutivelmente de Francisco. ar

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comunhão com Deus Pai etc. Neste sentido, “Vida e Regra”, Jesus Cristo e Evangelho

são termos sinônimos e intercambiáveis. A vida de Jesus passa a ser a verdadeira regra

de viver, a “norma normans” de todas as demais. O seguinte texto nos esclarece a

postura humana no seguimento de Jesus Cristo, ainda que esteja dirigido à Trindade:

Amemos todos, de todo o coração, com toda a alma, com todo o pensamento, com

todo o vigor e fortaleza, com todo o entendimento, com todas as forças, com todo o

empenho, com todo o afeto, com todas as entranhas, com todos os desejos e vonta-

des ao Senhor Deus (...). Portanto, nada mais desejemos, nada mais queiramos, nada

mais nos agrade ou deleite, a não ser o nosso Criador, Redentor e Salvador, único

Deus verdadeiro, que é o bem pleno, todo o bem, o bem total, verdadeiro e sumo

bem, o unicamente bom, piedoso, manso, suave e doce, o unicamente santo, justo,

verdadeiro, santo e reto, o unicamente benigno, inocente, puro, de quem, por quem

e em quem está todo o perdão, toda a graça, toda a glória de todos os penitentes e

justos, de todos os bem-aventurados que se alegram juntamente com ele nos céus.

Nada, portanto, nos impeça, nada nos separe, nada se interponha entre nós; em qual-

quer parte, em todo o lugar, a toda hora, em todo o tempo, diária e continuamente,

creiamos todos nós de verdade e humildemente e tenhamos no coração e amemos,

honremos, adoremos, sirvamos, louvemos e bendigamos, glorifiquemos e superexal-

temos, magnifiquemos e rendamos graças ao altíssimo e sumo Deus eterno, Trindade

e Unidade, Pai, Filho e Espírito Santo... (RnB 23, 8-11a).

Já percebemos que, para Francisco, não é possível um seguimento a Jesus Cristo

simplesmente teórico, sem tradução para a prática e sem envolver todas as dimensões

da existência. Será sempre um seguimento integral e integralizador de todas as dimen-

sões e todas as energias humanas, o eixo do viver. Nas suas palavras: “Regra de Vida

ou Regra e Vida”. Para clarear este modo de ver o seguimento de Jesus Cristo vamos

observar alguns aspectos ou cenas da vida de Jesus Cristo que mais sensibilizaram a

Francisco e que foram mais determinantes na sua compreensão de Jesus Cristo, em

vista de um melhor seguimento:

a) Jesus Bom Pastor. Francisco chegou a criar um pequeno texto, provavelmente

fruto de sua reflexão numa das assembleias da Fraternidade, onde coloca a figura

do Bom Pastor como motivação para o seguimento de Jesus Cristo, corajoso “na

tribulação e na perseguição, na vergonha e na fome” (Ad 6,1-2). “Para salvar suas

ovelhas, prossegue, o Bom Pastor suportou a paixão da cruz”. Na Regra corrobora

esta assertiva dizendo que o Pastor “expõe a vida pelas suas ovelhas” (RnB 22,32).

Logo, a mesma coragem e doação de vida deve ter o seguidor de Jesus Cristo. Seria

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vergonha nós ficarmos apenas proclamando o que os santos fizeram e querer receber

a mesma glória e honra. Assim, não será apenas o conhecimento de Jesus Cristo a con-

ferir nobreza de vida. Importa realizar, com coragem, a mesma obra que ele realizou.

Dito de outra forma, importa estar comprometidos com a mesma causa e missão e

com a mesma intensidade de Jesus. Nada de deixar-se apequenar pelas dificuldades.

Nada de reservas de si. O seguidor de Jesus Cristo é convidado a viver expropriado

e integralmente doado aos outros, ser-para-os-outros sem reservas. Na RnB 22,32

confirma tal assertiva dizendo que o pastor “expõe a vida pelas suas ovelhas”.

b) Jesus Cristo Servo. O gesto do lava-pés de Cristo é evocado por Francisco ao

menos duas vezes em seus escritos. Segundo N. Nguyen-Van-Khanh, é uma das ima-

gens de Cristo que sensibilizou Francisco, porque o Senhor, a Palavra eterna do Pai

“que armou tenda entre nós” (Jo 1,14), vive postura de um escravo ou servo. Evoca

esta passagem exatamente quando fala de autoridade, seja numa admoestação (Ad

4,2), seja na Regra (RnB 6,4). A evocação da atitude de serviço de Cristo é feita através

do fato mais simbólico, segundo o evangelista João, realizado pelo Senhor às véspe-

ras de sua morte. Se, para os sinóticos, foi importante narrar a última Ceia e nela a

instituição da Eucaristia e o sacerdócio, João prefere apresentar o lava-pés. Naquele

momento Jesus se autodenomina, pela primeira e única vez, ‘Senhor e Mestre’ talvez

para significar que o verdadeiro senhorio se exerce no serviço mais humilde e desin-

teressado, na condição de servo. E, a seguir, Jesus esclarece ter dado o exemplo para

que façamos a mesma coisa (Cf Jo 13,1-17). Será que Francisco não estaria nos con-

vidando a também reconhecer que a verdadeira grandeza e nobreza humana consiste

em descer ao lugar dos últimos, assim como ele se colocou a serviço dos leprosos?

c) Identificado e presente nos pobres. Embora o texto de Mateus 25,31-46, onde

Jesus se faz representar pelos pobres, não seja citado diretamente pelo nosso santo,

os biógrafos relatam passagens em que Francisco via nos pobres a imagem de Cristo

pobre. “Quem amaldiçoa um pobre comete injúria contra Cristo, de quem ele traz o

nobre sinal, o qual por nós se fez pobre neste mundo” (1Cel 76,9; LM 8,5,6-7). Ou como

reafirma na segunda biografia: “Ele atribuía a Cristo tudo o que via de necessidade,

tudo o que via de penúria em alguém. Assim, ele lia em todos os pobres o Filho da

Senhora pobre, trazendo nu no coração quem ela trouxe nu nas mãos” (2Cel 83,4-5).

É importante dar-se conta de que Jesus, segundo Francisco, não foi um pobre

por força das circunstâncias, como a maioria dos pobres que já nascem nessas con- arti

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dições. Jesus fez clara opção por uma vida de pobre, por estar ao lado dos pobres

em solidariedade a eles e em sua defesa. Na segunda Carta aos Fieis deixa entender

que viu com clareza esta opção de Jesus: “Ele, sendo rico acima de todas as coisas,

quis neste mundo, com a beatíssima Virgem, sua Mãe, escolher a pobreza” (2Fi 5)12.

A mesma perspectiva se repete na Regra não Bulada (9,4-5), onde ele o vê como

mendigo e peregrino: E (os irmãos) não se envergonhem (de ir em favor da ‘esmola’,

da casa dos pobres), mas “antes se recordem que Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de

Deus vivo e onipotente, expôs sua face como pedra duríssima e não se envergonhou;

e ele foi pobre e hóspede e viveu de esmolas, ele e a bem-aventurada Virgem e seus

discípulos” (RnB 9,5). É esta opção pela forma de vida de pobre assumida por Jesus

que encanta a Francisco. Provavelmente entrevê muito mais do que o fato de Jesus

dizer que “não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20) ou que “algumas mulheres que

andavam em sua companhia ajudavam a Jesus e a seus discípulos com os bens que

possuíam” (Lc 8,3). O fato de citar o terceiro poema do Servo sofredor revela que aqui

Francisco percebe uma opção divina assumida com muita coragem e energia. Nada

poderá demovê-lo desta escolha consciente e madura, por piores que sejam as difi-

culdades. Ora, Francisco percebeu isso seguindo “suas pegadas”, pois Cristo se revela

na medida da experiência que se faz dele. Então, nada de glosas e artifícios jurídicos.

A literalidade evangélica fala mais alto nesse caso (sem cair no fundamentalismo).

Quando Tomás de Celano interpreta como “inveja” (2Cel 83,6-7) o desejo de ser

mais pobre do que pobres, poderia ser entendido nesta perspectiva. Não é a pobreza

em si que lhe fala. É a imagem do Cristo pobre aí retratada a estimular seu desejo de

seguir Aquele que conseguiu viver plenamente expropriado, como já descrevera Paulo

na Carta aos Filipenses (Fl 2, 5-11), retratada no mistério da encarnação/presépio e

na cruz/condenação. Na primeira entrevê a descida da condição de Deus todo pode-

roso à condição de criança pobre, nascida fora de casa por falta de acolhida entre os

seres humanos; na segunda contempla a descida à pior das condições humanas: ser

condenado ao mais lastimável dos castigos então aplicados a um criminoso.

12 Esta frase de Francisco é até de difícil compreensão, porquanto, como alguém pode ser “rico acima de todas as coisas?” As coisas não são jamais ricas ou pobres. Não seria melhor entender dessa maneira, mediante uma simples pontuação diversa? “Ele, sendo rico, acima de todas as coisas quis neste mundo com a beatíssima Virgem, sua Mãe, escolher a pobreza”. Esta simples pontuação diferente revelaria realmente a opção por uma determinada maneira de viver: a dos pobres deste mundo. Esta perspectiva condiz mais adequadamente com toda a teologia da encarnação.

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d) Jesus Cristo presente nos sacramentos, na Palavra e nas criaturas do universo.

Mesmo que de forma diferente e numa perspectiva muito diversa das anteriores, onde

ele divisava a pessoa de Jesus Cristo, não dá para deixar de mencionar rapidamente

o fato de Francisco captar a presença de Cristo em todas as criaturas do universo. O

Cântico do Irmão Sol, que para Chesterton, é a síntese da vida e da espiritualidade

de Francisco, é claramente cristocêntrico. Além de transparecer, já na sua estrutura,

o modo de ser de Cristo quenótico como está retratado no hino da Carta aos Filipen-

ses (2,5-11), em todas as criaturas Francisco elenca qualidades e virtudes peculiares

de Cristo. É através desse Cristo, descido à categoria mais baixa possível (desceu aos

infernos), que Francisco louva o Criador e Pai, por haver derramado seus benefícios

em todas as criaturas, nossas irmãs. Se dá ao seu poema o nome de “Cântico do

Irmão Sol”, é porque Cristo é o sol e a luz de sua vida (2EP 118,11-12). E, por essa

razão, não gostava de apagar qualquer chama de fogo, mesmo quando lhe estivesse

queimando a roupa (CA 86,26-35; 2EP 116,1-6).

A sacramentalidade de que são portadoras todas as criaturas advém do fato de

que todas as coisas lhe falam de Cristo, o mediador de Deus Pai. Deus está espelhado

na sua criação. Francisco vive um claro panenteísmo, vale dizer, a presença divina nas

suas criaturas. “Reconhece nas coisas belas aquele que é o mais Belo; todas as coisas

lhe clamam: ‘Quem nos fez é o Melhor’. Por meio dos vestígios impressos nas coisas

segue o amado; por toda a parte e de todas as coisas faz para si uma escada para se

chegar ao trono dele” (2Cel 165, 5-6). As criaturas que mais amava eram as que lhe

evidenciavam mais facilmente o modo de ser de Jesus Cristo: as ovelhas lhe falam da

mansidão de Jesus, que andava manso e humilde entre os fariseus e os príncipes dos

sacerdotes e foi chamado de cordeiro por João Batista (1Cel 76,7); se Francisco retira

respeitosamente os vermes dos caminhos é também porque Jesus foi considerado

como um verme (Sl 22,7; 2Fi 46; 1Cel 80,6); se ele não quer nunca derrubar uma

árvore de tal maneira que seque, deve-se ao amor por Aquele que quis realizar nossa

salvação no lenho da cruz (Cf 2EP 118,4) etc.

As palavras escritas são, igualmente, para Francisco outro sacramental de Jesus

Cristo. “Nosso Senhor Jesus Cristo é a Palavra do Pai, tão santa e gloriosa, enviada do

céu por meio de seu anjo Gabriel ao útero da Virgem Maria, de cujo útero recebeu

a verdadeira carne de nossa humanidade e fragilidade” (2Fi 3-4). No Testamento

transparece de forma ainda mais clara a sacramentalidade da palavra, pois, ao falar arti

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da eucaristia como presença real de Cristo a ser sempre venerada, bem como dos

sacerdotes que são investidos do poder de tornar presente a Jesus Cristo, afirma: “Os

santíssimos nomes e palavras dele escritos, se por acaso eu os encontrar em lugares

inconvenientes, quero recolhê-los e rogo que sejam recolhidos e colocados em luga-

res honestos” (Cf Test 12). Por extensão, os teólogos que ministram as “santíssimas

palavras divinas” também devem ser honrados e respeitados (Test 13). Na Compilação

de Assis e no Espelho da Perfeição se esclarece que quer reverência pelas palavras

consecratórias da eucaristia porque foram faladas pelo Senhor Jesus (CA 108, 15-16;

2EP 65,10).

A Eucaristia é, sem dúvida, a principal referência aos sacramentos. Se menciona

apenas de passagem os sacramentos da Ordem e da Penitência, Francisco faz da Eu-

caristia um dos argumentos centrais de sua espiritualidade, abordado em muitos de

seus escritos13. Aqui somente importa lembrar que a Eucaristia representa o modo de

Jesus Cristo ser: sustento para os outros (ser-para-os-outros), presença desapercebida

porquanto com os “olhos da carne” nada se vislumbra de presença divina, presença

humilde (Ad 1,17) etc. E conclui: “E dessa maneira o Senhor está sempre com seus

fieis” (Ad 1,22). O que encanta a Francisco é a capacidade do Filho de Deus se fazer e

permanecer de forma tão simples, singela, humilde e desapercebida entre nós, como

dom entregue para nossa vida.

3 a paixão pela paixão de Cristo

Para Francisco, o momento mais significativo na vida do Senhor Jesus é sua

paixão. Já na juventude, ao entrar em contato com os pobres e leprosos, Francisco

foi se capacitando para entender os sofrimentos de Jesus Cristo. Segundo Manselli e

Maranesi, o itinerário percorrido por Francisco para chegar a Cristo foi “do sofrimento

humano ao sofrimento divino”. A misericórdia com os leprosos durante o processo

de sua conversão, confessada no Testamento (Test 1-3), lhe possibilitou vislumbrar

a pessoa de Jesus Cristo em situação de abandono e sofrimento. Mesmo se, a partir

das análises de Jean de Schampheleer, é anacrônico dizer que já na experiência com

13 É o tema central em 4 cartas: Clérigos 1 e 2 e Custódios 1 e 2. É abordado ainda nas duas Cartas aos Fieis, na Carta a Toda a Ordem, na Carta aos Governantes e no Testamento. As fontes biográficas mencionam várias vezes que ele teria desejado inserir na Regra orientações sobre isso, mas teria sido desaconselhado para não criar melindres no clero.

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a cruz de São Damião se lhe imprimiram os estigmas em sua alma14, é certo que aos

poucos o Cristo crucificado foi se tornando um permanente objeto de sua atenção

e contemplação.

Não se sabe com exatidão, mas em torno de 1215 já estava sensibilizado pela

paixão de Cristo. Por aqueles anos teria assumido o sinal do Tau (a Cruz) como sua

assinatura e distintivo, assim como já o encontrara entre os Frades Hospitaleiros de

Santo Antônio em Roma, dedicados aos leprosos, junto a quem se hospedava. Estes

estampavam o Tau nas panelas, nas portas, nas roupas, nos pratos, por tudo enfim.

Ainda hoje se encontra essa ‘assinatura’ de Francisco no Bilhete a Frei Leão e numa

janela na igrejinha de Santa Maria Madalena, junto ao eremitério de Fonte Colombo.

Celano afirma que era seu costume marcar os lugares com este sinal do Tau15. O Tau

para Francisco era portador de duas mensagens importantes: a primeira ligada ao

ato de amor supremo de Jesus Cristo que deu a vida por nós numa cruz; e a segunda,

como corolário desta, um convite à conversão ou mudança de vida para corresponder

a este amor, tal como o profeta Ezequiel (Ez 9,4). Como permanecer indiferentes a

tão nobre gesto?

Celano conta que dois aspectos da vida de Cristo ocupavam permanentemente a

memória de nosso santo: a humildade da encarnação e a caridade – amor – da paixão

(1Cel 84,3). Certamente devido a este amor manifesto na paixão do Senhor e para

tê-lo constantemente na memória, Francisco teria começado, em torno de 1215, a

elaboração de seu Ofício da Paixão. Compunha-se inicialmente de sete salmos que

ele rezava um a cada hora litúrgica. Por meio destes salmos Francisco acompanhava

diariamente toda a trajetória da paixão de Jesus Cristo, desde a agonia no horto (Sl

1), passando pelo seu aprisionamento (Sl 2), pelos julgamentos de Anás e Caifás e do

sinédrio (Sl 3 e 4), pelo julgamento de Pilatos (Sl 5), pela crucificação no calvário (Sl

6) até sua Ressurreição, glorificação e retorno como juiz da história (Sl 7)16. Diversa-

mente da tendência que vinha se reforçando nas devoções populares de seu tempo,

14 A cruz de São Damião é a tradução iconográfica da perspectiva joanina que vê na crucificação a própria glori-ficação de Cristo, sua ressurreição. A Legenda dos Três Companheiros ressalta que Francisco se encheu de júbilo e de luz diante desta experiência (LTC 13,10). A menção aqui dos estigmas entende-se porque a obra foi escrita “post factum”, isto é, depois que Francisco tivera os estigmas e então se faz questão de antecipar os fatos.15 “O sinal do Tau era-lhe familiar acima de todos os outros: utilizava-o como única assinatura para suas cartas e pintava-lhe a imagem nas paredes de todas as celas” (3Cel 3, 4).16 Os demais salmos foram sendo acrescentados ao longo de dez anos e têm por objetivo a celebração das festi-vidades de Maria, dos santos e, sobretudo, do Natal do Senhor. ar

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Francisco não dá muita importância aos sofrimentos físicos de Jesus Cristo. Constrói

seus salmos como que se colocando no lugar de Jesus, perguntando-se o que estaria

ele vivenciando e desse modo colhendo versículos bíblicos, geralmente de outros

salmos, que pudessem expressar estes sentimentos de incompreensão, de abando-

no, de rejeição. Dava-se conta, então, do profundo gesto de doação amorosa e, ao

mesmo tempo, da quase total insensibilidade humana a este gesto de amor. Poderia

de fato chorar: ‘O amor não é amado’17, pois o Cristo que emerge destes salmos é

um Cristo que se sente em profunda comunhão com o Pai, sustentado e amparado

por Ele, mas totalmente incompreendido, rejeitado e desprezado pela humanidade.

É um Jesus que sustenta sua fidelidade ao projeto do Pai, mesmo que isso lhe cause

a morte física. Enrijeceu sua face como pedra duríssima para seguir na fidelidade ao

Pai e aos irmãos, sem nunca se envergonhar por causa disso (RnB 9,4-7).

Desse modo, Francisco ultrapassa o pietismo que se deleita em considerar as do-

res suportadas pelo Mestre. Brotam-lhe no coração os desejos de “seguir os passos

daquele que nos deixou o exemplo” (1Pd 2,21), de buscar o mesmo nível de fideli-

dade e o mesmo grau de doação e entrega, a mesma coragem de “amar até o fim”

(Jo 13,1). Deste ponto de vista, parece procedente a informação dada pelo autor das

Considerações dos Estigmas de que Francisco costumava pedir duas graças a Deus:

ter o mesmo amor e sentir a mesma dor que Cristo sentiu18. Sem dúvida alguma, o

pedido do amor era prioritário e mais central, pois não há como ver em Francisco um

masoquista ou um estóico. Sua coragem em tentar levar a paz em Arezzo, em Bolonha,

em Perúgia, em Assis, bem como seu destemor em enfrentar as situações internas

com a parábola da Verdadeira Alegria, a elaboração do Testamento etc, são demons-

trações inconfundíveis do tipo de contemplação de Jesus Cristo feita por Francisco.

17 Esta expressão comumente atribuída a Francisco não se encontra em nenhuma das fontes conhecidas por nós. Celano reporta um pensamento do santo que muito se aproxima: “Muito deve ser amado o amor daquele que muito nos amou” (2Cel 196,9). Boaventura o repete (LM 9,1,5). Assim como o “Meu Deus e tudo”, também esta nossa expressão pode ter sido transmitida oralmente por décadas e décadas. O conteúdo permite que seja atribuída a Francisco.18 “Ó Senhor meu Jesus Cristo, duas graças te peço que me faças antes que eu morra: a primeira é que em vida eu sinta na alma e no corpo, quanto for possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua acerbíssima paixão; a segunda é que eu sinta no meu coração, quanto for possível, aquele excessivo amor do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado para voluntariamente suportar uma tal paixão por nós pecadores” (CSE 3, FF, 2004, p.1601). Sabe-se que este escrito tem em vista contemplar os estigmas de Francisco. Não seria o motivo que leva a antecipar o pedido dos sofrimentos ao pedido do amor? Todavia torna-se difícil, levando-se em conta o Ofício da Paixão, desmentir a autenticidade dos dois pedidos.

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4 as intuições cristológicas de Francisco de assis

Tendo percorrido rapidamente o percurso da vida de Cristo que Francisco tinha

diante de si e que lhe serviu de inspiração para “seguir seus passos”, podemos agora

olhar, panoramicamente, para as constantes de sua cristologia. Poder dar-se conta dos

principais traços da fisionomia de Jesus Cristo destacados por Francisco contribuirá

para identificar sua cristologia específica. É sabido que a imagem de Cristo é decisiva

para o modo de seguimento. Basicamente, parecem ser duas as características cris-

tológicas para Francisco:

a) Sua visão integral da pessoa e da vida de Jesus Cristo. Francisco tem o hábito

de sempre considerar Jesus Cristo em estreita relação com a Trindade e não apenas

em si mesmo. Jesus é quem rende graças ao Pai juntamente com o Espírito Santo

Paráclito (RnB 23,5.6). O Pai consagrou Maria com o Filho e o Espírito Santo Paráclito

(SM 2). A bênção provém do Pai, do Filho e do Espírito Santo Paráclito e não somente

do Pai (Test 40) etc. Onde está um deles, os três se fazem presentes para Francisco,

em força de seu profundo espírito de comunhão.

Em força disso, Jesus não age sozinho. Desenvolve aqui neste mundo, como

diríamos hoje, o projeto do Pai. Jesus é a Palavra enviada pelo Pai ao útero de Maria

(2Fi 4; OP 15,3) ou a este mundo (1Fi 1,15; 2Fi 58). Ou ainda, aquele que diariamente

desce do seio do Pai sobre o altar nas mãos do sacerdote (Ad 1,18). Ele é a expressão

da vontade do Pai e o único mediador para chegar ao Pai.

Jesus vive grande confiança e familiaridade com o Pai. Quando Francisco medita

a paixão e descreve os sofrimentos do Senhor Jesus na cruz nos sete primeiros salmos

do Ofício da Paixão, em todos encontramos versículos onde Francisco coloca na boca

de Jesus a invocação do ‘Pai’, do ‘Pai Santo’, do ‘santíssimo Pai’19. E não somente esta

invocação de Deus Pai. Igualmente em todos há versículos que expressam, em meio

aos sentimentos de abandono e tristeza em relação aos homens, sentimentos de

profunda confiança e comunhão com o Pai20. Ambos coexistem sem se anular mutua-

mente. Não se poderia aqui aventar a hipótese de que essa era também a experiência

do próprio Francisco, pois ele sofria muita incompreensão para manter fidelidade ao

19 Para conferir: OP 1,5; 2,11; 3.3; 4,9; 5,9.15; 6, 11.12 e 7,3.20 Exprime sentimentos de confiança e comunhão nos seguintes versículos dos salmos do OP: 1,l.5.10; 2,4-5; 3, 8-9; 4,9-10; 5, 15-16; 6, 11-16 e 7, 8-9. ar

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projeto divino revelado em sua vida, mas, por outro lado, vivia simultaneamente um

sentimento de imensa confiança e comunhão com Deus que o sustentava e encorajava

no prosseguimento da caminhada?

b) Jesus Cristo em sua pobreza e humildade. Aqui está a nota característica de

Jesus Cristo para Francisco. Mesmo que o mencione como rei do universo, é sempre

um rei pobre e humilde. Poder-se-ia dizer que a dimensão quenótica de Jesus Cristo,

como a relatada por Paulo na sua Carta aos Filipenses 2,5-11, foi a que deu o tom

principal à imagem de Jesus Cristo para Francisco. Cristo nasceu como simples “meni-

no, no caminho (fora de casa) e foi colocado numa cocheira de animais, porque não

havia lugar para Ele na hospedaria” (Cf OP 15,7). Nasceu tão frágil que “dependeu

de peitos humanos” para poder sobreviver (2Cel 199,1). Cresceu identificado, por

opção, com os pobres (2Fi 5) e defendeu corajosamente seus direitos (RnB 9,4-8). Não

teve receio de sofrer pelos que amava (Ad 6,1; PN 6). Portava-se de modo manso e

humilde entre os príncipes dos sacerdotes (1Cel 77,7). Em sua profunda humildade,

ciente de ser Mestre e Senhor, “lavou os pés dos seus discípulos” para nos deixar o

exemplo de um serviço fraterno despojado de toda a forma de poder (RnB 6,3). Esta

maneira de ser é confirmada pelo modo como escolheu permanecer entre nós na

“humilde aparência” de pão (Ad 1,17), até o fim dos tempos (Ad 1,22). Francisco

não é um teólogo acadêmico e usa linguagem popular, própria de alguém que tem

pouca cultura livresca. Através de imagens de Jesus que utiliza e realça, pode-se

concluir claramente que o Cristo, na perspectiva franciscana, é o Cristo da quénosis.

Sem diminuir em nada sua grandeza, consegue mostrá-lo pequeno, pobre e despido

de poder. Todavia, esse Jesus Cristo pequeno e pobre é capaz de “enrijecer a face

como pedra duríssima” para estar ao lado dos pobres e marginalizados, em defesa

de seus direitos. É impressionante como consegue articular com clareza essas várias

percepções de modo coerente e harmônico.

Conclusão

Jesus Cristo era o centro da vida de Francisco. Ele “trazia Jesus no coração, Jesus

na boca, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos”, disse seu biógrafo

(1Cel 115). Seu maior desejo era seguir suas pegadas, com fidelidade. Por isso, quer

identificar-se com os pobres, ser qual peregrino que não tem onde repousar a cabeça,

viver de modo simples e fraterno, destituído de toda a forma de poder, assim como

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captava em Jesus. Quer amar a todos, grandes e pequenos, e inclusive os inimigos,

como fez Jesus. Quer e propõe que defendamos os direitos dos pobres com muita cora-

gem, sem receio da humilhação, como fizeram Jesus Cristo, sua Mãe e seus discípulos.

Se, para Francisco, Jesus Cristo não é tanto sofredor pelas dores físicas do processo

da crucificação, quanto pela rejeição do projeto do Pai, com o qual ele se identificou

plenamente, também ele precisava empenhar sua vida por completo para apoiar a

construção do seu Reino. Se Jesus Cristo é alguém que o satisfaz profundamente, não

é apenas o “doce Jesus” que dá o prazer de uma satisfação efêmera e superficial. É,

antes, o Jesus Cristo que possibilita a realização-ressurreição mais profunda do ser

humano, criado para ser-para-os-outros, à imagem e semelhança de Deus. Se Jesus

Cristo é alguém que, mesmo na condição de marginalizado, enrijece a face na defesa

dos direitos dos pobres, também Francisco se sentia convidado a trilhar o mesmo

caminho. Somente assim poderia seguir suas pegadas, meta última de sua vida.

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Resumo: Os avanços tecnológicos associados às técnicas médicas têm levado os profissionais da saúde a terem como meta incansável o prolongamento da vida. O êxito de tais procedimentos, porém, em pacientes sem possibilidade de cura e com autonomia de deci-são tem apenas prolongado o sofrimento e o processo de morrer. Neste caso, a renúncia do tratamento pelo paciente passa a ser vista como suicídio e a sua interrupção pela equipe médica como eutanásia ativa. Assim, a qualidade de vida é associada ao curar, e não ao cuidar. Pretende-se, neste trabalho, apresentar que o pro-longamento assistido da vida significa compatibilizar as dimensões do cuidado e do respeito, sendo estes, portanto, responsáveis pela manutenção do respeito à autonomia e dignidade do paciente.

Palavras-chave: cuidado, respeito, autonomia, diretrizes antecipa-das, prolongamento assistido da vida.

abstract: Technological advances associated with medical tech-niques have led health professionals to have as a tireless goal pro-longing life. The success of such procedures, however, in patients with no possibility of healing and with autonomy for decision has only prolonged the suffering and the process of dying. The resignation of treatment by the patient is seen as suicide and its disruption by the medical team as active euthanasia. Thus, the quality of life is associated with healing, and not with care. The aim of this work is presenting that the extension of the assisted living means matching the dimensions of care and respect, which are therefore responsible for the maintenance of respect for the autonomy and dignity of the patient.

Keywords: care, respect, autonomy, extension of assisted living, bioethics.

* Doutorando em Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Professor dos Cursos de Filosofia. Direito e Administração da FAE – Centro Universitário Franciscano do Paraná, Curitiba, Paraná. E-mail: [email protected]

Cuidado e respeito: Reflexões sobre o prolongamento assistido da vida

Léo Peruzzo Júnior*

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introduçãoOs princípios, as regras e os direitos precisam ser, além de

especificados, ponderados. Os princípios (e coisas do gênero) nos orientam para certas formas de comportamento; porém,

por si mesmos eles não resolvem conflitos de princípios.

Tom Beauchamp e James Childress1

A melhoria das condições de vida, resultado do acelerado avanço das tecnologias

medicamentosas e intervencionistas, tem postergado cada vez mais o processo de

morrer. Os cuidados paliativos, realizados pelas equipes de saúde, parecem sempre

estar associados à ideia de cura, mesmo que isso signifique prolongamento da dor e

do sofrimento, o que, em muitas vezes, contraria as próprias expectativas do paciente.

Associado a esse fenômeno, o morrer transformou-se num processo instrumentalizado

para quem cuida e para quem é cuidado. As intervenções médicas sobre a vida do

paciente permitem observar que nem todo cuidado é respeitoso, ou seja, em alguns

casos o cuidado transforma-se numa distanásia, num prolongamento indesejado

pelo paciente sem qualquer qualidade de vida. Neste sentido, o respeito à autonomia

do paciente é permitir, por exemplo, que o seu bem-estar signifique a renúncia ou

interrupção do tratamento.

A distanásia, embora aceita como contrária a eutanásia, recorre a cuidados to-

talmente fúteis frente aos possíveis resultados que o paciente pode obter2. Um trata-

mento fútil é aquele que não suplanta um benefício, ou ainda aquele que contraria as

expectativas do paciente, seja seu bem-estar ou sua autonomia. Este conflito torna-

-se mais acentuado quando as técnicas utilizadas não são terapêuticas, mas apenas

experimentais. Desta forma, os dilemas morais enfrentados pelas equipes de saúde

e familiares muitas vezes não são resultados de um tipo de respeito intrínseco que

deveria existir frente a qualidade de vida desejada pelo paciente. Os procedimentos

tomados, em muitos casos, são resultados de uma convicção médica sobre o diag-

nóstico do paciente ou das escalas de valores que os familiares compreendem sobre

o significado do processo de morrer.

A noção de cuidado e respeito pode parecer vaga quando aplicada a pacientes

que podem expressar sua autonomia, porém torna-se delicada quando examinadas

situações onde estão pacientes terminais ou incapazes de se comunicar. O respeito à

1 Cf. BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p.49.2 Cf. PESSINI, 2001.

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autonomia e o cuidado com sua qualidade de vida vai além do período de lucidez. Tal

episódio também não deve significar que o prolongamento da vida deva ser mantido,

uma vez que ninguém pode legislar sobre eles. Cuidado e respeito devem ser valores

intrínsecos de quem é cuidado, e não apenas nas dimensões presentes na percepção

do cuidador. Embora a bioética contemporânea incorpore conflitos teóricos e dife-

rentes teorias, é inegável que a dúvida frente até onde podem ir os profissionais da

saúde para reduzir os riscos continuará persistindo. Os profissionais e instituições de

assistência à saúde precisam revisar suas crenças tradicionais, conforme apontam Be-

auchamp e Childress, para acomodar uma perspectiva moral mais ampla e com apelo

mais forte, incluindo os direitos à autonomia do paciente3. O direito sobre a vida é

um pressuposto para todos os demais direitos do qual a pessoa é seu único titular4.

O deixar morrer, ponto essencial enfrentado pelas equipes de saúde frente aos

insucessos terapêuticos, não pode mais significar uma espécie de negligência. Embora

tomado como sinônimo de matar, o deixar morrer, quando associado às devidas medi-

das de conforto e as específicas situações, nada mais compreende do que o respeito e

o cuidado que engloba as convicções do paciente. Desta forma, os pacientes passam

a ser tratados de maneira ética não somente quando respeitadas as suas decisões e

protegidos de danos, mas também quando há esforços para assegurar a qualidade

de vida que vai além do simples prolongamento artificial.

a obrigação moral de não prejudicar os outros

O Relatório Belmont, publicado em 1978 pelo Departamento de Saúde, Educação

e Bem-Estar (HEW) dos Estados Unidos, é um marco na regulamentação de princípios

sobre o modo como cuidar e usar pacientes para fins terapêuticos e experimentais. O

documento, que apresenta três princípios básicos para a tomada de decisão (respeito

pelas pessoas, beneficência e justiça) serve como base de justificação para muitas

prescrições éticas particulares e avaliações das ações humanas. Segundo o relatório, a

extensão da proteção dispensada deve depender do risco de dano e da possibilidade

de benefícios.

Seguindo o juramento hipocrático “Primum non nocere”, o Relatório aponta

duas condições para o princípio da beneficência: o primeiro é não causar dano e, o

segundo, maximizar possíveis benefícios e minimizar possíveis danos. A obrigação de

3 Cf. BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p.234.4 Cf. FABRIZ, 2003, p.267. ar

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beneficência requer julgamentos, e estes podem, em alguns casos, expor o paciente a

outros riscos. O problema colocado por estes imperativos é como justificar o uso de

certas técnicas e descartar outras. Interromper um tratamento, por exemplo, poderia

ser moralmente justificado quando este acarretasse mais prejuízos do que benefícios,

sem que isso significasse qualquer forma de matar intencionalmente.

A abordagem principialista, desenvolvida no final da década de 1970, por Tom

Beauchamp e James Childress, segue o mesmo horizonte do Relatório Belmonte5.

Porém, os autores estabelecem quatro princípios, realizando assim uma separação

do princípio de beneficência em outro, intitulado-o de não-maleficência. Segundo

eles, as obrigações de não prejudicar os outros são, às vezes, mais rigorosas que as

obrigações de ajudá-los. A realização de pesquisa com seres humanos, neste caso, é

uma das situações pelas quais existe a obrigação de não fornecer risco de dano aos

sujeitos de pesquisa por meio de seus procedimentos. Em casos de conflito entre os

princípios, não existe uma regra a priori que determine que evitar danos é preferível

a proporcionar benefícios6.

As condutas de assistência realizadas pelos profissionais da saúde sobre o pro-

longamento da vida são convicções que estão acima da capacidade de autonomia e

desejo da pessoa doente. Assim, não prejudicar pode tornar-se equivalente a abster-se

de realizar algum tipo de procedimento. Comumente o ato de não fazer pode tornar-

-se, muitas vezes, um ato positivo mais importante do ponto de vista moral do que

fazer. Já em outros casos, abster-se de auxiliar outra pessoa pode ser, moralmente,

tão errado quanto infligir um dano. A não-maleficência assume, portanto, a forma

de “Não faça X”.

Em 1976, a Suprema Corte de Nova Jersey decidiu que era permissível para um

responsável legal desconectar o respirador de Karen Ann Quinlan, que havia tido um

colapso após a ingestão de vários medicamentos e se encontrava em estado vegeta-

tivo. Depois que o respirador foi retirado, Karen viveu mais uma década com a ajuda

de antibióticos, porém com a qualidade de vida praticamente reduzida a condições

5 O principialismo de Beauchamp e Childress é influenciado, primeiramente, pela obra “The Right and the Good”, de 1930, William David Ross. Nele Ross expressa o conceito de que a vida moral está fundamentada em alguns princípios básicos, que são evidentes e incontestáveis, os quais todos os seres humanos consideram obrigatórios. As estes princípios Ross chamou-os de deveres prima facie, que são obrigações que devem ser cumpridas a não ser que conflitem, numa situação específica, com outra obrigação igual ou mais forte. Em 1963, quando publica o livro “Ethics”, o filósofo William Frankena, constrói sua teoria em consonância com as ideias de Ross. Segundo Frankena, os princípios básicos ou deveres prima facie são dois: a beneficência e a justiça ou equidade.6 Cf. BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p.211.

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indescritíveis7. Ela vivia em posição fetal, com escaras de decúbito e pesava 32 quilos. O

prolongamento assistido desse tipo de vida permitiu uma discussão: seria moralmente

correto tirar o respirador e não suspender tubo de alimentação? Haveria diferença

moral nos tipos de suporte usados no tratamento de pacientes?

Embora o principialismo seja acusado de excessivo formalismo e de vacuidade,

e que os princípios devam valer apenas prima facie, o que acarretaria algum tipo de

relativismo ou subjetivismo, Beauchamp e Childress sustentam que não há diferença

moralmente relevante entre as várias tecnologias de suporte à vida8. Em algumas

circunstâncias, as medidas artificiais podem ser justificadamente repudiadas, uma

vez que o direito de recusar um tratamento não depende do tipo de tratamento e

nem daquilo que representa para a sociedade como um todo. A obrigação de cuidar

dos pacientes exige que se forneçam os tratamentos que estejam de acordo com

seus desejos e interesses. Segundo os autores, a nutrição e hidratação não podem

ser justificadamente omitidas quando são para o conforto e dignidade do paciente.

Além disso, a nutrição e hidratação têm um significado simbólico, uma vez que são

a essência do cuidado e da compaixão no contexto médico e em outros contextos.

Associado a estas questões a política de não fornecimento de nutrição e hidratação

artificiais não podem ser suspensas quando trarão consequências adversas ao pa-

ciente. Porém, os tratamentos de suporte de vida não podem violar os interesses do

paciente. Fornecer um tratamento cruel e com perspectiva limitada é, portanto, uma

violação do princípio de não-maleficência.

Segundo o princípio de não-maleficência, os profissionais da saúde tem o dever

de, intencionalmente, não causar danos ao paciente. Este princípio torna-se relevante

porque, em muitos casos, o risco de causar danos é inseparável do procedimento que

está moralmente indicado. Embora seja difícil precisar qual o significado de uma ação

intencional, a qual poderia ocasionar diversos efeitos imprevisíveis, os profissionais

da saúde e familiares devem basear suas decisões em direitos do paciente e seu bem-

-estar. Sendo assim, quanto maior o risco de causar dano, mais justificado deve ser

o objetivo do procedimento considerado moralmente adequado.

O debate sobre a aplicação do princípio de não-maleficência torna-se ainda difícil

quando a discussão está entre não dar início em um tratamento e interromper outro

que já fora iniciado. Geralmente as famílias optam por não interromper aquele que já

7 Cf. BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p.225.8 Cf. BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p.227-228. ar

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fora iniciado, acreditando que seria moralmente errado parar o tratamento naquelas

circunstâncias, mesmo que isso seja fútil do ponto de vista do paciente. O tratamento

cria a falsa expectativa de que ele prosseguirá e que este gerará um resultado positi-

vo. Isso acontece porque o ônus moral da prova, segundo Beauchamp e Childress, é

mais duro no caso da decisão de abster-se do que interromper, o que representa em

alguns casos um grande equívoco, especialmente para o paciente9.

Os próprios profissionais da saúde reconhecem que, em algumas situações,

definir a melhor conduta é sempre relevante do ponto de vista moral. Porém, abster-

-se ou interromper um tratamento são situações ainda inaceitáveis sob a ótica da

área da saúde. Os julgamentos a esse respeito geralmente são feitos por aquele que

realizada o cuidado, o que significa que na maioria das vezes exclui a preocupação

com a autonomia do paciente. Usar antibióticos para tratar uma pneumonia pode

ser, por exemplo, um procedimento moralmente aceitável; mas fazê-lo a um paciente

irrecuperável que está morrendo de câncer ou AIDS pode ser moralmente opcional.

O direito de recusar um tratamento médico não depende do tipo de tratamento,

uma vez que não há diferença moralmente relevante entre as várias tecnologias de

suporte de vida. A obrigação de cuidar dos pacientes, neste caso, exige que se forne-

çam os melhores tratamentos que estejam de acordo com seus interesses e bem-estar.

Quando as desvantagens do tratamento excedem os benefícios, ele se tornará inútil

ou desprovido de significado. E, quando realizado, um tratamento desta natureza será

um cuidado desrespeitoso com o paciente. Se as intervenções de vida forem baixas e a

interrupção produz mais males que benefícios, torna-se justificável aceitar, rejeitar ou

suspender o tratamento. Neste contexto, os códigos de ética médica erram, segundo

Beauchamp e Childress, porque afirmam que o tratamento só pode ser suspenso em

estado terminal, o que ignoraria uma série de outras situações10.

Se o princípio da não-maleficência tornou-se um imperativo forte do desenvol-

vimento da bioética, os direitos dos pacientes evoluíram na mesma proporção no

contexto da assistência à saúde. Nos últimos anos, os desejos dos pacientes passaram

a ser cada vez mais valorizados. Porém, a tomada de decisão sobre pacientes grave-

mente enfermos, sem lucidez ou sem quaisquer familiares legais continua sendo uma

tarefa complexa. Quando os desejos prévios de um paciente terminal ou incapaz de se

comunicar não são conhecidos, surgem divergências entre os profissionais da saúde

9 Cf. BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p.219.10 Cf. BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p.239.

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e os próprios familiares. Neste sentido, a manifestação da vontade antecipada seria

um fator inibidor de condutas que ferem a autonomia e o bem-estar destes pacientes.

manifestação das vontades antecipadas do paciente

O respeito à autonomia do paciente está além do seu período de lucidez. O cui-

dado pode significar o respeito à autonomia do paciente em recusar-se a dar pros-

seguimento a um tratamento indesejado. Embora num paciente capaz as escolhas

possam ser objetivamente claras, um paciente incapaz é extremamente difícil definir

os melhores padrões de assistência. Esta dificuldade poderia ser resolvida, em alguns

casos, com a elaboração de uma declaração na qual os pacientes manifestam suas

vontades antecipadas prevendo, dessa maneira, possíveis tipos de assistência que

num momento de sua incapacidade lhe seriam administradas.

As instruções ou diretrizes antecipadas permitem que uma pessoa escreva ins-

truções para tratamentos de suporte de vida durante períodos de incapacidade.

Surgida nos Estados Unidos, nos anos 60, as diretrizes antecipadas tornaram-se lei

federal em 1991, por meio do Patient Self Determination Act (PSDA)11. Embora exista

uma grande discussão sobre a dificuldade em prever possíveis doenças no futuro, o

conceito de diretrizes antecipadas foi amplamente difundido por diversos países da

Europa. Dessa forma, os profissionais da saúde passam a ser vistos não apenas como

cuidadores piedosos que tomam as decisões segundo seus interesses, mas fornecem

assistência segundo as vontades do próprio paciente e de acordo com aquilo que

este compreende como sua qualidade de vida.

A Associação Médica Mundial (AMM) elaborou, em 2003, uma declaração sobre

vontades antecipadas do paciente, também conhecido como testamento vital, esta-

belecendo regras para a elaboração do referido documento. O mesmo deve ser um

documento escrito e assinado ou uma declaração verbal perante testemunhas, no

qual os pacientes expressam seus desejos em relação ao tipo de assistência que será

realizada pelos profissionais da saúde em caso de sua incapacidade. Neste o paciente

indica tratamentos médicos que aceita ou rejeita, os quais devem ser obedecidos nos

casos futuros em situação de impossibilidade de manifestar sua vontade, como, por

exemplo, o coma. De efeito contrário aos testamentos destinados à produção de efei-

tos após a morte do paciente, as diretrizes antecipadas têm sua eficácia legal porque

conduzem os cuidados paliativos segundo critérios estabelecidos pelo próprio paciente.

11 Cf. STOLZ; GEHLEN; BONAMIGO; BORTOLUZZI, 2011, p.834. arti

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A Resolução do Conselho Federal de Medicina 1.931/09, no artigo 41, passou a afirmar que em casos de doença incurável e terminal, o médico deve oferecer os cui-dados paliativos disponíveis sem empreender ações ou diagnósticos ou terapêuticas inúteis. Ainda afirma que o médico, neste caso, deve sempre levar em consideração a vontade expressa do paciente ou de seu representante legal12. Embora no Brasil ainda não exista uma regulamentação específica sobre as diretrizes antecipadas, a resolução permite ao paciente a expressão de sua autonomia sobre procedimentos que podem ser fúteis em relação à sua qualidade de vida. Neste sentido, o respeito às vontades antecipadas seria um fator importante para inibir a distanásia.

Beauchamp e Childress apontam para dois tipos de diretrizes antecipadas: a primeira é o living wills, que são diretrizes substantivas em situações específicas e, a segunda, a durable power of attorney, uma procuração durável que continua em vigor caso o procurador se torne incapaz13. Mesmo que a procuração durável seja um instrumento mais prático, é provável que, em alguns casos, o procurador esteja impossibilitado ou ausente para indicar a melhor assistência ao paciente. No entanto, o living wills também não conseguiria definir adequadamente métodos que antecipem situações futuras. Entre os problemas estariam a mudança de opinião do paciente, a legislação específica de cada Estado, o conflito com os pareceres médicos e dos familiares e a falta de compreensão adequada dos pacientes em antever situações clínicas e experiências dolorosas no futuro.

A declaração de diretrizes antecipadas permite uma espécie de suicídio assistido, no qual o respeito à autonomia do paciente está em decidir livremente se vale a pena viver em certas condições extremas. Segundo Dall´Agnol, “o suicídio assistido, ainda um mito bioético, pode e deve ser encarado de forma mais natural. Quer dizer, se uma pessoa, no pleno gozo de suas faculdades mentais, decidir que não vale a pena continuar vivendo, por que não assessorá-la”14. As diretrizes tornam-se, portanto, uma possibilidade de escolha sobre o processo de morrer frente a diagnósticos que trariam sofrimento prolongado e expectativas poucos razoáveis. Além disso, o res-peito à autonomia do paciente em decidir quais são seus melhores interesses evita o paternalismo, ou seja, posições que negam a liberdade do paciente em manifestar seus interesses, desejos ou vontades.

Conforme apresentamos, a qualidade de vida de um paciente capaz é aquilo

manifestado por seus interesses no exercício de sua autonomia. Já para um pacien-

12 Cf. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2010.13 Cf. BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p.270.14 DALL’AGNOL, 2005, p.35.

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te incapaz como, por exemplo, com atraso no desenvolvimento mental, a omissão

ou suspensão de tratamentos deve levar em conta os melhores benefícios para ele,

tendo como parâmetros decisórios a família, os médicos e profissionais da saúde, os

comitês institucionais de ética e, em alguns casos, o próprio sistema judicial. No caso

de bebês, os pais têm prioridade sobre as formas de assistência, porém, em situações

de abusos, negligência ou maus tratos devem ser desqualificados.

Avaliar a qualidade e quantidade de vida é um processo extremamente delicado.

Dessa forma, o principialismo de Beauchamp e Childress possui validade apenas pri-

ma facie, isto é, os princípios valem enquanto considerações maiores não estiverem

em jogo. O dever fundamental dos profissionais da saúde é realizar a assistência de

saúde buscando o bem-estar e conforto do paciente. Embora o profissional seja apto

a escolher o tipo de procedimento, é dever consultar o paciente ou familiar, quando

incapaz, para deliberar sobre a conduta mais adequada. Segundo Dall´Agnol, isso

não significa que “o profissional da saúde não pode, todavia, ser obrigado a fazer

algo contra a ética médica nem cometer ilegalidades”15.

A relação médico-paciente é examinada com uma ênfase na comparação entre

os princípios profissionais e morais, conforme descreve o Dr. Uri Lowental, num dos

primeiros estudos sobre os direitos dos pacientes, que fora publicado no Journal Me-

dical Ethics em 197916. Assim, muitas terapias são medidas numa espécie de ‘teoria

hedonista’: destinam-se a aumentar o prazer ou a diminuir a dor. Ao contrário do

esperado resultado da terapia, o tratamento do paciente não pode limitar-se à expec-

tativas futuras. Calcular o significado de prazer e dor ao paciente não são condições

suficientes para um cuidado respeitoso, uma vez que estas são condições externas

à autonomia do paciente em decidir o significado de seu bem-estar. O Dr. Lowental

conclui o estudo afirmando que o crescente paradoxo da lógica médica é “polluted

by alien calculations”17.

Num estudo realizado em 2003, com 12.680 pacientes americanos, que avaliava

as experiências e a escala de cuidados hospitalares, um total de 84,7% destes afir-

mava que foram tratados com respeito e dignidade. Quando se tratava da confiança

e segurança nos médicos, 87,3% afirmaram que sempre confiam18. Tais resultados

demonstram que, especialmente nas últimas décadas, o respeito à autonomia nas

15 DALL’AGNOL, 2004, p.3716 Cf. LOWENTAL, 1979, p.22.17 LOWENTAL, 1979, p.23.18 Cf. JAFFE; MANOCCHIA; WEEKS; CLEARY, 2003, p.105. ar

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decisões dos pacientes parece ter melhorado significativamente. O cuidado passou

a ser visto como oposto a um prolongamento fútil e desprovido da vontade e con-

sentimento do paciente. O bem da pessoa passou a ser prioritário em relação aos

interesses da família, dos profissionais da saúde, da sociedade e até mesmo da ciência.

A partir destas questões, as diretrizes antecipadas podem se tornar, além de um

documento legal para tomada de decisões sobre a assistência de alguém, uma das

primeiras ferramentas importantes para a descriminalização de certas condutas que

não permitem o exercício da autonomia do paciente. Uma sociedade verdadeiramente

pluralista deve permitir que cuidado signifique respeito à autonomia em omitir ou

rejeitar certas práticas. Neste sentido, as diretrizes antecipadas legitimam a vontade

do paciente frente aos interesses daquilo que o mesmo entende ser um modo au-

têntico de viver.

Considerações finais

Na área da saúde, assim como em outros contextos, o prolongamento da vida

está intimamente ligado ao exercício da profissão. Dessa forma, o cuidado e o respeito

ao paciente desempenham o papel de porteiros nos serviços de saúde. O modelo de

assistência atual, no entanto, ainda distingue os indivíduos cujas decisões autôno-

mas devem ser respeitadas daqueles cujas decisões precisam ser checadas e, talvez,

outorgadas por um representante. Isso implica que, em alguns casos, o cuidado

efetivamente não representa um respeito aos interesses do paciente.

A obrigação ética de não prejudicar os outros não pode significar apenas realizar

algum tipo de cuidado ou escolher o melhor tipo de procedimento com o intuito

de estender a vida ao máximo. A não-beneficência pode representar a possibilidade

do paciente em recusar um modelo de vida, do qual a expectativa ocasionará mais

sofrimento do que bem-estar. O cuidado torna-se beneficente quando se respeitam

as competências de uma pessoa em tomar decisões de forma autônoma. Assim, o

cuidado exercido fora destas condições torna-se sinônimo da distanásia, onde o pro-

longamento da vida passa a ser fútil e desprovido de significado.

Uma das possibilidades de respeito ao paciente no processo de morrer é a forma-

lização de certos tipos de assistência nas diretrizes antecipadas. Embora os debates

sobre a capacidade questionam se os pacientes ou sujeitos são capazes, psicologi-

camente e legalmente, de escolher decisões adequadas, as diretrizes antecipadas

permitem uma espécie de razoabilidade frente aos diferentes modos de assistência de

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vida. Já em relação aos pacientes que nunca foram capazes, porém, devem-se tomar

decisões em favor de seus melhores interesses.

É possível, portanto, indicar que a autonomia do paciente e o diálogo com os

profissionais da saúde e familiares são fundamentais para o exercício de um cuidado

respeitoso. Se a vida possui um valor intrínseco, a titularidade na recusa ou aceitação

de procedimentos fúteis deve ser repensada em nossos modelos de cuidado e respeito

frente ao prolongamento assistido.

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TRADUçõES

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A época da alta escolástica, por volta do século

XIII e começo do século XIV produziu grande quanti-

dade de grandes pensadores no ambiente da Europa

central, sobretudo em Paris. Essa época representou

um primeiro grande cume no empuxo das configura-

ções do pensamento da Antiguidade posterior. Seus

pensamentos tiveram longa repercussão, estendendo-

-se até o presente. Sem aqueles grandes precursores

é impossível pensar no humanismo, em Descartes,

Leibniz. Pertencem aos pais do espírito europeu em

geral, na maioria das vezes esquecidos.

Nessa idade de ouro do espírito surgiram inúme-

ros ensaios de pensamento extraordinários. Nesse

espaço de tempo não encontramos nada menos que

uma paisagem uniforme do espírito. Na base da mul-

tiplicidade extraordinária de formas está uma liber-

dade de espírito que é totalmente distinta de nossas

representações usuais de clichês sobre a Idade Média.

Da riqueza de formas do pensar dessa época,

tomamos, escolhemos um grande nome: Tomás de

Aquino. Poucos são os que se igualam a ele em im-

portância em sua época. Talvez Boaventura, o grande

franciscano, poderia ser um modelo contrastante de

mesmo nível. Mas quanto à amplidão da repercussão,

* Texto tirado de SCHULTZ, H. J. (ed.). Wer ist das eigentlich – Gott? München: Kösel, 1969, p. 145-152. Agradecemos à Kösel Verlag pela licença para publicação desse artigo.

Respostas da alta escolástica*

Bernard Welte

trad

uçõ

es

Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 5, n. 2, p. 111-118, jul./dez. 2012

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Tomás supera a todos seus contemporâneos. Por isso, para nossa tarefa de hoje,

tomamo-lo como grande modelo, mesmo que em certo sentido unilateral, do pen-

samento da alta Idade Média, como tal. Na conclusão de nossa reflexão deveremos

apresentar alguns pensamentos sobre consequências e efeitos notáveis do pensamento

tomista sobre Deus.

Assim, perguntamos: O que pensou Tomás de Aquino sobre Deus? Em suas obras,

lemos longos tratados sobre o que seja Deus. Esses tratados e seus pensamentos

apóiam-se em parte em enunciados da Sagrada Escritura, mas em grande parte

também apelam também para a mera razão. A separação que vai se delineando e

ao mesmo tempo a interpenetração de razão e fé pertencem às particularidades

próprias do pensamento tomista e em geral da alga Idade Média. A razão se tornou

consciente em grande medida de sua própria força, desenvolvendo-a, é claro que sob

o plano de fundo e no enquadramento da fé, porém dentro desse enquadramento

com autonomia notável. Sobre a base dessa elevação da razão no pensamento cristão

surgiram tratados abundantes e abrangentes, que encontramos nas obras de Tomás

de Aquino, tratados sobre a essência, o ser, os nomes de Deus etc. Esses levaram à

idéia, de modo algum totalmente injustificada, de que Tomás seria o pai de uma te-

ologia metafísica dotada de uma conceptualidade racional amplamente trabalhada.

Mas esse é apenas um dos aspectos do pensamento tomista sobre Deus.

Em contraposição a isso, na presente reflexão, deve-se chamar a atenção para

um aspecto totalmente distinto dentro da totalidade daquilo que pensa e diz Tomás

de Aquino a respeito de Deus. Esse outro aspecto é frequentemente deixado de lado.

Na mais famosa obra de Tomás, a Suma Teológica, ele expõe as cinco vias pelas quais

a razão humana pode, em sua opinião, alcançar o conhecimento de Deus. Na sequ-

ência imediata ao tratado sobre as cinco vias, ele apresenta um breve esboço sobre

o que se deve pensar então sobre a questão Deus. Ali, depois do conhecimento de

que Deus existe, conhecimento produzido pelo seguimento das cinco vias, restaria

perguntar de que modo Deus existe ou o que seria ele. A essa questão Tomás escreve

a frase relativamente lapidar: “E visto que, de Deus, não podemos saber o que ele

seja, mas o que ele não é, tampouco podemos considerar como ele é, mas apenas

como ele não é”. A negação aguda dessa frase está postada ali como um título e

um prefácio que precede uma longa série de questões e artigos, onde se aborda a

respeito de seu ser e sua essência. Todavia, esse prefácio mostra de antemão: Todos

esses tratados são pensados, no fundo, apenas negativamente. Todas as teses desen-

volvidas em seguida buscam apenas distinguir, e distinguir sempre de novo de outras

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abordagens. Dizem sempre apenas que Deus não é assim, e ele não é assim, ele não é

finito, e não é composto, e ele não é substância etc. Não dizem propriamente o que

seja Deus positivamente. Sim, se diz expressamente que isso de modo algum pode

ser dito. Desse modo, todas as teses e tratados, pela via da distinção e da negação,

apenas tocam o que não pode ser sabido e não pode ser pensado, ao qual ninguém

tem acesso e ninguém conhece.

Essa negatividade fundamental como característica dos enunciados possíveis a

nós sobre Deus é ainda fundamenta teoricamente e desenvolvida por Tomás de uma

maneira especial, a saber, através da tese “quod deus non sit in aliquo genere”, que

Deus não seria em modo algum. Tanto na suma teológica, quanto na suma contra os

gentios, essa tese é desenvolvida numa passagem decisiva. Nesta frase, quando se

fala de genera ou de modos, há que se pensar nas dez categorias da lista aristotélica

das categorias. As categorias são os modos do ser e os modos do enunciar. Na com-

preensão aristotélica aqui dominante, designam todos os modos como o ente é ou

pode ser. A intenção é que nomeiem o número completo dos modos de como esse

“para ser” pode advir a um ente. E uma vez que em todos os enunciados conceituais

o pensamento humano diz a cada vez ou busca dizer o que ou como é o ente, por-

que em todos os enunciados se atribui ser de acordo com o modo como advém ser,

assim os modos ou as categorias designam também os modos do atribuir o ser ou

os modos do enunciar conceitual no seu todo. Quando portanto, em relação a isso,

Tomás acentua e afirma com veemência que Deus não existe em modo algum, então

isso significa: o ser não advém a ele de nenhum modo. De onde, portanto, deveria

advir, quando ele já “é” o ser, anterior a todo advir? Se quisermos expressar isso de

forma aguda, temos de dizer: Deus não “é”, na medida em que “é” diz: o ser advém.

Mas a quem não advém ser não pode ser apreendido num enunciado conceitual. Isso

porque todo enunciar conceitual atribui ser como adveniente a um ente. É este o

sentido que tem o “é” da cópula. Por isso, nossa frase tomista de que Deus não seria

em modo algum diz também o seguinte: ele se encontra além do âmbito de todo

enunciado conceitual possível. É o inconcebível e o indizível. Acabamos retornando

a palavras negativas. Agora pela via que reflete sobre as categorias, isto é, sobre os

modos do ser, e assim, sobre os modos e a força do conceber e do enunciar em geral.

Significará isso, no sentido de Tomás, que Deus se encontra além do âmbito do

pensar e do âmbito da fala? Que pensar e falar não teriam motivos nem direito de

dirigir-se a ele? Nada menos que isso. Todavia, no sentido de Tomás, significa que

Deus se encontra além do âmbito do pensamento conceitual e dos modos de enunciar trad

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a ele subordinados. Mas existe ainda outros modos fundamentais de pensar, além

dos “modos” do enunciar conceitual. Vez por outra, Tomás aponta expressamente

para isso. Ele distingue entre pensar conceitual e pensar “que toca”. Assim, na Suma

Teológica, fazendo referência a Agostinho, ele diz: “É impossível para todo espírito

criado conceber a Deus, porém tocar a Deus com o espírito, seja como for que isso

se dê, é a máxima ventura”. Aquilo que jamais pode ser concebido, pode ser tocado

precisamente passando pela negatividade da inconcebibilidade e atravessando através

dela. Tocando o inconcebível, nosso espírito chega mais longe do que onde ele se

instala do conceber do concebível.

Nesse ínterim, Tomás ousa ainda dizer alguma coisa sobre o sentido positivo e o

conteúdo do tocar o inconcebível. Nesse contexto ele aponta simultaneamente para

duas coisas: No tocar o inconcebível encontra-se o sentido positivo de um sim e o

pensamento positivo de uma analogia.

Tocando com o espírito o mistério inconcebível e indizível, dizemos sim a ele nos

entregamos a ele com o ser, com o coração, com todo o espírito. Nesse sim, tomamo-

-lo como a realidade de toda realidade, além de todo conceber e também além de

toda confirmação particular e externa. Tomás aponta para isso, por exemplo, quando,

depois de ter discutido sobre as cinco vias que levam a Deus como o inconcebível, diz

que por essas vias podemos chegar ao conhecimento de que Deus existe. Mas jamais

poderemos saber o que ele é. O reconhecimento de que (dass), sem conceber o que

(Was): esse é a aceitação confirmadora da realidade além de todo conceito e de todo

enunciado. Tem esse sentido também quando, noutro contexto, Tomás diz que o ser

se é referido a Deus pelo pensar de dois modos. Uma vez referindo-se à realidade do

próprio ser, o actus essendi. Mas desse modo não poderíamos saber o ser de Deus.

Não poderíamos contemplar e conceber sua própria realidade nele mesmo. Mas, de

outro modo, diz Tomás, seria diria também a compositio propositionis quam anima

adinvenit coniungens praedicatum subjecto, a composição da proposição que a alma

encontra ligando o predicado ao sujeito. Desse modo, se diz aqui, poderíamos saber

sobre o ser de Deus. Isso quer dizer: O elemento confirmador, oculto na frase e que

vem à expressão na cópula como composição da frase, isso conduz para além de todo

conceber, mesmo que a forma da composição, do juízo e dos conceitos nada mais

diga para o inconcebível a ser concebido. O sim na forma do pensamento, além de

toda forma, tocando o inconcebível, conduz para a noite da negatividade.

No entanto, segundo nosso pensador, a noite da negatividade não é uma mera

noite. Onde o inconcebível é tocado no pensamento, e é afirmado no toque, ali quem

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toca está consciente de um conteúdo propriamente indizível e não do mero vazio

do retraimento, mas de um conteúdo imensurável que não se deixa apreender em

proposições, conceitos e imagens positivos, mas que pode ser tocado além deles a

atravessando por entre eles. É isso que quer dizer a idéia de analogia, tão discutida

e tão malcompreendida.

Segundo Tomás, a analogia radica-se não apenas no fato de Deus ser extra omne

genus, além de todo modo, mas de que ele é também, simultaneamente, principium

omnium generum, começo principiador de todos os modos. O começo de todo ente,

principiador e mantenedor do ser, da parte do começo supraconceitual e indizível

tem como consequência que se mostra algo dessa origem em tudo que é, isso é, se

concebe a partir da origem indizível. Do mesmo modo que ocorre com as obras de arte

de grandes mestres, cujo espírito deixam transparecer. Por isso, através das criaturas

pode-se olhar para o criador. Por isso, atravessando por entre as criaturas, pode-se

olhar para o criador, por isso pode-se trilhar as cinco vias, partindo das criaturas e

ultrapassando-as rumo a sua origem, por isso, nas formas do pensar que nascem

da compreensão finita e de sua submissão ao mundo finito, através dessas formas

pode-se olhar para o além de todas as formas finitas. E a partir daí, o pensamento

que toca tem seu conteúdo. Todas as coisas e todos os pensamentos mostram algo

do conteúdo de sua origem.

Mas o decisivo nesse pensamento da analogia que seu outro lado, seu lado deci-

sivo, o conteúdo do mistério da origem divina, não mais pode ser apreendido em si,

direta e positivamente. Visto a partir do ser finito tem um conteúdo indizível. É bem

verdade que os modos e formas do pensamento falam disso ao pensamento que

toca, mas o próprio conteúdo permanece no indizível. Assim o sim do toque não paira

suspenso no vazio. Mas, embora tocado, o plenificador (das Erfüllende) permanece

além das imagens e formas através das quais é tocado.

Por isso, Tomás pode dizer que se pode admitir que, de certo modo, todas as

criaturas são semelhantes com Deus, mas de modo algum se poderá admitir que

Deus seja semelhante com a criatura. Deus não foi formado segundo a criatura, mas

a criatura foi formada segundo Deus. Por isso, a partir da criatura é possível olhar

com o pensamento para a origem divina. Ali não olhamos para o vazio, mas para o

totalmente-outro, para o incomparável. Assim, a analogia, no sentido pensado por

Tomás, não é um ardil do pensamento para se apropriar de Deus no pensamento. Ao

contrário, ela é um caminho para o mistério além da plenitude de toda força e de

todas as possibilidades do conceber e do ter. trad

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Há ainda algo de importante para se acrescentar a esse complexo de pensamento,

se quisermos conceber bem e levar a sério a alta escolástica e especialmente Tomás

nas proposições sobre Deus. O que desenvolvemos brevemente é um pensamento

fundamental decisivo de Tomás. Todavia, Tomás não o desenvolveu até as últimas

consequências, e ali não é efetivo em todo lugar. Na alta escolástica ainda estamos

muito distantes de uma sistemática fechada de um Leibniz ou Kant ou Hegel. Nesse

pensamento está implícito paralelamente grande volume de pensamento, em parte

sem um bom equilíbrio. E o que interesse especialmente a nossa questão e a Tomás,

podemos percebe ali uma luta gigantesca do espírito no texto de Tomás, uma luta

que não foi totalmente exposta dentro desse texto. Ali, de um lado, temos o prazer

do conceber, a alegria na força e no jogo dos conceitos, as massas e formas da con-

ceptualidade da tradição presente no ambiente do tempo, toda a fase de juventude

da metafísica ocidental. Esse elemento é tão forte que, às vezes no texto de Tomás,

que inunda por longos trechos o grande enfoque sobre o que viemos conversando.

E assim, não é raro, ao ler o texto, termos a impressão de que às vezes Tomás es-

quece por completo aquilo que ele também diz, e em muitas passagens decisivas, e

o que aponta para além de toda essa metafísica conceitual juvenil e indisciplinada.

Não leva em consideração a luta do prazer dos conceitos com a força que se lança

para além de todo o conceber. Todavia, o mais importante é que, em meio a uma

poderosa corrente de espírito da história ocidental, mesmo que nem sempre, retorna

sempre de novo e precisamente nos pontos nevrálgicos decisivos de sua obra àquilo

que se contrapõe a essa corrente: um caminho para além de todo conceber, rumo

ao inconcebível, ao mistério.

A escola que deslanchou a partir dele e através da qual acabou se tornando o pai

da escolástica, da sabedoria escolar, esqueceu grande parte disso, aqui dentro porém

em sintonia com a corrente principal do espírito ocidental, cada vez mais dominante.

Há porém outro personagem que, apesar de ser noutro sentido, tem de ser contado

como pertencente à escola de Tomás, compreendeu precisamente isso e mergulho

completamente nessa tarefa reportando-se a Tomás. Trata-se do outro grande domi-

nicano posterior a Tomás de Aquino, Mestre Eckhart. Ele estruturou perfeitamente até

o extremo essa abordagem proposta brevemente por Tomás. Ele desenvolve o modo

do pensamento que toca para além de todo conceber. Tornou-se em seu pensamento

o modo do desprendimento (Abgeschiedenheit). Leva a sério o “além de todos os

modos”, e permite desfazer-se de imagens, figuras e determinações do pensamento,

por último inclusive a imagem e a determinação de pensamento chamada “Deus”. Ele

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mergulha no sem-modo, no nada, no deserto de Deus e, mesmo assim, está seguro

de seu caminho.

Nisso, ele se mostra um grande tomista, um tomista diferente, frente à escola e

à escolástica. Desdobrou o maior e mais oculto pensamento de Tomás na pergunta

“Quem é isto – Deus?”num tal coerência que pode até assustar e que seguramente

Tomás não conheceu. Ali ele elaborou por vez primeira, e até o fim, e tornou visível essa

abordagem. Para Mestre Eckhart isso teve como consequência que seu pensamento

provocou confusão na cristandade e ele acabou envolvido num processo. Todavia, em

relação à questão que nos acossa hoje, “quem é isso, propriamente, Deus?”, ao que

parece, ele é mais digno de ser pensado do que nunca. Ele e também aquele “outro”,

Tomás de Aquino, onde ele se radica, e sobre quem falamos.

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RESENHAS

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ideas sin fronteras en lós limites de las ideas (Ideias sem fronteiras nos limites

das ideias) - Scholastica Colonialis: Status quaestionis. PICH, Roberto Hofmeifster;

PULIDO, Manuel Lázaro; CULLETON, Alfredo Santiago (Eds.).

Cáceres, Espanha: Instituto Teológico San Pedro de Alcántara de Cáceres (UPSA),

2012.

Prof. Léo Peruzzo Júnior*

A harmonização da relação entre fé e razão constitui o núcleo do pensamento

escolástico. Se os gregos inauguraram uma reflexão sobre a racionalidade, os me-

dievais aprofundam a temática a partir da restauração da razão pela fé. A marca do

pensamento escolástico é, sem dúvida, a construção de uma filosofia de vida, na qual

o homem grego torna-se pessoa a partir da Revelação cristã.

A obra Ideas sin fronteras en lós limites de las ideas – Scholastica colonialis: status

questiones (2012), faz parte da investigação realizada por diversos pesquisadores

sobre a recepção e o desenvolvimento da Escolástica Barroca na América Latina, entre

os séculos XVI a XVIII. A publicação é resultado de uma integração internacional, a

qual incluiu cinco equipes de trabalho: Brasil (PUCRS e UNISINOS), Chile (PUC-Chile),

Peru (PUC-Peru), Portugal (Gabinete de Filosofia Medieval, Universidade do Porto) e

Espanha (Universidade de Salamanca).

Entende-se, segundo a exposição da obra, que o pensamento filosófico colonial é

“barroco”, formando a denominada “Escolástica Barroca”. A reflexão filosófica, que

tem sua gênese nas universidades da Península Ibérica (Salamanca, Alcalá de Henares,

Coimbra e Évora), forma os intelectuais que serão referências nas recém fundadas

universidades coloniais da América (México, Chile, Equador, Argentina, entre outros).

* Doutorando em Filosofia. Professor nos cursos de Filosofia, Direito e Administração na FAE – Centro Universitário Franciscano do Paraná, Curitiba, Paraná. E-mail: [email protected] re

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Dessa forma, as tendências da “Escolástica Barroca” compartilham, entre suas teses, o

espírito das obras de Tomás de Aquino, o ideal de reforma interna da Igreja Católica, a

oposição ao humanismo radical, uma reação crítica entre as ciências e o pensamento

teológico e, por fim, a descoberta de um “novo mundo” e de uma nova antropologia.

A partir de uma apresentação minuciosa, a publicação do presente estudo sig-

nifica uma retomada das questões fundamentais da filosofia clássica. Não é apenas

destinada a um público seleto, mas a todo público interessado na investigação das

raízes do pensamento medieval, especialmente por tratar da relação entre Europa e

América. Uma das teses centrais, portanto, na qual o leitor poderá desfrutar, é o fato

de que os dez capítulos permitem ver a filosofia como um exercício constante pela

superação de seus limites, porém, agora conectada com o pensamento teológico. A

indicação do recebimento da Escolástica no Brasil, por exemplo, pode ser encontrada

em Manuel de Nóbrega (1517-1570), diretor geral dos jesuítas no novo Mundo, no

escrito Diálogo sobre a conversão dos gentios (1557), no qual pergunta-se sobre a

possibilidade de existência da alma nos índios.

O mérito da obra está no resgate da Escolástica por meio de seus expoentes en-

tre o pensamento barroco do “Novo Mundo”. Aproximando temas da investigação

filosófico-historiográfica a autores como Mauricio Beuchot, Jerónimo Valera, Alfonso

Briceño, Francisco de Vitoria, entre outros, a obra revela a preciosidade da construção

de uma parte do pensamento contemporâneo. Por essa razão, o desenho da filosofia

Escolástica só pode ser compreendido quando se visualuza seus verdadeiros, ou des-

conhecidos, pintores. E, por fim, Ideas sin fronteras en los límites de las ideas permite

compreender o pensamento escolástico além dos limites territoriais.

A Escolástica Barroca torna-se, portanto, a chave interpretativa para mensurar

os méritos e limites na construção da filosofia colonial, sem a qual o pensamento

filosófico poderia tornar-se vazio e obscuro.

Como ler os pré-socráticos. AGOSTINI, Cristina S.

Editora Paulus, São Paulo, 2012

Rafael Gomes da Silva

Clareza e elucidação são as palavras que a autora Agostini prioriza para a leitura

de sua obra. De uma didática impressionante a cada capítulo, contendo nos textos

perguntas que se relacionam com o conteúdo ao contexto do leitor. A autora usa de

Resenhas

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recursos como: pequenos quadros que resumem os conceitos principais e algumas

obras de arte que ilustram e retratam a época. Seu livro é uma introdução ao pen-

samento dos primeiros filósofos, destinado ao leitor de primeira viagem ao universo

da filosofia.

O livro contém 59 páginas, quatro capítulos de fácil memorização, conclusão e um

quadro cronológico dos pré-socráticos. A uma publicação da Editora Paulus, São Paulo.

Agostini comenta, na apresentação do livro, que era por meio de histórias que

os gregos transmitiam o conhecimento acerca de suas origens. A explicação sobre

o mundo e os valores humanos se constitui na fonte de uma educação para a qual

a religiosidade e as virtudes guerreiras eram essenciais na integral formação do ho-

mem. O cenário da antiguidade grega compunha-se do saber popular, das narrativas

míticas (tramas teatrais) e por eles conferiam elementos para o desenvolvimento da

democracia ateniense.

Dos quatros capítulos de seu livro, o primeiro se destina ao tratamento das nar-

rativas homéricas, mostrando de que modo o saber mítico se elabora, constituindo-

-se igualmente em fonte indispensável para o surgimento da filosofia; o segundo

capítulo coloca em questão o porquê os pré-socráticos tradicionalmente são ligados

às pesquisas naturais, e de que modo tais pesquisas divergem do conhecimento

mítico tradicional; o terceiro capítulo intitulado A velha oposição entre mito e filo-

sofia, que tem como intenção considerar em que consiste a racionalidade do mito

e a racionalidade filosófica, mostra que, talvez, possamos encontrar mais pontos de

convergência do que de distanciamento entre elas, e que ambas são indispensáveis

para a constituição do saber humano; e o ultimo capitulo trata da repercussão dos

pré-socráticos na filosofia sequente, nas interpretações dos contemporâneos e toda

criticidade e desvalorização de outros filósofos.

Diante de qualquer retomada que for feita, é preciso ter em mente que os pré-

-socráticos são considerados os primeiros homens que efetivamente filosofaram,

precisamente porque, acima de tudo, questionaram as crenças populares sobre os

mitos. É notável que os mitos ainda estão entre nós! Atualmente de modo diferen-

te, como a mídia impressa e televisiva, que forma a consciência e agencia conceitos

como a beleza humana, como uma espécie contemporânea de mitologia. É nisso

que a filosofia exercita sua função primordial, a exemplo de Tales de Mileto e demais

filósofos coetâneos, que questionam, contestam e ouvindo de todos os lados sobre

o que compõe uma verdadeira discussão sobre o mundo, abordam questões simples

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sobre nossa existência em relação a religião, a sociedade e a felicidade com caráter

filosófico.

Refutação. VLASTOS, Gregory; EIXSAUT, Monique (coord. Marcelo P. Marques).

Editora Paulus: São Paulo, 2012.

Abre a coleção Contraposições: Diálogos filosóficos – o objetivo da coleção é

publicar artigos que defendam posições opostas em relação a questões filosóficas

fundamentais, coordenada pelo Prof. Marcelo Pimenta Marques UFMG.

Refutação contém a tradução de dois artigos sobre o tema do livro. Um apresenta

a posição de Gregory Vlastos, que se tornou clássica, e o outro, a da pesquisadora

francesa Monique Dixsaut, que é mais recente.

Além de ser uma contribuição teórica sobre o tema, o presente trabalho é um

exemplo prático de refutação filosófica: Palavra falada, habitada pela escuta, capaz

não só de libertá-la, reconhecendo suas insuficiências e contradições, mas também

de participar do processo inventivo de sua elaboração.

“O objetivo é oferecer uma coleção de alto nível acadêmico, em língua portuguesa,

de modo estimulante e crítico, capaz de atrair o interesse tanto de professores como

de alunos e que, enquanto alimento para o debate, sirva de material de pesquisa e

de formação”.

Refutação inicia uma série de outros volumes já em preparação, com traduções

feitas por alunos e professores de filosofia. Os próximos temas abordados serão:

sofistas, imagem, ser, escrita, Sócrates e teoria das idéias.

Natureza humana em movimento – Ensaios de antropologia filosófica.

SGANZERLA, Anor; VALVERDE, Antonio José Romera; FALABRETTI, Ericson (orgs.)

Editora Paulus: São Paulo, 2012.

O homem é um dos principais temas da filosofia. Pensadores de todos os tempos

refletiram acerca dele como o animal mais diferenciado da natureza, seja pela inteli-

gência, seja pela linguagem, seja pelos sentidos.

O livro apresenta 36 textos que discutem antropologia a partir de grandes pen-

sadores clássicos, como Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Rousseau, Hegel, Kant,

entre muitos outros.

Resenhas

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Cada artigo foi escrito por um diferente pesquisador, com o objetivo de aproximar

a filosofia das diferentes ciências intimamente ligadas ao discurso filosófico sobre o

homem: Direito, psicologia, sociologia, pedagogia, teologia são apenas algumas delas.

“O grande mérito desse livro é explicitar as propostas fundamentais de reflexão

filosófica sobre o ser humano que se articularam no pensamento ocidental. A filosofia

vive fundamentalmente do diálogo crítico recíproco entre suas diversas propostas,

na busca de formas cada vez mais adequadas para a realização de seu objetivo. Este

livro fornece precioso material para a realização dessa tarefa no que diz respeito ao

saber do ser humano sobre si mesmo”, afirma Manfredo A. de Oliveira, no prefácio.

Algumas indagações como “O que define o homem?” e “Existe um a priori que

deve ser buscado como a chave explicativa da natureza humana, ou, ao contrário,

o homem pode ser compreendido apenas pela sua condição no mundo?” são um

convite à reflexão sobre esse antagonismo, fonte de inspiração para muitas teses fi-

losóficas. Porém, este trabalho não tem a pretensão de dar respostas definitivas, mas

sim apresentar os principais pensadores que enfrentaram o problema, orientando o

leitor a construir a sua própria resposta.

O livro faz parte da coleção Filosofia, composta de mais de 30 títulos sobre os

mais variados temas estudados pela disciplina, tais como história da filosofia, filoso-

fia da religião, metafísica: curso sistemático, filosofia da comunicação, entre outros.

10 lições sobre Hannah arendt. OLIVEIRA, Luciano.

Editora Vozes, Petrópolis, 2012, 141 p.

Arnaldo Cesar Rocha*

Léo Peruzzo Júnior**

O pensamento de Hannah Arendt (1906-1975) encontra-se entre aqueles mais

significativos da filosofia do século XX. Uma filosofia que pretende ser uma chave de

leitura para a compreensão do homem e da decadência dos sistemas políticos. Na obra

Origens do Totalitarismo, Arendt afirma que “o anti-semitismo (não apenas o ódio

* Aluno do 3° ano de Filosofia da FAE - Centro Universitário Franciscano do Paraná.E- mail: [email protected]** Professor dos cursos de Filosofia, Administração e Direito da FAE – Centro Universitário Franciscano do Paraná. Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal da Santa Catarina – UFSC.E-mail: [email protected] re

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aos judeus), o imperialismo (não apenas a conquista) e o totalitarismo (não apenas

a ditadura) – um após o outro, um mais brutalmente que o outro – demonstraram

que a dignidade humana precisa de nova garantia, somente encontrável em novos

princípios políticos e em uma nova lei na terra, cuja vigência desta vez alcance toda

a humanidade, mas cujo poder deve permanecer estritamente limitado, estabelecido

e controlado por entidades territoriais novamente definidas”. Assim, a reflexão de

Arendt avança nas sendas do considerado século da escória, onde serão cometidas

as piores violências ao gênero humano, especialmente na perseguição ao povo judeu.

Na obra 10 Lições sobre Hannah Arendt (2012), publicada pela editora Vozes,

Luciano Oliveira apresenta-nos, por meio de um estudo introdutório, alguns dos

temas mais relevantes ao longo da trajetória acadêmica de Arendt. De forma clara

e objetiva, o livro possibilita aos iniciantes em filosofia, e aos já apaixonados por

tal questão, conhecer a reflexão da autora sobre temas como a condição humana,

o totalitarismo, a vida política, a vida no espírito, entre outras questões. As lições

apresentadas na obra não são regras para o comportamento moral, mas trilhos que

instigam a percorrer os múltiplos caminhos da autora em seus textos: proporcionar

a reflexão. Segundo Arendt, a reflexão sobre a vida ativa é uma das únicas formas

de pensar nossa condição humana.

Na introdução do livro, Oliveira expõe o cenário biográfico de Hannah Arendt,

destacando a vida que levou como judia assimilada ou errante. Apresenta também que

o eixo central da discussão da filósofa foi motivado pela relação de sua experiência

política com o surgimento do totalitarismo. O fenômeno totalitário, na compreensão

de Arendt, forjou o pensar e a condição humana, instaurando sobre o contexto social

a dominação e o terror. É por essa razão que a filosofia de Arendt quer resgatar o

sentido da condição humana, uma vez que esta não pode ser pensada isoladamente

da condição política em que o homem se encontra.

Como uma espécie de “agulha filosófica”, Luciano Oliveira costura a trama que

compõe os escritos de Arendt. E, sem perder a profundidade, destaca que o labor de

Arendt é compreender de que forma o fenômeno totalitário se configura como um

evento sem precedentes na história política ocidental. O totalitarismo não elimina

apenas os instrumentos e categorias morais, mas é tão dramático que faz o ser hu-

mano entrar em colapso, utilizando da ideologia e da propaganda para difundir-se

entre a massa.

Especialmente a lição 8, intitulada A banalidade do mal: Eichmann em Jerusalém,

Oliveira resgata peculiaridades da obra de Arendt, mostrando que a banalidade não

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é a personificação de algo individual, mas resultado do esvaziamento moral tanto

dos funcionários nazistas quanto da máquina estatal totalitária. A banalização do

mal se configura, por sua vez, na forma natural com que as leis, criadas pelo Estado,

sentenciaram à morte e à fila das câmaras de gás milhares de pessoas inocentes. Par-

tindo dos argumentos de Arendt, aponta que a ação, fruto da vita activa, não pode

permitir a diluição do homem moderno.

Sem dúvida o trabalho de Luciano Oliveira, 10 Lições sobre Hannah Arendt, é

destinado àqueles que buscam a compreensão da condição humana partindo de

um olhar sobre si próprios, que, nos dizeres de Arendt, deve associar-se a uma vida

pública: “Viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, estar privado

de coisas essenciais a uma vida verdadeiramente humana”. Assim, a fragilidade dos

assuntos humanos depende não do isolamento, mas da constante reflexão (ação)

sobre nosso modo público de viver, onde acontece a verdadeira bíos politikos.

NIETZSCHE, Friedrich W. além do bem e do mal

Editora Vozes, 2º edição. Petrópolis, 2012

Caio Natan A. Santos

Uma excelente tradução do professor Mário Ferreira dos Santos, onde ficam claras

sua fidelidade com o texto original e a sua coragem em lançar-se em tal empreitada,

alcançando enorme sucesso em sua resolução.

Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), um dos filósofos mais buscados do

século XX e neste início do século XXI, com uma escrita fortemente erudita e repleta

de imagens metafóricas, nos conduz a uma busca altamente delicada “Além do Bem

e do Mal”. Escrito na mesma época que Assim falava Zaratustra, uma de suas maiores

obras, que de certa forma ainda mostra algum derrame de bondade, já aqui se mostra

realmente acima, com uma ótica superior a pré-julgamentos como o bem e o mal.

Nietzsche foi um dos maiores críticos da sociedade moderna européia e prin-

cipalmente alemã e, nesta obra, também demonstra isso com grande sagacidade:

“Graças à aversão morbosa suscitada e mantida ainda pelo delírio nacionalista entre

os povos da Europa; graças aos políticos de vista curta e mãos grandes, os quais, em

virtude de tal aversão, estão no auge, e nem sequer pressentem que sua política é

uma política de entreato”.

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O livro está escrito em aforismas e dividido em nove partes assim elencadas: pre-

conceito dos filósofos, o espirito livre, a essência religiosa, aforismas e intermédio,

para a história natural da moral, nós os sábios, povos e pátrias e, por fim, que é o

aristocrático?

Este convite de buscar um olhar além de uma moral que determina e julga as

coisas com valorações de bem ou de mal é entusiasmante e repleto de vigor. “Aqui,

a vista é livre, o espírito elevado”, de fato, com sua ousadia e vivacidade, Nietzsche

nos convida e conduz a essa nova ótica, que nos liberta do jugo moralista e nos en-

caminha a nos tornarmos nós mesmos.

100 obras-chave de Filosofia. CAMUS, Sébastian et al. Trad. de Lúcia Mathilde

Endlich Orth.

Editora Vozes, Petrópolis, 2012.

Prof. Léo Peruzzo Júnior*

Bertrand Russell, depois de ter se interessado pela lógica e pela filosofia da ma-

temática, volta-se exclusivamente para a ‘ciência’, cuja tarefa consiste num exercício

libertador das nossas crenças fundamentais: a filosofia. Na obra Os problemas da Filo-

sofia, Russell compreende que nossos conhecimentos são dependentes de justificativas

baseadas em descrições e inferências. Já Pierre-Félix Guatarri e Gilles Deleuze, em O

que é a Filosofia?, indicam que “a filosofia é devir, não história; ela é a coexistência

de planos, não sucesso de sistemas”. A Filosofia, segundo Guatarri e Deleuze, é a arte

da criação dos conceitos, da edificação da racionalidade, dos pensamentos criadores.

Os textos de Russell, Guatarri e Deleuze compõem uma seleta indicação de obras

que fazem parte de 100 Obras-chave de Filosofia, organizado por Sébastian Camus,

Mathilde Chedru, Jean-Marc Durand-Gassselin, Haund Gueguen, Eva Munoz, Fréderic

Porcher e Delphine Weber, conceituados professores de filosofia de Universidades

europeias. A obra, que apresenta um panorama completo dos principais textos de

filosofia, desde a antiguidade até nossos dias, é guia para estabelecer um primeiro

contato, facilitando, assim, o pensamento e as reflexões de cada autor.

* Professor dos Cursos de Filosofia, Administração e Direito do Centro Universitário Franciscano do Paraná – FAE. Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. E-mail: [email protected]

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Escrita com uma estrutura clara e objetiva, a obra 100 Obras-chave de Filosofia

destaca o contexto histórico e as problemáticas essenciais de cada autor, bem como

conceitos-chave que são indispensáveis para o aprofundamento da atividade filosófica.

As obras encontram-se em ordem alfabética, contendo fichas organizadas em quatro

rubricas: referências, problemática, teses essenciais e conceitos.

As obras de Filosofia, apresentadas neste precioso e objetivo trabalho, partem da

filosofia antiga, com Platão e Aristóteles, cruzam o período medieval e moderno, com

Agostinho, Maquiavel e Rousseau, entre outros, e perpassam a contemporaneidade

do século XX com Heidegger, Sartre, Popper e Foucault. A estrutura didática, sem

dúvida, é a marca fundamental para o leitor interessado em ingressar nas leituras do

edifício filosófico.

Da mesma forma que afirma Platão, em Alcebíades, que o homem político é

virtuoso porque propaga a virtude entre os cidadãos, a obra 100 Obras-chaves de

Filosofia destina-se a difusão da virtude filosófica como capacidade de interpretação e

integração com a história da filosofia por meio dos textos apresentados. Não é apenas

um manual, mas um recurso fundamental para os amantes do pensamento filosófico.

Filosofia à sombra de auschwitz – Um dueto com Adorno. MUELLER, Enio R.

Editora Sinodal/Faculdades Est. São Leopoldo, 2009.

Sobre o autor. Doutor em Teologia pela Fac. Est, de S. Leopoldo e doutor em

filosofia pela PUCRS, com pós-doutorado nas universidades de Munique e Erlangen,

Professor das Fac. Est desde 1996.

O livro contém 262 páginas e busca estabelecer um diálogo com Adorno a respeito

de sua filosofia e das possíveis aplicações da mesma para o nosso tempo. Tomando

o mote principal das reflexões de Adorno, a experiência de Auschwitz para o povo

judeu, o autor apresenta um resumo da filosofia adorniana estabelecendo um para-

lelo da mesma com a situação atual e mais próxima. Para Adorno, “a experiência de

Auschwitz cria como que um centro vazio ao redor do qual o pensamento gira, em

sempre novas constelações conceituais, na busca de dizer o impossível de ser dito”.

De Auschwitz projeta-se uma sombra. O autor afirma que para compreender o pen-

samento de adorno é preciso dar-se conta de que se vive sob essa sombra.

O acontecimento de Auschwitz não se resume ao fato em si. É resultado de um

processo histórico de longa data e não se esgota tampouco no fato, estende-se até

os dias atuais. rese

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Por isso a filosofia de adorno é filosofia da história, historiografia crítica. Adorno

procura raízes desse fenômeno no passado. O primeiro pilar da ponte do passado

com Auschwitz está no Esclarecimento. Ele abrigava esperanças, no momento des-

cartadas e esquecidas. O segundo vai até o momento presente. O terceiro momento

prioriza a esperança.

Assim, Auschwitz se mostra como a experiência espiritual de uma época, de uma

geração, sim, da própria humanidade na história. O terceiro mundo também, ao

pensar, está sob essa sombra.

É sob essa tonalidade lúgubre que o autor compõe sua melodia em cinco “movi-

mentos”: 1. analisa o programa filosófico de Adorno; 2. o movimento entre a noção

de interpretação e de hermenêutica; 3. buscando afinação com Ernst Bloch, a filosofia

de Adorno se mostra como hermenêutica da (des)esperança; 4. movimento que vai

da esperança à desesperança e o 5. vai da desesperança à esperança.

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