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ENSINAR EXIGE COMPROMETIMENTO Aparecido Gomes Leal [email protected] Uma das preocupações ao compor este texto foi evitar a abordagem acadêmica, com sua linguagem específica que muitos, com certeza utilizarão, dessa forma, adotamos do começo ao fim uma postura até coloquial, com intenções de ser o mais acessível possível. As idéias que constituem esse nosso trabalho estão ligadas à nossa experiência e percepção de problemas em sala de aula, durante mais de vinte anos - o que esperamos poder justificar a nossa intenção de tratar do ensino de filosofia no ensino médio -, acreditando trazer alguma contribuição, mesmo que, de antemão, todos saibam da dificuldade que é qualquer abordagem sobre esse assunto, especialmente quando se trata daquilo que acontece entre professor e aluno em sala de aula. No ano de 2005 houve, no Estado de São Paulo, um curso de formação e preparação de professores de filosofia da rede pública de ensino, denominado “Filosofia e Vida”. Esse curso foi estruturado principalmente sobre programas e ou indicações sobre material a ser utilizado em sala de aula, tentando sanar as dificuldades que os professores alegam ter o tempo todo. Os organizadores foram: o Governo do Estado de São Paulo, a Secretaria de Educação e a Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas, com suporte da UNICAMP, que forneceu professores para palestras presenciais e on- line, além do suporte técnico para a manutenção de um portal, TELEDUC, para troca de experiência, postagem e discussão de trabalhos individuais ou em grupos. Foi distribuído entre os participantes material didático, como livros e dicionários, bem como quatro volumes contendo material para apoio em sala de aula, organizados pelos professores José Alves de Freitas Neto e Leandro Karnal, da UNICAMP. Esse foi o primeiro e inovador curso para

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ENSINAR EXIGE COMPROMETIMENTO

Aparecido Gomes Leal

[email protected]

Uma das preocupações ao compor este texto foi evitar a

abordagem acadêmica, com sua linguagem específica que muitos,

com certeza utilizarão, dessa forma, adotamos do começo ao fim uma

postura até coloquial, com intenções de ser o mais acessível possível.

As idéias que constituem esse nosso trabalho estão ligadas à nossa

experiência e percepção de problemas em sala de aula, durante mais

de vinte anos - o que esperamos poder justificar a nossa intenção de

tratar do ensino de filosofia no ensino médio -, acreditando trazer

alguma contribuição, mesmo que, de antemão, todos saibam da

dificuldade que é qualquer abordagem sobre esse assunto,

especialmente quando se trata daquilo que acontece entre professor

e aluno em sala de aula.

No ano de 2005 houve, no Estado de São Paulo, um curso de

formação e preparação de professores de filosofia da rede pública de

ensino, denominado “Filosofia e Vida”. Esse curso foi estruturado

principalmente sobre programas e ou indicações sobre material a ser

utilizado em sala de aula, tentando sanar as dificuldades que os

professores alegam ter o tempo todo. Os organizadores foram: o

Governo do Estado de São Paulo, a Secretaria de Educação e a

Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas, com suporte da

UNICAMP, que forneceu professores para palestras presenciais e on-

line, além do suporte técnico para a manutenção de um portal,

TELEDUC, para troca de experiência, postagem e discussão de

trabalhos individuais ou em grupos. Foi distribuído entre os

participantes material didático, como livros e dicionários, bem como

quatro volumes contendo material para apoio em sala de aula,

organizados pelos professores José Alves de Freitas Neto e Leandro

Karnal, da UNICAMP. Esse foi o primeiro e inovador curso para

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professores de filosofia do Estado de São Paulo. O que chamou

atenção foi o fato de que a maioria dos professores tinha muitas

dúvidas sobre o que ensinar, como ensinar e que método seguir para

obter sucesso. A reclamação corrente era quanto ao baixo nível de

interesse em aprender dos alunos, a burocracia que os professores

enfrentam cotidianamente e o baixo nível dos alunos quanto a

formação básica, compreendendo a escrita, a leitura e a compreensão

de textos.

Desta forma, esse nosso trabalho se coloca como uma reflexão

sobre o comprometimento do professor e alunos quanto à disciplina

filosofia, espelhando, porém, aquilo que acontece em sala de aula.

É sabido que toda proposta de ensino de filosofia esbarra,

primeiramente, no perfil daquele que ensina. O papel do professor de

filosofia é de suma importância para que haja, de fato, boa aceitação

e desenvolvimento, junto aos alunos, do hábito de pensar e repensar

os mais variados temas. Contudo, os desafios constantes que a sala

de aula trazem para o profissional, não raro desestimulam e fazem

com que poucos consigam tirar prazer do ato de ensinar. Muitos

desejam um “método” específico que lhes propicie ministrar a

disciplina com sucesso, porém, cada aluno é um, da mesma forma

que cada turma traz consigo problemáticas diferenciadas. Encontrar

um método próprio parece ser o melhor caminho para estabelecer um

elo com os alunos e com o conteúdo programático. Isso, contudo, só

vem com o tempo, com a experiência em sala de aula, tanto é que

um método utilizado por alguém pode não servir para outro.

Fazer os alunos se interessarem pelas aulas de filosofia e pela

problemática que elas implicam e suscitam, contudo, não é tarefa

fácil, parece mesmo um desafio que o professor encontra à sua frente

e ao qual tem que propor uma solução rápida e constante, ainda que

nem sempre em forma de “modelo”, uma vez que a cada série e ou

grupo de alunos, deve ser pensada e utilizada uma forma de

trabalho. A filosofia apresenta alto grau de profundidade no trato com

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os temas e assuntos que se dispõe trabalhar, posto isso, cabe ao

professor, alta perspicácia e estudo constante para perceber quem

são os seus alunos e qual o planejamento mais adequado que

podemos traçar para eles, então, não há “um” caminho, são eles

muitos e os mais variados que pudermos abraçar. Fazer os alunos se

interessarem pelas aulas de filosofia e a problemática que elas

implicam e suscitam, contudo, não é tarefa fácil, parece mesmo um

desafio que o professor encontra à sua frente e ao qual tem que

propor uma solução rápida, ainda que nem sempre em forma de

paradigma, uma vez que a cada série e ou grupo de alunos, deve ser

pensada, repensada e utilizada uma nova forma de trabalho. A

filosofia apresenta alto grau de profundidade no trato com os temas e

assuntos que se dispõe trabalhar, posto isso, cabe a todos

professores de filosofia, alta perspicácia e estudo constante para

perceber quem são nossos alunos e qual o planejamento mais

adequado que poderemos traçar para eles, então, não há “um”

caminho, são eles muitos e os mais variados que pudermos abraçar.

Não ter preconceito com os variados meios de transmissão do

conhecimento pode facilitar na obtenção do sucesso em sala de aula.

Segundo Julián Marías (1966, p. 32), a filosofia supõe,

primeiramente, uma situação como ponto de partida; mas sua ação

própria é condicionada por essa situação, tendo começo quando esta

força o indivíduo a fazer isso que será a filosofia. Portanto, ter um

planejamento é algo fundamental.

Encontrar a “justa medida”, encontrar um caminho”, para

facilitar o ensino de filosofia torna-se o objeto de desejo de muitos

profissionais, mas há que se ter bom senso, comprometimento com

aquilo que se transmite, não perdendo de vista a quem se destina

aquele específico conteúdo. A utilização dos manuais de filosofia há

muito perderam espaço para os “temas” que muitas escolas preferem

adotar, porém, não se faz filosofia distante da problemática

específica, pensada e repensada muito tempo antes de nós. O gosto

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pela leitura dos textos filosóficos traz grandes qualificações para os

alunos, bem como sua discussão em sala de aula, fornecendo ao

professor e aos alunos, um melhor entendimento da própria evolução

humana. Isso faz com que seja possível “trazer” os autores para

dentro dos debates, facilitando um diálogo entre os alunos com esses

personagens que já se inquietavam com o mundo vivido, bem antes

de nós.

A reflexão filosófica é acessível a todos e em todas as etapas da

vida, como Epicuro afirmou (1973, p. 21). Para ele, não se deve

protelar a filosofia porque se é jovem ou velho, posto que ninguém é,

jamais, pouco ou demasiado maduro para o filosofar, da mesma

forma que se acreditar que a hora de filosofar ainda não chegou ou já

passou, é acreditar que a hora de ser feliz já passou ou ainda vai

chegar. Todos, então, têm o “direito” ao livre acesso à filosofia,

melhor dizendo, ao pensar filosófico, quer seja em sala de aula ou

fora dela. Talvez aquele aluno desmotivado e inquieto, que parece

totalmente alheio, esteja a chamar atenção sobre si mesmo, afinal,

os problemas não escolhem por idade. O professor deveria

preocupar-se mais com esse aluno, dedicando-lhe mais atenção,

tentando entender os problemas que o afligem, no intento de

aproximá-lo da temática filosófica e da discussão sobre esta, o que

possibilitará que o aluno consiga tirar proveito próprio dessa atitude,

aproveitando sua insatisfação, despertando para a filosofia, afinal, se

os problemas não nos escapam, podemos muito bem tentar encará-

los de outra maneira. O jovem aluno pode perceber que todos têm

seus problemas próprios e que a filosofia pode ser uma importante

ferramenta para se entender melhor com eles. Pois, como lembra

Heidegger (1969, p. 11): “É pelo pensar e dizer que o homem habita

a terra”, talvez prefaciando a frase famosa do poeta Hölderlin (1970,

p. 80) Cheio de mérito, mas poeticamente o homem habita a terra.

Heidegger (1969, p. 39) estabelece em rara poesia, os três perigos

que ameaçam o pensar, vejamos: “O bom perigo e por isso benfazejo

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é a vizinhança do poeta que canta. O mau perigo e por isso mais

agudo é o pensar mesmo. Deve pensar contra si mesmo, o que

apenas raramente consegue. O pior perigo e por isso confuso é o

filosofar.” Dessa forma, pensar, filosofar, além de difícil, pode ser

perigoso, mormente para o jovem aluno, que pode ter contato com

qualquer tema filosófico, contanto que o professor acompanhe, desde

a leitura à interpretação e apropriação do tema, verificando como o

aluno lida particularmente com os problemas ali expostos.

A filosofia ou o ensino dela é difícil da mesma forma como é

difícil aprender qualquer coisa. Todos nós passamos por experiências

de todo tipo e temos que, constantemente, aprender coisas novas.

Mas ninguém deve renunciar à filosofia – da mesma forma que não

se deve renunciar à felicidade -, mesmo sabendo que tanto a

filosofia, quanto a felicidade, são tarefas difíceis e que parecem, na

maior parte das vezes, impossíveis. Ambas demandam

comprometimento e firme propósito de vencer as dificuldades.

Ao renunciar à filosofia, se renuncia a uma forma bastante

salutar e prazerosa de poder inserir-se no mundo, não mais

passivamente, mas compreendendo melhor a si mesmo, bem como

ao mundo em que vive e do qual participa. O poeta Emerson (1994,

p. 216), já nos instigava, dizendo: “Vai, acelera as estrelas do

Pensamento em direção a seus alvos brilhantes”. Os alunos devem

ser impelidos (sempre) a atingir alvos que correspondam aos seus

mais caros desejos, de preferência, alicerçados por um conhecimento

mais sólido, que a filosofia pode lhes proporcionar. Quando os alunos

“brincam” de estudar, quer dizer, quando eles descobrem o prazer

que é estudar, já estão prontos para aprender. Quando isso acontece,

professor e alunos descobrem e estreitam laços, estabelecem novos

objetivos e, juntos, podem aprender muito mais do que inicialmente

julgaram um dia ser possível acontecer.

A filosofia é vista por muitos, logo no primeiro contato, como

algo “belo” que, primeiramente, encanta os alunos, mas o famoso

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adágio antigo de que o belo é difícil, tão de agrado a Sócrates –

encontrado tanto no Crátilo (384 a), Protágoras (339 b), República

(435 c) e no Hipias Maior (297 c), demonstra que é difícil tornar fácil,

aquilo que é difícil, e aprender é difícil, Sim, é difícil reconhecer que

pouco se sabe e que há muito para aprender, mas também há uma

beleza em aprender, e o adolescente pode se admirar da sua

capacidade de aprender coisas novas a todo instante. É prazeroso vê-

lo exultante quando “descobre” como funciona uma equação

matemática, quando entende mais claramente uma proposição,

quando consegue elaborar seus pensamentos em um texto, quando

reconhece no texto o tema filosófico que mais se aproxima daquilo

que parece ser a sua posição frente ao mundo e quando por fim,

recebe o “prêmio” de uma menção acima daquela costumeira, pelos

seus trabalhos e esforços em sala de aula. Kant, na Introdução de

sua Lógica, afiançava que o verdadeiro filósofo tem que pensar por si

próprio, utilizando a razão de forma livre e pessoal e não de forma

servil ou como imitador.

Para se ensinar, contudo, é necessário aprender, saber

aprender, ter humildade de reconhecer que se “aprende junto”, que

alunos e professores estão envolvidos por um mesmo interesse, que

é o de evoluir, aprendendo. Para aprender é necessário querer. A

palavra querer vem do latim quaerere, que significa empenhar-se na

busca e procura do que não se tem. Dessa maneira, professor e

alunos devem empenhar-se, selando compromisso em querer

aprender, juntos. Aprender é um modo de tomar posse, de apossar-

se e de apropriar-se. Aprender então, é um tomar em que se apropria

e se dispõe do uso de alguma coisa e essa apropriação se dá através

do treino e exercício, como bem disse Emanuel Carneiro Leão (2002,

p. 44-50), porém, por outro lado, ainda diz ele, treinar e exercitar-se

é apenas uma espécie de aprender, assim, nem todo aprender é

treinar. Aprender, contudo, inclui sempre um conhecer. Aprender é

muito mais difícil e fundamental que ensinar e só quem realmente

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sabe aprender, e somente na medida em que o sabe, pode de fato

ensinar. Então, para ensinar tem que aprender, assumindo a

ignorância, aquele que não assume o saber de sua ignorância não

poderá ensinar e para aprender devemos trazer alguma coisa conosco

para esse encontro, logo, não se vai “vazio” ao aprendizado, sempre

temos algo a oferecer, neste sentido, o professor deve tentar fazer vir

à tona esse algo originário que o aluno já tem e pode oferecer para

dinamizar o aprendizado.

Os alunos muito jovens, costumeiramente, não vêem com bons

olhos, em primeira instância, a problemática fecunda que a filosofia

traz e provoca, mas eles podem se “apaixonar” pela filosofia, desde

que percebam o exercício pleno de liberdade que ela necessita para

existir. Historicamente os jovens têm laços inquebrantáveis com a

problemática da liberdade; ela é o anseio de todos eles, por ela são

capazes de tudo, mesmo tendo uma visão distorcida do que de fato

ela seja. Desta forma, o reconhecimento e o gosto pela liberdade e

sua prática facilita que os alunos se envolvam com a problemática

filosófica, que é calcada na liberdade de pensar, facilitando,

sobremaneira, que se aproximem dos grandes temas, da mesma

forma como podem dominar e ou entender melhor os seus próprios

dramas do cotidiano. Não se engana, porém, quem acredita que a

filosofia requer imersão nos textos, com comprometimento.

Nietzsche (s/data, p. 43-45), coloca na boca de Zaratustra a

figura de linguagem que bem descreve a trajetória daquele que quer

conhecer, a trajetória das três metamorfoses: do camelo, a quem

cabe carregar tudo que encontra pela frente, apropriando-se da maior

quantidade possível das coisas, depois este se transforma no leão,

querendo conquistar a sua liberdade e ser senhor em seu próprio

deserto. Essa fase aguerrida o transforma naquele que quer criar

novos valores, com liberdade, opondo-se ao dever, há ainda a

terceira metamorfose que é a transformação do leão em criança que,

com sua inocência, esquecimento, estabelece e aceita um novo jogo

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para a criação. Os alunos, além de gostar e talvez se identificar com

esse tipo de discurso, poderão entender melhor aquilo que lhes

cobramos, isto é, a aceitação e empenho quanto aos trabalhos feitos

em sala de aula, sabendo que as fases do conhecimento não têm

“pressa”, tudo vem a seu tempo.

A rotina de trabalhos em sala de aula provoca e promove um

livre exercício de pensar, de problematizar, de não concordar e de se

posicionar sobre assuntos que até então os alunos não haviam

percebido, a partir daí eles despertam para serem agentes de

discussões, apresentando opiniões e elaborando outras idéias e

posturas que vão refletir no comportamento diário em sala de aula e

fora dela. A própria história de vida dos alunos já é rico manancial

para que eles repensem suas posturas, buscando soluções para

problemas que, muitas vezes, parecem insolúveis, lhes povoando

demais a mente de tal maneira que muito pouco se interessam por

algo que esteja além disto. Os jovens alunos têm como foco de

interesse, que parece único, a própria vida vivida, suas nuances e

projeções de futuro. Trazer esses problemas, que então se afiguram

como únicos e particulares, para a sala de aula e para o debate puro

e simples, é uma forma eficaz de trazer o próprio aluno para o

engajamento com os temas filosóficos e suas complexidades. Muitas

vezes o homem formula questões filosóficas, a partir de sua angústia,

mesmo sem saber que são filosóficas, pois a filosofia enuncia as

questões da humanização e da desumanização, embora, como diz

Fougeyrollas (1967, 41), que, a despeito de a tecnicidade da

linguagem particular não permitir que ela, a filosofia, seja

reconhecida em sua validade, isso se dá pela angústia individual que,

mesmo gritando por ela não sabe quem ela é.

Disso decorre o comprometimento que o professor de filosofia

deve ter com o ensino de filosofia, pois ele não escapará à apreciação

dos alunos e, conseqüentemente, à própria filosofia. Deve-se chamar

à responsabilidade para o exercício de ensinar, todos aqueles que

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desejam e se dispõem a trabalhar com o ensino de filosofia,

colocando-os à frente dos muitos problemas que estão postos e que

ainda virão, mas se houver firme propósito teremos profissionais

empenhados em transformar-se, ajudando na transformação de

outros. Talvez possamos aqui nos lembrar da famosa alegoria da

caverna, encontrada no livro VII, da República, de Platão (518 c), em

que o filósofo compara o processo educativo à passagem dos

prisioneiros das trevas para a luz e, mais concretamente, ao gradual

acomodamento da visão, primeiro às sombras e reflexos dos objetos,

para depois se acomodar aos objetos mesmos e, finalmente, à luz

mesma e sua fonte solar, neste caso, a educação seria como um

adestramento ou fortalecimento da visão daquele que se descobre

enxergando além das sombras. Há, contudo, um comprometimento

desse indivíduo que se desprende das sombras para com aqueles

seus parceiros, que lá ficaram no mundo das sombras, no fundo da

caverna, ele deve se esforçar para junto deles voltar e convencê-los

da boa nova. Tal se afigura o papel do filósofo, como queria Sócrates.

O papel do professor pode se assemelhar a esse, sem, contudo,

deixar que haja qualquer nuance de prepotência e soberba por

pensar além.

Se não há um método geral para se aprender, no entanto há a

humildade de se reconhecer, professor e aluno, que pouco se sabe e

que é possível sempre avançar e decodificar mais signos,

atravessando com desenvoltura problemas, em busca de soluções. A

história da humanidade também é a história do conhecimento e cabe

a todos nós darmos a devida importância a isso. Assim como cabe ao

professor ter consciência de seu papel perante seus alunos, até

porque a presença do professor não passa despercebida dos alunos

na classe e na escola, da mesma forma que os alunos não podem

passar despercebidos também.

A filosofia torna o aluno importante co-autor das idéias que lê e

pesquisa, ele se percebe como agente, isto é, como alguém que

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pode, que consegue e ousa afrontar idéias já postuladas por outros e,

então, ele avança mais rapidamente, se impondo os desafios da

compreensão das idéias filosóficas, buscando nas outras disciplinas,

como por exemplo, na história, na arte e na literatura, ferramentas

para localizar, interpretar, combater ou aceitar essas idéias,

expandindo o seu conhecimento, espalhando-o e colocando-o em

debate, sem medo, junto aos outros colegas, trazendo à sala de aula

um clima instigante e de discussão, o que ainda facilita a

compreensão das outras disciplinas, até então tidas como estanques.

Esse fervilhar de idéias prontas para o debate e exposição faz da sala

de aula um outro lugar, um espaço único em que os alunos e o

professor não devem temer o acirramento das opiniões, a

convergência e a divergência de idéias, a disputa calcada pela

ousadia de se perceberem dialogando com as idéias filosóficas. O

papel do professor então se faz único, posto que ele pode dirigir os

variados pontos de choque entre os alunos.

O professor estabelece um tipo especial de relação com os

alunos, o que faz com que ele se torne um “sujeito de opções”, quer

dizer, ele traz aos alunos opções novas na forma de ver e aprender

sobre as coisas, até aquelas que então eles percebiam. Os alunos

devem perceber no professor alguém que pode lhes ajudar na difícil

arte de aprender, da mesma forma que o professor deve perceber o

quanto essa prática pedagógica também lhe acrescenta e lhe torna

melhor profissional. Enfim, ambos aprendem a aprender. A postura

do professor deve trazer confiança e firme propósito de que, alunos e

professor, vençam os desafios do entendimento, partilhando juntos a

experiência e a descoberta de novos saberes. Não é sem sentido

então, que a postura ética profissional deve nortear, sem dúvida

alguma, o exercício de ensinar, pois a capacidade de fazer justiça

deve ser o testemunho do professor.

Contudo, o ser humano aprende o tempo todo, pela vida toda e

em qualquer lugar, através das mais variadas experiências que a

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própria vida proporciona e é o viver que suscita o pensar. Quem

aprende deve ter a humildade de reconhecer que não sabe e que,

portanto, deve aprender. Quem ensina deve ter paciência e

reconhecer no outro – aquele que aprende -, que ele mesmo (que

ensina), também aprendeu e ainda aprende. O ensino é como uma

“roda viva” que gira o tempo todo, então, se ensinamos é porque

aprendemos um dia, e aprendemos porque a própria vida assim nos

solicita. Viver é um eterno aprender, como já diziam os antigos e,

neste caso, se aprendemos o tempo todo, se todos podem aprender,

então, todos também podem ensinar. Porém, é sabido que aquele

que ensina, no caso, o professor, deve re-conhecer a

responsabilidade que tem e administrar com sabedoria aquilo que

tem à frente, isto é, os desafios que o próprio ato de ensinar

determina a cada dia. Deve mostrar ainda, dedicação aos seus

estudos, privilegiando e lapidando a sua própria formação particular,

afinal, o conhecimento deve ser expandido e acrescido o tempo todo

e, principalmente o professor não pode fugir disso.

O professor deve se dedicar com afinco aos seus alunos,

trazendo um comprometimento à “autoridade” que a sua posição em

sala de aula indica. Com sua postura ele pode dinamizar também o

comprometimento com os estudos que os alunos devem buscar. O

desafio constante é fazê-los vencer o desinteresse e distanciamento.

Se a própria vida nos traz milhões de problemas, é a própria vida que

nos indica as soluções, assim sendo, o aluno desmotivado, muitas

vezes carrega consigo “todos os problemas do mundo”, como se tudo

que há no mundo lhe fosse adverso e distante. Fazer com que esse

tipo de aluno se interesse e se dedique aos estudos parece tarefa das

mais difíceis, pois a educação passa por momentos cruciais e isto é

de domínio público. Os alunos gostam de lançar desafios: afinal, para

quê servem os estudos? O que a filosofia vai mudar em minha vida?

O que ganho com isso? Essas questões são muito mais corriqueiras

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do que desejaríamos. Saber lidar com elas e enfrentá-las sem susto

parece ser o primeiro sinal de bom senso.

A falta de estímulos aos estudos – o grande problema

enfrentado pela maioria dos professores -, na maioria das vezes, já

vem de casa, pois os alunos enfrentam um mundo de dificuldades

com os estudos que os pais nem sonham existir. Em reuniões com os

pais pode-se perceber que aquele filho ou filha estudante é pedra

preciosa para a família que nele(a) deposita toda a sua esperança por

grandes mudanças. É comum, entretanto, os filhos não verem nos

estudos, na atividade escolar e no esforço dos pais a possibilidade de

superar crises e se lançar com mais segurança no mercado de

trabalho. Muitos têm na sobrevivência da família a única

preocupação. O árduo cotidiano os leva para outros caminhos que

não os do estudo e da formação educacional. E o que a filosofia lhes

acrescentaria? Novamente, parece que nos colocamos em uma

encruzilhada que dificilmente conseguiremos transpor.

Buscar o saber através dos estudos pode parecer ser a busca

por um grande tesouro para muitos, mas para outros o desafio já

começa bem antes, quando se decide o que se quer “fazer da vida”, a

opção madrasta entre os estudos ou a sobrevivência leva embora

muitos alunos; esvazia as escolas e nos faz pensar sobre os métodos

e os conteúdos a serem ministrados para que os alunos, nessa

situação, queiram, desejem mesmo, voltar no dia seguinte para

assistir, tanto as aulas de filosofia, quanto das outras disciplinas, é

esse desafio imediato que a maioria dos professores enfrenta, sendo

que muitos preferem, então, fingir que nada acontece, porém, a cada

dia o espaço da sala de aula fica mais vazio e os alunos se furtam

(com desprezo) às tarefas e ao comprometimento com os estudos.

O professor de filosofia deve aprender a diagnosticar essas

situações limites em que muitos de seus alunos se encontram e

buscar maneiras de contornar e enfrentar, no sentido de tentar

solucionar os problemas, não temendo, sobremaneira, este confronto.

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A máxima socrática, extraída do templo de Delfos, conhece-te a ti

mesmo, pode ser um ponto de viragem na forma de os alunos e

professores tentarem conhecer melhor eles mesmos, para poder

conhecer melhor os outros e tudo mais que os circunda, saindo,

então, do particular para o coletivo, melhor dizendo, da vida

individual para a vida social, percebendo a importância do convívio

social e político.

Os planejamentos para aplicação ao ensino de filosofia

pressupõem também o estabelecimento de interdisciplinaridade, uma

vez que é ela, a filosofia, a disciplina para onde converge grande

parte das proposições e dos questionamentos originados em

disciplinas outras, quaisquer sejam elas, ousamos dizer. Trazer,

portanto, o aluno para a liberdade de discussão de temas variados à

luz da filosofia, ainda é uma forma de evidenciar a importância e

pertinência desta disciplina, extraindo da postura filosófica um

posicionamento mais claro e firme frente aos problemas referentes à

busca e aquisição de um conhecimento maior acerca do que compete

ao ser humano pensar e discutir – problemas estes que estão sempre

retornando ao nosso convívio -, para que possamos dar-lhes um novo

encaminhamento.

Cabe lembrar que a filosofia não precisa de defensores que

levantem “a bandeira” de sua importância, pertinência, assim como o

prazer desmesurado que quem a ela se dedica sente. A philo-sophia,

como se define, busca a verdade das coisas que existem e, dessa

forma, entra em rota de coalizão com a visão de mundo que muitos

alunos (e colegas professores, superiores e políticos) têm, porém, o

gosto pelo filosofar é fácil despertar em qualquer indivíduo, pois já

temos em nós mecanismos próprios que facilitam pensar. Aliás, como

diz o ditado popular “só não pensa quem não quer“. Posto isso, ainda

cabe salientar que a filosofia se mantém como disciplina necessária

(agora obrigatória), muito mais por força, insistência e resistência

dos professores desta área, do que por conta do poder instituído,

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esse, por sua vez, enxerga a filosofia (e todas aos outras disciplinas),

através de óculos indevidos e ou obtusos, como podemos ver e

constatar no dia a dia e pelas múltiplas decisões equivocadas que se

abatem sobre a classe dos professores e a área da Educação.

Escolher o magistério como profissão passou a ser algo

assombroso, sendo que a maioria dos que a ela se entregam, muitas

vezes nem tem vocação para tal e assim acabam enfrentando

problemas que se afiguram como insolúveis e cada vez mais graves,

desde a alegação e constatação do péssimo comportamento dos

alunos em sala de aula, à desqualificação no mercado de trabalho,

incluindo ai a respeitabilidade que há muito essa profissão perdeu

junto à sociedade, espelhada ainda pela sofrível política salarial que

dificilmente conseguimos entender.

Fazer pensar pode ser agradável, prazeroso mesmo, mas para

alguns profissionais pode ser o contrário, algo difícil, até porque

muitos mantêm uma distância assustadora entre eles e os seus

alunos e os temas centrais da filosofia, por conseguinte, devemos

insistir no papel da formação dos novos/jovens professores, pois se

queremos os melhores alunos temos que contar com os melhores

professores. Esse talvez fosse o papel em que o nosso Estado

pudesse mostrar muito mais o seu poder, porém, da mesma forma

que a formação e atualização dos professores carece de novas

políticas, os investimentos para a Educação deveriam ser aquilo que

todos ansiosamente esperamos e necessitamos, porém, enquanto em

gabinetes distantes e alheios ao problema da formação do jovem

cidadão não houver uma preocupação legítima e uma tomada de

posição para fazer da Educação o diferencial entre as nações, parece

sobrar apenas o discurso vazio, com os professores no centro, sendo

maltratados – e apontados como culpados pela crise atual na

Educação -, tanto pelos políticos, quanto pela grande massa, que não

vê neles a possibilidade de mudanças radicais na sociedade.

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Bibliografia

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