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“MAIS PARECE UM SONHO ILUSÓRIO DO QUE UM FATO REAL E ACABADO”: A LAICIDADE REPUBLICANA DISCUTIDA NA IMPRENSA EVANGÉLICA (1889-1892) Pedro Henrique Cavalcante de Medeiros UFRRJ / FAPERJ [email protected] O fim do regime de padroado com a plena liberdade religiosa foi uma das bandeiras levantadas pelos liberais durante o segundo reinado, principalmente a partir do renascer liberal da década de 1860. Os protestantes, principalmente os missionários norte- americanos de diversas denominações, por meio da imprensa, lutaram para que essa separação entre o poder religioso e o poder político se efetivasse, algo que teria sido alcançado somente com a Proclamação da República. Nossa comunicação foca o discurso protestante presbiteriano produzido no jornal Imprensa Evangélica entre 1889 e 1892, com relação à mudança de regime em 1889, à laicidade instaurada por meio do Decreto 119-A de 1890 e à Constituição Republicana de 1891. Ao analisar as publicações do jornal, procuramos compreender em que medida a laicidade instaurada na República atendia às demandas dos protestantes presbiterianos. Ressaltaremos a expectativa gerada entre os redatores da Imprensa Evangélica em relação ao novo regime. Indicaremos os primeiros pontos de discordância dos protestantes presbiterianos com os rumos que o governo recém instaurado estava tomando em relação à religião e à sociedade. Por fim, proporemos caminhos para pensar o conceito de laicidade para aqueles que eram concorrentes da religião dominante no campo religioso brasileiro. 1. A expectativa da laicidade

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“MAIS PARECE UM SONHO ILUSÓRIO DO QUE UM FATO REAL E

ACABADO”: A LAICIDADE REPUBLICANA DISCUTIDA NA IMPRENSA

EVANGÉLICA (1889-1892)

Pedro Henrique Cavalcante de Medeiros

UFRRJ / FAPERJ

[email protected]

O fim do regime de padroado com a plena liberdade religiosa foi uma das

bandeiras levantadas pelos liberais durante o segundo reinado, principalmente a partir do

renascer liberal da década de 1860. Os protestantes, principalmente os missionários norte-

americanos de diversas denominações, por meio da imprensa, lutaram para que essa

separação entre o poder religioso e o poder político se efetivasse, algo que teria sido

alcançado somente com a Proclamação da República.

Nossa comunicação foca o discurso protestante presbiteriano produzido no jornal

Imprensa Evangélica entre 1889 e 1892, com relação à mudança de regime em 1889, à

laicidade instaurada por meio do Decreto 119-A de 1890 e à Constituição Republicana de

1891. Ao analisar as publicações do jornal, procuramos compreender em que medida a

laicidade instaurada na República atendia às demandas dos protestantes presbiterianos.

Ressaltaremos a expectativa gerada entre os redatores da Imprensa Evangélica em

relação ao novo regime. Indicaremos os primeiros pontos de discordância dos protestantes

presbiterianos com os rumos que o governo recém instaurado estava tomando em relação

à religião e à sociedade. Por fim, proporemos caminhos para pensar o conceito de

laicidade para aqueles que eram concorrentes da religião dominante no campo religioso

brasileiro.

1. A expectativa da laicidade

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No decurso das pesquisas de mestrado, analisamos o jornal Imprensa Evangélica

entre os anos de 1864 e 1873. O resultado de nossa pesquisa demonstrou que o tema da

liberdade religiosa havia sido amplamente discutido na esfera pública. E o jornal

evangélico não hesitou em reproduzir e discutir as principais ideias sobre esse tema.

Destacaram-se, por exemplo, naquele período, quatro opúsculos publicados sobre

o tema: Doze Proposições sobre a Legitimidade Religiosa da Verdadeira Tolerância dos

Cultos, de Ephraim; Da Liberdade Religiosa no Brasil: um estudo de Direito

Constitucional, de Antônio Joaquim de Macedo Soares; A Liberdade Religiosa Segundo

o Sr. Dr. A. J. de Macedo Soares: magistrado brasileiro, publicado no jornal ultramontano

O Missionário Católico; e Exposição dos Verdadeiros Princípios sobre que se baseia a

Liberdade Religiosa, de Melasporos. Desses opúsculos, verificamos que o editorial

evangélico rejeitava propostas abstratas e racionalistas sobre a laicidade. Mas advogava

propostas pragmáticas como a imediata separação da igreja do Estado (MEDEIROS,

2018, p. 170).

A discussão deste tema sempre esteve presente nas folhas da Imprensa Evangélica

(1889, p. 5). Mas, no último ano do Império, a questão da laicidade volta a ser discutido

de forma intensa. Em 5 de janeiro de 1889, o editorial expõe sua opinião sobre um projeto

de liberdade de cultos que havia passado no Senado, mas que fora barrado na Câmara.

"Virá a liberdade de cultos, assim como virá a este povo paciente e longânimo o

conhecimento da liberdade completa que se acha no Evangelho e com este conhecimento

o poder de sacudir o jugo de Roma, que há tantos anos, o acabrunha".

Para o editorial, somente a doutrina evangélica poderia cooperar para o progresso

e engrandecimento do povo. O regime de padroado era o obstáculo para o progresso da

civilização brasileira. Somente o protestantismo se adaptava ao pensamento moderno.

Em 26 de janeiro, a Imprensa Evangélica (1889, p. 28), ao tratar do progresso da

humanidade em direção à liberdade religiosa, utiliza como referencial teórico as ideias de

Jean Jacques Rousseau (1712-1778) sobre a lei da perfectibilidade. Dessa forma, o

progresso não se daria por saltos, nem por força. Progresso é desenvolvimento, uma

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evolução. Um processo de transformação que se origina nas ideias, passando depois para

os costumes e alcançando as leis.

Essa publicação havia sido motivada em razão do Decreto 9.886 de 7 de março de

1888, que estabeleceu a obrigatoriedade do registro civil de nascimento, casamento e

óbito para todo cidadão brasileiro. Embora não satisfizesse as aspirações dos brasileiros,

era uma lei da liberdade e do progresso. Além disso, o Decreto era fruto da demanda dos

evangélicos. Era o fruto das ideias de liberdade advogadas durante a década de 1870. Não

deveria ser considerada como um “dom gratuito” do governo.

Em 2 de março, a Imprensa Evangélica (1889, p. 68) reclama que o atraso do

Brasil era ocasionado pela entrada das ordens monásticas estrangeiras. O clero nacional

podia ser tolerado, pois, além de serem brasileiros, ainda era liberal. “Sempre conserva

no íntimo da alma social um pouco da preciosíssima brisa Americana, isto é, um resquício

de amor a liberdade e a luz”.

Em seguida, o editorial expressa a opinião de que se durante o período colonial,

na guerra entre portugueses e holandeses em Pernambuco, a vitória tivesse sido dos

holandeses, neste momento, o Brasil estaria muito mais avançado que os holandeses em

relação à religião. Pois “a Bíblia eleva os povos e dá garantia segura de paz”. O editorial

defende “a Bíblia como garantia da ordem social”. Ela, ou melhor sua divulgação pela

religião evangélica, resolveria as questões sociais do momento, que em síntese era o

“restabelecimento da liberdade com boa ordem”.

Ainda em 18 de maio, como matéria de capa, a Imprensa Evangélica (1889, p.

160) chama a princesa Isabel de Condessa D’Eu e fanática. Na mesma edição, o editorial

comentou a Fala do Trono, em que o imperador falou da necessidade de abertura de novos

bispados e universidades. Para o editorial, essas medidas eram inúteis. Outras reformas

urgentes como o casamento civil e a liberdade de cultos eram ignoradas pelo Imperador.

Percebemos que a partir de então, o jornal passa a defender abertamente a

República. Em 20 de julho, a Imprensa Evangélica (1889, p. 232) declara que a França

havia alcançado a prosperidade com a República. A República era baseada na ordem, na

justiça, na liberdade de consciência, no progresso moral e material. “É o mesmo que se

dará em todo país que tomar o mesmo caminho”.

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Em 3 de agosto, a Imprensa Evangélica (1889, p. 241) menciona a história da

Revolução Inglesa e a instauração da República na Inglaterra, “que tão importantes

serviços prestou ao país, dirigindo-o pela senda da liberdade e do progresso”.

Em 17 de agosto, o editorial cita o conselheiro Bastos, sobre a ideia de liberdade.

A liberdade não era uma questão política e sim religiosa. “Sem religião e sem justiça, não

há liberdade” (IMPRENSA EVANGÉLICA, 1889, p. 260). Somente por meio do

Evangelho as sociedades poderiam alcançar a liberdade.

Em 31 de agosto, a Imprensa Evangélica (1889, p. 274) procura demonstrar como

é a fé de um presidente norte-americano, o país com a laicidade modelo para o editorial.

William Henry Harrison (1833-1901) tinha firmeza em suas convicções que são expressas

em suas orações públicas. A tônica era a responsabilidade do homem com Deus.

O presidente Harrison era um “exemplo de probidade e moralidade austera”. Por

moralidade, o editorial explica: “madrugador, laborioso, sincero em seus costumes,

poucas vezes vai a divertimentos e quando o faz é com toda a família”. Sempre

acompanhado de sua esposa, “que durante muito tempo tem dirigido uma seção infantil

em uma escola dominical, e toma parte ativíssima nas obras de caridade e nas missões da

igreja”. Conclui: “a homens de fé e de oração como o atual presidente da grande república

é que deviam estar confiadas as rédeas dos governos de todas as nações”.

Em 14 de setembro, a Imprensa Evangélica (1889, p. 293) volta a discutir a ideia

de liberdade. Para o editorial, a liberdade era “a nossa glória de fazermos nós mesmos o

que nós mesmos devermos fazer”. A liberdade como condição essencial da felicidade

“supõe um princípio superior, dentro do qual ela se deve mover, posto que sempre

independente”.

Em 21 de setembro, a Imprensa Evangélica (1889, p. 300) comenta a vitória do

partido liberal nas últimas eleições. Era o momento de assegurar a execução das reformas

liberais. O editorial referia-se, principalmente, ao casamento civil e à liberdade de cultos.

Caso essas reformas não fossem realizadas, o partido seria indigno do nome liberal.

Não se desejava privilégio para os não católicos e sim igualdade e justiça. Certos

de que os liberais eram amantes da liberdade, restava aos não católicos confiar que eles

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dariam “provas do seu patriotismo e do seu amor aos altos interesses da sociedade

brasileira”.

Em 28 de setembro, a Imprensa Evangélica (1889, p. 308) reforça que era alheia

a questões puramente partidárias. Mas considerava os deveres de patriotismo da imprensa

religiosa em discutir temas políticos que tinham feição moral. “Neste sentido ela pertence

forçosamente às matérias de doutrinamento obrigatório, aos que se acham encarregados

do ensino moral e espiritual do povo”.

Para o editorial, o ministério Ouro Preto possuía vantagens excepcionais para

efetuar as reformas necessárias. Mas se as reformas não ocorressem, “os membros do

atual gabinete terão seu lugar na vala comum e o partido que dizem representar, passará

a ser cousa da história”.

Em 23 de novembro, a Imprensa Evangélica (1889, p. 369) comenta a

Proclamação da República em matéria de capa com o título: Estados Unidos do Brasil.

Acabamos de presenciar o acontecimento mais estupendo e extraordinário que

se tem dado no século presente. Já está consumado, já ninguém duvida de sua

realidade, mas tão maravilhoso ele se apresenta aos nossos olhos, que mais

parece um sonho ilusório do que um fato real e acabado.

Segundo o editorial, o processo de instauração da República foi extraordinário e

único na história. Era motivo de orgulho para o Brasil, pois havia realizado uma reforma

radical sem perturbar a ordem pública. Não havia sinal de tempestade política nada que

alterasse a ordem social.

Raiou o dia 15, e logo a notícia de uma revolta do exército percorreu por todos

os ângulos da cidade, com a velocidade do relâmpago; e enquanto o povo

ansioso indagava a causa deste movimento, eis que toda a tropa desfilava pelas ruas da cidade na maior ordem e debaixo da mais admirável disciplina por entre

numerosas ondas de povo que saudava o exército com palmas e com a mais

delirantes vivas à república!

Dessa forma, à redação do jornal restava agradecer a Deus pela “grande bênção”

que havia concedido ao Brasil. Como o governo demonstrava ser de ordem e liberdade, a

redação declarava seu apoio ao governo. E declara esperar o decreto da plena igualdade

de cultos na República.

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Em 23 de novembro, a Imprensa Evangélica (1889, p. 374) transcreve um artigo

de James Brick, publicado na República Americana, sobre a laicidade nos Estados

Unidos. Lá, todas as corporações religiosas eram reconhecidas como “associações

voluntárias de cidadãos particulares” e tinham igualdade perante a lei.

A partir de 30 de novembro, percebemos uma ansiedade na redação da Imprensa

Evangélica (1889, p. 377) devido à aparente demora em decretar de uma vez a separação

entre o Estado e a Igreja. “Ora, como poderá o governo da República sustentar por mais

tempo a grande injustiça”. Enquanto não fosse decretada a separação, não haveria

liberdade, igualdade e fraternidade no Brasil, ideias que formavam a base da verdadeira

democracia.

Então, o editorial confronta a realidade brasileira com a dos Estados Unidos lugar

onde todas as comunidades de fé eram sustentadas pelos próprios fieis. Num

questionamento retórico, diz: “acaso queremos ficar neste ponto inferiores à grande

república da América do Norte? De nenhum modo!”

Ainda na edição de 30 de novembro, a Imprensa Evangélica (1889, p. 378) cita as

ideias de Saldanha Marinho sobre a ideia de laicidade. Segundo Saldanha Marinho, o

privilégio de uma igreja era a causa da perturbação da ordem e da civilização. Somente

com a laicidade, o patriotismo renasceria e o Brasil alcançaria um nível maior de

civilização.

Em 7 de dezembro, a Imprensa Evangélica (1889, p. 385) convoca os evangélicos

para o trabalho, pois a salvação do Brasil estava no “Evangelho de Jesus Cristo, que, se

estes princípios de verdadeira liberdade proclamados por Ele não forem aceitos pelo povo

brasileiro, um futuro pouco lisonjeiro aguarda esta nação”. Era a responsabilidade das

Igrejas Evangélicas trabalhar para “lançar as bases da liberdade pátria sobre a Rocha dos

séculos, para que seja conhecida a religião pura sem a qual não pode haver verdadeira

liberdade em país qualquer”.

A França havia proclamado a liberdade e a fraternidade, mas ainda não tinha

alcançado a verdadeira liberdade, pois lá, prevalecia o ceticismo e a incredulidade. Por

isso, não havia República bem consolidada sem a “aceitação geral da Sagrada Escritura,

de seus princípios divinos e de sua moral pura e severa”.

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Os evangélicos demonstrariam seu patriotismo trabalhando na divulgação do

Evangelho no Brasil. As Igrejas Evangélicas eram o “sal da terra”. Desse trabalho

dependia a “salvação da pátria”.

Ainda na edição de 7 de dezembro, a Imprensa Evangélica (1889, p. 387) volta a

discutir a ideia de liberdade religiosa. Neste momento, o editorial faz um contraste entre

a ideia de laicidade europeia e americana. Na Europa, a laicidade era vista como uma

“declaração de desprezível indiferença da parte do Estado para com interesses espirituais

de seu povo”. Nos Estados Unidos, a laicidade era diferente. Na República do norte, a

laicidade estava assentada sobre dois princípios, um político e outro religioso.

Em política, a laicidade era baseada na liberdade e na igualdade. Uma

interferência do Estado em assuntos religiosos era vista como um atentado à liberdade de

pensamento e à liberdade de ação, enfim, à liberdade individual. Além disso, qualquer

privilégio dado a um clero particular era um ataque ao princípio da igualdade.

Sob a perspectiva religiosa, entende-se que uma corporação espiritual só tem fins

espirituais. Essa corporação reúne homens que possuem uma devoção em comum a um

ser invisível, nutrindo a esperança de um futuro ilimitável. Por isso, era inconcebível a

imposição de uma crença, uma vez que essa corporação estava fundada no amor e na

reverência, não na lei. Não precisava do apoio do Estado, “seu reino não é deste mundo”.

Os privilégios exclusivos também não interessavam a essas corporações. Os

privilégios atrairiam pessoas estranhas aos objetivos da corporação. Isso corromperia “a

simplicidade daqueles que já são seus membros”. Por isso, “a igreja como entidade

espiritual há de ser muito mais feliz e mais forte quando for absolutamente entregue a si

própria, quando não for patrocinada pelo poder civil”

Além desses princípios, o editorial também destacou a singular ideia de Estado

vigente entre os americanos. Diferente dos europeus, os americanos não viam o estado

como um “poder moral ideal, encarregado da obrigação de formar os caracteres e guiar

as vidas de seus súditos”. No pensamento americano, o Estado era

Semelhante a uma vasta companhia comercial ou talvez a uma vasta

municipalidade criada para a gerencia de certo negócio em que são

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interessados todos os que residem dentro de seus limites, levantando

contribuições e despendendo-as neste negócio de interesse comum, mas

deixando quase em tudo o mais entregues a si mesmos, os acionistas ou

burgueses. [...] Portanto não ocorre nunca ao Americano em geral que haja

qualquer razão pela qual deve existir igrejas de Estado e ele fica pasmo ao ver

o fervor do sentimento europeu a este respeito.

Essa discussão teve continuidade em 14 de dezembro. O editorial da Imprensa

Evangélica (1889, p. 395), apresentou as particularidades da cultura civil-religiosa norte-

americana, como o Dia de Ação de Graças e o Dia de Oração e Jejum Comum. Para o

editorial, isso provava que de fato o Cristianismo era a religião estabelecida na América.

Os Estados Unidos não era uma república ateia. Portanto, “os americanos concebem que

o caráter religioso de um governo não consiste noutra coisa senão na crença religiosa de

cada um dos cidadãos e na conformidade de seu procedimento com aquela crença”.

A crença comum no Cristianismo era reconhecida por todos como a fonte da

prosperidade nacional. Sua nação era concebida como “objeto especial do favor Divino”.

As corporações religiosas recebiam do Estado apenas o favor em relação aos impostos de

suas propriedades, o que não feria a teoria. Isso, porque, elas “prestam serviços como

agentes morais e diminuem as despesas incursas relativamente à administração da

polícia”.

Em 21 de dezembro, a Imprensa Evangélica (1889, p. 402) continuou tratando da

cultura civil-religiosa dos Estados Unidos. O editorial diz que o único país da Europa que

mais se assemelhava aos Estados Unidos nesta questão era a Escócia. Note, a Escócia era

o país originário dos presbiterianos, advindos da reforma promovida por John Knox. Nos

Estados Unidos, havia rivalidade entre as diversas seitas religiosas. Mas era uma

rivalidade restrita a questões espirituais. Não havia perseguições, pois o Estado

permanecia neutro.

Ainda nesta edição, a Imprensa Evangélica (1889, p. 407) começa a citar a obra

de Edouard de Laboulaye (1811-1883), o poeta francês, teórico da laicidade e idealizador

da estátua da liberdade. O padroado era escravidão. O modelo de laicidade americana

fornecia uma noção de liberdade singular, que ensinava os homens a respeitá-la e amá-la.

“Nesta liberdade fecunda, que eleva as almas, esclarece e pacifica os espíritos, une os

corações, vemos nós o fruto o mais perfeito do Evangelho”. Essa liberdade só existia em

países que reconheciam Jesus Cristo como seu mestre.

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Ainda em 14 de dezembro, a Imprensa Evangélica (1889, p. 393) procurou

demonstrar que o catolicismo não era a religião da maioria dos brasileiros. Para o

editorial, o catolicismo representava a crença apenas de um pequeno número de

brasileiros. Para provar seu argumento, o editorial diz não considerar nem os crentes das

igrejas evangélicas, nem os positivistas, nem os materialistas, nem os espíritas, nem os

indiferentes. Mas provaria o grau de catolicidade da população. O argumento se basearia

na observação e no senso comum.

A Igreja Católica impunha alguns deveres obrigatórios a todos os católicos.

“Nenhum fiel pode desprezá-lo sem ficar sujeito às mais severas penas espirituais, e até

a excomunhão da igreja”. Eram cinco deveres: ouvir Missa inteira nos domingos e festas

de guarda; confessar-se ao menos uma vez cada ano; comungar ao menos pela Páscoa da

Ressurreição; jejuar quando manda a Santa Madre Igreja; e pagar dízimos e primícias. Os

católicos sinceros seguiriam fielmente estas regras. Mas, observando apenas a província

do Rio de Janeiro, era difícil ver um católico que fosse fiel cumpridor de todas as regras.

Em 21 de dezembro, a Imprensa Evangélica (1889, p. 401) publica uma pastoral

na primeira capa convocando os leitores a orarem pela pátria. A República estava diante

de grandes desafios e o descontentamento era crescente. “Se todos os brasileiros

procurarem a união, a paz e o bem da pátria, o governo pode ser organizado nos novos

moldes e o Brasil pode continuar na sua carreira de prosperidade”.

Em seu discurso, o editorial utiliza a retórica religiosa para dizer que os

evangélicos eram poucos, “mas o nosso Deus é todo-poderoso”. Deus, como controlador

dos destinos das nações, havia em sua providência derrubado a monarquia. A República

fazia parte do seu plano. “Recorramos, pois, a Ele pedindo com todo o fervor que abençoe

os homens que estão no poder, dando-lhes prudência e sabedoria, moderando a ambição

e o orgulho onde quer que apareçam, fazendo desaparecer a discórdia e o ódio, inclinando

todos a viver em paz e harmonia”. Era dever dos leitores orarem pela pátria.

Em 4 de janeiro de 1890, a Imprensa Evangélica (1890, p. 1) publica um

comentário em matéria de capa sobre as reformas realizadas no ano anterior: o registro

civil, a Proclamação da República e a naturalização dos estrangeiros. Entretanto, o

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editorial lamenta que a separação entre o Estado e a Igreja ainda não houvesse sido

efetuada.

Se o regime de “religião privilegiada” continuasse não haveria fraternidade entre

o povo brasileiro. O editorial declara que sua oposição não era contra a Igreja Católica,

mas contra o fato dela continuar sendo subsidiada pelos cofres públicos. “Todo brasileiro

patriota e que nutre o ardente desejo de ver sua pátria engrandecida e forte, deve pugnar

corajosamente pelo grande princípio de justiça que iguala os direitos a todos os seus

concidadãos”. O que o brasileiro patriota desejava era a separação para a República

brasileira ser semelhante à dos Estados Unidos da América.

Na mesma edição de 4 de janeiro, a Imprensa Evangélica (1889, p. 3) transcreveu

um discurso de Rui Barbosa sobre a liberdade religiosa. No trecho selecionado pelo

editorial, Rui Barbosa declarava que a união entre a igreja e o Estado era uma prostituição.

Prostituição do Cristianismo e prostituição do soberania civil. O resultado de tal união era

“um povo sem fé, um clero sem vocação, indivíduos sem o instinto do direito, instituições

sem autoridade, uma nacionalidade, em suma, cristã e politicamente imersa em atonia

mortal”.

Somente sob o domínio da liberdade religiosa o sentimento cristão brotaria. Para

Rui Barbosa, os Estados Unidos também serviam como melhor exemplo. “Não há, no

mundo inteiro, um país onde tão ativa, tão intensa e tão universalizada seja a fé”. No país

onde não havia legislação de cultos, a opinião era tão religiosa que não compreendia a

incredulidade.

Destacamos que Rui Barbosa também utiliza como referencial teórico as ideias de

Laboulaye para demonstrar como o pensamento religioso cristão fundou as instituições

americanas. Não haveria país onde o cristianismo estivesse tão envolvido com a vida

social e política. A liberdade religiosa é o princípio de todas as outras liberdades. “Porque

esses conflitos incruentos entre ideia e ideia, entre religião e religião, entre seita e seita,

são o meio natural, onde o cristianismo se retempera, se restaura, se depura, se estende,

se aprofunda, e, acercando-se da sua origem, aproxima-se de seu ideal”.

2. A realização da laicidade

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Em 11 de janeiro, a Imprensa Evangélica (1889, p. 2) publica o Decreto da

liberdade religiosa, conhecido como Decreto 119-A de 7 de janeiro de 1890. Para o

editorial, “não haverá patriota, certamente, que se não orgulhe com este glorioso decreto,

cuja data brilhará na história pátria com intensidade igual às de 13 de Maio e 15 de

Novembro”. O brasileiro sabia resolver seus problemas “a energia e a prudência que

fazem a honra do caráter brasileiro”.

É um fato curioso que no mesmo artigo, a redação procure afirmar sua identidade

presbiteriana. Os países em que havia mais liberdade eram os que a maior parte do povo

era calvinista. Os maiores exemplos eram a Escócia e os Estados Unidos. Mas as nações

católicas eram as menos tolerantes e tinham menos liberdade. “Ao teólogo de Genebra

pertence a glória de ter lançado as bases da liberdade moderna”.

Além disso, a Bíblia continha a Constituição política mais antiga e a mais liberal

do mundo antigo. Para o editorial, a comissão encarregada de redigir a Constituição

brasileira deveria se atentar para Constituição da nação hebraica, promulgada por Moisés.

“Moisés foi o primeiro a estabelecer uma república com plena liberdade e garantias para

todos os cidadãos. [...] Foi um governo pelo povo”.

No entanto, no editorial de 18 de janeiro, a Imprensa Evangélica (1890, p. 3)

transcreveu um alerta da Gazeta de Notícias sobre a contradição existente entre os artigos

1º e 6º do Decreto. O primeiro artigo estabelecia o seguinte:

É proibido à autoridade federal, assim como à dos estados federados, expedir

leis, regulamentos, ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços

sustentados à custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões

filosóficas ou religiosas.

No entanto, o artigo sexto estabelecia:

O governo federal continua a prover a côngrua, sustentação dos atuais

serventuários do culto católico e subvencionará por um ano as cadeiras dos seminários; ficando livre a cada estado o arbítrio de manter os futuros ministros

desse ou de outro culto, sem contravenção do disposto nos artigos

antecedentes.

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Segundo a Gazeta de Notícias, o artigo sexto era contraditório e atentatório ao

espírito liberal da reforma.

Em 12 de abril, a Imprensa Evangélica (1890, p. 2) transcreveu um artigo do

Movimento de Ouro Preto comentando o Decreto. Segundo o jornal mineiro, “o governo

provisório tem a intuição justa das coisas”. Era a preparação para uma “pátria livre,

grande e próspera”.

Em 26 de abril, a Imprensa Evangélica (1890, p. 1) publica um artigo propondo A

Solução Protestante para a República. O editorial alertava para o fato da hierarquia

católica já estar se organizando para manter a união com o Estado. Os protestantes

reconheciam a necessidade de religião na República. “Sem religião não pode haver moral,

sem moral não pode haver um povo livre”

Portanto, o povo deveria ser religioso, mas não fanático. A religião protestante era

a única que ensinava a moral tirada das Escrituras Sagradas, “é a mais pura que pode

haver; e a moral é a base da ordem, paz e prosperidade da sociedade”. Além disso, os

protestantes não se metiam em política, pois Jesus havia dito que “o meu reino não é deste

mundo”.

Em 5 de julho, a Imprensa Evangélica (1890, p. 2) publica os artigos sobre

laicidade do projeto de Constituição e transcreve o comentário da Gazeta de Notícias.

Para a Gazeta de Notícias, o projeto de constituição feria o princípio da liberdade

religiosa. Porém, os homens da política deveriam ser pragmáticos e não estarem presos a

abstrações filosóficas.

Os artigos eram atentatórios contra a Igreja Católica. Porém, a hierarquia católica

estava contra a liberdade republicana. “Se atendermos a que essa igreja constitui

propriamente um partido político, não devemos estranhar, antes devemos aplaudir, que

um governo republicano a trate como a adversários políticos”. Com o catolicismo, a

República deveria ser tolerante, mas com o partido católico, deveria ser intransigente.

Em 19 de julho, a Imprensa Evangélica (1890, p. 1) aborda a questão da

possibilidade de um Estado ser ateu. Para o editorial, essa ideia só existia quando se

ignorava que o Estado é um termo abstrato. Além disso, governo não era o Estado. Estado

era a nação. “Toda a nação organizada com o governo e leis é um Estado”. Por isso, era

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impossível que o Estado fosse ateu ao declarar-se laico. Novamente, o maior exemplo são

os Estados Unidos.

Conclusão

A Imprensa Evangélica foi o órgão oficial da missão presbiteriana do norte dos

Estados Unidos (PCUSA). Foi fundada em 1864 e em 1892 teve suas publicações

encerradas por ordem da Junta de Missões da PCUSA. O encerramento deste jornal tinha

sido fruto do movimento de nacionalização do presbiterianismo no Brasil.

Diversos temas político-religiosos foram discutidos ao longo das publicações da

Imprensa Evangélica. Mas a liberdade religiosa foi o tema mais discutido. Nesta

comunicação, nossa pretensão foi apresentar, de forma sintetizada, os discursos

publicados no jornal em relação à laicidade, desde a Proclamação da República até o

Decreto 119-A e a Constituição.

Neste momento, estamos analisando outras questões relacionadas a esse tema,

principalmente a reação dos presbiterianos quando constataram que embora laica, a

República passara a favorecer tacitamente a Igreja Católica. Outra questão a ser abordada

ainda é o discurso contraditório de considerar o espiritismo como caso de polícia,

negando-lhe, ao menos no discurso, o direito à liberdade religiosa. Essas questões ainda

podem ser vistas na Imprensa Evangélica e depois no jornal O Estandarte, que se tornou

o órgão oficial do presbiterianismo nacional a partir de 1893.

Fonte

IMPRENSA EVANGELICA. São Paulo/Rio de Janeiro, 1889-1892.

Referencial Bibliográfico

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