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Parceria se restabelece, mas polêmica persiste Mudança de prédio atrasou ano letivo na APAE e opção por ensino regular ainda divide opiniões Por Gustavo Moreira Alves No convênio 008/2015, celebrado no ano passado entre a SMBES, Secretaria Municipal de Bem-Estar Social, e a APAE, Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, ficou estabelecido que até julho de 2016 a Associação receberia repasses da prefeitura para o financiamento de diversos de seus projetos, totalizando um valor de pouco mais de 341 mil para pagamento de funcionários, aluguel e materiais didáticos, entre outras despesas. O valor seria repassado durante o período de um ano, para assistir 125 alunos em diversos programas. Entretanto, segundo informações publicadas no site da Prefeitura de Lagoa Santa, em função da suspensão das matrículas na APAE para 2016, houve impedimento, pela Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais, de ceder profissionais de educação, alimentação e transporte à escola. Tudo isso aconteceu devido a inadequações no imóvel onde funcionava a APAE. Diante da suspensão e para que a situação fosse regularizada, a Prefeitura de Lagoa Santa também publicou em seu site que, através do convênio 008/2015, estabelecido com a APAE, viabilizou a locação de uma nova casa para sua instalação, “adicionando ao valor anteriormente pactuado uma quantia que possibilitou um imóvel que conta com salas amplas e ventiladas, banheiros, secretaria, diretoria, refeitório, auditório, quadra e outros”. Essa nova sede da APAE está no bairro Ovídio Guerra (rua Raimundo Gomes de Rezende, 97). Com a situação já caminhando para o habitual e matrículas acontecendo no fim de abril, a parceria entre APAE e Prefeitura se restabeleceu. Contudo, um projeto que antes previa 125 alunos precisou se adaptar aos 50 do censo. “Funcionários, entre contratados e efetivos da prefeitura e do estado, foram transferidos para escolas regulares”, explica a diretora da APAE, Maria das Mercês. A Prefeitura de Lagoa Santa, com a autorização da Secretaria de Estado de Educação publicada no Diário do Executivo em 9 de abril, aguardava as matrículas na APAE para

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Parceria se restabelece, mas polêmica persisteMudança de prédio atrasou ano letivo na APAE e opção por ensino regular ainda divide opiniões

Por Gustavo Moreira Alves

No convênio 008/2015, celebrado no ano passado entre a SMBES, Secretaria Municipal de Bem-Estar Social, e a APAE, Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, ficou estabelecido que até julho de 2016 a Associação receberia repasses da prefeitura para o financiamento de diversos de seus projetos, totalizando um valor de pouco mais de 341 mil para pagamento de funcionários, aluguel e materiais didáticos, entre outras despesas. O valor seria repassado durante o período de um ano, para assistir 125 alunos em diversos programas. Entretanto, segundo informações publicadas no site da Prefeitura de Lagoa Santa, em função da suspensão das matrículas na APAE para 2016, houve impedimento, pela Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais, de ceder profissionais de educação, alimentação e transporte à escola. Tudo isso aconteceu devido a inadequações no imóvel onde funcionava a APAE.

Diante da suspensão e para que a situação fosse regularizada, a Prefeitura de Lagoa Santa também publicou em seu site que, através do convênio 008/2015, estabelecido com a APAE, viabilizou a locação de uma nova casa para sua instalação, “adicionando ao valor anteriormente pactuado uma quantia que possibilitou um imóvel que conta com salas amplas e ventiladas, banheiros, secretaria, diretoria, refeitório, auditório, quadra e outros”. Essa nova sede da APAE está no bairro Ovídio Guerra (rua Raimundo Gomes de Rezende, 97). Com a situação já caminhando para o habitual e matrículas acontecendo no fim de abril, a parceria entre APAE e Prefeitura se restabeleceu. Contudo, um projeto que antes previa 125 alunos precisou se adaptar aos 50 do censo. “Funcionários, entre contratados e efetivos da prefeitura e do estado, foram transferidos para escolas regulares”, explica a diretora da APAE, Maria das Mercês.

A Prefeitura de Lagoa Santa, com a autorização da Secretaria de Estado de Educação publicada no Diário do Executivo em 9 de abril, aguardava as matrículas na APAE para que fossem normalizados os serviços de educação: merenda, transporte escolar, professores, serventes e agentes de serviços escolares. “Os serviços de assistência social e saúde continuam funcionando normalmente”, alegava a nota.

Segundo a secretária Municipal de Educação, Daniela Alves, a APAE nunca teve autorização de funcionamento da Educação de Jovens e Adultos, o EJA. “Um aluno não permanece 'ad eterno' em uma escola. É necessário ter esse entendimento para saber que uma coisa é falarmos de alunos matriculados e cadastrados no Educacenso, outra coisa é falarmos de assistencialismo e saúde”, explica. No ano de 2015, de acordo com a secretária, a APAE tinha 50 alunos cadastrados. Portanto, se a escola teve seu atendimento provisoriamente suspenso, o trabalho que vinha sendo desenvolvido na Associação era de Assistência Social e Saúde. “Esses não tiveram nenhum impedimento e os recursos continuaram sendo destinados regularmente”, frisa Daniela.

Mesmo ouvindo todas as partes, uma questão não atinge clareza: se o convênio 008/2015 é entre a Secretaria Municipal de Bem-Estar Social e a APAE, por que a Secretaria de Educação, seja do estado, seja do município, abalou a parceria? Por que houve sugestão de transferência dos alunos com necessidades especiais para o ensino regular? Por que isso

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aconteceu no meio do convênio, entre um período letivo e outro? De um lado, o convênio 008/2015, entre Secretaria Municipal de Bem-Estar Social e APAE, prevê os funcionários. De outro, a Prefeitura de Lagoa Santa informa que as Secretarias Municipais de Saúde e Bem-Estar Social fazem apenas os repasses de recursos financeiros, enquanto a Secretaria Municipal de Educação concede os servidores da Educação.

Atualmente a APAE conta com 120 alunos. Todos estão em processo de educação, mas burocraticamente apenas os do 1º ao 5º ano aparecem no censo escolar. Isso faz com que só os 50 com idade de ensino fundamental sejam considerados alunos assistidos pelas secretarias de Educação. Na prática, a APAE e a Escola Flávio da Fonseca Viana de Educação Especial, particular sem fins lucrativos, são a mesma entidade. Burocraticamente, devem funcionar de maneira separada, pois a primeira receberia repasses do Bem-Estar Social, e a segunda, da Educação. Por que, então, um convênio entre Bem-Estar Social e APAE (008/2015), que previa os funcionários, se viu abalado pela Educação?

Confusões como essa, somadas à carência de um EJA diurno em Lagoa Santa, têm feito a APAE planejar a abertura da Educação de Jovens e Adultos. “Nós vamos abrir um EJA durante o dia. Quem não aprendeu a ler até o fim da juventude tem o direito à alfabetização”, defende Mercês. Talvez o EJA seja a saída para solucionar as dificuldades burocráticas. De 2009 para cá, desde que Mercês chegou na APAE, 30 alunos com deficiência foram para o mercado de trabalho. “Alguns estão inseridos conosco, com plano de saúde e tudo, produzindo artesanato”, conta. “Outros trabalham até em escritório”.

A polêmica no que diz respeito à Educação concerne em colocar ou não colocar crianças e jovens com necessidades especiais no ensino regular. Há uma questão essencial: metodologia padronizada ou metodologias específicas? Segundo Maria das Mercês, “por muitos anos o ensino especial foi taxado como 'dificuldade de aprendizagem'. Só o aluno padrão é que dava o retorno que a escola queria. Para o outro aluno, a escola não propunha alterações metodológicas”. Existe ainda o receio, principalmente da parte dos pais, em relação ao cuidado com crianças e jovens deficientes no ensino regular. “O Dr. Lund à noite é perigoso, droga rolando”, alega a dona de casa Marcelide Costa, mãe de aluna com idade de EJA. Marcelide ainda conta que, quando colocou sua filha, que sofre de síndrome de down e tem a esquizofrenia como doença associada, no ensino regular, não saiu do lado dela. Proteção em excesso ou proteção necessária?

Em meio à suspensão da APAE, com a mudança de imóvel, pais foram orientados, pela Secretaria Municipal de Educação, a matricular seus filhos deficientes em escolas como a Municipal Dr. Lund. “Os alunos experimentam”, conta Maria das Mercês, “muitas vezes retornam. Nesse período nosso [com o atraso], cinco alunos pediram transferência” (o número de alunos caiu de 125 para 120). Se por um lado há discussões que incentivam a inclusão, por outro a insuficiência de investimento numa inclusão de qualidade gera receios. “Eles põem uma sala de convivência, põem nossos filhos lá dentro e põem uma mulher sem paciência com eles”, reclama Marcelide.

MÃESO termo “pais”, como flexão no plural para pai e mãe, não faz jus ao perfil predominante de família que tem como membro criança ou jovem com necessidades especiais. Segundo a diretora da APAE, Maria das Mercês, não é comum ver pai cuidando e levando filho deficiente para a escola. “Comuns são as mães, normalmente sozinhas nisso. E é pra vida toda: deficiência não é provisório”, lembra Mercês.

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Para a diretora da APAE, é complicado pensar inserção com uma metodologia que é padronizada para alunos sem deficiência. “Estar dentro da escola não é necessariamente inclusão”. Para a secretária Municipal de Educação, Daniela Alves, entra em cena a possibilidade de inclusão por meio de um trabalho que vem crescendo gradativamente: o Centro de Inclusão IN+Formar (Centro de Informação e Formação dos Alunos com Necessidades Educacionais Especiais). “Os alunos passam por uma avaliação psicológica, análise dos laudos médicos e de acordo com a deficiência e grau da deficiência têm direito a um monitor na escola regular”. Atualmente, segundo a Secretaria Municipal de Educação, são 18 salas de recursos multifuncionais em funcionamento, onde professoras com formação específica na área atendem alunos de libras e braile, entre outras disciplinas.

Para Maria das Mercês, na escola regular existem parâmetros para adaptar as crianças, mas a diretora da APAE se pergunta em que medida isso limita a autonomia e a liberdade. “Na APAE, a relação não é só com o auxiliar escolar, mas com toda a escola. Fora que nós trabalhamos com grupos menores”, compara Mercês. Segundo a diretora da APAE, “houve uma mudança de paradigma que é radical no sentido de pensar que todos podem. Existem pessoas que não vão entrar nessa cota”. Neste ponto, a secretária Daniela Alves concorda. Para ela, dependendo do tipo de deficiência e severidade do quadro que o aluno possui, realmente o atendimento tem de ser prestado pela APAE, devido à assistência que oferecem através de equipe multidisciplinar. “Isso a Educação não possui. Podemos fazer a inclusão dentro dos nossos limites e capacidades de atendimento”. Entretanto, ela finaliza chamando a atenção para a possibilidade de superação do preconceito com relação à inclusão no ensino regular: “recebemos na rede muitos alunos que eram da APAE e, diante da convivência com os outros e de todo o trabalho que tem sido realizado, observamos admiráveis progressos”.

DICA DE LEITURAO livro O que é educação inclusiva (Coleção Primeiros Passos, ed. Brasiliense), de Emílio Figueira, psicólogo que tem paralisia cerebral, trata da inclusão na perspectiva de quem tem deficiência e conhece de perto as questões. A obra apresenta discussão histórica, aspectos psicológicos da inclusão, projetos pedagógicos, adaptações curriculares, mudanças estruturais na escola e papel do professor. Seu autor não descarta a importância nem da educação especial, nem do ensino regular.

ENTREVISTAClóvis Domingos

A experiência de Clóvis com Educação Especial se iniciou em 2000, em Belo Horizonte, a partir de apresentação teatral para um espaço educativo especializado. Desde então, ele vem atuando em diversas instituições que trabalham com pessoas com deficiência, aliando seu trabalho teatral com questões como cidadania, saúde e educação. Além disso, já participou de equipes de consultoria para escolas que trabalhavam com a inclusão de crianças com deficiência no ensino regular. Na universidade, mais especificamente no Curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto, ofereceu uma disciplina sobre teatro e corpos diferenciados.

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Impactto - Considerando-se a realidade atual, quais os prós e contras de crianças e jovens com necessidades especiais serem integrados ao ensino regular?Clóvis - A meu ver, a inclusão é um processo ainda muito novo e delicado, que precisa de mais discussões públicas, porque envolve não somente direitos políticos das pessoas com deficiência, mas trata da própria vida de cada um, sua saúde, seu bem-estar, sua forma de estar no mundo, sua singularidade. Acho que é caso a caso mesmo. A convivência com a diferença pode ser libertadora para todos os envolvidos, mas também pode ter um preço caro para a pessoa com deficiência, devido aos preconceitos e estereótipos ainda vigentes. Não adianta cumprir uma lei e uma criança na prática não receber de fato uma educação de qualidade, com respeito à sua dignidade e diferença, senão vira só mais uma estatística. Tem também a questão de que serve a escola hoje: para educar, conviver e socializar ou transmitir conteúdos, instrumentalizar, preparar as pessoas para o mercado de trabalho? É muito complexo. Por isso o debate precisa ser de toda sociedade, e muita gente luta por isso, cria organizações, enfim, “compra uma briga”. Na pergunta vejo “serem integrados” e isso é diferente de serem incluídos. Integrar alguém a um sistema já pronto não é incluir. E ainda temos uma educação muito conservadora, normativa, que reproduz padrões sexistas, pouco afeita a questões como solidariedade, vida coletiva, direitos para todos. Mas existem, com certeza, processos inclusivos de sucesso, com bons resultados, com muita luta de todos, com diálogos etc.

Impactto - O convívio das crianças e jovens com necessidades especiais restrito a instituições como as APAEs, considerando-se a realidade atual, é a melhor opção?Clóvis - Não sei se é a melhor opção, mas talvez tenha sido ao longo de muitas décadas a opção possível, e isso foi e é muito importante de se destacar. Instituições como as APAEs surgem como proposta de uma vida melhor para pessoas excluídas da vida social. Isso não pode ser desprezado, seria desrespeitar uma luta séria e compromissada. E mesmo dentro de uma instituição especial a diferença existe. Fora que a APAE sempre buscou e ainda busca atividades como a arte e o esporte, que são educativas e altamente inclusivas. O ideal seria a possibilidade de as pessoas com deficiência circularem em diferentes espaços, ora mais comuns, ora mais especializados, isso variando de acordo com suas necessidades e desejos.

Impactto - O imperativo de integração restrita ao ensino regular, na atual conjuntura, pode ser bom?Clóvis - Tudo precisa de um tempo de transição para mudanças, estamos vivendo isso. Conheço pessoas com deficiência que inicialmente estudaram em escolas especiais e mais tarde foram para os espaços comuns, foi um processo e algumas afirmam que a vivência nas escolas especiais inicialmente foi essencial em suas vidas. Precisamos escutar as pessoas de fato envolvidas. Inclusão não pode ser violência. Não pode ser uma inclusão de fachada, com professores invisibilizando alunos diferentes na sala de aula, isso reforça a exclusão. Por outro lado, as políticas públicas avançam, ainda que minimamente, e trazem resultados significativos. Há uma crise para as escolas especiais, que também precisam rever suas práticas e discursos. O conflito é do campo educativo e isso é saudável porque aí a política de fato acontece no dissenso, no diálogo, na própria diferença.