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1 Aos grandes homens a Pátria reconhecida. Os Justos no Panthéon 1 (Publicado em: Rollemberg, Denise. "Aos grandes homens a Pátria reconhecida. Os Justos no Panthéon". Angela de Castro Gomes (org.). Direitos e Cidadania. Memória, política e cultura. Vol. 2.Rio de Janeiro: Ed.Fundação Getúlio Vargas, 2007). Denise Rollemberg "O inquietante com Vichy não é tanto os crimes de uma minoria, mas a indiferença da grande maioria". Henry Rousso 2 . Passadas seis décadas da Libertação, os Justos entram no Panthéon. Dia 18 de janeiro de 2007, em cerimônia solene, o presidente da República, Jacques Chirac, homenageou os 2.725 franceses e francesas que ajudaram a salvar judeus na França durante a Ocupação e o regime de Vichy (1940-1944). Chirac já havia dado um passo importante nesta direção, em 16 de julho de 1995, quando reconheu a responsabilidade do Estado francês na entrega à Alemanha nazista de perseguidos pelo regime. Era a primeira vez que um chefe de Estado o fazia: “ Sim, a loucura criminosa do ocupante foi auxiliada por franceses, pelo Estado francês.(...). A França, pátria dos Iluministas e dos Direitos do Homem, terra de acolhimento e de asilo, a França, neste dia, realizava o irreparável. Faltando com a palavra, entregava os que tinha sob sua guarda a seus carrascos3 . O discurso foi pronunciado na rememoração da grande razia do Vel'd'Hiv (Velódromo de Inverno) ocorrida em 16 e 17 de julho de 1942, quando, na capital e na região parisiense, cerca de dez mil homens, mulheres e crianças judeus foram presos no 1 A bibliografia e as reflexões aqui trabalhadas inserem-se na minha pesquisa de pós-doutorado realizada no quadro do Acordo Capes-Cofecub coordenado pelos Professores Daniel Aarão Reis Filho (UFF) e Denis Rolland (Universidade Robert Schuman, Strasbourg). Dedico o artigo à Delphine e ao Jérôme que perderam a batalha contra a banalização do mal. 2 Henry Rousso, citado por Peter Reichel. L'Allemagne et sa mémoire. Paris, Éditions Odile Jacob, 1998, p.10. 3 Jacques Chirac. Discurso do presidente da República, na comemoração da grande razia do Vel’d’Hiv, de 16 e 17 de julho de 1942. Paris, 16 de julho de 1995. www.sunderland.ac.uk/~os0tmc/occupied/chirac.htm Last Update 16-Oct-00. Consultado em 8 de fevereiro de 2007. Nota-se que eram os primeiros meses do primeiro mandato de Chirac, como observou Vincent Duclert. “Le Panthéon, un double enjeu”. Libération. Paris, 19 de Janeiro de 2007, p. 28.

Aos grandes homens a Pátria reconhecida. Os Justos no Panthéon1

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Aos grandes homens a Pátria reconhecida. Os Justos no Panthéon1

(Publicado em: Rollemberg, Denise. "Aos grandes homens a Pátria reconhecida. Os Justos no Panthéon". Angela de Castro Gomes (org.). Direitos e Cidadania. Memória, política e cultura. Vol. 2.Rio de Janeiro: Ed.Fundação Getúlio Vargas, 2007).

Denise Rollemberg

"O inquietante com Vichy não é tanto os crimes de uma minoria, mas a indiferença da grande maioria".Henry Rousso2.

Passadas seis décadas da Libertação, os Justos entram no Panthéon. Dia 18 de

janeiro de 2007, em cerimônia solene, o presidente da República, Jacques Chirac,

homenageou os 2.725 franceses e francesas que ajudaram a salvar judeus na França

durante a Ocupação e o regime de Vichy (1940-1944). Chirac já havia dado um passo

importante nesta direção, em 16 de julho de 1995, quando reconheu a responsabilidade

do Estado francês na entrega à Alemanha nazista de perseguidos pelo regime. Era a

primeira vez que um chefe de Estado o fazia:

“ Sim, a loucura criminosa do ocupante foi auxiliada por franceses, pelo Estado francês.(...). A França, pátria dos Iluministas e dos Direitos do Homem, terra de acolhimento e de asilo, a França, neste dia, realizava o irreparável. Faltando com a palavra, entregava os que tinha sob sua guarda a seus carrascos”3.

O discurso foi pronunciado na rememoração da grande razia do Vel'd'Hiv

(Velódromo de Inverno) ocorrida em 16 e 17 de julho de 1942, quando, na capital e na

região parisiense, cerca de dez mil homens, mulheres e crianças judeus foram presos no

1 A bibliografia e as reflexões aqui trabalhadas inserem-se na minha pesquisa de pós-doutorado realizada no quadro do Acordo Capes-Cofecub coordenado pelos Professores Daniel Aarão Reis Filho (UFF) e Denis Rolland (Universidade Robert Schuman, Strasbourg). Dedico o artigo à Delphine e ao Jérôme que perderam a batalha contra a banalização do mal. 2 Henry Rousso, citado por Peter Reichel. L'Allemagne et sa mémoire. Paris, Éditions Odile Jacob, 1998, p.10. 3 Jacques Chirac. Discurso do presidente da República, na comemoração da grande razia do Vel’d’Hiv, de 16 e 17 de julho de 1942. Paris, 16 de julho de 1995. www.sunderland.ac.uk/~os0tmc/occupied/chirac.htm Last Update 16-Oct-00. Consultado em 8 de fevereiro de 2007. Nota-se que eram os primeiros meses do primeiro mandato de Chirac, como observou Vincent Duclert. “Le Panthéon, un double enjeu”. Libération. Paris, 19 de Janeiro de 2007, p. 28.

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estádio de corridas de bicicleta. Aí, esperaram dias, até serem enviados a campos de

trânsito, abertos pelo governo de Vichy e, em seguida, juntos a outros judeus

aprisionados, posteriomente, em Paris e no interior, conduzidos em setenta e quatro trens

em direção a Auschwitz.

As palavras de Chirac causaram enorme impacto, sendo muito bem recebidas pela

comunidade judaica. François Mitterand, presidente socialista que o antecedera, nunca

admitiu a participação do Estado francês no genocídio. Alegava que Vichy não era a

República francesa, o Estado francês, jogando com as palavras e os conceitos, num mal-

estar que falava de muitas questões, inclusive de seus compromissos com o regime. Mas

o próprio general Charles de Gaulle jamais o fez. Até então, prevalecera entre os chefes

de Estado a tese de que Vichy era um Estado ilegítimo. A República, o Estado legítimo,

estavam em Londres, com De Gaulle. O Estado que participara no crime não era o

francês, não era a França4.

O discurso do gaullista Chirac “virou a página de uma mitologia gaullista

perniciosa”5. Dizia, em 1995, “oportunamente” à nação “o que para todo historiador é

evidente e perfeitamente estabelecido” 6.

Desde o início dos anos 1970 e, mais intensamente, na década de 1980, a

sociedade francesa vem discutindo os anos confusos, negros, sombrios7 como seria

conhecido o período iniciado com a rápida e desconcertante derrota para os alemães, em

junho de 1940, o que Marc Bloch chamou de estranha derrota8, e o momento da

Libertação, em agosto de 1944. Nestes poucos e longos anos, a crise de identidade

nacional, que vinha sendo gestada desde os anos 30 foi avassaladora9. Quatro anos que

4 Para a discussão, ver Marc Olivier Baruch. “Sociedades e regimes autoritários”. Denise Rollemberg, Samantha Viz Quadrat, Norberto Ferreras e Marcelo Bittencourt (orgs.). Sociedades e regimes autoritários(título provisório). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, no prelo. Cf. também Serge Berstein. “Culture républicaine et luttee armée” (em especial a sub-seção “Le régime de Vichy est-t-il légal et légitime?” (pp. 23 e ss.). François Marcot (dir.). La Résistance et les Français: lutte armée et maquis. Besançon, Annales de l’Université de Franche-Comté, 1996. Cf. ainda Pierre Emmanuel. “La Résistance comme catharsis”. Esprit, novembro 1947. 5 Jean-Michel Thénard. “Vérité”. Editorial. Libération. Paris, 19 de Janeiro de 2007, p. 2. 6 Philippe Joutard. “Préface”. Jean-Marie Guillon e Pierre Laborie (dirs.). Mémoire et Histoire. La Résistance. Toulouse, Privat, 1995, p. 10. 7 Em francês, troubles, noires, sombres.8 Marc Bloch. L’étrange défaite. Témoignage écrit en 1940. Paris, Gallimard, 1990 (publicado originalmente em Paris, Société des Éditions Franc-Tireur, 1946). 9 Pierre Laborie. L´opinion française sous Vichy. Les Français et la crise d' identité nationale. 1936-1944. Paris, Seuil, 2001. (1ª ed de 1990).

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fizeram ruir os pilares erguidos em um século e meio, desde a Revolução de 178910. Para

superá-la, reconstruir a unidade, reparar as fraturas da guerra civil, de um país divido em

dois – zona livre e zona ocupada, resistentes e colaboradores ou colaboracionistas11,

França Livre do general de Gaulle e França de Vichy do marechal Pétain, a França de pé

e a França deitada12 – o general (e os franceses) inventaram o mito da resistência, no

calor mesmo da Libertação, a libertar todos do passado que passara, a refazer a Nação

interrompida, a permitir o futuro. A Honra inventada13.

Na Libertação, nesta libertação, a História tornava-se prisioneira da Memória.

No entanto, a História não passara. Vichy, um passado que não passa, a síntese

plena de sentidos, tantas vezes citadas14. Outra resistência. À Memória.

Em 1947, Pierre Emmanuel, poeta e jornalista de inspiração cristã, que participara

da Resistência, alertava para uma guerra que prosseguia. A libertação dos espíritos não

acontecera com a Libertação: “... a verdadeira guerra, a guerra civil da alma, ainda não

terminou. Hitler está em nós: é o título de um livro de Max Picard; o psiquismo do

mundo alterou-se em suas raízes,...(...). Hitler ganhou a guerra interiorizando-a”. As

10 Vale lembrar que a França foi o primeiro país europeu a reconhecer a cidadania aos judeus, em 1792, exatamente, no contexto da Revolução. 11 O termo collabos apareceu no momento da Ocupação. Originário do campo da resistência, incorpora uma conotação pejorativa. Entretanto, acabou apropriado também pelos que colaboraram com o nazismo num movimento de defesa da opção feita. Pierre Laborie acredita que a palavra favoreceu “generalizações simplificadoras”. As formas de colaboração com os alemães foram diversas e não devem ser vistas da mesma maneira. Ao menos uma diferenciação seria necessário fazer: a “colaboração de Estado” – os colaboradores (collaborateurs, no original) - da “colaboração dos particulares” – os colaboracionistas (collaborationnistes). No primeiro caso, estão os governantes, políticos e altos funcionários de Vichy que cooperam com a Alemanha nazista no quadro dos acordos entre os dois Estados (Pétain, Darlan, Laval, Bousquet, por exemplo). Esta “cumplicidade” não implicaria “uma adesão filosófica ao nazismo”. Por outro lado, os colaboracionistas seriam os que reivindicaram ideologicamente o fascismo revolucionário, defendendo a necessidade de uma nova ordem na Europa e uma luta contra o judaísmo-bolchevista, exprimindo admiração pelo nazismo. Cf. Pierre Laborie. Les mots de 39-45. Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, 2006, pp. 39-41. Tenho dúvidas em relação a estas definições. A própria legislação antisemita editada por Vichy (57 textos de leis, decretos e portarias), bem como a idéia da “nova ordem” e do “novo homem” da “Revolução nacional” implementada mostram claramente a adesão do Estado francês a princípios estruturadores do nazismo como a “regeneração da população”, conforme, aliás, o próprio autor constata. Cf. Les Français sous Vichy et l´Occupation. Toulouse, Milan, 2003. 12 “As palavras da Libertação ocupam um lugar considerável em todas as imagens que remetem à verticalidade, à virilidade, à recusa, à rebelião, à França de pé, direita, levantada etc”. Pierre Laborie. Les Français des années troubles. De la guerre d' Espagne à la Liberation. Paris, Seuil, 2003 (publicado originalmente por Desclée de Brouwer, 2001), p. 63, nota 33. 13 Pierre Laborie. “Honneur inventé ou invention du future? Mémoire et appopriation de la Résistance à la Libération”, in ------ . Les Français des années troubles. De la guerre d' Espagne à la Liberation. Paris, Seuil, 2003 (publicado originalmente por Desclée de Brouwer, 2001). 14 Henry Rousso e Eric Conan. Vichy, un passé qui ne passe pas. Paris, Fayard, 1994.

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palavras haviam sido infectadas pelo nazismo e por Vichy. “E esta infecção ainda dura”,

conclui15.

Em meio aos fantasmas dos anos 40, muitas questões vieram – e vêm – à tona: a

estranha derrota, a fragilidade dos sólidos valores da Revolução Francesa, as referências

da III Repúbica, o attentisme16, as resistências, o mito da resistência, a colaboração, a

participação do Estado na Shoah, o antisemitismo francês, o destino dos exilados

espanhóis vencidos na Guerra Civil, os campos de concentração em território francês, a

legitimidade ou não, a legalidade ou não do Estado de Vichy, a opinião, os

comportamentos das Igrejas Católica e Protestante (na derrota de 1940, até a razia do

Vel’d’Hiv de 1942, depois de 1942...), as leis de anistias, o silêncio, os esquecimentos, as

ambivalências da zona cinzenta17, a purificação de 1944 - a França viril18 - a

purificação que se estende até 197019 etc. Toda uma sociedade diante do espelho, um

tesouro para o historiador da Memória.

É neste processo de autoconhecimento de uma nação que os Justos entram no

Panthéon, a catedral laica dos grandes homens da Pátria reconhecida, como dizem as

letras douradas envelhecidas no alto do monumento erguido na colina de Santa

Genoveva, padroeira de Paris. Lá, estão Rousseau, Voltaire, Gambetta, Malraux, Marie

Curie, a única mulher agraciada com tal honra. Lá, está Jean Moulin, o desconhecido do

Panthéon, como disse Daniel Cordier20. Ao colocá-lo junto aos grandes, em 1964, o

general de Gaulle colocava a Resistência no Panthéon – ou o mito da Resistência.

15 Pierre Emmanuel. “La Résistance comme catharsis”. Esprit, novembro 1947, p. 631 e 633, respectivamente. 16 Attentisme: substantivo relativo ao verbo attendre, esperar; termo usado quando se trata dos anos 40, refere-se ao comportamento coletivo dos franceses e francesas identificado à recusa de escolha e de tomada de posição; à espera do desenrolar da situação após a derrota de 1940. Laborie se opõe à generalização e à simplificação com que este fenômeno de opinião, muitas vezes, é tratado, associado a oportunismo, “cumplicidade pela indiferença”. O autor procura compreendê-lo em sua complexidade e em suas múltiplas dimensões. Ver Pierre Laborie, obras citadas, e também Les mots de 39-45. Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, 2006. 17 Para ambivalência e zona cinzenta, ver adiante. 18 Fabrice Virgili. La “France virile”. Des femmes tondues à la Libération. Paris, Payot, 2000. 19 Marc Olivier Baruch (dir.). Une poignée de misérables. L’épuration de la société française après la seconde Guerre Mondiale. Paris, Fayard, 2003. 20 Daniel Cordier, historiador, ex-chefe do secretariado de Jean Moulin na Resistência, de agosto de 1942 a junho de 1943 (quando Moulin foi preso e assassinado pela Gestapo), publicou sua biografia numa monumental e celebrada obra prevista em 6 volumes, dos quais 3 estão disponíveis. Daniel Cordier. Jean Moulin. L’inconnu du Panthéon. 3 vols. Paris, Lattès, 1989-1993.

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Desconhecido em vida e em sua luta, pouco reconhecido em 1964, Jean Moulin tornava-

se o herói conhecido de todos, o herói da Nação.

Quadro décadas se passaram, desde então, até que Jacques Chirac honrasse da

mesma forma os Justos da França. Em letras douradas, brilhantes de novas, agora se lê na

cripta do Panthéon:

“Sob a chapa de ódio e da noite caída, na França nos anos da Ocupação, luzes, por milhares, recusaram-se a se apagar. Nomeados ‘Justos entre as Nações’ ou sempre anônimos, mulheres e homens, de todas as origens e de todas as condições, salvaram judeus das perseguições antisemitas e dos campos de exterminação. Enfrentando riscos aos quais se expunham, eles encarnaram a honra da França, seus valores de justiça, de tolerância e de humanidade”21.

Na bela exposição inaugurada no dia seguinte à solenidade, grandes fotos

arrumadas no chão sobre a nave como livros abertos22. Gente comum, rostos e nomes

desconhecidos. Ao fundo, uma enorme tela na qual se projetou a imagem da árvore

sólida, forte, verde. O emocionante filme de Agnès Varda passado em quatro telas23. Um

filme separado em dois, um em preto e branco, outro colorido, um só filme, com duas

imagens parecidas, mas diferentes, paralelas, simultâneas. Como a França fragmentada,

partida em duas, almas sobrepostas, às vezes, justapostas a dar sentido a uma só nação.

Como a ambivalência de que nos fala Pierre Laborie, o duplo, não ambígüo, não

contraditório, complementar, moldando a face cinzenta da França.

A História do país e as histórias de vida interligadas numa só tragédia. Na arte de

Agnès Varda, uma separação a fundir forma e conteúdo:

“trata-se mais ou menos das mesmas cenas [as imagens coloridas e as imagens em preto e branco], dos mesmos momentos trágicos ou cotidianos, mas filmados mais perto, com detalhes da vida e das matérias, a madeira, as pedras usadas, as portas que se abrem...(...). Olhando o duplo filme em telas separadas, queria que eles [os

21 No original: “ Sous la chape de haine et de nuit tombée sur la France dans les années d’Occupation, des lumières, par milliers, refusèrent de s’éteindre. Nommés ‘Justes parmi les Nations’ ou restés anonymes, des femmes et des hommes, de toutes origines et de toutes conditions, ont sauvé des Juifs des persécutions antisémites et des camps d’extermination. Bravant les risques encourus, ils ont incarné l’honneur de la France, ses valeurs de justice, de tolérance et d’humanité”.22 Agnès Varda assinou a concepção e a realização da exposição “Hommage de la Nation aux Justes de France” a convite do Ministério da Cultura. Panthéon, Paris, 18 de janeiro de 2007. Simultaneamente, outra exposição sobre o mesmo tema foi reinaugurada em frente ao Panthéon, na Mairie do Vème arrondissement, com o título “Les Justes de France”. Primeiramente, a exposição esteve no Mémorial de la Shoah, Paris, entre 9 de maio e 31 de outubro de 2006, coordenada por Jacques Fredj, diretor do Mémorial. Cf. catálogo da exposição: Les Justes de France, 2006. 23 Os Justos da França, de Agnès Varda, 2007.

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visitantes da exposição] experimentassem sensações fragmentadas, momentos de emoção ligados à História e a imagens-chave de nossas memórias coletivas”. 24

Os quinze minutos de projeção terminam com a prisão de um Justo, numa cena

que “sugere”, como viu Jean-Luc Douin, “que alguns foram denunciados”25.

Ao abrir as portas do Panthéon aos Justos, em 2007, a França celebra a

Solidariedade – a “solidarité agissante”26 -, a tolerância, a escolha do Bem, a recusa à

indiferença, o livre arbítrio possível, mesmo em tempos sombrios, personificados em

gente comum, silenciosa, anônima.

Sábios do Panthéon.

“E eu lhes darei em minha casa, sob proteção de minhas muralhas, um memorial Yad e um nome Shem que não se apagará”. Yad Vashem (Isaías, versos 56-5)

Em 1º de fevereiro de 1963, ocorreu a primeira reunião da Comissão dos Justos

do Memorial Yad Vashem. O também conhecido Museu de la Shoah fora criado em

1953, em Jerusalém, para honrar “os seis milhões de judeus mortos pelos nazistas e por

seus colaboradores, as comunidades judias que foram destruídas com o objetivo de

erradicar o nome e a cultura de Israel, e também o heroísmo e a coragem dos judeus e dos

justos entre as nações”27. Tirado da literatura talmúdica, o conceito de Justo entre as

nações já havia servido ao longo do tempo para designar o não-judeu que tenha uma

relação positiva e amiga em relação aos judeus28.

A memória como missão. Em nome do passado, pelo nunca mais. No presente,

voltar-se para as gerações passadas para formar as gerações futuras.

Composta por personalidades reconhecidas, representantes dos sobreviventes da

Shoah e presidida por um juiz da corte suprema, a Comissão foi encarregada pelo Estado

24 Folheto da exposição Hommage de la Nation aux Justes de France. Paris, 18 de janeiro de 2007, 4 pp. 25 Jean-Luc Douin. “‘Les Justes’” de la cinéaste Agnès Varda au Panthéon”. Le Monde. Paris, 20 de janeiro de 2007, p. 27. 26 “Solidaridade ativa”, expressão de Serge Klarsfeld, citada no discurso de Jacques Chirac no Panthéon. A íntegra do discurso do presidente da República foi publicada em Le Monde. Paris, 20 de janeiro de 2007, p.20. 27 Gabriele Nissim. Le jardin des Justes. De la liste de Schindler au tribunal du bien. Paris, Payot, 2007, p.233; em francês, collaborateurs; ver nota 9 acima. 28 Tratado Baba Batra, 15 b, cf. Israel Gutman (dir.). Dictionnaire des Justes de France. Préface de Jacques Chirac. Jérusalem, Yad Vashem; Paris, Fayard, 2003, p. 18.

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de Israel de atribuir a Medalha dos Justos entre as Nações. A Comissão vinha, portanto,

aplicar a lei aprovada no parlamento israelense que previra a homenagem quando da

criação do Memorial, dez anos antes29. Ela surgia no contexto do julgamento do oficial

nazista Eichmann em Jerusalém, em 1961. Assim, Moshe Landau, o juiz do tribunal que

o condenou à morte, assumia a presidência da Comissão dos Justos recém-constituída.

“Eu aceitei esta função pois, depois da condenação de Eichmann, eu pensava que era necessário reequilibrar o clima internacional. Nós devíamos mostrar que não olhávamos de forma hostil o mundo inteiro em torno de nós, mas que sabíamos distinguir entre os que haviam nos perseguido e os que haviam nos ajudado. Tais pessoas existiam mesmo entre os alemães’”30.

No mesmo sentido, pronunciou-se na primeira reunião Leon Kubovi, então diretor

do Yad Vashem: “ ‘Temos um interesse político ao nos ocupar dos Justos. Queremos nos

tornar amigos de seus amigos e instaurar relações novas com seus países de origem’ ”31.

O juiz Landau comprovaria na Comissão a tese que defendera no tribunal: o livre

arbítrio, em oposição à defesa de Eichmann, segunda a qual o oficial “cumpria ordens”.

Os Justos seriam a prova de que sempre há margem para as escolhas, a opção pelo Bem

que rejeita o Mal, mesmo – ou sobretudo - em tempos de barbárie.

Mas, segundo Gabriele Nissim, as motivações para a constituição da Comissão

não foram exclusivamente políticas. O processo de Eichmann havia trazido à tona, em

diversos depoimentos de sobreviventes, histórias de solidariedade, de pessoas que os

ajudaram, arriscando a própria vida. Os testemunhos falavam do Mal, mas também do

Bem. Se era preciso julgar o Mal, seria também necessário homenagear o Bem. Depois

do Tribunal do Mal, o Tribunal do Bem32.

Henry Rousso tem chamado a atenção para os problemas de uma identidade

judaica fundada sobre a memória da dor e na vitimização. É preciso “inventar uma

29 Em relação à homenagem, não há referência às demais vítimas da Shoah, como os comunistas, socialistas, liberais, ciganos, testemunhas de Jeová, homossexuais, deficientes mentais e físicos. 30 Moshe Landau citado por Gabriele Nissim. Le jardin des Justes. De la liste de Schindler au tribunal du bien. Paris, Payot, 2007, p. 99. 31 Leon Kubovi citado por Gabriele Nissim. Le jardin des Justes. De la liste de Schindler au tribunal du bien. Paris, Payot, 2007, pp. 99 e 100. 32 Gabriele Nissim. Le jardin des Justes. De la liste de Schindler au tribunal du bien. Paris, Payot, 2007.

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maneira de afirmar e integrar um judaísmo”, baseado em valores positivos – não

unicamente no sofrimento - a inscrevê-lo no nosso tempo, a projetá-lo no futuro33.

A lembrança do Bem talvez possa vir a ser um caminho nesta direção.

Teriam os Justos mais este nobre papel na História do povo de Israel?

****

Logo nas primeiras homenagens, a polêmica: quais seriam os critérios? Como ser

justo ao definir os Justos? Ficou evidente que a definição inscrita na lei de 1953 - “ ‘um

homem justo é um não-judeu que arrisca sua vida para vir em socorro à dos judeus’ ”34 -

não dava conta das diferentes situações e personagens.

Leon Kubovi propusera a criação de uma aléia próxima ao Museu, na qual

pessoas que salvaram os judeus plantariam uma árvore, numa cerimônia oficial. (Daí,

provavelmente, a árvore de Agnès Varda). Em cada uma, o nome do Justo e do seu país35.

Entre os primeiros lembrados, estava Oskar Schindler. O industrial alemão originário dos

Sudetos, membro do Partido nacional-socialista desde a anexão da região à Alemanha,

em 1938, salvou cerca de 1.200 judeus que, prisioneiros no campo de concentração de

Plaszow, próximo a Cracóvia, trabalhavam em sua fábrica. Schindler tornou-se

conhecido mundialmente através do filme de Steven Spielberg, A lista de Schindler, de

1993, baseado no livro de Thomas Keneally36. Portanto, diante da figura controverdida –

seria ou não Schindler um Justo? -, nascia a Comissão, com a função de criar critérios

precisos e julgar caso a caso37.

33 Henry Rousso. L’hantise du passé. Entretien avec Philippe Petit. Paris, Les Éditions Textuel, 1998, p.40. 34 Citado por Gabriele Nissim. Le jardin des Justes. De la liste de Schindler au tribunal du bien. Paris, Payot, 2007, p. 101. 35 A princípio, os Justos ou seus representantes plantaram árvores na Aléia dos Justos, em Yad Vashem. Atualmente, os nomes são gravados no Muro da Honra edificado no Memorial. Cf. Israel Gutman (dir.). Dictionnaire des Justes de France. Préface de Jacques Chirac. Jérusalem, Yad Vashem; Paris, Fayard, 2003, p. 18. 36 O livro do autor australiano foi lançado em 1982, com o título Schindler’s Ark.37 Por ironia da história, mesmo com a forte oposição do juiz Moshe Landau, na presidência da Comissão entre 1962 e 1970, para reconhecê-lo como Justo, Oskar Schindler tornou-se o personagem mais conhecido na salvação de judeus na II Guerra. O industrial, de fato, enriqueceu na II Guerra, justamente, explorando a mão-de-obra compulsória. Depoimentos terríveis a seu respeito foram relatados por sobreviventes na Comissão. Schindler, entretanto, teria passado por uma mudança, que não se deu no contexto da iminente derrota alemã, segundo o depoimento do juiz Moshe Bejski. Bem antes de ela surgir como possibilidade real, gastou a riqueza acumulada na salvação dos presos-trabalhadores de sua fábrica. Moshe Bejski, judeu de origem polonesa, cujo nome constava na lista, dedicou a vida ao reconhecimento dos Justos. Atuante desde a formação da Comissão, tendo presidido-a entre 1970 e 1995, tornou-se o grande defensor de Schindler. O livro de Gabriele Nissim foi escrito a partir de seu depoimento, como o fora também o de Thomas Keneally. Em belas imagens, Nissim chamou Bejski de “o homem que criou o Jardim dos Justos”,

9

Na verdade, as discussões sobre a definião de Justo começaram ainda quando da

elaboração da lei de 1953, que criava o Memorial Yad Vashem. No parlamento

israelense, chegava-se à idéia de que era um indivíduo agindo segundo sua consciência,

não uma organização, um coletivo, sem importar ideologia, religião, etnia, posição

política, origem social38. A Comissão, dez anos depois, acrescentava que nenhum tipo de

interesse – político, econômico, sexual – poderia ter motivado a iniciativa. As discussões

continuaram nos anos seguintes.

A atribuição do título, desde então, é julgada a partir da constituição de um

processo no qual consta o testemunho de alguém que tenha sido salvo. Basta uma única

vida salva, seguindo os ensinamentos do Talmud: “quem destrói uma única vida destrói

todo o universo, quem salva um único indivíduo salva o mundo inteiro”39. Depois de

encaminhado o documento, a decisão da Comissão sai em cerca de dois anos.

Entre as definições e os casos concretos, a realidade mostrou suas nuances. Os

homens e as mulheres nem sempre se confundem com a pureza dos tipos ideais.

Apareciam em meio a virtudes e misérias, demonstrando grandezas e misérias. A zona

cinzenta do bem, como chamou Gabriele Nissim40. Oskar Schindler talvez fosse isto. A

Comissão demonstrava, também, os preconceitos dos que pretendem homenagear os que

não tiveram preconceito, como no caso discutido de uma prostituta que recebia nazistas

sob o mesmo teto em que escondia judeus41. Evidenciava que julgar é tarefa difícil,

mesmo quando se julga o Bem. Talvez porque nem ele é sempre puro, imune ao próprio

mal que o motiva e fortalece.

“o pescador de pérolas”, numa alusão inversa à expressão “caçador de nazistas”. O livro – uma biografia de Bejski – que tinha, no original italiano, o subtítulo “A história de Moshe Bejski, o homem que criou o Jardim dos Justos” apareceu, na tradução francesa, com o subtítulo “Da lista de Schindler ao tribunal do bem”. A figura polêmica, conhecida pela força de Hollywood, provavelmente, pareceu aos editores mais atraente do que a do não tão conhecido “pescador de pérolas”, aquele que, através do depoimento ao autor do livro no qual se baseou Spielberg, resgatou Schindler do silêncio e do esquecimento. 38 Como caso excepcional, a pequena cidade Chambon-sur-Lignon (Haute Loire), numa região protestante, recebeu coletivamente o título em homemagem aos 3.000 habitantes que esconderam entre 3.000 e 5.000 judeus. Cf. Israel Gutman (dir.). Dictionnaire des Justes de France. Préface de Jacques Chirac. Jérusalem, Yad Vashem; Paris, Fayard, 2003, p. 150. Cf também Philippe Goulliaud. “En rendant hommage aux Justes de France, Chirac parachève le travail national de mémoire”. Le Figaro, 18 de Janeiro de 2007. 39 Citado por Gabriele Nissim. Le jardin des Justes. De la liste de Schindler au tribunal du bien. Paris, Payot, 2007, p. 104. 40 Le jardin des Justes. De la liste de Schindler au tribunal du bien. Paris, Payot, 2007, p. 161. 41 A ex-prostituta acabou sendo condecorada como Justa. Cf. Gabriele Nissim. Le jardin des Justes. De la liste de Schindler au tribunal du bien. Paris, Payot, 2007, p. 160.

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Para além das discussões na Comissão, houve situações, nas quais a valorosa

iniciativa de salvar crianças, escondendo-as em conventos religiosos, às vezes, não

impedia o desejo de querer mudá-las, iniciando-as na fé cristã. Ou seja, intervindo

exatamente naquilo que lhes dava identidade, descontruindo-a. O movimento não se

explica, exclusivamente, devido aos perigos que as crianças judias corriam durante a

Guerra42. Assim, a ação que salvava o diferente podia ser a mesma que negava sua

particularidade. Tolerância e intolerância ao mesmo tempo.

O Caso Finaly ilustrou a situação. Em 1945, as tias de duas crianças – Robert e

Gérard Finaly - que haviam sido escondidas por uma senhora católica, desde 1944,

quando o pai e a mãe foram presos e deportados, reivindicaram a guarda dos sobrinhos

órfãos. Eles seguiriam para Israel, onde moravam. O caso acabou em processo na Justiça,

em 1953, ganhando, então, grande repercussão internacional uma vez que a responsável

pela sobrevivência dos meninos recusou-se a entregá-los. Alegava, apoiada em

instituições católicas, que eles haviam sido batizados, sacramento irreversível, o que os

impedia de retornar a uma família judia, porque não os educaria na fé cristã. A opinião

pública dividiu-se no embate, que envolveu a todos, para além das comunidades católica

e judaica. Revelavam-se ali muito das relações judaico-cristães, muito dos valores da

sociedade. Depois de oito anos, a Justiça deu ganho de causa às tias dos meninos43.

Até o presente, a Comissão do Memorial Yad Vashem reconheceu 21.310 Justos

entre as Nações44. Na França, eles são 2.725.

42 Pierre Laborie. Les Français des années troubles. De la guerre d' Espagne à la Liberation. Paris, Seuil, 2003 (publicado originalmente por Desclée de Brouwer, 2001). 43 Vários livros e artigos foram publicados sobre o Caso Finaly. Cf. Pierre Laborie. Les Français des années troubles. De la guerre d' Espagne à la Liberation. Paris, Seuil, 2003 (publicado originalmente por Desclée de Brouwer, 2001); Catherine Poujol e Chantal Toinet. Les enfants cachés. L’ Affaire Finaly. Editions Berg International, 2006; Jacob Kaplan. L’Affaire Finaly. Paris, Les Éditions du Cerf, 1993; Archives Juives. Dossier L’Affaire Finaly. Vol. 37, 2/2004. 44 Na lista, constam dois Justos originários do Brasil. Um deles o diplomata Luiz Martins de Souza Dantas, embaixador do Brasil na França, quando da derrota de 1940. Salvou cerca de 800 pessoas, entre as quais 437 judeus, concedendo vistos diplomáticos em desacordo com o governo de Getúlio Vargas. Punido pelo governo brasileiro em dezembro de 1941, foi preso e condenado à residência vigiada, de onde foi tranferido para a Alemanha, onde ficou detido 14 meses. A homenagem lhe chegou em 2003, a título póstumo. Cf. Mémorial de la Shoah. Les Justes de France. Catálogo da exposição no Mémorial de la Shoah, Paris, entre 9 de maio e 31 de outubro de 2006, coordenada por Jacques Fredj, diretor do Mémorial de la Shoah; em janeiro de 2007, na Mairie do Vème arrondissement de Paris, p. 17; para os números citados, ver p. 243. Cf. ainda Fabio Koifman. Quixote nas trevas. O Embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo. Rio de Janeiro, Record, 2002.

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Os Justos da França ou os Anormais ou a ponta do iceberg?

Se, até o início da década 70, os anos 40 foram lembrados através da resistência

superdimensionada - a “honra inventada” na Libertação – ou permaneciam tabu, revelado

no “silêncio da má-consciência”45, a partir de então tornaram-se anos sobre os quais

muito se escreve, se fala, se rememora, num movimento que rompeu com mitos e

silêncios. O livro do historiador – não por acaso norte-americano - Robert O. Paxton, La

France de Vichy, publicado, na França, em 1973, foi – e é –, na historiografia, um marco

no percurso desse debate46. Jean-Pierre Azéma se refere mesmo à “revolução

paxtonienne”; Stanley Hoffman, aos “estudos sobre Vichy na França: antes e depois de

Paxton”47.

A memória dos anos 40, já no início da década de 90, havia se tornado a

“memória onipresente, às vezes, invasora, constrangedora, carregada de obrigação”48.

O dever de memória.

Henry Rousso chega a falar numa “obsessão do passado”, em “excesso de

passado” que o aproximaria da sua negação:

“O excesso de passado, que é tanto um efeito como uma causa da ideologia da memória e que me parece, pensando bem, uma coisa ao menos tão preocupante como a negação do passado. Os dois são, aliás, os sintomas inversos de uma mesma dificuldade: a de estar seguro sobre o passado, para poder enfrentar o presente e imaginar o futuro”49.

No difícil caminho em direção ao passado, num dado momento, todos resistentes

passaram a ser todos colaboracionistas. Para Laborie, as “generalizações abusivas”, as 45 Pierre Laborie. “Honneur inventé ou invention du future? Mémoire et appopriation de la Résistance à la Libération”, “1940-1944: les Français du penser-douple”, “Silences de lá mémoire, mémoires du silences”, in ------ . Les Français des années troubles. De la guerre d' Espagne à la Liberation. Paris, Seuil, 2003 (publicado originalmente por Desclée de Brouwer, 2001). 46 Robert O. Paxton. La France de Vichy. 1940-1944. Paris, Seuil, 1997 (1ª edição na França, Seuil, em 1973; publicado originalmente nos EUA e na Grã-Bretanha, em 1972, com o título Vichy France. Old Guard and New Order, 1940-1944). 47 Trata-se dos artigos de Azéma e Hoffman, com estes títulos, na coletânea em homenagem a Robert O. Paxton, reunindo vinte e um autores. Sarah Fishman, Laura Lee Downs, Ioannis Sinanoglou, Leonard V. Simith, Robert Zarestsky (dirs.). La France sous Vichy. Autour de Robert O. Paxton. Bruxelas, Édtions Complexe; Paris, IHTP-CNRS, 2004 (1ª ed francesa, em 2000; 1ª ed nos EUA, Nova York, 2000). 48 Pierre Laborie. Les Français des années troubles. De la guerre d' Espagne à la Liberation. Paris, Seuil, 2003 (publicado originalmente por Desclée de Brouwer, 2001), p. 50. O autor se refere, no texto publicado pela 1ª vez em 1993, às comemorações a propósito dos 50 anos do fim da II Guerra. 49 Henry Rousso. La hantise du passé. Entretien avec Philippe Petit. Paris, Les Éditions Textuel, 1998, p. 30. No original, “le trop-plein de passé”.

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“alternativas simplistas”, “radicalmente reduzidas a condenações sem apelação” fazem

com que “se trate menos de enfrentar a complexidade, menos de compreender que de

formular vereditos ou mesmo estigmatizar” o “problema dos comportamentos” – que é o

que está “no coração do debate”. Na simples troca de sinais, o desconhecimento daqueles

anos permanecia50.

Esta História – como qualquer outra – mostra-se bem mais complexa e rica do que

as interpretações maniqueístas supunham. Para compreendê-la, um longo percurso de

desconstrução da memória, erigida em mitos, silêncios e esquecimentos. Rompendo com

os campos delimitados de resistentes ou colaboracionistas, Pierre Laborie, inspirado em

Primo Levi51, viu a zona cinzenta, o enorme espaço entre os dois pólos, formulando o

conceito penser-double, chave para entender o que não cabe nas fronteiras bem marcadas

– ou se é isto ou aquilo. Muitas vezes, se é um e outro, se é duplo52. Na ambivalência,

que não é sinônimo de contradição – desconcertante para muitos –, estaria a França dos

anos confusos.

Enfim, a sociedade francesa – e não somente os historiadores - já tem um passado

deste passado, uma história desta história. Os debates estão em jornais, revistas, cinema,

televisão. São polêmicos, intensos, tensos, difíceis. Uma presença constante. Falam do

passado, mas também – ou sobretudo – do presente. Projetam o futuro. Desfazem mitos,

constróem outros....

Na semana em que acontecia a celebração dos Justos no Panthéon, estreiou um

documentário e um filme centrado na questão dos Justos. Este último intitulava-se Zone

Libre53. Na televisão, programas de debates, entrevistas e depoimentos. Também havia

uma outra exposição em frente ao próprio Panthéon. O universo dos anos 40 é presente.

50 Pierre Laborie. Les Français des années troubles. De la guerre d' Espagne à la Liberation. Paris, Seuil, 2003 (publicado originalmente por Desclée de Brouwer, 2001), p. 27. 51 Escritor italiano de origem judáica, Primo Levi nasceu em Turim, em 1919. Sobrevivente de Auschwitz, escreveu dois livros de memória sobre a vivência no campo de concentração: É isso um Homem? (1947) eA trégua (1963). Em 1987, suicidou-se. 52 Para os conceitos de zona cinzenta e penser-double, ver Pierre Laborie. Les Français des années troubles. De la guerre d' Espagne à la Liberation. Paris, Seuil, 2003 (publicado originalmente por Desclée de Brouwer, 2001). ------- . L´opinion française sous Vichy. Les Français et la crise d' identité nationale. 1936-1944. Paris, Seuil, 2001. Agradeço ao Professor Didier Musiedlak, da Universidade de Paris X, as indicações dos livros de Pierre Laborie, assim como a supervisão do pós-doutorado. 53 Zone Livre, de Christophe Malavoy, adaptação da peça de Jean-Claude Grumberg, produção francesa, estreou em Paris, dia 17 de janeiro de 2007.

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Neste quadro, numa emissão de tv, um sobrevivente judeu do genocídio fez um

comentário que causou impacto: “toda a comemoração hoje no Panthéon e atualmente em

torno dos Justos esconde a relação extremamente desigual entre os números de Justos e

da população francesa na época”. Então, citou: 2.725, numa população de 40 milhões de

franceses, na época. Queria destacar que uma parte ínfima dessa população foi "justa". E

continuou: “As comemorações não confrontam estes números!” Em outras palavras, os

2.725 podiam falar também de 99% de “não-justos” da população.

A excepcionalidade do Bem diante da banalização do Mal. Quando do

julgamento de Eichmann, Hannah Arendt referiu-se aos que denunciaram o genocídio ou

se opunham a ele como anormais54. O oficial nazista argumentava que os atos cometidos

pelo regime eram considerados normais55. Ninguém os criticava ou denunciava. Ele

mesmo foi considerado normal pelos psicólogos e outros que o entrevistaram. A denúncia

é que era um comportamento anormal, constatou Hannah Arendt. Um olhar bem mais

ácido que o do juiz Moshe Bejski.

Entre os participantes do programa de televisão, o mal-estar. Agravado por mais

uma comparação do mesmo senhor: “O mesmo Estado que hoje celebra os Justos no

Panthéon persegue os sans-papiers! E mais, persegue os franceses que ajudam os sans-

papiers a escapar da perseguição! São os Justos de hoje! E sobre eles ninguém fala!”

Então, o mal-estar foi geral. Seguido, evidentemente, de acalorada discussão.

As duas faces dos Justos?

No discurso de Jacques Chirac, no Panthéon, havia uma interpretação bem

diferente da relação judeus e franceses:

“...os Justos contribuíram para proteger da deportação ¾ da população judia existente antes da guerra, ...(...). A maioria dos judeus assassinados foram entregues aos alemães por Vichy e por colaboracionistas. Mas a maior parte dos judeus salvos o foram por franceses”56.

54 Hannah Arendt. Eichmann em Jerusalém: um relatório sobre a banalidade do mal. São Paulo, Companhia das Letras, 1999. Foi Daniel Aarão Reis, Professor de História Contemporânea da UFF, quem me chamou a atenção para a referência de Hannah Arendt aos Anormais, quando do processo Eichmann. Sou grata, igualmente, a ele pela revisão das citações do francês. 55 A historiografia sobre o nazismo também já jogou por terra o argumento muito evocado segundo o qual a população alemã desconhecia o que estava sendo feito. Cf, entre outros, Robert Gellately. No sólo Hitler. La Alemania nazi entre la coacción y el consenso. Barcelona, Crítica, 2005. 56 Jacques Chirac. “Au nom de la France, avec respect”. Le Monde. Paris, 20 de janeiro de 2007, p. 20.

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Aqui, os Justos são muito mais que os 2.725 reconhecidos. Quase se igualam aos

40 milhões da população francesa.

A maior parte permanece anônima, distante dos trâmites do reconhecimento. Eles

seriam, de fato, bem mais. Um argumento que costuma acompanhar a cifra. Agnès Varda

também os evocou no Panthéon: junto às fotos e aos nomes dos que receberam a

medalha, rostos de atores e atrizes do filme, sem seus os nomes, fazendo os ausentes

presentes. A multidão de desconhecidos, talvez para sempre desconhecidos, explicaria o

fato de ¾ da população judia da França ter sobrevivido quando do fim da Guerra.

Os Justos – heróis da pátria – reabilitam toda a França, todos os franceses, toda a

sua História:

“Graças a vocês, graça aos outros heróis através de séculos, nós podemos olhar a França no fundo dos olhos, e nossa história de frente: às vezes, vê-se nela momentos profundamente obscuros. Mas, vê-se também e sobretudo o melhor e o mais glorioso. Nossa história, é preciso tomá-la como um bloco. Ela é nossa herança, ela é nossa identidade. (…). Sim, nós podemos nos orgulhar de nossa história! Sim, nós podemos nos orgulhar de ser francês!”57

Ao olhar o passado nos olhos, vê-se o futuro.

Nesta direção, também está a interpretação do historiador Serge Klarsfeld58. A

demora de tantos anos para a entrada dos Justos no Panthéon é explicada como “o tempo

que foi preciso para que nós fizéssemos aceitar a idéia que os franceses não foram

rebanho”59.

Por este ângulo, a presença dos Justos no Panthéon é também a absolvição de

todos e não, unicamente, o reconhecimento de alguns. Não unicamente o reconhecimento

deles, mas de todos. O autor de Vichy-Auschwitz60 destaca o papel da opinião pública

contra as razias, justamente, no verão de 1942, quando, acredita, a Alemanha acumulava

vitórias e seu exército parecia invencível. Os protestos da sociedade e as pressões sobre

Vichy mudaram os rumos dos acontecimentos:

57 Jacques Chirac. “Au nom de la France, avec respect”. Le Monde. Paris, 20 de janeiro de 2007, p. 20. 58 Além de historiador e advogado, Klarsfeld é presidente da Associação de filhos e filhas de deportados judeus da França; conhecido militante na caça aos nazistas, atuou no processo que julgou Maurice Papon. 59 No original, “veaux”. Serge Klarsfeld. “Beaucoup de Français ont tendu la main”. Libération. Paris, 19 de Janeiro de 2007, p.3.

60 Serge Klarsfeld. Vichy-Auschwitz. La “solution finale”de la question juive en France. Paris, Fayard, 2001 (1ª ed. 1983).

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“Vichy teria podido continuar neste ritmo [33 mil judeus deportados em 11 semanas] se a população e os dirigentes das Igrejas católicas e protestantes não tivessem demonstrado a hostilidade dos franceses a estas medidas. Os Justos são a ponta do iceberg. Muitos, muitos franceses estenderam a mão favor”61.

Serge Klarsfeld defende, ainda, que um número pequeno de judeus foi denunciado

na França. As prisões ocorreram, sobretudo, a partir do recenseamento obrigatório a

todos judeus em junho de 1941. Todas as razias na zona ocupada foram executadas pela

polícia francesa a serviço da Gestapo. Ou seja, as responsabilidades do crime recaem,

exclusivamente, sobre o Estado. Confirma-se, portanto, o papel do Estado e não dos

franceses no crime. Estado e sociedade perfeitamente separados.

Entretanto, até que os franceses se manifestassem, dois anos já haviam se passado

desde a derrota, período no qual os judeus foram alvo de humilhações e de uma

legislação excludente. Entre outubro de 1940 e setembro de 1941, Vichy editou 57 textos

de leis, decretos e portarias visando à segregação. O “antisemitismo de Estado” 62 foi

possível ao longo destes anos na medida em que contou com a complacência da

sociedade cujo comportamento só mudou em julho de 1942.

Serge Klarsfeld, ele mesmo, levanta a questão da omissão da sociedade:

“É preciso lembrar (...) que a ‘brava gente’ ficou muda durante dois anos, quando se faziam dos judeus párias, os desapropriavam, os excluíam das profissões, os acusavam de serem responsáveis pela derrota. Ela [a brava gente] só se tornou ativa a partir do momento em que viu que se prendiam estes judeus, mulheres, crianças, e os entregavam aos alemães. Ela protestou”. 63

Mesmo entre os resistentes e na sua imprensa clandestina as perseguições aos

judeus não foram “tema prioritário” até esta data64. Em outubro de 1941, por exemplo,

Daniel Cordier constata que, no relatório para o general de Gaulle e os ingleses, Jean

61 Serge Klarsfeld. “Beaucoup de Français ont tendu la main”. Libération. Paris, 19 de Janeiro de 2007, p.3. No livro Vichy-Auschwitz, Klarsfeld destaca o papel decisivo do Estado de Vichy na eliminação de ¼ dos judeus da França, opondo o empenho dos franceses na sobrevivência de ¾ ao fim da Guerra. Cf. Serge Klarsfeld. Vichy-Auschwitz. La “solution finale” de la question juive en France. Paris, Fayard, 2001 (1ª ed. 1983). 62 Pierre Laborie. Les Français sous Vichy et l´Occupation. Toulouse, Milan, 2003, p. 23. 63 Serge Klarsfeld. “Beaucoup de Français ont tendu la main”. Libération. Paris, 19 de Janeiro de 2007, p.3. 64 Pierre Laborie. “La résistance et le sort des juifs”. ------ . Les Français des années troubles. De la guerre d' Espagne à la Liberation. Paris, Seuil, 2003 (publicado originalmente por Desclée de Brouwer, 2001).

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Moulin nada mencionou sobre o assunto65. Laborie nota que a “apatia” em relação aos

judeus aparece tanto “nos relatórios oficiais dos funcionários de Vichy como em

testemunhos hostis ao regime”66.

A indiferença em relação à sorte dos judeus – inclusive das Igrejas Católica e

Protestante - até a razia de Vel’d’Hiv - parece ser um ponto consensual entre os

historiadores.

Não se trata, porém, de uma conta exata, na qual 40 milhões menos 2.725 são

39.997.275. Para o bem ou para o mal, os anos sombrios estão longe destes marcos.

Seguindo a interpretação de Pierre Laborie, dividir a sociedade em Justos e não-

Justos – e as nuances aparecem na interpretação de Serge Klarsfeld - seria não

compreender o período e os comportamentos dos franceses. Para o historiador:

"o lugar preponderante tomado pela ambivalência é um traço majoritário das atitudes dos franceses sob Vichy. (...). As alternativas simples entre pétainisme e gaullisme, resistência e vichysme, ou resistência e colaboracionismo fornecem apenas imagens redutoras da experiência dos contemporâneos (...). Sem procurar diminuir a importância do julgamento moral na apreciação dos comportamentos, .... a idéia de ambivalência é de uma outra natureza. Ela abre outras portas para o historiador e alarga suas possibilidades de análise. Ela permite não mais pensar apenas as contradições em termos antagônicos - resistentes ou pétainistes,gaullistes ou attentistes... - mas de ultrapassá-los, interrogando-se sobre o que procuravam dizer, para além das pseudo-evidências do sentido aparente. (...). Os franceses, na maioria, não foram primeiramente vichystes, depois, resistentes, pétainistes, depois, gaullistes, mas eles puderam ser, simultaneamente, durante um tempo mais ou menos longo, e segundo o caso, um pouco os dois ao mesmo tempo. Em uma recente entrevista, Simone Veil lembrava as dificuldades para dominar agora a complexidade do período, e indicava, a propósito dos franceses, ‘alguns se comportaram bem, outros mal, muitos os dois ao mesmo tempo. [...] isto não era tão simples como se apresenta hoje’ "67.

A polêmica parece não ter fim.

Quando Jacques Chirac assumiu, como chefe de Estado, as responsabilidades do

Estado francês na Shoah, estava falando também das responsabilidades da sociedade

65 Daniel Cordier citado por Pierre Laborie. “La résistance et le sort des juifs”. ------ . Les Français des années troubles. De la guerre d' Espagne à la Liberation. Paris, Seuil, 2003, (publicado originalmente por Desclée de Brouwer, 2001), p. 185. 66 Pierre Laborie. “Les juifs de Vichy et l’opinion”. ---------- . Les Français des années troubles. De la guerre d' Espagne à la Liberation. Paris, Seuil, 2003 (publicado originalmente por Desclée de Brouwer, 2001), p. 147. 67 Pierre Laborie. Les Français des années troubles. De la guerre d' Espagne à la Liberation. Paris, Seuil, 2003 (publicado originalmente por Desclée de Brouwer, 2001), pp. 31-32.

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francesa na tragédia? Ou seriam coisas distintas? O presidente via, então, as nuances da

zona cinzenta ou não?

O secretário geral da presidência da República, de Chirac, Frédéric Salat-Baroux,

declarou no Panthéon: “Nos momentos os mais assustadores da história da França, o

Estado desabou, as elites desabaram, mas a Nação francesa, no que ela tem de mais

profundo, manteve-se”68. Há, ainda a dificuldade de se ir além: de um lado, o Estado e as

elites aos pés do nazismo; de outro, a Nação francesa preservada, de pé, a France

éternelle. Assim, se reconhece Vichy como o Estado francês colaborador sem percebê-lo

como uma instituição formada por pessoas, de pessoas, expressando seus intereresses e

valores, como nos ensinou Hobbes.

O caso é complexo: tratava-se de um país invadido e ocupado pelo inimigo numa

guerra na qual fora vencido. É verdade.

Entretanto, valores presentes no Estado de Vichy transitavam na sociedade da III

República, bem antes da invasão alemã. Inspirado em Tocqueville, Pierre Laborie

procurou as explicações da crise de identidade nacional nos anos 30 e não na derrota de

1940. A crise não começou aí, ao contrário, e ela explica, entre outras coisas, a própria

derrota. Marc Bloch já voltara aos anos 30 para compreender a estranha derrota. Os

elementos estavam ali, na sociedade, germinando, crescendo: “a desordem ideológica”,

“a deterioração das referências”, a “degenerescência dos símbolos”, a não-intervenção na

Guerra da Espanha, o “pacifismo multiforme”, o antisemistismo, o anticomunismo, a

xenofobia, o “consenso frágil”. O antisemistismo na França, acredita, guarda autonomia

em relação ao antisemitismo nazista. Hannah Arendt, aliás, já demonstrara sua presença e

sua força na sociedade francesa muito evidentes no Caso Dreyfus69. Vichy antes de

Vichy70.

Assim, é significativa a reconstrução que Pierre Emmanuel fazia, em 1947, a

respeito dos judeus na sociedade francesa : “Muitas pessoas, antes da guerra, não sabiam

o que era um Judeu: sob a ocupação elas pronunciavam esta palavra com um misto de

piedade, desgosto e terror sagrado”. E descreve a situação na qual soube da entrada da

68 Cit por Philippe Goulliaud. “En rendant hommage aux Justes de France, Chirac parachève le travail national de mémoire”. Le Figaro, 18 de Janeiro de 2007. 69 Hannah Arendt. Origens do totalitarismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. 70 Pierre Laborie. L´opinion française sous Vichy. Les Français et la crise d' identité nationale. 1936-1944. Paris, Seuil, 2001, pp. 83 e 84.

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França na Guerra: ele e a esposa, em passeio num bosque, foram surpeendidos por um

grande sapo e, ao se afastarem dele, muitos outros apareciam no caminho. Ao chegarem à

casa, receberam a notícia. Conclui, então, a respeito do que estava por vir: “Um chuva de

sapos sobre o mundo, invasão de monstros como surgidos do nada”71.

A laicização da religião ou a religião laica?

No áspero Editorial do Libération, a tentativa de sintetizar a trajetória já

percorrida da memória: construída pelo general de Gaulle - e pelos franceses, eu

acrescentaria - , por François Mitterand - e pelos franceses, eu acrescentaria -, começou a

ser desvelada “pelos trabalhos de historiadores americanos”72. “Por terem sido

alimentados pelo culto do herói, perpetuado por um Mitterand comprometido com Vichy,

os franceses caíram das nuvens”. No desdobramento, “o arrependimento cresceu e se

impôs”. “Mas o arrependimento começa hoje a se diluir para dar lugar às ‘luzes’ que

difundem os Justos”. Pensados como os milhões de anônimos, responsáveis pela

preservação dos ¾ da população judia na França. Assim como De Gaulle e Mitterand

tiveram um papel na construção da memória dos anos 40, Chirac, também, teria o seu,

dando origem a uma nova fase desta história. Ironicamente, Jean-Michel Thénard conclui

o editorial do dia seguinte à cerimonia no Panthéon: “era preciso mesmo um gaulliste

para colocar em pé uma História que andava de cabeça para baixo. Graças a ele, a França

tem uma visão mais justa de seu passado, condição necessária para recuperar confiança

em seu futuro. Vale o favor prestado à nação”73.

Com Chirac – eu diria, Chirac e os franceses - uma vez mais, a construção da

memória. Construção, desconstrução, construção.... A memória em permanente mudança,

fazendo-se e refazendo-se à imagem e à semelhança do presente.

****

71 Pierre Emmanuel. “La Résistance comme catharsis”. Esprit, novembro 1947, p. 633 e 630, respectivamente. 72 Certamente, uma alusão a Robert O. Paxton. 73 Para as citações do parágrafo, Jean-Michel Thénard. “Vérité”. Editorial. Libération. Paris, 19 de Janeiro de 2007, p. 2. Antoine Guiral, também nesta edição do Libération, notou que, no discurso, o presidente Chirac não entrou na lógica do arrependimento.

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Quando se começou a construção do prédio, seria uma igreja – a Igreja de Santa

Genoveva -, ainda sob o Antigo Regime. Em 1791, terminado no calor da Revolução,

tornou-se um templo laico. No século seguinte, hesitou entre as vocações religiosa e

laica. Em 1885, enfim, por decreto, assumiu a função que mantém até hoje: “para a

República um lugar da memória onde ela constrói sua imagem através dos que honra”74.

O Panthéon.

Não vistos como resistentes, os Justos libertariam os anos 40? Libertariam

sobretudo os anos de culpabilização que vieram depois, nos anos 70, 80? Heróis dos anos

troubles – os resistentes - , heróis dos anos envergonhados – os Justos? Os cidadãos de

rostos comuns, os novos desconhecidos do Panthéon personificariam o mito?

Entre religião e laicização, a vocação hesitante do Panthéon, a tentação de fazer

da História, mitologia. O lugar dos grandes homens reconhecidos pela Pátria75.

Bibliografia

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74 Folheto da exposição Hommage de la Nation aux Justes de France. Paris, 18 de janeiro de 2007, 4 pp. 75 Em artigo publicado no Libération, a propósito dos Justos no Panthéon, o historiador Vincent Duclert defende o atual sentido laico do Panthéon, comprovado, por exemplo, pela comemoração aos Justos. Como lugar da memória, o monumento deve mesmo expressar uma percepção histórica da República e se afastar completamente de um sentido religioso. Para fortalecê-la, o Panthéon precisaria passar, porém, por uma democratização. Uma República que afirma sua vocação democrática ao homenagear valores tais como “o princípio de justiça, a defesa do indivíduo diante do Estado, a palavra universal dos humildes, o heroísmo dos que se qualificam erradamente como ‘vítimas’ e que foram heróis tanto mais exemplares, quanto eram simples cidadãos”. Nesta direção, defende a “‘panthéonisation’” de Alfred Dreyfus: “O capitão Dreyfus no Panthéon abre o caminho para uma nova representação da República. Como há um século, o Caso ainda se mostra capaz de injetar democracia na República”. As posições do historiador se opõem às do pesquisador Albert Lévy. No mesmo jornal, em 25 de dezembro de 2006, Lévy expôs a defesa do templo segundo uma visão religiosa da República, de acordo com a crítica de Duclert. “Le Panthéon, un double enjeu”. Libération. Paris, 19 de Janeiro de 2007, p. 28.

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