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Organização: Eduardo Lopes Piris Moisés Olímpio-Ferreira DISCURSO E ARGUMENTAÇÃO EM MÚLTIPLOS ENFOQUES Coleção contradiscursos

sediar.comsediar.com/pdf/Discurso_e_Argumentação_Ebook.pdf · 4 DISCURSO E ARGUMENTAÇÃO EM MÚLTIPLOS ENFOQUES Ficha técnica Título: Discurso e Argumentação em múltiplos

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Organizao:Eduardo Lopes Piris

Moiss Olmpio-Ferreira

DISCURSO E ARGUMENTAOEM MLTIPLOS ENFOQUES

Coleo contradiscursos

Organizao:Eduardo Lopes Piris

Moiss Olmpio-Ferreira

DISCURSO E ARGUMENTAOEM MLTIPLOS ENFOQUES

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DISCURSO E ARGUMENTAO EM MLTIPLOS ENFOQUES

Ficha tcnica

Ttulo: Discurso e Argumentao em mltiplos enfoques

Organizao: Eduardo Lopes PirisMoiss Olmpio-Ferreira

Conselho EditorialGalia Yanoshevsky (Bar-Ilan University, Israel)Helson Flvio da Silva Sobrinho (Universidade Federal de Alagoas)Iraneide Santos Costa (Universidade Federal da Bahia)Mara Alejandra Vitale (Universidad de Buenos Aires)Marie-Anne Paveau (Universit Paris 13)Maurcio Beck (Universidade Estadual de Santa Cruz)Paulo Roberto Gonalves Segundo (Universidade de So Paulo)Rosalice Botelho Wakim Souza Pinto (Universidade Nova de Lisboa)Rubens Damasceno Morais (Universidade Federal de Gois)

Capa: Grcio Editor

Coordenao editorial: Grcio Editor

Design grfico: Grcio Editor

1 edio: junho de 2016

ISBN: 978-989-8377-93-7

Grcio EditorTravessa da Vila Unio, 16, 7. drt3030-217 COIMBRATelef.: 239 084 370e-mail: [email protected]: www.ruigracio.com

Reservados todos os direitos

Sumrio

Apresentao ................................................................................................7Rui Alexandre Grcio

Da epistemologia racionalidade retrica: a argumentao na sua condio civil ......................................................11Rui Alexandre Grcio

Retrica e sociedade: a valorizao da multidimensionalidade..............27Moiss Olmpio-Ferreira

Acerca do estatuto da techne da Retrica.............................................43Christiani Margareth de Menezes e Silva

Destinatrios internos, destinatrios externos: o gnero apologia .........61Jacyntho Lins Brando

A Anlise do Discurso contra a Retrica: demolindo mitos e deuses......73Melliandro Mendes Galinari

Retrica e argumentao na teoria semiolingustica que praticamos ....99Ida Lucia Machado

Pour une analyse discursive et argumentative de la polmique ...........113Ruth Amossy

Retrica e transgresso: o discurso de Angela Merkel para o parlamento de Israel..............................................................129Eliana Amarante de Mendona Mendes

Conexo e argumentao: reflexes sobre o ensino..............................151Janice Helena Chaves Marinho

Capacidades argumentativas de professores e estudantes da educaobsica em discusso .........................................................................167Isabel Cristina Michelan de Azevedo

O direito argumentao no contexto escolar ....................................191Soraya Maria Romano Pacfico

A retrica do grito: dos sussurros e dos gestos no teatro tico..............213Tereza Virgnia Ribeiro Barbosa

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Les lettres dEmilie du Chtelet Maupertuis ...................................229Jrgen Siess

As emoes e sua implicao na construo argumentativa ................241Helcira Maria Rodrigues de Lima

Paixes e posies ideolgicas nos discursos jornalsticos sobre o golpe de Estado brasileiro de 1964.........................................261Eduardo Lopes Piris

DISCURSO E ARGUMENTAO EM MLTIPLOS ENFOQUES

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APRESENTAO

O presente volume um bom exemplo da vitalidade que os estudos dodiscurso, da argumentao e da retrica tm hoje no Brasil. Nele podemosidentificar uma saudvel postura de pluralismo terico e metodolgico,consonante com uma viso multidimensional deste domnio de estudos.

Com efeito, esta atitude de abertura que caracteriza o genuno espritode pesquisa, tem-se tornado patente no modo como os organizadores destevolume Eduardo Lopes Piris e Moiss Olmpio-Ferreira vm dina-mizando, junto da comunidade cientfica nacional e internacional, e com apreciosa colaborao de uma equipe de investigadores e colaboradores dediversos pontos do mundo, a reflexo e a produo cientfica nesta rea depesquisa. De entre as vrias iniciativas a que se encontram ligados os orga-nizadores deste livro, duas no podem deixar de ser realadas: a publica-o de EID&A Revista Eletrnica de Estudos Integrados em Discurso eArgumentao, iniciada em novembro de 2011 e a caminho seu dcimonmero, e a realizao, de dois em dois anos, do SEDIAr SeminrioInternacional de Estudos sobre Discurso e Argumentao, com a sua ter-ceira edio em 2016.

No que diz respeito revista EID&A, ela tornou-se uma publicao dereferncia para os estudiosos do discurso e da argumentao e tem sidoresponsvel no s por um crescendo qualitativo da produo cientficacomo, tambm, pela traduo e essencial divulgao de textos e autores dereferncia neste campo de estudos.

Quanto ao SEDIAr, ele tem dado uma dimenso internacional aos tra-balhos desenvolvidos, promovido interlocues fecundas e criado uma redede grande valia e vitalidade em termos de pesquisa. Tendo sempre emmente a multidimensionalidade, a fecundidade e a importncia para a vidasocial e para as prticas de cidadania, a realizao dos seminrios feitasob o signo da multiplicidade e da pluralidade de perspectivas, consti-tuindo-se assim como um mpar momento de enriquecimento para quemnele participa.

O presente volume resulta da realizao do II SEDIAr, que ocorreu emBelo Horizonte, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), emnovembro de 2014. Nele se renem os textos das conferncias que a foramproferidas e posteriormente preparadas para esta publicao. Pela riquezae diversidade que apresentam poder o leitor ajuizar sobre a valia destelivro. Aqui fica um breve sobrevoo por cada um dos textos que o compem.

Rui Alexandre Grcio perspectiva diacronicamente os atuais desenvol-vimentos epistemolgicos da retrica e da argumentao tendo em conside-

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rao trs momentos: o da refundao, o da proliferao e o dos impasses edas rupturas. Questiona a unidade paradigmtica do campo de estudos daretrica e da argumentao e ilustra algumas das incomensu ra bilidades queo continuam a atravessar. Prope, por fim, uma perspetivao ps-discipli-nar da argumentao retrica que enfatiza a sua transversalidade social efilosfica e a devolve a sua condio civil.

No seu artigo, Moiss Olmpio-Ferreira caracteriza os fenmenos ret-rico-argumentativos como sociais, complexos e multidimensionais. Destaca,alm do mais, que eles no so susceptveis de serem compreendidos atra-vs de modelos tericos lineares que os dissociem dos mecanismos prticosda escolha, os quais so solidrios quer do exerccio interativo da liberdadehumana, quer da articulao negociada entre possvel e prefervel.

Christiani Margareth de Menezes e Silva prope ir em busca do esta-tuto da techne retrica no contexto dos primeiros gregos que sobre ela refle-tiram, comeando pelos sofistas, passando por Scrates e Plato eacabando em Aristteles e na sua proposta de uma retrica filosfica.

Jacyntho Lins Branda o prope-nos um ensaio sobre o gnero apolo-gia, colocando a questo da duplicidade dos destinatrios a quem ele sedirige. Se, num primeiro olhar, os destinatrios externos poderiam ser osmais evidentes, o autor reala contudo que este discurso qual pregaoa convertidos adquire uma importante funo epidctica cujo efeito ode provocar um reforo junto dos destinatrios internos.

Melliandro Mendes Galinari faz do seu texto um lugar de questiona-mento das relaes entre a anlise do discurso e a retrica, pondo em causacertos axiomas das narrativas fundadoras da AD francesa nos quais a ret-rica de matriz sofstica acaba sendo indevidamente desconsiderada. Parao autor, o que mais importa levar a srio a ideia de que a retoricidade inerente linguagem e, se o fizermos, ento concluiremos que o campo daAnlise do Discurso o mesmo velho campo da Retrica.

No seu artigo, Ida Lucia Machado trata das relaes entre uma dascorrentes da Anlise do Discurso (a Teoria Semiolingustica da Anlise doDiscurso, de Patrick Charaudeau) e as teorias retrico-argumentativas dalinguagem. Mostra a autora que a argumentao e a retrica foram pro-gressivamente ocupando um lugar de maior importncia na teorizao deCharaudeau e pe em evidncia em que medida a retrica se reveloufecunda para a elaborao da uma abordagem discursiva das emoes, aqual se revela fundamental para a anlise das narrativas de vida.

A reflexo proposta por Ruth Amossy incide sobre a natureza e funesdo discurso polmico. Como funciona o discurso polmico no espaopblico? Se, de fato, ele no conduz a acordos, e se acentua, sobretudo, odissensus, nem por isso ele um dilogo de surdos ou deixa de cumprir a

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funo epidctica de reforar posies j existentes, consolidar identidadesgrupais e, desse modo, preparar e contribuir para aes futuras. Nesse sen-tido ele cumpre uma funo social essencial numa sociedade democrticaque acolhe a coexistncia no dissensus.

Eliana Amarante de Mendonca Mendes dedica o seu texto anlise deum discurso proferido em 2008, por Angela Merkl, perante o parlamentode Israel. Servindo-se do quadro analtico proporcionado pela retrica cls-sica e considerando que o discurso poltico por natureza transgressivo, aautora assinala o impacto e o significado de determinadas estratgias ret-rico-argumentativas e coloca o problema das falcias no discurso.

Partindo da ideia de que os conectores no so apenas elementos deencadeamento discursivo, mas desempenham tambm uma funo argu-mentativa, Janice Helena Chaves Marinho procede a uma anlise de duasexpresses do portugus brasileiro frequentemente usadas em textos jor-nalsticos: seja como for e na verdade. A autora mostra, atravs de suasanlises, de que forma as referidas expresses imprimem um vis persua-sivo aos textos de opinio.

O artigo de Isabel Cristina Michelan de Azevedo aborda a noo decapacidades argumentativas capacidades que, segundo os programasoficiais de ensino, fundamental promover. A autora procura elucidar osignificado terico e conceptual dessa noo, indagando tambm pelosmeios prticos que a permitem operacionalizar em contexto de ensino. Con-clui, por um lado, que o suporte terico em torno da ideia de capacidadesargumentativas algo vago, oscilante e insuficiente e, por outro lado, queisso mesmo se reflete, com muito raras excees, na escassez de propostasespecficas de atividades didtico-pedaggicas dirigidas ao desenvolvi-mento das capacidades argumentativas de professores e de alunos.

Ao perspectiv-la como direito social e humano, Soraya Maria RomanoPacfico enquadra a argumentao no contexto escolar como uma prticaque deveria servir para nos afastar do tradicional discurso do mestre epromover a emancipao dos indivduos, incentivando o aparecimento nosalunos de uma voz prpria, participativa e cidad. O problema que, nasua qualidade de Aparelho Ideolgico de Estado e com todo um aparelha-mento didtico impositivo (os manuais escolares, por exemplo), a escolaacaba, segundo a autora, por se produzir o seguinte paradoxo cria-se noaluno a iluso de que ele aprende sobre argumentao; todavia, ele noest autorizado a pratic-la.

Tereza Virgnia Ribeiro Barbosa traz-nos temtica da retrica do grito,procurando encontrar caminhos para situaes atuais de crise a partir dosensinamentos da tragdia tica. Estabelece assim uma ponte entre pas-sado e contemporaneidade, fazendo da histria e do seu legado lugar de

APRESENTAO

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um dilogo fecundo para a compreenso do humano, seus afetos e seu modode construir o destino.

Ju rgen Siess dedica o seu ensaio ao gnero epistolar, um gnero queconsidera nico, no s quanto s potencialidades dinmicas que tem sobreo destinatrio como, tambm, quanto s possibilidades variadas que ofe-rece para construir uma imagem de si. No caso concreto, o autor mostracomo, atravs da sua correspondncia com Maupertuis, e numa poca emque as mulheres no eram bem vistas na Academia cientfica, Mme duCha telet consegue criar uma imagem de exceo atravs da qual a pari-dade filosfica e intelectual entre homens e mulheres afirmada.

Como indica o ttulo do seu artigo, Helcira Maria Rodrigues de Limadedica-se, num primeiro momento, a olhar para alguns quadros tericos noenquadramento que estes fazem da questo das emoes e, num segundomomento, estuda a presena das emoes no discurso argumentativo (emtorno da polmica da publicao de biografias no autorizadas) e, ainda quese foque no pathos, a autora ressalva a inseparvel tridimensionalidade quea anlise retrica comporta.

O presente volume encerra com um artigo de Eduardo Lopes Piris emque o discurso jornalstico analisado tendo em considerao o cruzamentoentre paixes e posies ideolgicas no contexto especfico do golpe deEstado brasileiro de 1964. O autor mostra como a circulao pblica dosdiscursos est associada construo de uma aparente naturalidade que,no entanto, misturando subtilmente racionalidade e emoes, acaba por seencontrar ao servio de determinadas formas de legitimaes ideolgicas.

Rui Alexandre Grcio

Coimbra, maio de 2016

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DA EPISTEMOLOGIA RACIONA LI DA DERETRICA: A ARGUMENTAO NA SUACONDIO CIVIL

Rui Alexandre Grcio

1. Introduo

O tema proposto para a presente comunicao Desenvolvimentosepistemolgicos sobre retrica e argumentao hoje remete para aelaborao de um ponto da situao em termos de teorias, de conhecimentodisciplinar e de propostas metodolgicas do atual estado dos estudos daargumentao e da retrica. Mas aconselha, tambm, a que se faa umenquadramento diacrnico que nos permita entender como se chegou ao atualestado da arte.

Nesse enquadramento diacrnico, considerarei trs momentos da histriarecente da argumentao e da retrica designando-os como: o momento darefundao, o momento da proliferao e o momento das fraturas e dosimpasses. Depois disso, e para concluir a exposio, apresentarei algunsaspetos que considero essenciais na teorizao da argumentao e da retricanos nossos dias.

2. O momento da refundao

O momento da refundao corresponde reabilitao e renovao daargumentao e da retrica, ocorrida a partir dos finais dos anos 50 dosculo XX e est geralmente associado s obras The uses of Argument deStephen Toulmin e ao Trait de largumentation. La Nouvelle Rhtoriquede Cham Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, ambas publicadas em 1958.

Devo contudo ressalvar que a ideia de refundao mais apropriadapara tradio europeia uma vez que nesta a retrica se viu restringida einstitucionalmente deslegitimada do que para a tradio americana, naqual a retrica, sempre valorizada, foi progressivamente migrando das aulasdos professores de discurso pblico dos departamentos de ingls para oschamados speech departments e, posteriormente, para os communicationstudies. De qualquer modo, o ltimo tero do sculo XX j sob a influnciada obra de Perelman foi, em qualquer destas tradies, de grandeefervescncia terica em torno da argumentao e da retrica.

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2.1. Aspetos contextuais do momento da refundaoAquilo que designei como o momento da refundao tem um contexto

especfico que importa caracterizar. Surge associado a cinco aspetosprincipais (e, para simplificar, nos aspetos que em seguida vou elencar, tereiespecificamente em mente a Nova Retrica de Cham Perelman e Lucie Ol-brechts-Tyteca). Assim, o momento de refundao:

est ligado contestao da conceo cartesiana de razo e epistemologia que lhe est associada, para a qual o desacordo e adivergncia so sinnimos de erro;

surge associado a uma reao perante a hegemonia crescente (alisainda hoje reinante) das cincias exatas relativamente s cinciashumanas (designadas estas, por vezes, como moles, por con-traposio s cincias ditas duras);

no confundindo objetividade e neutralidade, surge associado reivindicao de um tipo de racionalidade inclusiva do papel dosvalores quer na produo do conhecimento, quer no estabelecimentodas nossas escolhas e preferncias, nas quais se manifesta sempreuma margem de liberdade;

surge associado tentativa de aproximar a noo de racionalidades prticas crticas humanas inseridas na sua matriz social ehistrica e, finalmente,

surge associado valorizao da linguagem natural enquantoportadora de pr-construdos culturais e de implcitos convivenciais(por exemplo, os chamados lugares comuns) fundamentais no modocomo os homens comunicam, agem entre si e, principalmente, lidamcom os seus desacordos.

2.2. Um corte com a epistemologia clssicaPrincipalmente lidam com os seus desacordos. Com efeito, o aco-

lhimento do desacordo como um componente marcante da vida dos homens e, correlativamente, dos prprios processos de conhecimento re-presenta uma machadada decisiva nos parmetros da epistemologiaclssica que, privilegiando a evidncia, tem na sua base um paradigmagnosiolgico binrio de cariz proposicionalista.

A considerao do desacordo, da divergncia e da dissenso comofactum sociolgico, mostra que a verdade um conceito essencialmenteantagonstico e que, ao invs de ser incompatvel com o conflito das inter-pretaes, ela , antes, solidria de uma pluralidade de perspetivas todaselas igualmente argumentveis.

Contudo, dizer que todas as perspetivas so igualmente argumentveisno sinnimo de relativismo epistemolgico, mas algo que diz respeito

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condio social a partir da qual temos de negociar, na prtica, e emcondies de incerteza, a nossa convivencialidade.

2.3. Nova Retrica e perspetivismoNeste sentido, a Nova Retrica, consistente com o perspetivismo e

com a sua frase cone, tal como Nietzsche a formulou: no h factos,apenas interpretaes, ainda que se possa atribuir a algo o estatuto defacto1. O mesmo dizer que no h uma naturalidade no retrica dalinguagem2, que no h anlises puras, tal como no h um hermeneuta--mor que possa transcender o nvel perspetivstico da compreenso e dasdescries que, afinal, so sempre, tambm, verses. No podendo aquidesenvolver o tema do perspetivismo, assinalarei apenas que, pensado emarticulao com a nova retrica, o perspetivismo encerra uma vertentepragmtica, ligada premncia da ao, e uma vertente agonstica, ligada conflitualidade interperspetivista.

2.4. O imprio retrico: a ligao entre sentido, persuasoe retricaPor outro lado, neste momento de refundao posta em destaque a

face imperial da nova retrica, ou seja, de um paradigma to abrangenteque, na realidade, se configura como uma nova imagem de pensamento ede racionalidade.

Com efeito, com a colocao da linguagem como medium da qualquerconstruo interpretativa toda uma face imperial que se mostra.

Note-se que no se trata apenas de considerar a teoria da argu men -tao como indispensvel, e cito Perelman (1970, p. 9),

para o raciocnio prtico, que tende a justificar toda a decisorazovel, mas tambm nas cincias humanas, em filosofia emesmo nas cincias naturais, quando se trata de preferir umtipo de explicao a um outro, de justificar as revoluescientficas.

DA EPISTEMOLOGIA RACIONA LI DA DE RETRICA: A ARGUMENTAO NA SUA CONDIO CIVIL

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1 Cf. PERELMAN, Ch., OLBRECHTS-TYTECA, L., 1988, 16.2 Cf. NIETZSCHE, F.,1995, p. 44-45. A se l que no dificil de provar, luz clara doentendimento, que o que se chama retrica, para designar os meios de uma arte consciente,estava j em ato, como meios de uma arte inconsciente, na linguagem e no seu devir, e mesmoque a retrica um aperfeioamento (Fortbildung) dos artifcios j presentes na linguagem. Noexiste de maneira nenhuma uma naturalidade no-retrica da linguagem qual se pudesseapelar: a linguagem ela mesma o resultado de artes puramente retricas.

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Trata-se, tambm, de uma forma mais alargada, de ver a retricacomo imprescindvel para a compreenso dos processos de construopartilhada de sentido. Kenneth Burke (1969, p. 72) disse-o, alis, de umaforma lapidar quando escreveu que onde quer que haja persuaso, hretrica. E onde quer que haja sentido, h persuaso.

E eu acrescentaria ainda: onde quer que haja sentido, persuaso eretrica, h pessoas e convivencialidade.

Na sequncia da considerao deste carter abrangente e ps-disci-plinar da retrica, vo tambm as palavras de Alan Gross (1996, p. viii)quando afirma que a retrica diz respeito s condies necessrias esuficientes para a criao do discurso persuasivo em qualquer campo, sendoque, da anlise retrica, no est excludo o discurso cientfico, pois, afirmaainda Alan Gross (1996, p. 7),

em qualquer momento, em qualquer cincia, os cientistas tmque se decidir sobre o que que precisa de ser explicado, sobreo que que constitui uma explicao e de que modo uma tal ex-plicao constrange o que conta como evidncia.

Com efeito, substituindo, por um lado, a problemtica da verdadepela questo dos efeitos persuasivos perante um auditrio, e considerando,por outro, o problema das metodologias e dos requisitos de cientificidade emtermos de estratgias comunitrias de construo da relevncia e daobjetividade, a compreenso retrica alterou profundamente des -dogmatizando as vises ento reinantes da construo do conhecimentocientfico, trazendo a primeiro plano a racionalidade scio-argumentativa.

2.5. Perelman e a racionalidade retrico-argumentativaAlis, bom no esquecer que, no momento da refundao, a teoria da

argumentao e da retrica surge antes de mais ligada problemticafilosfica da racionalidade e proposta perelmaniana de uma filosofia dorazovel e E. Griffin-Collart (1979, p. 3) considerou mesmo que

a nova retrica apresenta (...) a metodologia do raciocnio apro-priado a um estado democrtico, a uma sociedade pluralistapara a qual os valores so irredutveis a um valor nico e ondea arte do dilogo e da controvrsia prevalece sobre as soluesde violncia.

O grande mrito de Perelman foi, por conseguinte, o de conferir direito decidade racionalidade retrico-argumentativa como fundamental na com-preenso e no funcionamento das dinmicas sociais e mostrar que o uso do

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discurso em termos de influncia uma das dimenses constitutivas do seuuso. Hoje, obviamente, ao uso pragmtico dos meios discursivos, temos deacrescentar a retrica das imagens, a persuaso atravs dos meios audiovisuaise os efeitos da retrica mediatizada, o que obriga pensar a anlise retrico-argu -mentativa para l da habitual restrio aos meios verbais.

De notar que, na sua teorizao da retrica-argumentativa, Perelmanenjeita o formalismo lgico recusando separar, em termos de linguagem,forma e contedo e assume uma posio descritiva e no normativa.Quando fala de avaliao das argumentaes no encontramos na suaobra, por exemplo, o uso do termo falcia ou qualquer indicao acercade como bem argumentar mas, apenas, referncia aos critrios da eficciae da qualidade dos auditrios (cf. PERELMAN, 1970, p. 33) enquantocritrios que permitem descrever a fora social dos argumentos.

Do ponto de vista epistemolgico, podemos considerar que a obra dePerelman fecunda, pois, ao ensinar que os mecanismos fundamentais daargumentao so os procedimentos de ligao e de dissociao, ao in-ventariar todo um quadro de tcnicas argumentativas e ao tecer umconjunto de consideraes sobre a interao dos argumentos sendoneste ltimo aspeto de salientar a relao estabelecida entre a fora dosargumentos e as situaes especficas nas quais as argumentaes sedesenvolvem3 ele guiou-nos o olhar para os meios discursivos de cons-truo da persuasividade considerados como relevantes instrumentossociais de comunicao e de ao.

Embora as preocupaes de Perelman fossem essencialmente filosficase sociolgicas, a sua obra no deixou de semear bases tericas para aanlise argumentativa do discurso, cujos procedimentos, na elaborao queposteriormente Ruth Amossy (2006, p. 31-32) deles fez, se repartem por seisdimenses de anlise: a linguageira, a comunicacional, a dialgica e in-teracionista, a genrica (relativa aos gneros do discurso), a estilstica e atextual.

3. O momento da proliferaoQuem lanar um olhar sobre o campo de estudos da argumentao e

da retrica na atualidade arrisca-se a ficar algo confuso com o cenrio de

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3 A fora dos argumentos depende, portanto, largamente, de um contexto tradicional. Por vezeso orador pode abordar todos os temas e servir-se de toda a espcie de argumentos; por vezesa sua argumentao limitada pelo hbito, pela lei, pelos mtodos e tcnicas prprias dadisciplina no seio da qual o seu raciocnio se desenvolve. Esta determina frequentemente onvel da argumentao, aquilo que pode ser considerado como estando fora de questo,aquilo que deve ser considerado como irrelevante para o debate (PERELMAN, Ch., OL-BRECHTS-TYTECA, L., 1988, p. 616). Esta ideia consistente com a afirmao de PierreBourdieu segundo a qual o poder chega linguagem de fora (cf. BOURDIEU, 1982).

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heterogeneidade que ir encontrar e poder ser mesmo levado a questionara unidade deste domnio.

3.1. O cenrio geralCom efeito, depois do momento de refundao, surgiram no universo dos

estudos da argumentao e da retrica, e em vrios pontos do globo,abordagens como a problematologia de Michel Meyer, a lgica natural deJean-Blaise Grize, o estudo do modelo cognitivo das operaes do discursoargumentativo de Georges Vignaux, a argumentao na lngua de Ans-combre e Ducrot, a argumentao no discurso de Ruth Amossy, a lgica in-formal de Johnson e Blair, a lgica dialgica ou pragmtica de DouglasWalton, a pragma-dialctica de Rob Grootendorst e van Eemeren, a retricaanti-lgica de Marc Angenot, os estudos sobre a racionalidade e a an-tropologia retricas do GRAL, liderados por Emmanuelle Danblon, as in-vestigaes do ICAR, nas quais se destaca o valioso trabalho terico deChristian Plantin e do seu modelo dialogal, a conceo dissensual e in-teracionista de Charles Arthur Willard, a teoria da argumentao coalescentede Michel Gilbert, a abordagem conversacional de argumentao (comJacques Moeschler na Europa e com Jackson e Jacobs e respetiva teoria dospares adjacentes nos Estados-Unidos), o design approach de Jean Goodwin,e tantas outras abordagens tericas, ora mais delimitadas disciplinarmente,ora mais abrangentes e ligadas anlise do discurso e retrica discursiva.

3.2. Traos caractersticos do atual estado da arte e a ausn -cia de um paradigmaPodemos, pois, assinalar quatro traos caractersticos no atual cenrio:

por um lado assistimos, a partir dos anos 70 do sculo passado, a umaproliferao de perspetivas tericas que, quando no so incomensurveisnos seus pressupostos so, muitas vezes, de difcil articulao em termosde complementaridade epistemolgica.

Por outro lado e para no falar da polissemia que encontramosquanto ao uso da palavra retrica as prprias relaes entreargumentao e retrica so consideradas de forma diversa pelos diferentesteorizadores (surgindo aqui, grosso modo, correntes que as identificam,correntes que as distinguem mas as consideram indissociveis, correntesque as dissociam mas as consideram relacionveis e, ainda correntes queconsideram, por exemplo, que a argumentao retrica e a argumentaolingustica so radicalmente diferentes).

Por outro lado ainda, e como visvel na elencagem que acima fizemos,podemos verificar uma grande diversidade no que diz respeito provenincia

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disciplinar dos tericos que se interessam pelo estudo da argumentao e daretrica, provenincia que vai da filosofia s cincias da linguagem, dalgica s cincias da cognio, da lingustica s cincias da comunicao, dascincias sociais didtica, da literatura ao marketing, do direito s cinciasda computao.

So por isso, a este respeito, pertinentes as palavras de MarianneDoury e Sophie Moirand (2004, p. 9-10) quando observaram que

as investigaes que se reclamam da argumentao tentam assimdefinir um campo em si, um campo inteiramente parte,particular e autnomo. Mas a unidade deste campo afigura-sedesde logo problemtica em virtude da variedade de disciplinasconexas que encontram no caminho das suas investigaesfactos que relevam da argumentao sem que esta estejaforosamente no centro das teorias ou das metodologias prpriasdestas disciplinas: assim acontece com a anlise do discurso e coma lingustica textual, com as cincias da comunicao e da in-formao e com as cincias cognitivas nas suas relaes com alinguagem humana e com as lnguas naturais. Isso sem falar dosdomnios de aplicao, como o ensino (pela via das formas e peloprisma dos conectores), o marketing ou a comunicao poltica (pelavia da influncia sobre o outro e pela fora da persuaso), etc..

Finalmente, e decorrente da tal diversidade no que diz respeito provenincia disciplinar dos tericos, tornou-se cada vez menos frequente areferncia a uma teorizao geral da argumentao e da retrica, e maisusual a sua abordagem em termos de aplicao a reas temticas ou a camposespecializados (por exemplo, a argumentao jurdica, a argumentao emcincia, a argumentao nos media, a argumentao lingustica, argumentaono discurso poltico, a argumentao no discurso religioso, a argumentao doponto de vista literrio, o papel da argumentao nos processos de cognio,a argumentao no discurso filosfico, e por a em diante).

Alis, perante esta espcie de retalho disciplinar, David Frank (2004,p. 267) fala mesmo de uma contnua fragmentao do campo num conjuntode estudos de caso com muito pouco sentido partilhado quanto ao seupropsito ideia reforada por Christian Plantin (2001, p. 71-92) quandoafirma que

o domnio dos estudos da argumentao no est estruturadopor qualquer coisa como um paradigma; para se chegar a umparadigma, seria preciso um mnimo de dilogo terico nosignificando obviamente dilogo um acordo, mas pelo menosuma forma de partilha de objetos, de mtodos e mesmo de pro-

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blemticas, que no momento no existe. Na ocorrncia, cadaobra se constitui como um paradigma.

4. O momento das fraturas e dos impasses

Permitam-me que ilustre com dois exemplos esta incomensurabilidadeterica, quer quanto questo das relaes entre argumentao e retrica,quer quanto conceo de razo com que se parte para o estudo daargumentao.

4.1. A relao entre retrica e argumentaoDe uma maneira geral, os investigadores provenientes cincias da

linguagem e da anlise do discurso no s adotam uma perspetiva des-critiva, como colocam a tnica no discurso, no no raciocnio lgico (formalou informal).

Isso facilmente lhes permite abandonar uma viso proposicionalista darazo e desenvolver os seus processos de anlise do discurso tomando emconsiderao a trade retrica do ethos-pathos-logos e as operatividades deco-construo do sentido.

Ora, se atentarmos nos investigadores oriundos da lgica ou, pelomenos, que privilegiam o papel da lgica como central no estudo daargumentao, o mesmo no se passa.

Um exemplo disso a conhecida escola holandesa de Van Eemerene Rob Grootendorst hoje, alis, bastante influente que, a par da lgicapragmtica de Douglas Walton ou da lgica dita informal de J. A. Blaire R. Johnson, entre outros, assumiram uma perspetiva normativa daargumentao. Ora, como veremos adiante, esta posio normativa per-manece ancorada numa viso proposicionalista da razo.

Com efeito, a oposio entre argumentao e retrica ntida numtexto de 1991, da autoria de Van Eemeren e R. Grootendorst (1991, p. 177),onde os autores afirmam que a obteno da aprovao de uma tese pelo p-blico atravs de vias pouco apropriadas constituem um falso meio dediscusso. Assim, escrevem,

As manhas retricas que passam por verdadeira argumentaoexploram quer as emoes ou os preconceitos do pblico, queros traos pessoais do interlocutor, a sua competncia, ou outrasqualidades. O logos substitudo pelo pathos no primeiro casoe pelo ethos no segundo.

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Ainda que, atualmente, a pragma-dialctica tente integrar os con-tributos da retrica no seu quadro conceptual, nomeadamente atravs doconceito de manobras estratgicas, o problema que a harmonizao dosaspectos dialticos e retricos acabam sempre pela subsuno dos ltimosaos primeiros. De facto, e como escrevem van Eemeren e Houtlosser (2000),a questo ento a de saber que estratgias retricas usadas no discursoso dialeticamente aceitveis.

Ou seja, e para citar o comentrio irnico de David Frank (2004, p.281), os retricos so bem-vindos ao reino da pragma-dialctica, mascomo cidados de segunda classe que tm intuies sobre tcnicasretricas.

4.2. Conceo de racionalidade e teorizao da argumen -taoMas esta incomensurabilidade no se verifica apenas ao nvel das

relaes entre a argumentao e a retrica. Ela tem, de facto, o seu cernena conceo proposicional da racionalidade, explicitamente expressa porDouglas Walton (2006, p. 9-10) nos seguintes termos:

o conceito de proposio fundamental para a argumentaocrtica, porque os argumentos so feitos de premissas e con-cluses que so proposies. Uma proposio tem duascaractersticas definidoras. Em primeiro lugar, algo que, emprincpio, verdadeiro ou falso. (...) Uma segunda caracterstica(...) [ que] enunciados ambguos no so proposies. (...) A razodisso que no tm a propriedade de, por si prprios, seremverdadeiros ou falsos.

Neste enquadramento no de espantar que, a propsito de umasituao que d como exemplo, escreva o seguinte (WALTON, 2006, p. 4):

a tese de Bob oposta, ou a negao da tese da Helen. Issosignifica que uma das teses pode apenas ser verdadeira se a ou-tra no for.

Posio bem diferente apresenta Christian Kock (2009, p. 96) quando,referindo que a argumentao prtica no assim, salienta que:

(1) que na argumentao deliberativa o caso padro haverbons argumentos de ambos os lados; (2) que um bom argumentopara a ao no licencia essa ao; e (3) que bons argumentos

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em ambos os lados no se excluem uns aos outros (KOCK, 2007,p. 241)4.

De facto e preciso assumir as consequncias da passagem daepistemologia retrica a argumentao prtica implica selees eescolhas, e a escolha, como j notara Aristteles (2005, 1226a), no verdadeira nem falsa.

Outro exemplo a que me queria referir de passagem o dos pedagogo--prescritores da pragma-dialctica que, propondo-se analisar, interpretare avaliar as argumentaes, enunciaram, no seu chamado cdigo deconduta do argumentador razovel, a seguinte regra:

9. Regra do fecho.O falhano da defesa de uma tese deve resultar na retrataoda tese defendida e uma defesa bem sucedida de uma tese deveresultar na retratao das dvidas que sobre ela foramlanadas (EEMEREN, GROOTENDORST, HENKEMANS,2002, p. 182-183).

No me parece, com efeito, que este modo de ver a argumentao e aretrica se constituam como avanos epistemolgicos neste campo deestudos, apesar de reconhecer como positivo o esforo de consolidaodesenvolvido pela chamada escola holandesa nomeadamente na vertenteem que a sua teorizao assumida como descritiva e, tambm, ao nvel dotrabalho sistemtico de investigao, de publicao e de organizao deconferncias que tem vindo a promover.

4.3. Do proposicionalismo problematologiaMas, aquilo que procurei evidenciar so aspetos teoricamente in-

comensurveis e Michel Meyer (1990, p. 69-86) no se cansou de mostrarque o abandono da epistemologia em detrimento do paradigma retrico im-plica no s o afastamento de uma conceo proposicionalista da razo e docorrelativo paradigma normativo binrio (onde, por exemplo, a ironia notem cabimento), como, tambm, a opo por um caminho problematolgicoque coloca a noo de problema como unidade do pensamento, e toma,como ponto de partida, o par pergunta-resposta. No fundo, trata-se detransitar do primado do cognitivo para o primado do tico-social, com a sua

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4 Ver tambm, a propsito das teses segundo as quais a) a retrica tem a ver com a escolha eno com proposies e b) melhor procurar definir a argumentao retrica a partir do temaou assunto em questo do que da considerao das finalidades que visa ou dos meios queutiliza (KOCK, 2013, p. 437-464.

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razo insuficiente, os seus contextos prticos de incerteza e de risco e coma sua opacidade problemtica entre o pensar e o agir5.

5. A argumentao retrica na sua condio civil

Ser que o estado da arte dos estudos da argumentao, as suasfraturas e os seus impasses epistemolgicos devem ser considerados de umaforma negativa ou, ao invs, a multiplicidade de pontos de vista deve serconsiderada como algo de natural e positivo?

A minha resposta a esta pergunta dupla: os estudos da argumentaoe da retrica tem vindo a fazer caminho, a aclarar diferenas, a aumentara literatura neste domnio, a diversificar os enfoques, a cruzar tradies ea apresentar esta rea de investigao sob o prisma de um politesmometodolgico e como uma rea ps-disciplinar.

Mas, por outro lado, parece-me que os teorizadores perdem por vezeso verdadeiro foco existencial, social e prtico do argumentar que, sendoinerente ao nosso modo de estar no mundo, no deixa de remeter pelaligao das opes com os valores, pelo modo como tratamos e nosrelacionamos com os outros e pela viso de mundo inerente ao usolinguagem para uma dimenso filosfica, maneira de Gramsci, nosentido da sua afirmao de que todos os homens so espontaneamentefilsofos ou, maneira de Heidegger (2005, p. 193), quando este diz que aocontrrio da orientao tradicional do conceito de retrica como umaespcie de disciplina, ela deve ser apreendida como a primeirahermenutica sistemtica da convivncia quotidiana com os outros.

5.1. A dimenso filosfico-social da argumentao retrica

No verdade que, tomada em sentido geral, a retrica umaespcie de psicagogia por meio de palavras, no apenas nostribunais e muitas outras assembleias pblicas, mas tambmnas reunies privadas, a mesma a respeito de questes depequena como de grande monta? E o seu uso correto no se tornaa coisa mais honrada quando se trata de assuntos srios ouinsignificantes? Ou como ouviste tu falar a este respeito?

(Plato, Fedro, 261a-b).

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5Nota James Crosswhite que ao reclamar-se da problemtica da racionalidade, a retrica for-ada a transitar dos seus papis limitados como arte prtica oral ou verbal restringidos a umconjunto de ocasies especficas, para uma arquitetnica retrica ampla e para o papel ret-rico profundo de metafilosofia (2013, p. 87).

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Para alm da passagem colocada em epgrafe, curiosamente, as pala-vras que abrem a Retrica de Aristteles no andam tambm muitodistantes desta ideia que eu gosto de designar como a argumentaoretrica na sua condio civil, ou seja, enquanto refratria s circunscriesdisciplinares e como uma competncia transversal que, sendo an-tropologicamente constitutiva da nossa sociabilidade, permite lidar com asdiferenas, estabelecer laos de entendimento e partilhar causas comuns.

De facto, Aristteles (1998, 1354a) escreve a propsito da retrica e dadialtica que elas se ocupam de questes mais ou menos ligadas ao co-nhecimento comum e no correspondem a nenhuma cincia particular6.

Ou seja, elas vo a par da nossa condio de seres sociais e do facto de,enquanto tal, termos de nos posicionar, de optar por modos de ver, de in-terpretar, de decidir e de deliberar, situando-nos perante o mundo e peranteos outros.

Como sugere Jean Goodwin (2007, p. 48), professora e tericaamericana, podemos defender o valor da argumentao sublinhando queatravs da argumentao, mesmo em argumentaes sem soluo, edolorosas, conseguimos acabar por nos posicionar mais solidamente nomundo e que essa a real dignidade dessa atividade e, diria eu, tambmo fulcro do seu ensino.

Trata-se, no fundo, de ligarmos as exigncias argumentativas doposicionamento configurao da nossa prpria identidade cidad e modulao das componentes ticas e sociais das nossas vidas. Como subli-nha Gerard Hauser (2002, p. 65):

sem argumentos que nos forcem a considerar vises eimpulsos contraditrios, faltar-nos-ia a conscincia de um Si.A conscincia dos nossos impulsos contraditrios e da potencialresoluo com base em argumentos dizem ao si quem e ondese posiciona.

No era Perelman (1949) quem associava a argumentao divisaduvidar, decidir-se e convencer, divisa que Plantin (1998, p. 26) prefereenunciar como propor, opor-se e duvidar, mas que, em ambos os casos, pemanifestamente em evidncia as afinidades da argumentao com a

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6 Tambm Renato Barilli fala justamente de assuntos de que nenhum homem enquanto talpoder alguma vez abdicar: a gesto da coisa pblica, a administrao da justia, oestabelecimento dos valores morais a seguir no comportamento pblico e privado, e, portanto,tambm os critrios de opinio, o louvor ou o vituprio de outrem com base nos respetivoscomportamentos: estes alguns dos temas que interessam indistintamente todos os membrosduma comunidade, e que, alis difcil atribuir disciplinas especficas (BARILLI, 1985, p.8. Itlico nosso).

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dimenso filosfica da dvida, da problematizao e de posicionamentoperante o mundo e perante os outros?

E no ainda essa indissociabilidade entre atividade argumentativae a dimenso filosfica que est presente quanto Plantin (2002, p. 230)prope definir a argumentao como uma forma de interao pro-blematizante formada por intervenes orientadas por uma questo.

alis por isso que, na minha proposta de teorizao da argumentaoretrica, procurei chegar a conceitos que capturassem a afinidade entre adimenso filosfica e social da existncia e a atividade argumentativa.

Afinal, quando abordamos assuntos em questo, no somos sempre levadosa processos de tematizao que tanto implicam opes quando a modos de vere de pensar (inventio), como configuraes de ordem dialgico-comunicacionais(dispositio, elocutio e actio), como, ainda, modos supostamente bilaterais detratarmos o Outro?

E o enquadramento da argumentao retrica como atividade depensamento, de comunicao e de interao dissensual no conduz paraalm da distino entre argumentatividade discursiva, discurso argumentadoe situao de argumentao a conceitos como assunto em questo7 (queconsidero ser a unidade adequada anlise das argumentaes), pers-petiva, tematizao, discurso e contradiscurso (interao por turnos depalavras), entre outros?

Dou, alis, particular importncia noo de situao de argumentaopois penso ser importante integrar, nos estudos de argumentao e daretrica, a advertncia de Pierre Bourdieu (1982) segundo o qual o poderchega linguagem de fora, afirmao que para mim significa a in-dissociabilidade entre a racionalidade argumentativa e a racionalidadesociolgica e resulta, em termos de anlise argumentativa, em tomar emconsiderao no apenas os argumentos, mas tambm os argumentadores eo seu desempenho enquanto atores sociais no quadro das relaes do podersimblico.

Alis permitam-me este aparte quanto mais tenho vindo aaprender sobre argumentao e sobre retrica, mais considero que aimportncia do seu estudo reside nas possibilidades que ele oferece para:a) compreender a filigrana sociolgica da convivencialidade; b) atentar nasvariaes de intensidade do requisito tico do comum por que se pauta acultura da negociao; c) aferir os ndices de democraticidade das relaessociais. Numa palavra, a argumentao retrica interessa-me na medida

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7 A elaborao deste conceito tem na sua raiz a conceo problemtica que Aristteles apre-senta da retrica e que foi sublinhada por Thomas Conley quando escreveu: chamamos pro-blemtica retrica de Aristteles uma vez que a persuasividade disponvel varia consoantea natureza do problema em questo numa situao retrica (CONLEY, 1990, p. 23-24).

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em que, no contexto das suas prticas se torna possvel viver melhor unscom os outros do que fora desse contexto.

5.2. Concluses: alguns aspetos fulcrais na teorizao daargumentaoVoltando agora, para finalizar, ao tema dos pressupostos episte -

molgicos da argumentao no mbito mais alargado do paradigma retricoque hoje se instalou no espao da racionalidade, considero como pontosfulcrais na teorizao da argumentao (e limito-me a referir trsessenciais) aspectos como:

1) A preocupao em estabelecer metodologias de anlise do discursoargumentado no deve desviar da importncia das competnciasprticas exigidas quando se veste a pele de argumentador emsituaes no mnimo bilaterais. Formar um analista do discurso no necessariamente formar um bom argumentador e talvez ateorizao da argumentao e da retrica possa ser fecundamenteinstruda pelas exigncias das pessoas terem efetivamente de tomarposies e de por elas se baterem quando assumem que esto nessasubespcie de comunicao que a argumentao e na qual, dando-sea articulao das noes de orientao e de avaliao, se d tambma crtica do discurso de um pelo discurso do outro. Mais do que umhermeneuta, o argumentador um performer crtico que toma odiscurso do outro de uma forma dissensual. A argumentao tem,pois, uma funo crtica.

2) As questes argumentativas so aqueles para as quais h sempre,pelo menos, duas posies, tendo ns de lidar com isso atravs dasideias de prevalncia, de negociao de escolhas e no de exclusodo alternativo h pois uma dinmica tensional que percorre assituaes de argumentao. Um estudo dos argumentos que no te-nha em considerao essa tensionalidade revela-se muito redutor erasura aquilo que genuinamente a retrica, nas palavras de JamesCrosswhite (2013, p. 2), tem para oferecer, ou seja, a capacidadepara deliberar e para ajuizar em condies de incerteza [e] ondeexistem concees conflituais sobre aquilo que bom.

3) H boas argumentaes sem resoluo, o que de modo algumsignifica que a negociao das distncias (MEYER, 2008, p. 21) quea ocorre seja irrelevante do ponto de vista prtico, existencial esocial; pelo contrrio, as argumentaes so decisivas do ponto de

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vista da convivencialidade e da coexistncia humanas at porque odesacordo desempenha uma funo reguladora importante emtermos de vida coletiva.

Afinal, como notou Marc Angenot (2008, p. 441), que cito para concluire para de novo enfatizar a condio civil-filosfica da argumentaoretrica, ou seja, uma condio transversal a todos os homens e no umacompetncia tcnica de especialista,

os humanos argumentam e debatem, trocam razes por doismotivos imediatos, logicamente anteriores esperana,razovel, pouca ou nenhuma, de persuadir o seu interlocutor:argumentam para se justificarem, para encontrarem face aomundo uma justificao (...) inseparvel de um ter razo eeles argumentam para se situarem relativamente s razes dosoutros, testando a fora e a coerncia que imputam s posiesdeles, para se posicionarem (eventualmente com as suas) e,segundo a metfora polmica, para sustentarem estas posiese se colocarem em posio de resistir.

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RETRICA E SOCIEDADE: A VALORIZAODA MULTIDIMENSIONALIDADE

Moiss Olmpio-Ferreira

Qualquer breve pesquisa a respeito da Retrica e da Argumentaoconcluir que uma e outra tm sido, ao longo do tempo, objetos de diversasperspectivas tericas que as enfatizam de modos bem distintos, ora comoao pelo prprio mecanismo lingustico, ora como ferramental persuasivosituado no discurso de um orador com o fim de influenciar, ora como obje-tos em que se focalizam os aspectos informais do raciocnio lgico com ava-liao dos possveis modelos normativos de raciocnio numa dada situao,ora como um conjunto de elementos pelos quais se estabelecem critrios eum cdigo de conduta na interlocuo, ora como fontes de dados averigu-veis a partir das atividades cognitivas subjacentes pautadas na lgicanatural, ou a partir da pragmtica interacionista, da ao pragmticasociolgica, ou ainda do ponto de vista ontogentico da psicolingustica etc..Enfim, como bem observou Plantin:

As pesquisas nesse domnio desenvolvem-se nos mais diversoscampos disciplinares: os recentes trabalhos so concernentes lingustica (lingustica da lngua, da enunciao, das interaes)e tambm aos campos tradicionalmente ligados argumentao,como a lgica e a retrica, e dialtica, como o direito e a filosofiada linguagem e do dilogo; mas tambm sociologia e psico -logia, como as cincias polticas, as cincias da comunicao eda cognio... Certamente, seria preciso no esquecer os traba-lhos em didtica da argumentao. [...] Esses diferentes domniosno tm, forosamente, a mesma definio de argumentao eos mesmos mtodos de trabalho. [...] O domnio dos estudos daargumentao no est estruturado por alguma coisa que lhesirva de paradigma; para que se pudesse chegar a umparadigma, seria preciso um mnimo de dilogo terico dilogo que obviamente no significa acordo, mas, ao menos, umaforma de partilha dos objetos, dos mtodos, ou mesmo das pro-blemticas , o que no existe at o momento. Na atualsituao, cada obra constitui-se como paradigma (2001, p. 71-92).1

1 Nossa traduo para: Les recherches dans ce domaine se dveloppent dans des champsdisciplinaires les plus divers: les travaux rcents touchent la linguistique (linguistique dela langue, de lnonciation, des interactions), mais aussi ces champs traditionnellement

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No temos a pretenso de fornecer dados que expliquem ou exempli-fiquem os muitos paradigmas tericos, j que isso exigiria um espao muitomaior do que este e, certamente, as discusses no chegariam profundi-dade que pode ser encontrada nas respectivas obras fundantes. Partimosda simples ideia de que o centro das atenes da Retrica-Argumentaono pode ser desconectado das dimenses social e contextual e, portanto,encontra-se vinculado ao mundo sociolgico, regido pela contingncia, pelaincerteza, pela multidimenso, em que, baseada no ferramental possvel depersuaso, urge a tomada de deciso, dadas as condies de delimitaoimpostas pela corrida contra o relgio.

Antes de prosseguirmos, preciso abrir um parntese. Para efeito desimplificao, trataremos, de modo integrado, a Retrica e a Argumenta-o, sem que isso signifique que possam ser entendidas, de modo naturale unitrio, como disciplinas idnticas. Perelman e Olbrechts-Tyteca as uni-ficam, como se v no prprio ttulo: Tratado da Argumentao: A NovaRetrica; Michel Meyer, por sua vez, chega mesmo a propor explicitamentea unificao das disciplinas: Hoje em dia, no se pode mais privilegiar aargumentao em desfavor da retrica, ou o contrrio, e realmente neces-srio unificar a disciplina (2007, p. 33)2, a fim de que se evite o privilgiode uma sobre a outra. Entretanto, Grcio contrape e justifica:

Ao designar a sua teoria da argumentao como uma novaretrica, Perelman optou por uma identificao entreargumentao e retrica. Como estratgia e como ponto departida essa opo aceitvel. Contudo, um aprofundamentoe continuao do seu pensamento exigiria que se procedesse a

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lis largumentation que sont la logique la rhtorique et la dialectique, le droit et laphilosophie du langage et du dialogue; mais aussi la sociologie et la psychologie, comme lessciences politiques, les sciences de la communication et de la cognition; et il ne faudraitcertainement pas oublier les travaux en didactique de largumentation. [...] ces diffrentsdomaines nont pas forcment la mme dfinition de largumentation et les mmes mthodesde travail. [...] le domaine des tudes dargumentation nest pas structur par quelque chosecomme un paradigme; pour quon ait affaire un paradigme, il faudrait un minimum dedialogue thorique dialogue ne voulant certainement pas dire accord, mais au moins uneforme de partage des objets, des mthodes voire des problmatiques, qui nexiste pas pourle moment. En loccurrence, chaque oeuvre se constitue en paradigme.

2Meyer (2007, p. 27-8), porm, reconhece que no se est diante do mesmo fenmeno, porque possvel diferenciar as disciplinas pela maneira como elas tratam do que est em questo:a grande diferena entre a retrica e a argumentao deve-se ao fato de que a primeiraaborda a pergunta pelo vis da resposta, apresentando-a como desaparecida, portantoresolvida, ao passo que a argumentao parte da prpria pergunta, que ela explicita parachegar ao que resolve a diferena, o diferencial, entre os indivduos. Assim, na Retrica,explicita-se somente a resposta, deixando a questo implcita; na Argumentao, mostra-sea questo, comea-se por ela para torn-la clara ou para conseguir cooperao do auditrioem sua soluo.

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uma distino entre argumentao e retrica, distino cujocritrio seria o seguinte: identificar o termo argumentao como termo retrica sempre que se trate de discurso, escrito oufalado. Dessa forma, sempre que se escreve ou fala, tambmse argumenta e se faz retrica. Distinguir argumentao eretrica quando a ao comunicativa exercida sobre ns nodepende exclusivamente do discurso: desta forma, h umaretrica das imagens... h uma retrica da moda... h umaretrica da violncia... (GRCIO, 1993, p. 11).

Retornando discusso, a primeira pergunta que propomos pr emdestaque no O que Retrica-Argumentao? em razo de que inme-ras respostas j lhe foram e continuam sendo dadas nas incontveis pgi-nas que a estudam, mas, sim: Onde est a Retrica-Argumentao?

Para tentar responder a essa questo, partimos do que Wayne Brock-riede (2009) escreveu em seu artigo intitulado Where is argument? O autorsitua a Argumentao na proximidade das pessoas e das atividades huma-nas; ela est ligada dimenso problemtica com que os assuntos so pers-pectivados. Para Brockriede, [...] os argumentos no esto em proposies,mas nas pessoas, isto , [...] as pessoas encontraro argumentos na vizi-nhana de pessoas (p. 14): eles no so entidades abstratas, mas recursosque possibilitam a interao numa dada interlocuo social, situada e pers-pectivada; como somente pessoas podem se servir da argumentao, enco-raja-se a [...] que se considerem as escolhas conceptuais das pessoas,relevantes (idem). Definindo a viso descritiva da argumentao comouma co-construo levada a cabo por duas instncias dotadas de iniciativaargumentativa, Grcio dir que ela pe a tnica no apenas na compe-tncia de produzir organizadamente um discurso mas tambm, e de umaforma fundamental, na capacidade de ouvir, o que implica ver na argu-mentao algo mais do que um dilogo de surdos ou um debate imvel(GRCIO, 2009, p. 103).

Alm disso, como os argumentos encontram-se nas pessoas e so o queas pessoas pensam que eles so, toda argumentao est situada em pers-pectivas, em modos de ver e de fazer ver, estando, portanto, sujeita amudanas e a filtros conceptuais. Trata-se, portanto, de um conceitoaberto, sujeito s intempries que escapam ao controle da lgica demons-trativa, como a prpria vida.

Indo ainda mais alm, Brockriede entende a Argumentao de formabem elstica, podendo ser definida como um [...] quadro de referncia quepode potencialmente ser relacionado com qualquer tipo de empreen-dimento humano [...] (2009, p. 14, grifos nossos), ainda que outras pers-pectivas possam ser-lhe aplicadas e que nem toda comunicao possa ser

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tomada como argumentao. Nesse sentido, no h discurso neutro, emboraisso no seja sempre evidente, j que o parecer neutro pode ser justamenteum recurso retrico.

, de fato, na dimenso do problemtico que a presena da Argumen-tao mais evidente. Michel Meyer, em sua Teoria da Problematicidade,entende que falar ou escrever suscita questes que exigem respostas, demodo que a interrogatividade o trao mais caracterstico do homem aoarticular a razo e a paixo no uso da linguagem. De fato, as questes sur-gem entre ns, com motivos, no necessariamente explcitos. nessadimenso do controverso que a negociao argumentativa surge para tra-zer respostas possveis s inquietaes produzidas por nossas questes,estando estas implcita ou explicitamente formuladas. Se argumentamos, porque o ponto de partida do discurso necessariamente uma diferena.

Nesse sentido, a Retrica est presente na simples linguagem quoti-diana, j que sempre somos uma pergunta para o outro (MEYER, 2007,p. 30), de modo que a negociao para reduo das distncias tem lugar atmesmo em um simples cumprimento automtico ou nas frmulas de poli-dez que procuram

[...] amenizar o aspecto agressivo que possa decorrer do fato denos dirigirmos a ela (uma pessoa) como que mirando um alvo,e de por vezes nos impormos a ela unicamente pela presenacorporal. [...] Numa expresso de polidez, tentamos seragradveis para ele (o outro) e minimizar a agressividadepotencial que toda diferena implica (MEYER, 2007, p. 30).

Entretanto, se, por um lado, so as questes que se levantam entre aspessoas que do origem ao processo argumentativo, por outro lado, adimenso do problemtico dever receber parmetros para que o processoretrico-argumentativo possa existir.

Brockriede defende que a Argumentao encontra-se na [...] lgicavarivel do mais ou menos [...], ou seja, [...] se uma argumentao no suficientemente problemtica [...] ou se h [...] excesso de problematici-dade (2009, p. 15), no haver argumentao. Ignora-se, portanto, o tri-vial e o definitivo. Noutros termos, o autor a situa na zona mdia docontinuum do mais ou menos de uma lgica varivel e no de uma lgicacategorial (op. cit., p.17).

Fundamentado nas obras de Aristteles, Rui Grcio (2013) insiste naideia de que os processos seletivos da adequao descritiva, que objetivadeterminar a especificidade do campo da Argumentao, tm ocorrnciano plano intermdio. Ora, nem tudo pode ser posto em controvrsia j que,por um lado, certos aspectos esto adquiridos e, portanto, demonstrados ou

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facilmente demonstrveis, e, por outro, certos assuntos esto em territriocuja validao parece inalcanvel. A Argumentao situa-se, assim, nocarter intermdio das controvrsias, entre a evidncia e os meios dedemonstrao especializados. no nvel intermdio que ela lida com asquestes desprovidas de cincia ou de arte especializada que delas dconta, onde o grosso modo, o vago, o impreciso, os traos essenciais, as con-cluses aproximadas dos pressupostos das questes se tornam relevantespara o mundo dxico, em contrap do detalhe e do rigor da articulao for-mal dos raciocnios que se ligam, por excelncia, demonstrao.

Desse modo, quanto maior for a incerteza da resposta questo (semque se tenha atingido o excesso de problematicidade e, portanto, o defini-tivo), maior ser a necessidade de argumentao. Como a imposio detomar deciso diante do contingente sempre ocorrer quando a questoestiver permeada pela dvida (seja porque no conhecemos a resposta, sejaporque no temos os meios para resolv-la), quanto mais certa for a causa,menor ser essa imposio, e quanto mais ela inspirar impreciso ou forambgua, mais alternativas existiro e mais deliberao se exigir:

Quanto mais incerta uma questo for, menos se reduzir a umaalternativa e mais abrir um espao de alternativas mltiplas.J no se trata ento de aprovar ou desaprovar, de julgar umaquesto que conseguimos reduzir a uma alternativa ou outra;agora convm decididamente encontrar a resposta mais til,a mais adequada entre todas as possveis e at mesmo criar aalternativa (MEYER, 1998, p. 35).

inclusive essa condio de variabilidade interrogativa que constituios gneros da sociedade grega antiga, estudados pela velha retrica e, porisso,

[...] no gnero deliberativo, a priori ningum depositrio dojuzo resolutrio a no ser por autoridade, natural ou ins-titucional. Este problema existe mesmo em matria judiciria,mas menos acentuado que precedentemente, porque h regrasde juzo, entre outras coisas fornecidas pelo direito. Finalmente,existe um ltimo caso: o louvor, o elogio fnebre, ou seja, quandose coloca uma questo que no verdadeira ou radicalmenteproblemtica, pois a resposta est l, oferecida disposio(MEYER, 1998, p. 34-5).

O quadro sinttico proposto por Meyer (1994, p. 52), que a seguirreproduzimos, bem situa esses gneros em relao a essa variabilidade queos caracteriza:

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perceptvel que a organizao e o funcionamento esto baseadossobre a articulao thos3-pthos-lgos. O orador interfere deliberando (procura do mais til, do conveniente, apontando os resultados projetivospossveis), defendendo ( procura do justo, com base nos atos e dados jconhecidos, ou que se acredita conhecer) ou ornamentando ( procura doelogioso, do honrvel).

Dessa forma, os gneros retricos esto todos localizados na zonamdia do continuum do mais ou menos de que trata Brockriede e estoatrelados aos campos da atividade humana em sua discursividade proble-mtica espao-temporal (o que contrrio demonstrao) e, portanto,situados scio-historicamente: o futuro (problematicidade mxima deci-so quanto ao til, mesmo diante da falta de critrios claros, definidos ouaceitos a priori, para dar respostas questo), o passado (grande proble-maticidade julgamento quanto ao que justo, apesar das incertezas queos dados fornecem, da insegurana do processo), o presente (fraca proble-maticidade adeso em relao ao verossmil, ao que aparentementeverdadeiro, j que a questo pode apenas parecer resolvida):

{Os} tempos de cada um desses so: para o que delibera, o futuro(pois aconselha a respeito das coisas que sero, estimulando oudesestimulando); para o que julga, o que veio a ser (pois arespeito dos atos realizados sempre, por um lado, um acusa e,

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3 Em nossas transcries de palavras gregas, preferimos a forma thos (de : carter, modode ser; com plural the, de ) para diferenci-la de thos (de : costume, hbito; complural the, de ). Alm disso, procuramos manter a acentuao original de todas as outraspalavras gregas a que fizemos referncia ao longo do artigo: lgos, pthos, dxa etc., aindaque imprpria s regras da lngua portuguesa.

LOGOS

PATHOS ETHOS

problematicidade

problematicidademxima

questo duvidosasem critrio deresoluo

deliberativo (odebate poltico)

til deciso

juzo

adeso

justo

verossmil

judicirio(processo)

Epidctico(o elogio fnebreou a conversaoquaotidiana)

questo incerta mas comcritrio(o direito, por exemplo)

questo resolvida

grandeproblematicidade

fracaproblematicidade

resoluo

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por outro lado, outro defende); para o epidctico, o principal o presente (pois {} de acordo com as coisas que existem {que}todos louvam ou censuram), {embora} muitas vezes se sirvamno s lembrando das coisas que foram, mas tambm formandoimagens (conjecturando) das coisas que esto por vir (Retrica,I, 3, 1358b)4.

O auditrio, por sua vez, no passivo nesse processo; a argumenta-o situada e interativa. Com suas reaes5 intelectuais e passionais, elejulga se a resposta til, justa ou bela; pe prova a resposta; interrogasobre a pertinncia das questes tratadas e sobre a legitimidade daqueleque as responde. O discurso, por seu turno, fundado sobre o contingente,repousa no que ser, no que teria sido, ou no que possvel ser ou no-ser(MEYER, 2007, p. 29),

perceptvel que nesses gneros de problemticas h uma estruturacomum em que varivel a presena de cada um dos componentes da tri-logia retrica. Quando houver problematicidade mxima, a participaodo thos ser determinante, pois quem fala, em razo de sua legitimidade,conquistada pelo lugar que ocupa no mundo6 ou construda pelo discurso,tem a possibilidade de pr fim questo, lanando mo de toda racionali-dade e paixes. Quanto maior for a problematicidade, mais a institucio-nalizao do thos e a recorrncia paixo7 sero critrios de resposta, oque leva a questo a ser apresentada sob o ngulo daquele que a resolve(MEYER, 1994, p. 53).

Entretanto, mesmo que a instncia retrica do thos seja a que busqueo assentimento a fim de reduzir as distncias, apresentando respostas pos-sveis na via do prefervel, no se pode, apesar de toda fora thica oriunda

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4 Nossa traduo para: ( ), ( , ), ( ), .

5 Na persuao, portanto, como Perelman (1987, p. 235) afirma: Querer persuadir um auditorsignifica, antes de mais, reconhecer-lhe as capacidades e as qualidades de um ser com oqual a comunicao possvel e, em seguida, renunciar a dar-lhe ordens que exprimam umasimples relao de fora, mas sim procurar ganhar a sua adeso intelectual. No se podepersuadir um auditrio seno tendo em conta as suas reaces, de modo a adaptar o seudiscurso a estas reaces.

6 Como afirmam Perelman e Tyteca: As funes exercidas, bem como a pessoa do orador,constituem um contexto cuja influncia inegvel: os membros do jri apreciaro de mododiferente as mesmas observaes pronunciadas pelo juiz, pelo advogado ou pelo promotor(2002, p. 363).

7 Aristteles afirma: (Retrica, II, 1, 1378a), So por causa das paixes que {os homens},mudando, diferem em relao s sentenas, aos quais dor e prazer acompanham.

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do dizer, da imagem pr-discursiva e do lugar que se ocupa, atribuir aalgum influente, que profere um discurso convencedor, unilateral, mono-gerido (como se a argumentao estivesse restrita aos discursos argumen-tados escritos), a responsabilidade absoluta do processo de adeso. Ora,adeso/assentimento requer coparticipao, coparcerias, cooperao, coau-torias, corresponsabilidades... entendimentos, avaliaes e ajustes entreas partes interessadas na questo. E nesse sentido que, ao falarmos dethos, no podemos nos limitar instncia unilateral de um orador com-petente, mas devemos entend-lo, num sentido mais amplo, em condiesde interao, como produto do embate dos the ativados nas trocas sociaiscircunstanciadas entre orador e auditrio, que, ao revezarem as suas posi-es discursivas thica-pathtica no processo dialogal e dialgico, cons-troem, desfazem, reconstroem, reformulam... as possveis representaesde si, para chegarem (ou no) a uma opinio compartilhada. O embate des-sas imagens se realiza no terreno do fortuito, no vrio e no diverso discursosocial que d sentido e significado sob condies de mltiplos dizeres igual-mente possveis, mas imperfeitos dada a existncia de possibilidades her-menuticas no homlogas, distantes da unanimidade, prprias dascontribuies individuais, subjetivas, sociais e histricas, no impositivase orientadas, todas, contingncia dos juzos, das opinies e interpreta-es, advinda da incompletude, insuficincia e equivocidade dos saberes eda parcialidade prpria opacidade da lngua.

Onde h grande problematicidade, a questo ainda incerta, mas hcritrios que permitem inventar a soluo. Na atividade judiciria, inter-roga-se muito mais a ocorrncia dos fatos do que na epidctica, e as fontesde resposta para o embate so os cdigos e a jurisprudncia. Nessa posiointermediria (entre a mxima e a mnima), h, portanto, meios comunspartilhados para se chegar ao que justo, e os critrios de resoluo cul-minam na autoridade do juiz que despacha de acordo com normas fixadasna lei.

Por ltimo, onde h fraca problematicidade, o carter do orador no decisivo, j que no exerce forte influncia sobre esse tipo de discurso. Porsua vez, as paixes da audincia limitam-se s reaes convencionais e aoprazer esttico, sem se pronunciar sobre a questo, sem contestar. O dis-curso, embora seja acentuado por qualificar coisas, eventos e pessoas, ele construdo de forma a oferecer o que a audincia busca ouvir. Para Meyer,as conversaes corriqueiras e triviais possuem um carter convencionalsemelhante, pois simplesmente nutrem as boas relaes estabelecidas pormeio da aceitao comum de frmulas que agradam a todos.

Essa concepo, porm, a respeito do gnero epidctico, no pode seradmitida em todos os casos em que dele se faz uso, pois, apesar da fraca

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problematicidade, ele tem o poder de manter e/ou aumentar a adeso aosvalores dxicos, fato esse relevante no processo argumentativo:

Ora, para ns, o gnero epidctico central, pois seu papel ode intensificar a adeso a valores, sem os quais os discursos quevisam ao no poderiam encontrar a alavanca para comovere mover seus auditrios (PERELMAN, 2009, p. 38)8.

Para Perelman, a ideia de que esse gnero est mais preso litera-tura do que argumentao produto de um entendimento equivocado doconceito de belo (equivalente ideia de bom) em Aristteles, pois enquantopara o filsofo a noo de juzo de valor tambm constituinte do epidc-tico, para a interpretao equivocada h apenas a de valor esttico, deespetculo discursivo, o que reduz e esvazia a sua fora argumentativa.De fato, o poder est em seus efeitos de intensificao: medida que a ade-so aos valores reforada e a disposio para a ao recebe mais vigor,mais obstculos so superados.

Nessa busca do assentimento do outro, imprescindvel a partilha deopinies, de vises de mundo; indispensvel a coparticipao dos qua-dros de referncia, das pressuposies, das crenas e valores e juzos; nou-tros termos, no possvel que a dxa no seja levada em conta, j que ela a responsvel pela construo da identidade social, o que a faz pertencerao campo do verossmil, do subjetivo, do falvel, do parcial. Foi por essecarter escorregadio da opinio que Plato criticou severamente a Ret-rica: via da opinio (a dxa) ele contraps a da cincia (a epistme).

Mas partilhar, em termos! Na verdade, a dxa tambm deve estarregulada em seus nveis de aproximao para que a argumentao possaeclodir. Se, por um lado, nas extremidades que os indivduos experimen-tam a unicidade ou a diferena saturada, por outro lado, na divisibili-dade das pessoas divisibilidade essa que se faz visvel na zona intermdiado continuum do mais ou menos que o papel da dxa se aplica argu-mentao, pois que, pondo em harmonia certos elementos, sem fazer iguaisorador e auditrio, ela torna a argumentao realizvel.

Dessa forma, a Retrica-Argumentao: localiza-se na interao comunicativa interpessoal e interdepen-dente, realizando-se por meio de pessoas nas menores instncias dis-cursivas do cotidiano;

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8 Nossa traduo para: Or, pour nous, le genre pidictique est central, car son rle estdintensifier ladhsion des valeurs, sans lesquelles les discours visant laction nepourraient trouver de levier pour mouvoir et mouvoir leurs auditeurs.

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encontra-se nas mais diferentes perspectivas pelas quais fundamen-tada e filtrada, mas com existncia de interesse mtuo na questo;

situa-se na dimenso do problemtico circunscrita na zona mdia docontinuum do mais ou menos de uma lgica varivel, em que a divi-sibilidade (a diferena) das pessoas ainda passvel de justificao,negociao, contestao e, portanto, de realizao de atos sociais deargumentar pela ao multilateral do discurso circunstanciado,tanto dialogal quanto dialgico, conferindo interesse perspectiva dooutro.

A segunda questo que se impe e que nos interessa neste momento :A Retrica comporta uma nica resposta necessria questodada?

De fato, apesar da conscincia (pelo menos, aparente) de que lidamoscom o incerto e com o provvel, o anseio da mais alta inspirao ainda con-tinua delineado pelo ser da certeza, fazendo com que se julgue a Retrica--Argumentao por uma bitola epistemolgica que a binariza e aunidimensionaliza (certo ou errado), o que altamente redutor, j que amultiplicidade, o problemtico, o controverso, a interrogatividade, perma-necem secundarizados.

O que se ainda percebe em muitos domnios da sociedade que os efei-tos daquela supremacia platnica do ser nico, imutvel, incontestvel,tm continuamente incompatibilizado a valorizao do complexo, do mut-vel, do refutvel, pois, apesar de se afirmar que a Retrica se ocupa doverossmil e no da Verdade, esses efeitos do ideal platnico tm mascaradoo espao prprio da Retrica e, especialmente, a sua componente delibera-tiva. Ao ainda se desejar (mesmo que inconscientemente) o necessrio e oque , desvaloriza-se o aparente e o contingente; fora dessas condiesideais, estar sujeito manipulao das convices, ao falso, errncia, suspeio, vanidade das opinies, j que somente o suporte ontolgicopode validar o discurso, entendido como expresso do ser em que se situaa Verdade.

Entretanto, de acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca, impossvelum fato (e tambm uma verdade em sistemas complexos) ser estabelecidosem qualquer interferncia do auditrio. Se, por um lado, h objetos deacordo que incidem sobre o prefervel (formados por objetos que indicamuma preferncia: valores e hierarquias, e pelos que indicam o que prefe-rvel: lugares), e deles reconhecemos, sem oposio, as constantes (re)ava-liaes, por outro lado, h aqueles que incidem sobre o real (fatos, verdadese presunes, dos quais advm os juzos de realidade) que, na perspectivada argumentao, no escapam dessa natureza imprevisvel, instvel,

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modificvel no tempo, pois sempre, quando se pretende empreg-los comopremissas teis, se dever indagar o que se pensa sobre eles, se (ainda)so aceitos, se esto suficientemente compartilhados, se alcanaram ainda que momentaneamente a condio de no necessitarem receberreforo na adeso. O certo que nenhum desses objetos tem o seu estatutodefinitivamente assegurado, pois a qualquer momento todos podem serconfrontados com outros fatos e verdades aos quais no se acredita ser pos-svel renunciar. O Tratado da Argumentao (p. 76) nos esclarece:

No contamos com nenhum critrio que nos permita, em todasas circunstncias e independentemente da atitude dos ouvintes,afirmar que alguma coisa um fato. Contudo, ns podemos reco-nhecer que existem certas condies que favorecem esseacordo, que permitem facilmente defender o fato contra adesconfiana ou a m vontade de um adversrio: esse ser esseo caso, notadamente, quando se dispe de um acordo a respeitodas condies de verificao; no entanto, assim que tivermosde efetivamente fazer intervir esse acordo, ns estamos em plenaargumentao.

nessa perspectiva que, hasteando a bandeira da multimensionali-dade, Grcio defende que o verossmil no alguma coisa a que falte algo,no parente pobre de nada ou de ningum. Antes, remete para uma din-mica convivencial em que o tempo da analiticidade difere da premncia doagir e do decidir, e da qual o risco e a contingncia no so eliminveis.Nesse sentido, Grcio acompanha Angenot (2008), Carrilho (2012), Plan-tin (1996, 1999), e entende que a tnica da argumentao no est em per-suadir, mas em conviver; est na comunicao, entendida como ato deinterao, de troca, em que as discrdias no implicam necessrio rompi-mento do convvio humano (BAUMAN, 2004).

A Retrica clssica j examinava o que bom para esta ou para aquelasituao, buscava os melhores meios relativos ao que persuasivo, emborano tivesse como finalidade ltima a persuaso, visto que a Retrica, almde no dar garantias de sucesso ao orador, buscava, de fato, a conviviali-dade, ou seja, a capacidade humana de favorecer as trocas recprocas entreas pessoas. Noutros termos: argumentamos porque preciso fazer com-preender os nossos pontos de vista, porque preciso saber lidar com asdiferenas em cada caso.

Por sua vez, sistematizando-se a partir dos fundamentos tericos daRetrica aristotlica, a Nova Retrica perelmaniana, com caractersticas doraciocnio prtico, traz tona a relevncia da convivncia com os sentidosmltiplos, com as leituras multvocas, com os conflitos interpretativos, com

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a variedade quotidiana, com os condicionamentos de pocas e de espaos,com a aceitao de que a verdade possvel nada mais do que a aceitaoda opinio que estiver melhor e mais bem fundamentada entre as outraspossveis, sobre a qual se pretende firmar acordos, ainda que provisrios,a seu respeito.

Como se sabe, Perelman revalorizou a Retrica e se ps distncia detoda espcie de foras coibentes das filosofias monistas, do cientificismo,dos absolutismos e dos dogmatismos. Noutros termos, ele revalorizou aarte da vida em que no h fundamentos absolutos e necessrios, mas,sim, a liberdade e a pluralidade humanas.

De fato, a Escola de Bruxelas (Eugne Duprel e seu pluralismo socio-lgico, Cham Perelman com a nova retrica e a racionalidade argumen-tativa, e Michel Meyer com a sua teoria da problematologia) nos temapresentado a proposta de uma nova maneira de conceber a razo e atematizao pluralista da racionalidade, que lida com a problematicidade,que nos insere nos vrios domnios das atividades humanas e nos permiteler os usos mltiplos que fazemos da lngua.

Nesse contexto, como so as provas argumentativas que auxiliam oprocesso de discernimento da melhor opinio, natural, no domnio daao, que o assentimento seja alcanado pela deciso e participao, ouseja, as questes so tematizadas sem, entretanto, oferecer-lhes soluo9

baseada em verdade apodctica. nesse sentido que Christian Kock (2009,p. 76) afirma: propostas e escolhas no podem ser verdadeiras e no aspi-ram a isso, nitidamente seguindo Aristteles que, na tica a Eudemo, 2,12261, j dizia: [...] ademais, uma escolha no verdadeira ou falsa10.

Assim, uma escolha no pode ser considerada fora de um contextomultidimensional no qual o equilbrio holstico dos vrios fatores faz comque a seleo de uma resposta seja simultaneamente um palpite. Dito deoutra maneira, que ela seja sempre uma proposta e no uma soluo. ,alis, esse carter propositivo que faz com que a negociao seja um ele-mento constitutivo das dinmicas convivenciais.

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9 No real retrico intersubjetivo, as questes exigem respostas e no necessariamente solues,uma vez que solues admitem o esgotamento do problema e respostas, mais prprias aomundo retrico, so decises provisrias. Essa pertinente distino foi feita por ManuelMaria Carrilho (2012, p. 702), quando diz: Um cientista fala de uma soluo quando oproblema desaparece, quando deixa de haver problema. Ora isso uma situao que ns noconhecemos em filosofia. O que ns temos so problemas que se tematizam (aparecem,desaparecem, mascaram-se etc.) tomando a forma de respostas. Mas estas respostas noso solues. Em filosofia no h o tipo de soluo que existe em cincia, exatamente porqueno h um procedimento que permita fazer desaparecer o problema e nisso, nessedesaparecimento, que consiste a eficcia do mtodo cientfico.

10 Nossa traduo para [...] .

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Ora, como sempre estamos inseridos em contextos, ligados e afeioa-dos a crenas e valores que nos unem e nos separam, certo que a intera-o contnua que se d na cena argumentativa passvel de muitosimprevistos. No h garantias de que o conflitual seja eliminado, no certo que o desacordo possa ser resolvido, no h opinio caucionada cujaeficcia esteja previamente garantida, de modo que, admitir opinies diver-gentes substituir a filosofia da evidncia pela filosofia do razovel, apro-priada convivncia humana pluralista. Por vezes, o melhor mesmo afazer apenas chegar a um acordo sobre a dissenso, a fim de se precisaro objeto da controvrsia irresolvel.

Mas, esse carter contingencial do discurso implica indefensabilidade?Trata-se de verdade opinativa cujos juzos de valor no possam ser prefe-ridos? Ora, as respostas dadas a assuntos em questo so indissociveis devaloraes pessoais mas diz-nos Grcio , nem por isso arbitrrias,injustificveis, indefensveis ou no susceptveis de reforo perante quemdelas discorda (GRCIO, 2010, p. 15).

verdade que a tica da Nova Retrica rebate a intolerncia natu-ralmente provocada pela ideia de uma Verdade que exclui todo o discursoque com ela no coincida. Entretanto, ela no s pe em questo o envol-vimento fantico daquele que adere a um ponto de vista que, embora sejapor natureza questionvel, foi acolhido como absoluto, mas tambm pro-blematiza a ausncia de envolvimento por ceticismo, sob a alegao idea-lista de que um ponto de vista no pode receber status definitivo. Ora, nemuma nem outra dessas extremidades; a argumentao, na multiplicidadefluida das opinies, das emoes, das reviravoltas possveis (MEYER,2005, p. 4111) visa, de fato, a promover uma escolha pessoal, razovel e res-ponsvel entre as possveis verdades no unssonas, j que no implicanoes de verdade/falsidade, de certo/errado na forma binria:

Como a prova retrica jamais totalmente necessria, oesprito que d sua adeso s concluses de uma argumentaoo faz por um ato que o envolve e pelo qual responsvel. Ofantico aceita esse envolvimento, mas como algum que se in-clina ante uma verdade absoluta e irrefragvel; o ctico recusaesse envolvimento, a pretexto de que ele no lhe parece poderser definitivo. Recusa-se a aderir porque tem da adeso uma ideiaque se assemelha do fantico: ambos desconhecem que aargumentao visa a uma escolha entre possveis; propondo ejustificando a hierarquia deles, ela tenciona tornar racional uma

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11 Nossa traduo para: [...] multiplicit fluide des opinions, des motions, des revirementspossibles.

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deciso. Fanatismo e ceticismo negam essa funo daargumentao em nossas decises. Tendem ambos a deixar, nafalta de razo coerciva, campo livre violncia, recusando oenvolvimento da pessoa (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,2002, p. 69-70).

Se, por um lado, verdade que, no mundo do verossmil, todo argu-mento intrinsecamente discutvel, tambm certo que todos os objetos deacordo concernentes ao prefervel, cuja impossibilidade de experincia e deverificao no permite o acordo universal, podem, sim, ser aceitos porescolha justificada, pela razoabilidade que as opes apresentadas portamconsigo. A esse respeito, Kock adverte:

O fato de que, em matria de escolha, nenhum dos argumen -tadores necessariamente ser forado a retirar o seu ponto devista e, inversamente, o de que ningum pode provar con-clusivamente o seu ponto de vista tambm a razo por quetodos os recursos da argumentao: ethos e pathos, seletividadetpica, audincia, adaptao, os dispositivos de apresentaoe outros, geralmente sero convocados. [...]No entanto, problemtico quando os tericos da argumentaoveem retrica como principal, ou mesmo exclusivamentedefinida pelo desejo dos argumentadores de persuadir. Taldefinio truncada faz com que tericos se esqueam do que amaioria dos pensadores retricos sempre soube, ou seja, que aargumentao concernente escolha de ao um domniodistinto com caractersticas distintas (KOCK, 2009, p. 77)12.

A Nova Retrica, na base da racionalidade argumentativa, aponta abusca da negociao, a busca de racionalidade compartilhada em meio aouniverso inquietante do verossmil, do universo dos conhecimentos prov-veis e da controvrsia. Como j dizia David Zarefsky (1995): Devemos vera argumentao como a prtica de justificar decises sob condies deincerteza. E, de fato, nessas condies contingenciais, a abertura para omltiplo e o no-coercitivo a palavra-chave da racionalidade.

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12 Nossa traduo para: The fact that, in matters of choice, none of the arguers will necessarilybe forced to retract his standpoint, and, conversely, that none can conclusively prove hisstandpoint, is also the reason why all the resources of rhetorical argumentation: ethos andpathos, topical selectivity, audience adaptation, presentational devices, and more, willusually be mustered. [...] Nevertheless it is problematic when theorists of argumentation seerhetoric as primarily or even exclusively defined by the arguers wish to persuade. Such atruncated definition allows theorists to forget what a most rhetorical thinkers have alwaysknown, namely that argumentation concerning choice of action is a distinct domain withdistinctive features.

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As ltimas linhas do Tratado da Argumentao insistem nessa condi-o pragmtica inerente Retrica-Argumentao, dependente das opi-nies e convices, dos hbitos e comportamentos, das paixes e aspiraesdos auditrios na interao interpessoal e, ainda, dependente do modocomo cada um se insere no mundo e o perspectiva na zona do problemtico.Dessa forma, as premissas da argumentao no se do em espao abs-trato de raciocnio; so, na verdade, apreciadas em seu modo de ao sobreo esprito humano e esto associadas ao exerccio da liberdade humana.

Kock, ao falar sobre as caractersticas distintivas da argumentao,enfatiza a noo de escolha. Nem coerciva, nem arbitrria; nem verdadeobjetiva, nem recurso violncia; nem falsa, nem verdadeira; simples-mente, retoricamente prefervel entre outras possveis, produto de umaracionalidade argumentativa que justifica a tomada de posio por meio derazes sociais de ordem prtica:

[...] na argumentao a respeito de escolha de ao, umdesacordo razovel pode existir e persistir indefinidamente;nesse domnio no ocorre o caso em que um dos dois argu -mentadores opostos possa provar conclusivamente o seu pontode vista, ou que seja forado a retrai-lo, mas um domnio ricoem recursos pelos quais argumentadores podem influenciar ou-tras adeses individuais. Quando