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Aos meus irmãos, Tsalig e Hershel, e a todos os filhos e filhas, irmãs e irmãos, pais e avós que pereceram no Holocausto. E a Oskar Schindler, cujas nobres ações salvaram realmente um «mundo inteiro». Leon Leyson

Aos meus irmãos, Tsalig e Hershel, e a todos os filhos e ... · minha vida. Os meus primeiros anos não me deram nenhum aviso do que estava para vir. O meu nome é Leib Lejzon, embora

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Aos meus irmãos, Tsalig e Hershel, e a todos os filhos e filhas, irmãs e irmãos, pais e avós que pereceram no Holocausto.

E a Oskar Schindler, cujas nobres ações salvaram realmente um «mundo inteiro».

Leon Leyson

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Itinerário de Leon Leyson

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Prólogo

Tenho de admitir, as minhas mãos estavam suadas e o meu estômago, às voltas. Tinha estado pacientemente à espera na fila, mas isso não significava que não estivesse nervoso. Era a minha vez de apertar a mão do homem que tinha salvo a minha vida muitas vezes... mas isso fora há anos. Agora perguntava-me se ele iria sequer reconhe-cer-me.

Mais cedo nesse dia de outono de 1965, a caminho do aeroporto de Los Angeles, disse a mim mesmo que o homem com quem estava prestes a encontrar-me poderia não se lembrar de mim. Fazia duas décadas desde a última vez que o vira, e esse encontro tinha sido noutro continente e em circunstâncias muitíssimo diferentes. Nessa altura eu era um rapazito escanzelado e faminto de quinze anos, com o tamanho de uma criança de dez. Agora era um homem adulto de trinta e cinco anos. Casado, cidadão dos Esta-dos Unidos da América, veterano do exército e professor. Enquanto os outros avançavam para cumprimentar o nosso convidado, deixei-me ficar em segundo plano. Afinal, eu era o mais jovem do nosso grupo e seria correto que os mais velhos tivessem precedência sobre mim. Para ser sincero,

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eu queria adiar o mais possível a deceção que sentiria se o homem a quem tanto devia não se lembrasse de mim.

Mas em vez de desapontado, senti-me extasiado, aquecido pelo seu sorriso e as suas palavras: «Eu sei quem tu és!», excla-mou ele, com um brilho nos olhos. «És o “Pequeno Leyson”».

Já devia saber que Oskar Schindler nunca me dececionaria.Naquele dia do nosso reencontro, o mundo ainda não

sabia de Oskar Schindler, nem do seu heroísmo durante a Segunda Guerra Mundial. Mas nós, os que estávamos no aeroporto, sabíamos. Todos nós e mais de mil outros, devíamos-lhe as nossas vidas. Tínhamos sobrevivido ao Holocausto graças aos enormes riscos que Schindler correra e aos subornos e acordos de bastidores que ele negociara para nos manter, aos seus trabalhadores judeus, a salvo das câmaras de gás de Auschwitz. Ele servira-se da sua mente, do seu coração, da sua incrível inteligência prática e da sua fortuna para salvar as nossas vidas. Usara a sua astúcia para iludir os nazis, alegando que éramos essenciais para o esforço de guerra, embora soubesse que muitos de nós, incluindo eu, não tinham qualquer espécie de aptidão útil. De facto, eu tinha de me empoleirar num caixote de madeira para poder alcançar os controlos da máquina que estava encarregado de operar. Esse caixote deu-me a oportunidade de parecer útil, de viver.

Sou um sobrevivente improvável do Holocausto. Tinha muito contra mim e quase nada a meu favor. Era apenas um rapazito; não tinha ligações; não tinha aptidões. Mas tive a meu favor um fator que superou tudo o resto: Oskar Schindler achava que a minha vida tinha valor. Achava

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que valia a pena eu ser salvo, mesmo quando o facto de me dar uma oportunidade de viver punha a sua própria vida em perigo. Agora é a minha vez de fazer o que puder por ele, de falar sobre o Oskar Schindler que conheci. A minha esperança é que ele se torne parte integrante da vossa memória, tal como eu fui sempre parte integrante da dele. Esta é também a história da minha vida e de como ela se cruzou com a dele. Pelo caminho, apresentarei a minha família. Também eles puseram as suas vidas em perigo para salvar a minha. Mesmo nos piores momen-tos, fizeram-me sentir que era amado e que a minha vida importava. Aos meus olhos, eles também são heróis.

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Um

Corri descalço pelo prado até ao rio. Já por entre as árvo-res, livrei-me das minhas roupas, agarrei o meu ramo baixo favorito, impulsionei-me sobre o rio e deixei-me ir.

Um mergulho perfeito!Flutuando na água, ouvi um chape e depois outro, quando

dois dos meus amigos se juntaram a mim. Não tardámos a sair do rio e a correr de novo para os nossos ramos favo-ritos, para recomeçarmos tudo. Quando os lenhadores que trabalhavam a montante ameaçavam estragar a nossa diver-são, lançando as árvores recém-cortadas na corrente que as levava até à serração, ajeitávamo-nos rapidamente, optando por nos deitarmos de costas, cada um no seu tronco, a con-templar a luz do sol que se coava através do dossel de copas de carvalhos, abetos e pinheiros.

Por muito que repetisse essas rotinas, nunca me cansava delas. Por vezes, nesses dias quentes de verão, usávamos fatos de banho, pelo menos se desconfiássemos que podiam andar por ali adultos. Mas normalmente íamos para a água despidos.

O que tornava essas escapadelas ainda mais emocionantes era o facto de a minha mãe me ter proibido de ir para o rio.

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Afinal de contas, eu não sabia nadar.No inverno, o rio era igualmente divertido. O meu irmão

mais velho, Tsalig, ajudou-me a criar patins de gelo a partir de todos os tipos de materiais improváveis, como restos de metais recuperados do nosso avô, que era ferreiro, e pedaços de madeira tirados da pilha de lenha. Éramos inventivos na confeção dos nossos patins. Eram primitivos e desajeitados, mas funcionavam! Eu era pequeno, mas rápido; adorava fazer corridas com os rapazes maiores no gelo irregular. Uma vez, David, outro dos meus irmãos, patinou sobre gelo fino, que cedeu, fazendo-o cair no rio gelado. Felizmente, a água era pouco profunda. Ajudei-o a sair e corremos para casa, para despirmos as nossas roupas encharcadas e aquecermos junto à lareira. Assim que ficámos de novo quentes e secos, voltámos a correr para o rio, para uma nova aventura.

A vida parecia uma viagem interminável e despreocupada.

Assim, nem o mais assustador dos contos de fadas podia ter-me preparado para os monstros com que viria a deparar--me apenas alguns anos mais tarde, para as várias vezes em que escaparia à morte por uma unha negra, nem para o herói, disfarçado ele próprio de monstro, que iria salvar a minha vida. Os meus primeiros anos não me deram nenhum aviso do que estava para vir.

O meu nome é Leib Lejzon, embora agora seja conhecido como Leon Leyson. Nasci em Narewka, uma aldeia agrícola no nordeste da Polónia, perto de Bialystok, não muito longe da fronteira com a Bielorrússia. Há várias gerações que os meus antepassados lá viviam; na verdade, há mais de duzentos anos.

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Os meus pais eram pessoas honestas e trabalhadoras, que nunca esperavam algo que não tivessem merecido. A minha mãe, Chanah, era a mais nova de cinco filhos, duas raparigas e três rapazes. A sua irmã mais velha chamava-se Shaina, que significa «bonita» em iídiche. A minha tia era de facto bonita e a minha mãe, não, e isso influenciou a forma como todos as tratavam, incluindo os seus próprios pais. Eles amavam com certeza ambas as filhas, mas Shaina era considerada demasiado bonita para o trabalho físico, o que não acontecia com a minha mãe. Lembro-me de a minha mãe me contar que tinha de levar baldes de água aos trabalhadores que estavam nos campos. Estava calor e a água era pesada, mas a tarefa acabou por ter felizes consequências para ela e para mim: foi nesses campos que a minha mãe atraiu o olhar do seu futuro marido.

Embora o meu pai tenha iniciado o namoro, o casamento tinha de ser arranjado pelos pais de ambos, ou pelo menos parecer que assim fora. Era esse o costume vigente na época, na Europa de Leste. Felizmente, os dois pares de progenito-res mostraram-se satisfeitos com a atração mútua dos filhos e os namorados não tardaram a casar; a minha mãe tinha dezasseis anos e o meu pai, Moshe, dezoito.

Para a minha mãe, a vida de casada era, em muitos aspetos, semelhante à vida que levara em casa dos seus pais. Os seus dias eram dedicados a executar tarefas domésticas, cozinhar e cuidar da sua família, mas em vez dos pais e irmãos, agora cuidava do seu marido e, pouco tempo depois, dos seus filhos.

Sendo o mais novo de cinco filhos, eu não tinha a minha mãe só para mim com muita frequência, por isso um dos

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meus momentos favoritos era quando os meus irmãos e a minha irmã estavam na escola e as nossas vizinhas vinham visitar-nos. Sentavam-se à volta da lareira, a tricotar ou a fazer almofadas de penas de ganso. Eu ficava a ver as mulhe-res juntarem as penas e encherem as fronhas, abanando com suavidade para que elas se espalhassem uniformemente. Inevitavelmente, algumas das plumas mais finas escapavam. O meu trabalho consistia em recuperar as plumazinhas que revoluteavam pelo ar como flocos de neve. Estendia as mãos para as apanhar, mas elas flutuavam-me por entre os dedos. De vez em quando, tinha sorte e conseguia agarrar uma mão-cheia delas, e as mulheres recompensavam os meus esforços com risos e aplausos. Depenar gansos era um tra-balho árduo, pelo que cada pena era preciosa.

Gostava de ouvir a minha mãe trocar histórias e, por vezes, um pouco de coscuvilhice da aldeia com as amigas. Nessas alturas via um outro lado dela, mais pacífico e des-contraído.

Por muito ocupada que fosse a sua vida, a minha mãe arranjava sempre tempo para nos mostrar o seu amor. Can-tava connosco e, bem entendido, zelava para que fizéssemos os nossos trabalhos de casa. Uma vez eu estava sentado sozi-nho à mesa, a estudar aritmética, quando ouvi um roçagar atrás de mim. Estava tão concentrado no que aprendia que nem tinha ouvido a minha mãe entrar e começar a cozinhar. Não era a hora de qualquer refeição, pelo que fiquei admi-rado. Então ela estendeu-me um prato de ovos mexidos, fei-tos especialmente para mim. Disse-me: «És tão bom menino que mereces uma gulodice especial.» Ainda sinto o orgulho

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que brotou dentro de mim naquele momento. Tinha feito com que a minha mãe se sentisse orgulhosa.

O meu pai sempre se mostrara determinado em propor-cionar-nos uma boa vida. Viu um futuro melhor em tra-balhar numa fábrica do que em seguir o ofício de ferreiro, tradicional da sua família. Pouco depois de casar, começou a trabalhar como aprendiz de mecânico numa pequena fábrica que produzia garrafas de vidro de todos os tama-nhos, sopradas à mão. Lá aprendeu a fazer os moldes para as garrafas. Graças ao seu trabalho árduo, à sua capaci-dade inata e à sua grande determinação, conquistou várias promoções. Uma vez, o dono da fábrica selecionou-o para frequentar um curso avançado de conceção de ferramentas na cidade vizinha de Bialystok. Percebi que se tratava de uma oportunidade importante, porque ele comprou um casaco novo especialmente para a ocasião. Comprar roupa nova era algo que não acontecia com muita frequência na nossa família.

A fábrica de vidro prosperou e o proprietário decidiu expandir o negócio, mudando as instalações para Cracóvia, uma próspera cidade cerca de quinhentos e sessenta qui-lómetros a sudoeste de Narewka. Isso causou uma grande dose de emoção na nossa aldeia. Naqueles dias era raro os jovens, ou na realidade fosse quem fosse, deixarem a terra onde tinham nascido. O meu pai era um dos poucos fun-cionários que iriam para a nova fábrica. O plano era o meu pai ir primeiro e, quando tivesse dinheiro suficiente, levar--nos a todos para Cracóvia. Foram precisos vários anos para poupar o dinheiro necessário e arranjar um sítio adequado

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para nós vivermos. Entretanto, vinha a casa de seis em seis meses, mais ou menos, para nos visitar.

Eu era demasiado pequeno para me lembrar exata-mente de quando o meu pai deixou Narewka pela primeira vez, mas lembro-me de quando vinha passar alguns dias. Quando ele chegava, toda a aldeia sabia. O meu pai era um homem alto, bonito, que sempre teve grande orgulho na sua aparência. Gostava do traje mais formal usado pelos homens em Cracóvia e, aos poucos, adquiriu vários fatos elegantes. Quando vinha visitar-nos, usava sempre um belo fato, camisa e gravata. Isso causava bastante sensação entre os aldeãos, que estavam habituados às roupas simples e folgadas dos camponeses. Mal sabia eu que aqueles fatos ajudariam a salvar as nossas vidas durante os anos terríveis que nos esperavam.

As visitas do meu pai faziam-me sempre sentir como se fosse um dia santo. Tudo era diferente quando ele estava em casa. Na maioria dos dias, tendo em conta tudo o que a minha mãe tinha de fazer para cuidar dos meus quatro irmãos e de mim, as refeições eram bastante informais. Isso mudava quando o meu pai estava. Sentávamo-nos à mesa com os pratos postos à nossa frente. Havia sempre um pouco mais de ovos ao pequeno-almoço e um pouco mais de carne ao jantar. Ouvíamos as histórias que ele contava acerca da vida na cidade, encantados com as suas narrativas sobre comodidades modernas, como canalizações interiores e car-ros elétricos, coisas que mal conseguíamos imaginar. Nós, os quatro rapazes, Hershel, Tsalig, David e eu, portávamo--nos sempre o melhor possível. Rivalizávamos pela atenção

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do nosso pai, mas sabíamos que a nossa irmã, Pesza, era realmente a sua preferida. Visto ela ser a única rapariga na nossa família de rapazes turbulentos, isso não era surpreen-dente. Sempre que estalava alguma altercação sem impor-tância entre irmãos, a culpa nunca era de Pesza, embora até pudesse ter sido. Quando a arreliávamos excessivamente, o pai intervinha e repreendia-nos. Pesza tinha longos cabelos loiros, que a minha mãe arranjava em tranças grossas. Ela ajudava a minha mãe em casa e era sossegada e obediente. Compreendo por que motivo o meu pai a favorecia.

Muitas vezes, o meu pai trazia-nos presentes da grande cidade. As caixas de bombons que nos oferecia tinham fotografias de alguns dos imponentes edifícios históricos e avenidas arborizadas de Cracóvia. Eu ficava muito tempo a olhar para elas, tentando imaginar o que seria viver num sítio tão glamoroso.

Sendo o filho mais novo, eu herdava sempre as coisas dos meus irmãos: camisas, sapatos, calças e brinquedos. Numa das suas visitas, o meu pai trouxe-nos de presente umas malas de criança. Vi os meus irmãos com as suas malas e pensei que teria de esperar mais uma vez que um deles me passasse a sua. De facto, aquilo não me parecia justo. Mas dessa feita esperava-me uma surpresa: dentro de uma das malas deles havia uma ainda mais pequena, do tamanho certo para mim. Fiquei tão feliz!

Apesar de as suas visitas durarem apenas alguns dias, o meu pai tornava-as sempre um tempo especial para mim. Nada me dava mais alegria do que ir a pé com ele até à casa dos seus pais, com os seus amigos a cumprimentá-lo

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ao longo do caminho. Ele segurava a minha mão na dele, brincando com os meus dedos. Era como um sinal secreto entre nós de quanto ele me amava, ao seu benjamim.

O meu irmão Hershel era o mais velho, depois vinha o meu irmão Betzalel, conhecido como Tsalig, a minha irmã, Pesza, o meu irmão David e eu. Aos meus olhos, Hershel era como o Sansão da Bíblia. Era grande, forte e insubor-dinado. Os meus pais costumavam dizer que ele lhes dava muito que fazer. Na adolescência, rebelou-se e recusou-se a ir à escola. Queria fazer algo mais «útil». Por essa altura o meu pai estava a trabalhar em Cracóvia, pelo que os meus pais decidiram que Hershel iria para lá com ele. Isso causou--me sentimentos contraditórios. Por um lado, fiquei triste por ver partir o meu irmão mais velho, por outro, a sua partida era um alívio. Ele tinha sido uma preocupação para a minha mãe, e, apesar da minha pouca idade, eu sabia que era melhor para Hershel estar com o pai. Hershel preferia a vida da cidade e raramente vinha com o pai, quando ele nos visitava.

Se Hershel era duro e obstinado, o meu irmão Tsalig era, em muitos aspetos, o seu oposto. Era gentil e amável. Embora fosse seis anos mais velho do que eu e tivesse todos os motivos para proceder como se fosse muito superior a mim, o mais novo do grupo, nunca o fez. Na verdade, não me lembro de uma única vez em que ele me tratasse como o maçador que eu provavelmente era. Até me deixava acom-panhá-lo nas suas excursões pela aldeia. Com o seu talento inato para a técnica, Tsalig era um super-herói aos meus olhos. Não parecia haver nada que ele não soubesse fazer.

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Certa vez, construiu um rádio utilizando cristais em vez de eletricidade para captar as emissões de Varsóvia, Bialystok e até Cracóvia. Fez todo o aparelho, incluindo a caixa que albergava o equipamento, e descobriu como fazer uma antena de fio longo para apanhar o sinal. Pareceu-me magia, quando pus os auscultadores que Tsalig me entregou e ouvi o famoso trompetista de Cracóvia a anunciar o meio-dia com a sua trombeta, a centenas de quilómetros de distância.

No entanto, o meu irmão David, pouco mais de um ano mais velho do que eu, era o meu companheiro mais próximo. Lembro-me de David me contar que ele embalava o meu berço quando eu era bebé e chorava. Estávamos muitas vezes juntos. Ainda assim, provocar-me parecia ser um dos seus passatempos favoritos. Sorria com grande satisfação sempre que eu caía numa das suas partidas. Às vezes, sentia-me tão frustrado com os seus truques que me vinham lágrimas aos olhos. Uma vez, quando estávamos ambos a comer macarrão, ele disse-me que o macarrão era, na realidade, feito de vermes. Insistiu tanto e permaneceu tão sério que acabou por me convencer. Engasguei-me, quase a vomitar, e David até uivou de tanto rir. Não tardou muito que vol-tássemos a ser os melhores amigos do mundo... até David encontrar outra oportunidade para me fazer a vida negra.

Havia cerca de mil judeus em Narewka. Gostava muito de assistir aos serviços da sinagoga com os meus avós maternos, aos quais era especialmente chegado. Adorava ouvir as orações a ressoarem por todo o edifício. O rabino come çava com uma voz forte e vibrante, que depressa se mis tu rava com as vozes da congregação. De poucos em

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poucos minutos, a sua voz subia de novo, ao proclamar uma ou duas linhas, indicando onde todos deviam ir no livro de orações. O resto do tempo, cada um dos membros da con-gregação estava por sua conta. Era como se todos fôssemos um só, mas cada um de nós tivesse também uma comunhão pessoal com Deus. Suponho que para uma pessoa de fora pudesse parecer estranho, mas para nós estava totalmente certo. Por vezes, quando um polaco cristão queria descre-ver um evento caótico, dizia: «Foi como uma congregação judaica.» Naqueles tempos de paz, um tal comentário não era feito de modo hostil, mas como uma afirmação de quão estranhos nós parecíamos aos olhos daqueles cujas práticas religiosas diferiam da nossa.

Em termos gerais, cristãos e judeus viviam lado a lado em harmonia em Narewka, embora eu tivesse aprendido desde cedo que estava a forçar a sorte se passeasse pelas ruas com a minha habitual despreocupação durante a Semana Santa, a semana anterior à Páscoa. Essa era a única ocasião em que os nossos vizinhos cristãos nos tratavam de modo diferente, como se nós, judeus, nos tivéssemos transformado de repente em seus inimigos. Mesmo alguns dos meus companheiros de brincadeira se tornavam meus agressores. Atiravam-me pedras e chamavam-me nomes que eram cruéis e dolorosos, nomes como «assassino de Cristo». Aquilo não fazia muito sentido para mim, pois eu sabia que Jesus tinha vivido sé culos antes, mas a minha identidade pessoal não tinha grande importância em comparação com a minha identidade como judeu; e para aqueles que davam a impressão de nos odiar, não interessava a época em que um judeu vivia: judeu

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era judeu, e todos os judeus eram responsáveis pela morte de Jesus. Felizmente, a animosidade durava apenas alguns dias no ano e, em termos gerais, em Narewka, judeus e gentios viviam pacificamente lado a lado. Claro, existiam sempre exceções. A mulher que morava do outro lado da rua atirava pedras aos meus amigos judeus e a mim, só por andarmos no passeio em frente à sua casa. Suponho que ela achava que a simples proximidade de um judeu dava azar. Aprendi a atravessar para o outro lado da rua quando me aproximava da sua casa. Os outros vizinhos eram muito mais simpáticos. A família que morava ao nosso lado convidava-nos todos os anos para vermos a sua árvore de Natal decorada.

De uma maneira geral, Narewka na década de 1930 era um lugar idílico para se crescer. Do pôr do sol de sexta-feira ao pôr do sol de sábado, os judeus da aldeia observavam o Sabat. Eu adorava o silêncio que caía à medida que as lojas e empresas fechavam, uma pausa bem-vinda na rotina dos dias de semana. Após os serviços na sinagoga, as pessoas sentavam-se nas suas varandas, a conversar e a mastigar sementes de abóbora. Pediam-me muitas vezes para cantar quando me viam passar, pois eu conhecia várias canções e era admirado pela minha voz, distinção que perdi quando entrei na adolescência e a minha voz mudou.

De setembro a maio, ia à escola pública de manhã e ao heder, a escola judaica, da parte da tarde. Aí esperava-se que aprendesse hebraico e estudasse a Bíblia. Eu tinha uma certa vantagem sobre os meus colegas de turma, pois tinha aprendido com os meus irmãos, imitando-os enquanto eles faziam os seus trabalhos de casa para o heder, embora

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não compreendesse o que estavam a estudar. Os meus pais matricularam-me no heder aos cinco anos.

O catolicismo era a religião dominante da Polónia, e a reli-gião era uma parte muito importante da escola pública que eu frequentava. Quando os meus colegas católicos recitavam as suas orações, nós, os judeus, éramos obrigados a ficar em pé e em silêncio. Isso era mais fácil de dizer do que de fazer; éramos frequentemente repreendidos por tentarmos trocar um sussurro ou uma cotovelada brincalhona, quando deve-ríamos estar imóveis como estátuas. Era arriscado portarmo--nos mal, por pouco que fosse, já que a nossa professora não tinha o menor escrúpulo em contar tudo aos nossos pais. Por vezes, a minha mãe sabia que eu me tinha metido em sarilhos ainda antes de eu chegar a casa à tarde! A minha mãe nunca me batia, mas tinha a sua maneira de me fazer saber quando lhe tinha desagradado. Esse sentimento não era algo de que eu gostasse, pelo que geralmente tentava portar-me bem.

Uma vez, o meu primo Yossel perguntou à sua professora se podia mudar o seu nome para Józef, em honra de Józef Pilsudski, um herói nacional polaco. A professora disse-lhe que não era permitido a um judeu ter um nome próprio polaco. Não consegui perceber por que motivo o meu primo desejaria trocar o seu nome iídiche, que significa José, para a respetiva versão polaca, mas a recusa da professora não me surpreendeu. A vida era mesmo assim.

Fiz da casa do nosso vizinho Lansman, o alfaiate, o meu segundo lar. Fascinava-me a maneira como ele conseguia pulverizar água, em gotículas extraordinariamente finas e regulares, da sua boca para as roupas que estava a passar

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a ferro. Adorava visitá-lo, à sua mulher e aos seus quatro filhos. Todos eram alfaiates. Cantavam enquanto trabalha-vam e, à noite, sentavam-se juntos a fazer música, cantando e tocando instrumentos. Fiquei atónito quando o filho mais novo, um sionista, decidiu abandonar a sua casa pela Pales-tina distante. Porque iria ele para tão longe da sua família, porquê desistir de trabalhar e tocar com eles? Agora com-preendo que a sua decisão lhe salvou a vida. A sua mãe, o seu pai e os seus irmãos morreram todos no Holocausto.

Narewka não possuía a generalidade daquilo que hoje consideramos condições básicas. As ruas eram empedradas ou simplesmente de terra; a maior parte dos edifícios era de madeira e tinha apenas um piso; as pessoas deslocavam-se a pé, a cavalo ou de carroça. Ainda me lembro de quando a maravilha que era a eletricidade chegou até nós, em 1935, tinha eu seis anos. Cada família teve de decidir se queria ou não optar pela energia elétrica. Depois de muito debaterem, os meus pais tomaram a decisão ousada de abrir as portas de nossa casa à nova invenção. Um fio solitário ligava uma tomada montada no meio do nosso teto. Parecia incrível que, em vez de um candeeiro a petróleo, possuíssemos agora uma única lâmpada suspensa, a cuja luz podíamos ler à noite. Tudo o que tínhamos de fazer era puxar um fio para a ligar e desligar. Sempre que me parecia que a minha mãe e o meu pai não estavam a olhar, subia a uma cadeira e puxava o fio, só para ver a luz aparecer e desaparecer como que por magia. Espantoso.

Apesar do milagre da eletricidade, em quase tudo o resto a vida em Narewka continuava tal e qual como há séculos.

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Não havia água canalizada e, no pino do inverno, o trajeto até ao anexo era uma coisa que eu aprendera a adiar tanto quanto possível. A nossa casa tinha uma divisão grande que servia de cozinha, sala de jantar e sala de estar, tudo em um, e um quarto. O atual conceito de privacidade era-nos intei-ramente desconhecido. Havia uma cama que todos partilhá-vamos: a minha mãe, os meus irmãos, a minha irmã e eu.

Íamos buscar a nossa água a um poço no pátio, baixando um balde até ouvirmos um chape e içando-o depois cheio de água. O verdadeiro desafio era levar o balde do poço para casa sem deixar cair demasiada água pelo caminho. Era preciso repetir o trajeto várias vezes por dia para prover às nossas necessidades, pelo que havia muitas idas e vindas ao poço. Eu também recolhia os ovos, empilhava a lenha cor-tada por Tsalig, limpava os pratos que Pesza lavava e fazia recados para a minha mãe. A maior parte dos dias era eu que ia à granja do meu avô buscar um jarro de leite da sua vaca para levar para casa.

A nossa aldeia, na orla da floresta de Bialowieza, era habitada por agricultores e ferreiros, talhantes e alfaiates, professores e lojistas. Éramos uma população rural, pouco sofisticada e muito trabalhadora, tantos judeus como cris-tãos, cujas vidas giravam à volta da família, dos nossos calendários religiosos e das estações de semeadura e colheita.

Aqueles de nós que eram judeus falavam iídiche em casa, polaco em público e hebraico na escola religiosa ou na sina-goga. Eu também aprendi um pouco de alemão, ensinado pelos meus pais. Saber alemão viria a revelar-se mais útil para nós do que jamais poderíamos ter imaginado.

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Visto a lei polaca proibir os judeus de possuir terras, como, aliás, acontecera com todos os judeus da Europa durante sé culos, o meu avô materno, Jacob Meyer, arrendara terra da Igreja Ortodoxa Oriental. Aguentava longas horas de traba-lho físico para sustentar a família. Lavrava os seus campos. Cavava batatas da terra com uma pá e cortava feno com uma foice. Eu sentia-me grandioso quando me sentava na sua car-roça puxada por um cavalo e carregada de fardos de feno no final da colheita. Depois de o meu pai ter partido para Cra-cóvia, a minha mãe passou a recorrer cada vez mais à ajuda dos pais. O meu avô passava frequentemente por nossa casa com batatas, beterraba e outros produtos da sua horta, para garantir que a filha e os netos não tinham fome. No entanto, mesmo com a ajuda dos pais, a minha mãe vivia assoberbada, uma vez que, para todos os efeitos práticos, era uma mãe sol-teira com uma casa cheia de crianças. Só manter-nos alimen-tados, com roupas limpas e garantir que dispúnhamos de tudo o que era necessário para a escola revelava-se um trabalho enorme. Ela nunca tinha um bocadinho só para si.

Em Narewka todos conheciam os vizinhos e sabiam o que eles faziam para ganhar a vida. Os homens eram frequente-mente identificados pelo seu ofício e não pelo seu apelido. O meu avô paterno era conhecido como Jacob, o ferreiro, e o nosso vizinho era Lansman, o alfaiate. Uma mulher era muitas vezes designada pelo nome do marido, como «a mulher do Jacob», por exemplo, enquanto as crianças eram por vezes conhecidas em função da identidade dos seus pais ou avós. As pessoas não pensavam em mim como Leib Lej-zon. Nem sequer pensavam em mim como o filho de Moshe

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e Chanah; referiam-se a mim como eynikl de Jacob Meyer, o neto de Jacob Meyer. Esse simples facto diz muito sobre o mundo em que cresci. Era uma sociedade patriarcal, em que a idade era respeitada, mesmo venerada, especialmente quando, como no caso do meu avô materno, essa idade sig-nificava uma vida de trabalho duro, de dedicação à família e de devoção à sua fé. Eu endireitava sempre um pouco mais as costas e sentia-me um pouco mais especial quando as pessoas falavam de mim como o eynikl de Jacob Meyer.

Todas as sextas à noite e sábados de manhã, nas celebra-ções do Sabat na sinagoga, eu ficava ao lado do meu avô, inclinando a cabeça quando ele inclinava a sua e seguindo o seu exemplo ao longo das orações. Ainda me lembro de olhar para ele e pensar como era alto e forte, qual árvore gigante que me protegia. Passávamos sempre a Páscoa em casa dos pais da minha mãe. Visto eu ser o neto mais novo, cabia-me a honra assustadora de fazer as quatro perguntas tradicionais dessa cerimónia sagrada. Enquanto recitava as perguntas em hebraico, esforçando-me para não come-ter erros, sentia os olhos do meu avô pousados em mim, incentivando-me a desempenhar bem o meu papel. Quando terminava, eu suspirava de alívio, sabendo que tinha cor-respondido às suas expectativas. Sentia-me afortunado por ser seu neto e desejava sempre merecer a sua aprovação e ser digno do seu afeto. Gostava especialmente de passar a noite sozinho com os meus avós. Dormia na cama deles, feliz por não ter de a partilhar com os meus irmãos, como acontecia em casa. Como gostava de ser o centro da atenção dos meus avós!

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Protegido pelo amor e apoio da minha família, tinha pouco conhecimento das perseguições que os judeus de Narewka e outras aldeias tinham experimentado ao longo dos séculos, às mãos ora de um governante, ora de outro. Os meu pais tinham vivido ataques, chamados pogroms, no início do século. Depois disso, muitos judeus de Narewka partiram para a América, entre eles os irmãos da minha mãe, Morris e Karl. Embora não soubessem inglês, acre-ditavam que era possível terem um futuro melhor nos Estados Unidos. Poucos anos depois, Shaina, a irmã bonita, partia também em busca de nova vida na América.

Os meus pais já tinham vivenciado uma guerra, a Grande Guerra de 1914-1918. Ninguém antes de 1939 pensava nela como a Primeira Guerra Mundial, já que não se imaginava que, uns escassos vinte anos depois, o mundo voltaria a irromper em conflito. Durante a Grande Guerra, os soldados alemães que ocuparam a Polónia mostravam-se geralmente delicados com os polacos, independentemente da sua fé. Ao mesmo tempo, tanto em Narewka como em muitas outras aldeias por toda a Polónia, os homens tinham sido recrutados para trabalhos forçados. O meu pai trabalhara para os alemães no caminho de ferro de bitola estreita que transportava madeira e outros materiais da nossa área para a Alemanha. Em 1918, após a derrota da Alemanha, as tropas de ocupação retiraram e voltaram para a sua terra natal.

Em retrospetiva, os meus pais e muitos outros comete-ram o terrível erro de julgar que os alemães que ocuparam Narewka na Segunda Guerra Mundial seriam como os que haviam vindo na Primeira Guerra Mundial. Julgavam que

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seriam pessoas semelhantes a eles próprios, homens que cum-priam o seu dever militar, ansiosos por voltar para junto das suas mulheres e filhos, e gratos por qualquer hospitalidade e amabilidade. Da mesma forma que as pessoas pensavam em mim em função do meu avô e alimentavam determinadas expectativas a meu respeito devido ao caráter do meu avô, pensávamos nos alemães que entraram na Polónia em 1939 em relação àqueles que os tinham precedido. Não havia qualquer razão lógica para pensarmos o contrário. Afinal, em que podemos confiar senão na nossa própria experiência?

Quando penso no lugar onde cresci, na aldeia que me proporcionou tantas recordações preciosas, lembro-me de uma canção iídiche que costumava cantar com Lansman e os seus filhos. Chama-se Oyfn Pripetchik, que significa «À lareira». Com uma melodia melancólica, conta a história de um rabino a ensinar o alfabeto hebraico aos seus jovens alunos, exatamente como eu estava a aprender as letras no heder. A canção terminava com palavras agoirentas, na forma de um aviso do rabino:

Quando crescerem, crianças,

compreenderão

quantas lágrimas se encontram nestas letras

e quantos lamentos.

À noite, enquanto cantava essa canção com a família Lansman, aquelas palavras pareciam história antiga. Nunca me ocorreria que pudessem ser uma previsão do aterrador futuro iminente que me esperava.

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