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_APESAR _DE _SER _CEGO Ver além da visão Cesar Gualberto Copyright Cesar Gualberto Editoração Eletrônica Ederlei Poço Baldo Revisão Marly Sirlei Aires Criação da Capa Cesar Gualberto Fotolitos, impressão e acabamento Gráfica e Editora Clichetec Ltda. Av. Colombo, 7559 Telefax 044 224-9828 CEP 87030-121 - Maringá - Paraná Todos os direitos reservados ao autor Pedidos de exemplares deste livro devem ser feitos ao seguinte endereço: Av. Guaiapó, 3260 Maringá - PR. CEP. 87013-080 Fone: (044) 228-6609

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_APESAR _DE _SER _CEGO

Ver além da visão Cesar Gualberto

Copyright Cesar Gualberto

Editoração Eletrônica Ederlei PoçoBaldo

Revisão Marly Sirlei Aires

Criação da Capa Cesar Gualberto

Fotolitos, impressão e acabamentoGráfica e Editora Clichetec Ltda.Av. Colombo, 7559 Telefax 044 224-9828CEP 87030-121 - Maringá - Paraná

Todos os direitos reservados ao autor

Pedidos de exemplares deste livrodevem ser feitos ao seguinte endereço:Av. Guaiapó, 3260 Maringá - PR. CEP.87013-080 Fone: (044) 228-6609

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Abril/1997 Publicado no Brasil

SUMÁRIOVOLUME 1EsclarecimentoCegolândia - nada incomumEvoluçãoAtletismo e cegueiraAcontecimentos de discriminaçãoDados EstatísticosConsciência e inconsciênciaIntegraçãoSituações curiosasNamoro de cego

VOLUME 2Perguntas feitas aos cegosReceitas milagrosasComo sonharUso da bengalaCego por conveniênciaQuestões pessoaisSentidos remanescentesAssuntos polêmicosCrescendo através da cegueiraJesusDicas para se relacionar com oscegosRelacionamento com a pessoadeficiente visual

PREFÁCIO

Conheci o Cesar em 1984, durante ocurso de formação de professores emEducação Especial. Digo conheci e não

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"nos conhecemos", porque eu fiqueidurante um bom tempo observando delonge aquele rapaz que vinha para aaula todas as noites, com sua bengala. Naquele tempo, eu ainda era umaprincipiante (fazia pouco mais de umano do diagnóstico de surdez das minhasfilhas) e a questão da deficiênciaestava muito mal resolvida dentro demim. Assim, exatamente como a grandemaioria das pessoas, o cego assustava,ou melhor, incomodava, e eu, observavade longe. Depois, com o tempo, fomos nosconhecendo melhor e, através do Cesar,pude tomar contato com o lado real dadeficiência, bem diferente daquilo quetodos nós imaginamos. Com o crescimento das minhas filhas(hoje elas estão com 15 anos), fui meaprofundando nos estudos e, muito maisdo que isso, fui vivenciando,experimentando, sofrendo muito,aprendendo e principalmente, merealizando como mãe e profissional. Situações de preconceito, depiedade, de desprezo, de escárnio fazemparte do cotidiano das pessoas comdeficiência e de seus familiares. Meu marido, uma vez, quandotratávamos um dos nossos inúmerosconfrontos com a sociedade, colocou amão sobre o peito e me disse: - "Istoaqui é um brejo, de tanto sapo que eujá tive de engolir!". A maior luta, portanto, está emconseguir viver bem, sendo diferente. A sociedade exclui quem não seassemelha à maioria, tanto assim que,por exemplo, a moda é a maiorescravidão imposta à humanidade, e nos

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submetemos a ela, muitas vezes comprazer. E o que dizer do culto ao corpo queimpera atualmente? O corpo deve sermagro, firme, "malhado". Os gordos, osidosos, os baixinhov w&÷2ÀЦVæf–ÒÜÜÝZ[™ È [XCB˜\ \ª€ os baixência agradável, são vítimas do"extermínio social". O Cesar coloca muito bem que, parapessoas com deficiência, o "meiotermo"o "médio", o "normal", nãoexiste; ou seja, ou elas sãosuper-heróis, que "matam leão a unha"ousão "coitadinhas", precisando deassistência. A compreensão de que o indíviduocom deficiência não é santo, nem herói,mas apenas alguém diferente, nossasociedade ainda não tem. E não bastaque nós, familiares, governos,entidades, preparemos nossosdeficientes para enfrentar a sociedade;é preciso preparar esta mesma sociedadepara recebê-los. Com este livro, o Cesar dá um grandepasso neste sentido. Lendo-o, os cegosdeixam de ser um mistério, ou "melhoramigo do homem", mas, simplesmente,alguém que não enxerga.

Clélia Maria Ignatius Nogueira

NOTA DO AUTOR

A publicação da presente obra tempara mim o caráter de um grande amor,de uma realização ímpar e de umasatisfação plena. Contudo tal feitoteve a participação de várias pessoas,as quais prefero não nominar, pois o

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risco de esquecer um ou outro nome porcerto existe. Uma vez que considero todo apoio defundamental importância, incluindo aíinclusive aqueles que tiveram umapalavra ou um gesto de incentivo.

CAPÍTULO I

ESCLARECIMENTO

Devido à falta de informações arespeito da pessoa portadora dedeficiência visual, esta é sempretratada com medo, superstição eignorância. Diante desta situação, a criação edivulgação deste livro têm comoproposta oferecer à comunidadeinformações sobre quem é o deficientevisual e o trabalho realizado. Ainda dentro desta proposta,oferecer orientação às pessoas para ummelhor relacionamento com o deficientevisual.

QUEM É O DEFICIENTE VISUAL?

É a pessoa que possui alteração nacapacidade de perceber imagens,comprovada por diagnóstico deespecialista na área.

CARACTERÍSTICA DO DEFICIENTE VISUAL.

A: Cegos (perda total, ou quasetotal, da visão ). Eles necessitam de método brailecomo meio de leitura e escrita e/ou deoutros métodos, recursos didáticos e

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equipamentos especiais para suaeducação.

B: Parcialmente cegos (visãoreduzida ou visão subnormal). Estes são os que, embora comdistúrbio de visão, possuem resíduosvisuais em tal grau que lhes é possíveller textos impressos a tinta. Não seincluem nesta categoria as deficiênciasfacilmente corrigidas pelo uso adequadode lentes. Mas, apesar da incapacidade visual,o deficiente é um indivíduo possuidorde condições plenas de realizaratividades. Em Maringá, temos deficientesvisuais exercendo funções como:professores, monitores braile, técnicosde câmara escura, massagistas,zeladoras, artesões, etc. Não é muito incomum as pessoaspensarem que nós cegos vivemos no mundoda escuridão, das trevas, como se tudofosse um imenso buraco negro, ou comose estivéssemos, constantemente, àbeira de um abismo. A respeito disso, fomos fazer umapesquisa mais profunda. Argüindo várioscegos, pudemos tirar nossas conclusões. No nosso caso, temos uma ótimanoção de claridade. Vemos a luz do dia,a chegada da noite, temos percepção declaridade de algumas luzes mais fortese quando estão perto. Vemos tambémpequenos pontos luminosos que semovimentam constantemente, como seestivessem à frente dos meus olhos.Isso se dá devido à característica dadoença que fomos acometidos e que noslevou à cegueira. Aliás, vale ressaltarque, em muitos dos casos que citaremos

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a seguir, o nível de visão também estádiretamente vinculado à doençacausadora de sua cegueira. Há casos depessoas que vêem tudo claro à suafrente, como se houvesse uma névoaconstante. Já outros dizem enxergartudo meio avermelhado, ou azulado. Pesquisei cegos congênitos queafirmam ver cores e que as mesmas estãoa sua disposição, sendo utilizadas poreles de acordo com suas vontades.Naturalmente que falamos aqui desituações distintas. Nossa pesquisamostra ainda que existem alguns cegosque vêem à sua frente tudo negro e,sequer, um mínimo de luz se lhesapresenta. Mas, mesmo nestes casos, aconteceum fato curioso que se apresenta naimensa maioria dos casos, ou seja, háuma predisposição para desviar deobstáculos que não fazem barulho, nãotêm odor e não foram ainda tocados. Aquele que enxerga e que é leigo,afirmaria que o cego enxergou talobjeto para se desviar dele. E aqui nãoentram aquelas condições favoráveis demudança de pressão do ar, ou decorrente do mesmo ar. Entra, no nossoentendimento, o sentido especial, alémdos outros cinco já conhecidos. Não são poucas as pessoas queafirmam ser essa condição uma ação doanjo da guarda de cada um. Em sendoassim, eu perguntaria: "E os cegos que não têm essacapacidade? O anjo da guarda deles nãoexiste? Está desatento? Ou tirouférias?"---------------------------------------

CAPÍTULO II

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CEGOLÂNDIA - NADA INCOMUM

Depois que fiquei cego, observeique havia a formação de sociedades quebuscavam o bem estar dos deficientesvisuais, procurando realizar o desejode verem suas necessidades atendidas. Entre outras atividades, os cegosse reúnem para ir ao futebol, ao bar, àdanceteria, ao clube, às festas. Em umaanálise feita por mim, concluí que issoacontece por uma necessidade de dizerque não é o único cego e que tem asmesmas dificuldades que o outro tempara satisfazer suas necessidades delazer, de locomoção, de relacionar-secom dinheiro e de obter informações delugares para onde se dirige. Todasessas dificuldades são iguais. E essa formação de grupelhos, oumicro-sociedades, cria o que algunschamam de guetos. Por isso é muitofácil encontrarmos cegos que só sabemse relacionar com outros cegos, ouquando estes estão por perto. Sem osmesmos, ficariam como se fossem peixesfora da água. Esses grupos recebem,entre outras, algumas denominações nomínimo curiosas, feitas por algunscegos, como por exemplo: a cegolândia,os ceguetas. Todavia, excluímos daqui asformações de cegos em associações eoutras que atuam na defesa dosinteresses da classe, de forma,culturalmente falando, mais séria. Quando saem vários cegos pelasruas, avenidas e calçadas de umacidade, a cena se torna no mínimopitoresca. Por menos que um sujeito defora não seja curioso, não há como

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deixar de observar aquela situação deseres se segurando em outros seres,dois a dois, três a três, quatro aquatro, cinco a cinco e, assim pordiante, conforme a necessidade. Com adescoberta da existência de alguém nogrupo que enxerga pelo menos um pouco,que não precisa usar bengala para selocomover, ele se transforma no puxadorda fila, embora, às vezes, a maioria,ou até mesmo todos, possam saber ocaminho para onde se dirigem. Abrindo um parênteses aqui, querocitar uma frase de um amigo chamadoLeonardo, de Belo Horizonte, que afirmaser o cego o animal mais próximo dohomem. Desejo salientar ainda, que oschamados guetos não são uma necessidadepara todos os cegos, mas sim, para umaparte de nós, que eu ouso chamar demaioria. Não vamos analisar se isso é certoou errado, deixamos apenas para análisedos senhores leitores e para aconclusão de ambos os animais.---------------------------------------

CAPÍTULO III

EVOLUÇÃO

Somente no final da Idade Moderna ocego passou a ter oportunidade de seeducar. Homero é tido como o primeirocego a conquistar isso, mas é umafigura lendária. A história real docego começa em 1784. Observando um cegolendo moedas pelo tato é que severificou que este poderia ler, dandoorigem à primeira escola com um sistemade leitura com letras normais em alto

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relevo, o Instituto do Jovem Cego. Istoaconteceu na França. Foi nesta escolaque, com nove anos de idade, passou aestudar Louis Braille. Ele entrou emcontato também com outro sistemacriado, que constituía de pontos etraços. Este era usado para leituranoturna, no exército. Como não teveêxito no seu primeiro objetivo, osistema foi levado para o Instituto,para ver se o cego se adaptava aomesmo. Então, Louis Braille, inspiradoneste sistema, inventa o seu próprio,em 1825. A vantagem é que estepossibilitava ao cego poder escrever eler, uma vez que os anteriores somentepermitia a leitura. Tal sistema só foiaceito em 1837, depois de sercombatido. Citamos aqui uma das passagens deLouis Braille, que para demonstrar seusistema, apresentou, a um juiz daépoca, um livro inteiro escrito nestesistema. Depois de ter lido todo oexemplar, o juiz afirmou que o jovemrealmente tinha uma memória fantástica,pois havia decorado todo o livro.

PERÍODOS DA EVOLUÇÃO DOS CEGOS O atendimento ao deficiente édividido em três períodos. O primeiro,de 1854 a 1960. O segundo, de 1961 a1972. E o terceiro, de 1972 em diante. O primeiro período caracteriza-sepela iniciativa assistemática, semperiodicidade das atividadeseducacionais e assistenciais para oscegos. O segundo período caracterizou-sepela institucionalização da educação,aparecendo, pela primeira vez, leis quevão determinar a obrigatoriedade

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governamental da educação para odeficiente. Tal fato se deu a partir daConstituição de 64 e da Lei deDiretrizes e Bases, na mesma época.Isto foi possível porque já existiamorganizações que cobravam apoio doGoverno, que até então era omisso. No terceiro período aparece aplanificação da educação. Os poderes daUnião, Estado e Município passam a terobrigatoriedade de estabelecer aeducação especial também em seusprogramas educacionais. Tal processoencontra-se, atualmente, em evolução.

No final do primeiro período,começou-se a cobrar iniciativas doGoverno. Realizou-se, em 57, umacampanha nacional de educação desurdos, em 58, de cegos e em 60, dedeficientes mentais. Isto força oGoverno a colocar em lei a educaçãopara deficientes. No terceiro período, extinguiram-seas campanhas e criou-se o CentroNacional de Educação Especial, quefuncionava através de projetosapresentados pelas secretarias locais.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS CEGOS

O primeiro período da educaçãoespecial para as pessoas cegassubdivide-se em três fases. A:pioneirismo do atendimento às pessoascegas - 1854 a 1928. B: expansão doatendimento ao cego no Brasil -1929 a1945. C: fase da valorização daeducação e ampliação das oportunidades- 1946 a 1960. A primeira fase é chamadapioneirismo pelo aparecimento de

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associações de cegos responsáveis pelaabertura de caminhos. Temos aí váriosexemplos, como o de um cego catarinenseque estudou no Instituto BenjaminConstant e tornou-se jornalista,demonstrando muita eficiência no setore propagando o movimento republicano.Isso porque fez parte de um núcleorepublicano, IBC, que tinha comoprofessor Benjamin Constant. Através daconvivência com os cegos, esteprofessor passou a reconhecer acapacidade dos mesmos e formou, noInstituto, grupos republicanos. Houve ainda outro catarinense,poeta e que também fazia parte domovimento republicano, além de umexcelente músico e pianista. Um fatomarcante na vida deste último foiquando o músico do rei, vendo umconcerto do mesmo, apreciou de talforma que o convidou para um concertode apresentação ao rei, feito a quatromãos.

No início do nosso século, surge umengenheiro reabilitado pelo InstitutoBenjamin Constant, que tornou-seprofessor e criou a primeira escolaprofissionalizante de cegos. Ele fez ummapa vivo, que foi apresentado nascomemorações centenárias daindependência. Teve um neto, queparticipava do Ministério da Educação eteve grande importância na abertura doreconhecimento das associações dedesportos para deficiente.

Outro estudante do IBC levou parao Norte do País a idéia de se criar umaorganização de cegos, em 1909,desenvolvendo a música na região, assim

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como a musicografia, no Instituto deCegos de Pernambuco. Manteve tambémcursos para entrada no serviço público,criou a liga de proteção ao cego,juntamente com outros grandesintelectuais. Fundou-se, em Minas Gerais, oInstituto São Rafael, em 02/09/1926.

Em 1928, criou-se a primeirainstituição religiosa para cegos, oInstituto de Cegos Padre Chico.

A segunda fase caracteriza-se pelaampliação dessa assistência. Surge oInstituto de Cegos da Bahia, o LouisBraille, em Minas Gerais, o InstitutoParanaense de Cegos, o Santa Luzia, noRio Grande do Sul, e outros em épocasposteriores.

Dois cegos, neste período,conseguiram fazer o curso de Direito,apesar de não ser permitido, na época,que cegos freqüentassem universidades.A briga e insistência é que permitiramessa proeza.

Em 1933, um cego curitibano foio primeiro a conseguir autorizaçãopara fazer o ginásio. Um pouco maistarde, em 1935, um cego consegue entrarna Escola Nacional de Música. Em 1943,outro cego consegue autorização parafazer Pedagogia. E ainda, um grandeviolinista cego, de nívelinternacional, é aplaudido por milharesde pessoas. Outro cego matogrossense se destacacomo o maior saxofonista da época,devido à sua grande capacidade de tiraro agudo deste instrumento. A partir de

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então, foi adicionado uma chave a maisno instrumento. Foi criada a primeira revistabraile no Brasil.

Na terceira fase deu-se oreconhecimento da educação dos cegos,em 1946. Neste ano criou-se também aFundação para o Livro do Cego no Brasilque, posteriormente, teve suadenominação alterada para FundaçãoDorina Nowill, cujo nome perdura atéhoje. Em 1947, aconteceu o primeirocurso de profissionalização deprofessores para pessoas cegas. Aprimeira turma ginasial de cegos noInstituto Benjamin Constant formou-seem 1949, pois até então, apesar doensino ser ministrado naquele órgão,ele não permitia que o aluno fossereconhecido e recebesse o diploma deconclusão. O Instituto não tinhacaracterização de escola para tal. Em1950, foi instituído, na Escola Caetanode Campos, de ensino regular, aprimeira sala de ensino especial,permitindo assim uma abertura para queoutros alunos pudessem estudar emoutras escolas. O ensino integrado foide grande importância para aminimização do preconceito, poispermitia a convivência de alunos queenxergavam, com os cegos. O problema éque o deficiente teve sempre que estarprovando que era capaz. Em 1951,apareceram novos cursos deprofissionalização de professores paracegos. E em 1952, forma-se a primeiraturma de segundo grau, no Rio deJaneiro. A turma recém-formada queria então

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entrar na faculdade, o que foiconseguido com muita luta. Com a vindapara o Brasil de Hellen Keler, em 1953,mais alguns programas que vinham sendoimplementados desde o começo da décadade 40, fizeram com que acontecessemalgumas evoluções, principalmente porparte do SENAI, que citaremos emseguida. Em 1958 começou então acampanha do atendimento do ensinointegrado, denominada Campanha Nacionaldo Ensino para Cegos. Neste ano,iniciou-se a orientação e mobilidade noPaís, com a chegada das primeirasbengalas vindas do exterior. Em 1960,há o movimento favorável àprofissionalização da pessoa cega,iniciado pelo Serviço Nacional daIndústria, SENAI.

O Segundo período caracteriza-sepela afirmação das conquistas emelhoria do atendimento.

No final da década de sessenta,houve a verdadeira expansão daadaptação do uso do sorobã para cegos,iniciada em 1949. Nesta década, houve também acriação da primeira associação deprofessores para cegos. A AssociaçãoBrasileira de Educadores paraDeficientes Visuais, em 15/11/1968. Em 1970 surgem os primeiros cursosna área de programadores.

O Terceiro período é a fase deplanificação.

Em 1973 foi criado o CentroNacional de Educação Especial com oobjetivo de acabar com as campanhas

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isoladas, planificando os movimentos esurgindo os projetos de desenvolvimentoda educação. Destacam-se aí trêsmomentos. De 1973 a 1976, onde houveapoio a cursos de programação, projetosde bolsas de trabalhos e outros degrande importância, que fizeram com quenesse período fossem alcançadosdesenvolvimentos significativos devários cegos pelo País. De 1979 a 1985, quando houve umperíodo de certo descuido do GovernoFederal, proporcionando com isso umretrocesso nas conquistas. Tal fatodeu-se devido à mudança de Governo. Houve também a criação da CORDE,Coordenadoria de Desenvolvimento dosExcepcionais, órgão existente até hojee que tem prestado grande colaboraçãonos projetos relacionados à área. Aexpansão se torna contínua até osnossos dias, com aparição de líderes defundamental importância nestemovimento, que nós caracterizamos comoaspiral ascendente. Aparecem tambémfatos marcantes todos os anos,principalmente com a utilização dainformática a nosso serviço. Os cegostêm ainda na Universidade Federal doRio de Janeiro, UFRJ, uma contribuiçãoaltamente valiosa, no apoio à criaçãodo sistema operacional dos vox, quepermite aos cegos ter várias opções detrabalho, de cultura, lazer e outros. CAPÍTULO IV

ATLETISMO E CEGUEIRA

Corrida Apucarana a Maringá Aconteceu no dia 8 de abril de1996. Foram aproximadamente 64quilômetros desde a Praça Rui Barbosa,

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em Apucarana, até a Praça RaposoTavares, em Maringá, onde mais de milpessoas esperavam. Estas foram atraídaspor um palco e um serviço de sominstalados com o objetivo de anunciar,com clareza, o motivo do ato por mimpraticado, ou seja, a divulgação daluta contra o preconceito, cujamanifestação eu denominei "CorridaContra o Preconceito". Entre as pessoas que esperavamminha chegada, estavam minha mãe eminha filha, Tamara. Ambas ouviram aconversa de duas distintas senhoras. Dizia a primeira: "Quando ele chegar, vai pediresmola para todos que aqui seencontram." E a segunda comentava, todaespantada: "É verdade?" Ambas viraram-se para minha mãe euma delas perguntou: "A senhora conhece esse rapaz queestá fazendo essa corrida?" Minha mãe respondeu. "Conheço. É meu filho." Sem sequer conseguir pronunciar umapalavra a mais, as duas senhoras seafastaram e desapareceram na multidão.E a tal esmola, que seria pedida, nuncaaconteceu. Talvez seja importante analisarisso. Por que algumas pessoas insistemem pensar que os cegos só servem parapedir esmolas? Quem sabe, o acontecidoserviu para mudar o pensamento dealgumas dessas pessoas, apósverificarem que não foi angariadorecurso financeiro algum. Se issoaconteceu, com uma pessoa que seja,entendo que meu esforço não foi em vão.Sei que a mudança de consciência é

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gradativa, lenta e, o que se conseguecom atos desse tipo, é a minimização dopreconceito. Já participei de várias etapas dacorrida 21 de Abril, em Maringá. Paraque consiga correr, entretanto, énecessário que um outro atletaacompanhe-me durante todo o percurso,dirigindo-me. Isso é feito com o uso deuma fita, ou similar, que é amarrada nomeu pulso esquerdo, enquanto o outroatleta segura a outra extremidade, paraorientar-me na direção que devo seguir.A situação, no entanto, causa sériosconstrangimentos, principalmente paraaquele que me serve de guia, pois nasruas de Maringá encontramos váriaspessoas que gritam chamando-nos debicha, viado, fazendo chacotas como,por exemplo: "Lá vão os dois." "Eles não querem se perder um dooutro." "Vão chegar juntinhos, de mãosdadas." As pessoas que estão assistindo àcorrida não são obrigadas a meconhecer, portanto, pensam que enxergo.E o que pensar de duas pessoas quecorrem grudadinhas? Agora eu pergunto: duas pessoas queenxergam, sendo um deles homossexual,ou mesmo os dois, não teriam o direitode correr de mãos dadas? É, sem dúvida,mais uma vez o preconceito que temosnos nossos corações que nos faz sermostão pequenos. Outro atleta me dizia: "César, porque essas pessoas nãofazem igual a você? Em vez de falarassim, poderiam deixar de beber, fumare partirem para a prática do esporte."

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Uma moça cega, também participandode corrida de rua, tem por obrigaçãocorrer com um guia do lado. Passandopelas ruas, as frases mais ouvidas sãomais ou menos as seguintes: "O amor é lindo." "Quando será o casamento?" "Que bonito, eles não se largam." Pensa-se que um homem e uma mulhernão podem correr atrelados a um pedaçode barbante, que isso significa ligaçãoamorosa. E se por ventura um casal,verdadeiramente de namorados, quisessedemonstrar afeto desta maneira?Sofreria gozações por parte doszombeteiros de repetição?---------------------------------------

CAPÍTULO V

ACONTECIMENTOS DE DISCRIMINAÇÃO

Dizem existir vários tipos dediscriminação, entre eles aquele que aspessoas praticam inconscientemente, semo desejo de magoar quem quer que seja.Temos informações de váriasdiscriminações contra cegos, entreelas, vamos citar aquela acontecida emSão Paulo, quando um grupo de cegos,pertencentes à Adevimar, foi a um bartomar cerveja e com voz clara, oproprietário disse que não vendiacerveja para cegos. Se ele não vendessea ninguém, é claro que se tratava deuma mercadoria não comercializada emseu estabelecimento. Mas a iniciativade não vender exclusivamente paracegos, é um ato de extremadiscriminação. Uma das lojas famosas de Maringá,

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foi palco também de uma ação deviolenta discriminação. Um amigo,chamado Joaquim Teixeira Batista, foicom seu filho menor, de cinco anos, atéaquela loja para comprar pisca-pisca deárvore para Natal. Como era mês dedezembro, ele pretendia preparar seusenfeites para as comemoraçõesnatalinas. Entrou na loja com uma dasmãos segurada pelo seu filho, quandoaproximou-se deles um dos funcionáriose disse ao garoto: "Diga a seu pai que aqui dentro daloja é proibido pedir esmolas." Esse amigo não se conteve edesandou a falar, em altos brados, queele estava ali para comprar e não paraesmolar. Vários clientes foram ver oque estava acontecendo. Foramnecessários alguns minutos paraacalmá-lo. Na minha opinião, esta é uma dasmais profundas discriminações, um casode polícia, algo muito grave queacontece no cotidiano de qualquer cegoque queira participar da sociedade e searrisca a comprar no comércio. É fáciltachá-lo como pedinte.

Uma senhorita entrou numcabeleireiro para pedir voto, pois amesma trabalhava de cabo eleitoral. Aotentar entrar, a proprietária disse quenão tinha trocado e pediu que voltasseoutro dia. Discriminação na Câmara deVereadores. Não havíamos sequer assumido omandato que conquistamos em 3 deoutubro de 1992. Isso aconteceu no mêsde dezembro, durante uma reuniãorealizada na residência do senhor

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Nestor. A conversa girava em torno decomo seriam formados os grupos para ascomissões permanentes, do biênioseguinte, no Poder Legislativo. Entreum e outro vereador que se candidatavaa algum cargo, seja de membro ou depresidente de uma das comissões,ocorreu um fato interessante. Lá pelastantas, candidatei-me à presidência daComissão de Finanças e Orçamento,quando, com voz alterada ecompletamente abismada, a senhoraAngela disse com tom áspero: "Não! Não pode ser! O César nãoenxerga. Ele não pode ser presidente." Ato incontinente, respondi que seme julgassem incapaz para assumir talcargo, bastava não votar em mim. Masnunca porque sou cego. Nestorinterferiu e pediu que a pessoaretirasse o que havia dito. Ela nãoquis fazê-lo. Diante de minhas palavrasde desagravo e a observância delas, osoutros senhores, entre olhares ecochichos, acertaram rapidamente nãovotarem em minha pessoa para a referidapresidência.

Foi fruto de manchete nacional etambém nos jornais locais, aautorização judicial que uma mãeconseguiu, em Maringá, para abortar seufilho. Através de exames, os médicostinham descoberto que a criança eraencefálica, ou seja, não tinha cérebro.Através de uma enquete realizada peloPrograma Comando Geral, da RádioAtalaia, também de Maringá, buscava-sesaber a opinião dos ouvintes, se eramcontrários ou favoráveis. Percebemosque a esmagadora maioria era decontrários.

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Pessoas ainda afirmaram que, nestecaso, havia uma enorme discriminação,pois se a criança fosse possuidora decérebro, mesmo a mãe correndo risco devida, o juiz, com certeza, não teriaautorizado o aborto. Configura-se aí, na opinião deouvintes, que a discriminação existecontra aquele que está dentro ou forado ventre. Convém afirmar ainda, que a citadaenquete foi realizada no dia 4/12/96 eque participaram 57 ouvintes, dos quais49 se posicionaram contra este aborto e8 foram a favor.

Uma das pessoas que mais sofrem coma discriminação, sendo em alguns casosaté mesmo muito grave, é aquela que nósdenominamos de cego parcial, ou seja,aquela que possui baixa acuidadevisual, de tal forma que oimpossibilita de ler letras do tamanhocomum, necessitando que as mesmas sejamampliadas. Por outro lado, enxergamobjetos apenas a curtíssima distância.Em outros casos, enxergam com extremadificuldade no período do dia e vêemmelhor no período noturno, ou viceversa. Os cegos parciais, por conseguiremandar sem bengala, não sãoidentificados como cegos norelacionamento com outras pessoas. Emassim sendo, o parcial é tratado comopessoa que enxerga normalmente e, porisso mesmo, quando necessita de algumauxílio, não é percebido como alguémcom deficiência. Se, por acaso, vaitentar um emprego, não passa nos examesmédicos, pois não enxerga quase nada. Ainda na Câmara: por algumas vezes

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precisei de assinatura de um vereador,que se aproveitou da minha condição decego para fingir que assinavadocumentos que tinham suma importânciapara a comunidade e que mereceriam, nomínimo, serem discutidos. O regimentointerno da Casa dizia que se euprotocolasse tais documentos nos diasem questão, ganharia com isso dois outrês dias na agilização do processo.Mas, o dito vereador fingia quecorroborava com o documento e, eu saíacoletando novas assinaturas quando,depois de algum tempo, descobria que omesmo não havia assinado. Seria muitomais louvável dizer, se fosse o caso,que não era favorável aos referidosdocumentos. É muito fácil, mesmo estando nafrente de um cego, enganá-lo e, deforma séria, dizer que assinoudeterminado documento. Isso, no nossoentendimento, é usar da cegueira dooutro para ludibriá-lo, portanto,caracterizo como discriminação contranós, fato que, ao mesmo tempo, acabasendo prejudicial à comunidade. O senhor Antonio não entende que umvereador portador de cegueira tenha omesmo direito dos outros vintevereadores; que tem o interesse de lero que está à disposição na Câmara, ouseja, aqueles documentos que qualqueredil, que porventura se interesse, podeapanhar uma cópia e levar para casa ouao escritório, para melhor estudar amatéria. Todavia, o mesmo direito nãoera concedido a mim, mesmo sabendo queexiste a escrita braile, que permitiriaque eu tivesse os mesmos direitos dosoutros vereadores. O fato de ter na casa um

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funcionário que transcrevesse todas asmatérias para o braile, na opinião dosenhor Antonio, era dar um funcionárioa mais para mim. E que, com isso, euestaria sendo privilegiado. Porém, oque dizer dos outros funcionários, quenão eram poucos, e que faziam todomaterial em tinta, inúteis para mim,mas que serviam aos outros vintevereadores. Façamos aqui um exercício desuposição. Admitindo que a Câmara fossecomposta apenas de vereadores cegos,esses funcionários seriam perfeitamentedispensáveis, pois só sabiam prepararmaterial em tinta. Fica fácil, nesse caso, concluirque com um grupo de vinte e cincofuncionários, servindo a vintevereadores, há uma média de mais de umpara cada edil. Dessa forma, observa-seclaramente que um funcionáriopreparando meus materiais, nãoconstitui privilégio algum, mas sim umanecessidade de trabalho, dando a mim amesma condição que os demais têm parabem representar os munícipes. Como não dispunha de um funcionáriode minha confiança, tomei primeiramentea decisão de protocolar umrequerimento, solicitando ao presidenteque reparasse aquele erro infantil. Fizquestão, no referido documento, decitar que não precisaria sernecessariamente escolhido por minhapessoa aquele que viesse a ocupar talcargo. Diante da inoperância e da falta devontade para resolver o problema,passei, daquele dia em diante, a nãoassinar os documentos apresentadospelos funcionários, nem mesmo a ciência

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de recebimento destes. A justificativapara tal procedimento, junto a aquelesque me traziam documento para assinar,uma vez que havia um rodízio deles, erasempre a mesma. "Você pode ser a pessoa mais honestado mundo, mas eu não o conheço e nãotenho como diferenciá-lo dosdesonestos. Posso estar correndo umrisco muito sério de assinar algumdocumento que venha depor contra acomunidade, ou contra minha própriapessoa." A situação se tornou hilariante,inclusive, com várias quebras doregimento interno da casa, por mimdenunciadas. Uma delas é a de queexiste um prazo para entregar ao edil apauta das sessões e a minha nunca eraentregue respeitando o prazo.Mandava-se transcrever em braile aminha pauta, no Centro de EstudosSupletivos, CES. E vale salientar queos mesmos não têm qualquer culpa doatraso. Por diversas vezes, o referidodocumento só era apresentado a mim trêshoras antes do inicio da sessão, ouseja, às dezessete horas do mesmo diaem que ela ocorre.

Certa vez, quando a Câmara aindaera na Praça Rocha Pombo, em um belosábado, estava acontecendo uma reuniãopartidária. Eu estava, naquele momento,sentado em uma das cadeiras na sala doentão diretor da casa, o ex-deputadoestadual Antonio Facci, quando seaproximou um senhor cego, acompanhadode um menino. Este me pediu uma esmolapara seu pai que não podia trabalhar,pois não enxergava. Eu disse que tambémera cego e que estava disposto a

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ajudar, mas de uma outra forma. Sem quepudesse continuar minha fala, fuiinterrompido pelo companheiro decegueira, que pediu gentilmente paranão brincar daquela forma. Continuoufalando a respeito da cegueira comosendo uma das coisas mais tristes domundo e, só mesmo alguém que possuísseum problema igual, é que poderiaavaliá-lo. O diretor da Câmara tentouinterferir a meu favor dizendo querealmente eu também era cego, sem,todavia lograr êxito, uma vez que ocidadão voltou a insistir, dizendo quenão havia possibilidade de um cego sereleito vereador. Depois de alguma insistência,consegui passar o endereço da nossaassociação e marcar um encontro para as14h da segunda-feira seguinte.Entretanto, o dito cujo não meprocurou. O mesmo disse, na ocasião,ser morador em Maringá, mas nunca maisfoi visto pelas nossas ruas.

Uma amiga foi eleita vereadora nacidade de Porto Alegre, no ano de 1982.Por ser cega total, numa das sessõesela apoderou-se da bengala epreparava-se para sair do plenário,quando o presidente da casa perguntouatravés do microfone: "Excelentíssima, onde a senhoravai?" Ela mudou de direção, apanhou umdos microfones e através do mesmoperguntou. "O senhor quer mesmo saber?" "Sim." "Eu vou fazer xixi. Ah! Por falarnisso, senhor presidente, porque o

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senhor não pergunta também para osoutros vereadores onde vão, quando seausentam do plenário? Será que oregimento interno prevê que somente oscegos devem dizer para onde vão?" Caso típico de discriminação.Sabemos, entretanto, que não existe aímaldade alguma por parte de quemdiscriminou. Mas aqui, o cego foitratado como sendo um coitado, quenecessita de amparo, paternalismo.Classificamos o fato como um purodesconhecimento das verdadeiraspossibilidades do cego.---------------------------------------

CAPÍTULO VI

DADOS ESTATÍSTICOS

Foi realizada uma pesquisa parasaber a opinião de pessoas portadorasde deficiências e os negros, sobre aexistência ou não de preconceito, porparte da sociedade, com relação a elesmesmos. Foram pesquisados deficientesvisuais do Centro Municipal deAtendimento aos Deficientes Visuais deMaringá (CMADV), deficientes físicos doCentro de Vida Independente (CVI), e,membros do movimento A ConsciênciaNegra de Maringá. Dentre os 136pesquisados, o resultado final apontouo seguinte: Preconceito racial: 96,96 porcentodisseram sim, que existe o preconceitoe 3,03 porcento disseram não. Entre os deficientes físicos, 58,33porcento responderam sim e 40 porcento,não, havendo a abstenção de 1,66porcento. Entre os deficientes visuais,

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chegou-se a um resultado de 100porcento dizendo sim para a existênciado preconceito. Dos 136 entrevistados, 60 forampessoas portadoras de deficiênciafísica, 43 deficientes visuais e 33negros. Lembramos que os originais dareferida pesquisa ficaram, por seismeses, à disposição dos interessados,no gabinete do então vereador CésarGualberto. A pesquisa foi encomendadapelo mesmo para servir de trabalhohistórico e para publicação num livro,além de servir de ajuda, para análisesfuturas, sobre aquilo que pensavam osdeficientes da época.---------------------------------------

CAPÍTULO VII

CONSCIÊNCIA E INCONSCIÊNCIA

Neste capítulo convém tratarmos dadiferença da consciência einconsciência dos cegos, comparando-ascom as das pessoas que enxergam. Épreciso perceber que muitas pessoascostumam "saber tudo" sobre o cego eque isso tende a trazer uma série detranstornos. Como é o caso daquelesenhor amigo meu, não é preciso aquicitar seu nome, que discutiu, comveemência, afirmando serem todos oscegos sempre muito calmos e que eramexcelentes tecelões, músicos etc. Ouseja, os cegos têm uma grandefacilidade para realizar atividades queprecisem de concentração e o fazem, comextrema facilidade, por uma dádivadivina. Dizer a ele que isso não era

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verdade e que haviam muitos cegos quetinham enormes dificuldades para taistarefas, foi quase brigar com esseamigo, uma vez que eu estava destruindoum conceito que ele tinha há váriosanos. Apesar disso, nada me impediu dedizer a ele que encontramos, também, emmuitos cegos, a extraordináriafacilidade para tais tarefas, todavia,no mundo das pessoas que enxergam, nãoé menos diferente. Há muitas delas quesão ótimas para esse mister, enquantooutras nada produzem neste aspecto e,por sua vez, se dão muito bem em outrasatividades, quer seja na música ou emoutras manifestações artísticas, comotambém nas profissionais, entre outras. Antes de sermos cegos, somoscidadãos comuns, amados por Deus deigual forma, onde não nos é concedidodádiva alguma por sermos cegos. Sãoconquistas de necessidades que temos.Eu, por exemplo, tenho um péssimoouvido para música. Como explicar issose afirmam serem todos os cegosexcelentes nesta área? E como euconheço uma enormidade de exemplos. Poroutro lado, figuras conhecidasmundialmente são ótimos músicos, emboraenxerguem.

A consciência do cidadão portadorde cegueira está diretamenterelacionada ao seu mundo deimperfeições no planeta em que vivemos,onde os valores morais se situam nodissabor das marés baixas, de forma quenão se encontra salvação em qualquerbar da esquina. Situamos nós cegos namesma camada, onde encontrei vários comtendência fortíssima para o desencontro

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e outros para o encontro. Poderiaalguém perguntar qual seria a base paraapontar os dois citados. A afirmaçãoestá no aspecto das pesquisas econvivências com os mesmos, quer seja anível municipal, estadual, nacional eaté internacional. Vamos admitir. É conscienteaproveitar-se da situação de cegueirapara conseguir vantagens pessoais? Poroutro lado, a questão de aceitar acegueira, assumindo-a perante si eperante a sociedade, não tendo o menorpudor de que o meio saiba de suadeficiência, mostra seu estado deevolução para um estágio de maiorconsciência.

Os aspectos morais dos sereshumanos estão, muitas vezes, ligadosdiretamente à questão material.Todavia, a questão moral não pode serdesprezada, e aqui, nos preocupamos emrelatar essa moral diretamentevinculada ao fato de ser cego, ou seja,não é muito incomum encontrarmos cegosque, diante de determinadas situações,possam prevalecer. Esconderem-se atrásda imoralidade e aceitá-la como um jogoabsolutamente normal e coerente nosnossos dias. Aqui podemos citar o caso da imensamaioria dos cegos que pedem esmolas.Eles aceitam esta prática por afirmaremser a única forma de sobrevivência.Exercitando o teatro da necessidade dabusca, todavia, quando se apresentamjunto a amigos, o dito pudor se aflora,apaziguando a briga da imoralidade coma moral que todos possuímos. Conflitamos nossos pensamentos,criando no nosso interior desastres que

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podem perdurar por temposinimagináveis. Só passamos amodificá-lo quando este estado deconsciência, começa a se tornar pleno,absorvendo valores mais verdadeiros, osquais permitem alterações profundas naescala evolutiva da nossa crise moral. Perguntado para alguns cegos, quepercebem apenas um salário mínimomensal, se aceitariam o triplo daqueleganho em esmolas, a resposta foiunanime de recusa. E quando arguidosporque, as respostas também foram muitoparecidas. Sempre havia uma preocupaçãode justificativa no aspecto moral eque, em nenhuma circunstância, seria deseu caráter aquela prática. Não queremos, contudo, afirmar serisso uma regra, e muito menos dizer quetodos os aspectos morais estão ligadosa fatos desse tipo. Reservamos odireito de citar, apenas este, comosendo um dos milhares de exemplos. CAPÍTULO VIII

INTEGRAÇÃO

Nós temos afirmado que a pessoa queé cega encontra uma série dedificuldades para se integrar, ou sesocializar, pois as pessoas que dirigemo nosso País e grande parte da nossasociedade, querem que nós cegos nosadaptemos ao meio. Quando, no meupensamento, haveria a necessidade deque isso acontecesse de uma formabilateral. O cego se adaptando ao meioe o meio fazendo algumas mudanças parase adaptar aos cegos. Não queremos, porexemplo, que os cegos se adaptem aosburacos nas calçadas. Para buscar sua integração, o

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deficiente visual precisa de condiçõesmínimas para tal. E sua concessão nãoconstitui beneplácito dos dirigentes,mas sim uma obrigatoriedade. Além das ações governamentais, oscegos enfrentam outras três grandesbarreiras. Não que essas sejam asúnicas, mas são fortes e passaremos arelatá-las a seguir. A: Primeiramente, a grande lutacontra si próprio. Ele precisa seconvencer de que não é o único cego, deque pode e deve buscar sua inserção nomeio social. Para conseguir atravessaressa barreira, é preciso contar comajuda de pessoas que estão à sua volta.Quando isso ocorre, pode se tornar bemmais fácil, sem contudo dizer que issobasta, pois ele deverá ter auto-estimae auto-valorização. A mudança éinterna. O cego deverá implantar no seueu, uma estrutura que permita vencer osobstáculos do cotidiano. Quando issoocorre de maneira salutar, passa a tercondições de enfrentar as outrasbarreiras. Pois, assim, ele estarácolaborando consigo mesmo paradesempoeirar seus própriospreconceitos. B: A barreira da família. Essatambém é muito difícil. Em alguns laresmais, em outros menos. Nós colocamosaqui dois aspectos. O primeiro, é a nãoaceitação dos familiares de que alientre os seus membros existe um que écego. Aqui existem duas situações. Umadelas é a família carente na áreaeconômica. Pois se o cego não produz,mas apenas consome, há nesses casoscertos membros da família que não seacanham em afirmar que ele produz e ooutro, que não enxerga, só fica ali

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parado esperando a comida, a roupa,etc. Já presenciei casos em que todosos membros da família andavam bemvestidos, exceto aquele que é cego. Nasegunda situação, existem aqueles quesão mais abastados financeiramente, masque também discriminam o cego. Há oreceio de que a sociedade saiba do fatode existir ali um cego, e afirmem poraí que a família de fulano falhou e nãoconseguiu fazer todos os filhosperfeitos. Este fato relatado não faz parte desuposições. Nós mesmos presenciamostais acontecimentos. Falamos, algumas linhas acima, danão aceitação. Agora mister se fazfalarmos sobre a super-estima. Nestecaso, a família pode ser fatorcomplicador para a inserção do cego nasociedade, pois não permite que elefaça nada, ou quase nada. Querem fazertudo por ele. Entre os mais clássicosexemplos, poderíamos citar o colocar acomida, ligar a televisão, ligar orádio, mudar de canal ou de emissora,vestir suas roupas, calçados, levá-lode dentro para fora de casa evice-versa, etc. Isso, todavia, épéssimo. Seria necessário permitir queo mesmo, através do ensaio e erro,consiga realizar suas tarefas e apartir daí, descobrir que é capaz. Euouvi, certa ocasião, uma mãe dizendoassim: "Minha filha é cega. Eu cuido dela,coitadinha." Eu perguntaria: e se acaso essa mãee o pai, que também corroborava com opensamento dela, viessem a falecerantes dessa moça? Moraria ela defavores na casa de familiares ou de

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terceiros? E em que condições issoaconteceria? Quando seria possível sairportando uma bengala? E realizar umatarefa sozinha? Isso tudo não seria possível se nãotivesse a sorte de entrar para um laronde houvesse um espírito decompreensão dos verdadeiros valores doscegos. C: Depois de ter vencido a barreirade si próprio e da família, vem a dasociedade. Contra este tipo dediscriminação, nós temos dito, a luta éconstante. Com ela vamos contribuir,enormemente, para a minimização dopreconceito e não temos a falsa idéiade dissipá-la em uma, ou algumasgerações. Aqui, o cego recente inicia seutrabalho com vergonha de portar umabengala. Depois enfrenta as barreirados buracos, que já deveriam ter sidotapados; dos informantes que nem sempreexistem; do balconista que pensa sermostodos pedintes de esmola; dasrepartições públicas que contam compessoas despreparadas no trato comcegos; dos motoristas, ciclistas emotoqueiros, que não respeitam umcidadão portando bengala, etc. Temos a consciência de que amaioria das pessoas não trata o cego deforma correta por desconhecimento.Conheço cegos que freqüentam bares,casas dançantes, clubes, mas sempre sãovistos como os diferentes. Isso,contudo, não nos afeta, já que sabemosque durante todo tempo que aquiestivermos, estaremos sendo vistosdessa forma. Um pequeno debate foi organizado emum congresso que participei, na cidade

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de Florianópolis, sobre a questão dasocialização do cego. E numa pequenapesquisa entre nós próprios, depois demuitas perguntas, chegou-se a um dadointeressante: o de que, para a maioriados cegos, integração é freqüentar umbar e beber. Aí foi perguntado: "Tudo bem, mas por que entãodeve-se beber?" Se um cego está bebendo junto comoutras pessoas que enxergam, ele étratado como um igual, brincam, fazemfesta e dizem que ele é muito camarada.Não é como outros cegos que são tapadose ficam parados sem desfrutar dadelícia da vida.

PALESTRA DO PCB. Numa ocasião, eu estava assistindouma palestra do Partido ComunistaBrasileiro, realizado no auditório daBiblioteca Central de Maringá. Notérmino da mesma, com o auditórioextremamente lotado, estava, devagar,dirigindo-me à saída, apertado por um epor outro. Em condições precárias delocomoção, pacienciosamente desciadegrau a degrau, suportando aqueleimenso calor. Foi assim que uma das mãos de umdos presentes passou algo para mim, queimediatamente guardei no bolso paraque, lá fora, quando dissipasse umpouco o público, eu pudesse pedir aograndioso amigo Dejair, meuacompanhante, que lesse aquele papel.Supostamente, parecia para mim ser umaviso. Talvez um panfleto anunciando apróxima palestra, ou assunto similar. Quando alcançamos a parte externa doprédio, entreguei ao meu amigo e pedi agentileza de que o mesmo lesse aquele

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comunicado. Meu pobre tato não haviapercebido que aquilo era uma cédula dedinheiro, uma modesta esmola concedidaa um coitado de um ceguinho que, comaquele montante, talvez pudesse comprarum pãozinho francês.---------------------------------------

CAPÍTULO IX

SITUAÇÕES CURIOSAS

Aproximei-me do balcão do hotelpara verificar se havia vaga para mehospedar. O atendente me diz: "Olha, infelizmente só tenho vagano segundo andar. Como vamos fazer paraque você suba as escadas?" Quando se adquire uma certamobilidade, não há problema paralocomovermo-nos em escadas. Ainviabilização, neste caso, éinteiramente depositada sobre os ombrosdos deficientes físicos. Não pretendemos condenar ninguémpelo fato de pensar que o cego, sejaele quem for, tem incapacidade de subirou descer escadas. Mesmo diante dapalavra do recepcionista, aceitei avaga existente e, depois do segundo diade hospedado, os funcionários, que nocomeço estavam boquiabertos, jámostravam a mudança do conceito quetinham sobre o cego em relação àescada. Estava parado numa esquinaesperando uma carona, já previamentecontatada por telefone, que deveriachegar em poucos minutos, quando surge,de forma repentina, um cidadão a pé queme apanha, à força, pelo braço e mepuxando, vai dizendo assim:

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"Agora pode atravessar. Já não vemvindo nenhum carro." Quando chegamos do outro lado darua, ele fala novamente: "Aqui estábom?" Eu respondo: "Estaria, se eu quisesseatravessar. Mas como não quero, oSenhor se incomodaria de me ajudar avoltar para onde eu me encontrava?"

Vou a um telefone público e sótenho uma ficha para usar. Alguém querme ajudar e pede para discar para mim.Disca errado, faz eu perder minhaúltima ficha, pede desculpas e seretira me deixando na mão. O mínimo queele poderia fazer era me perguntarantes se eu sabia ou não discar. E opior é que, um problema que não tinha,passei a ter e ele não se preocupou emme ajudar na resolução do mesmo.

Vale a pena, nas curiosas,salientar o aspecto religioso, onde opré ou fanatismo faz acontecer algumassituações hilariantes. Fui testemunhade algumas delas como, por exemplo,aquela em que, numa loja de esportes emMaringá, um determinado cidadãoaproximou-se de uma pessoa portadora decegueira e perguntou se ela queria sercurada. Quando ela respondeu que não,sua reação foi a de alguém que nãoentendia, de forma alguma, como podiaum cego dizer que não se interessava emvoltar a enxergar. Ele repetiu a mesmapergunta por três ou quatro vezes e apessoa respondeu que não. Por fim, elesaiu de perto, depois que a pessoapediu licença, pois estava ocupada. Por vezes, nós encontramos cegos

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que preferem dizer que não queremvoltar a enxergar. Ocorre que há algunsinoportunos que colocam suas opiniõesreligiosas de forma que possam vir aagredir, pois faltam palavras certas,nos momentos certos e entonaçãocorreta, quando se faz necessário.

Diálogo entre um cidadão cego e umoutro que enxerga. O primeirodenominaremos cidadão A, e o segundo,cidadão B. B: Desculpe, você conhece a IgrejaEvangélica.... A: Não. Final de diálogo, que também tive aoportunidade de presenciar. Uma ocasião eu estava andando pelocentro de Maringá. Tinha algunsafazeres particulares, entre eles, ir auma agência bancária, a uma farmácia eoutros, quando, de repente, começouchover. Eu estava na Av. GetúlioVargas. Parei debaixo de uma dasmarquises para me proteger e um senhorde meia idade, que ali também parou como mesmo motivo, começou a conversar efazer perguntas sobre a minha cegueira.Quando a chuva diminuiu de intensidade,resolvi sair para continuar arealização dos meus compromissos. Estesenhor saiu junto me segurando pelobraço. Sem que eu pedisse, ele falouque iria me acompanhar para ajudar-me.Mesmo dizendo que não haverianecessidade, ele não mudou de idéia. Para não ser chamado de ignorante epensando naqueles cegos que,porventura, tenham um pouco mais dedificuldades do que eu e que poderiamprecisar de tal tipo de ajuda, resolvipermitir que o cidadão me acompanhasse. Pensei que ele seria apenas um

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acompanhante nas minhas andanças. Ledoengano. Além de insistir em meacompanhar por todos os lugares, davaas mais diversas opiniões nas tarefasmais individuais e íntimas. Depois depedir ao mesmo que ficasse tranqüilopara cumprir seus compromissos sem, noentanto, conseguir qualquer sucesso,resolvi ser mais claro. Pedi-lhe que medeixasse pois, segurando em meu braço,em vez de ajudar, acabava meatrapalhando. Foi assim que conseguimosnos entender e, quem sabe até hoje, omesmo se auto-elogie ao extremo por tersido tão caridoso, ou então me abominecom veemência, pois não permiti que eleandasse comigo por toda aquela tarde. Um dia, participando de umcoquetel, estávamos conversando eu, aamiga Cláudia e a não menos amigaLília. Esta primeira se ausentou por unsmomentos e eu e a amiga Líliacombinamos uma brincadeira. Ela meinformou, com detalhes, o modelo e acor da roupa e das sandálias daCláudia. Quando esta voltou, comentei: "Cláudia, apesar de ser cego, estoudesenvolvendo uma particularidade. Euconsigo, ao concentrar-me, saberdetalhes das pessoas como a cor daroupa, dos calçados, etc." Não precisei falar mais nada paraque ela pedisse que eu fizesse aexperiência consigo. Segurei na suamão, simulei uma concentração, pedipara que a mesma também seconcentrasse, e então falei todos osdetalhes de cores e modelos de roupas esandálias, que já me haviam sidorelatados. O espanto e a maravilha que

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emanavam por todos os poros da amigaforam contagiando até a mim próprio,que por um tempo, pensei, fosse tudoverdade. Isso ficou por quase todafesta em segredo, permitindo que elarelatasse o fato a vários dospresentes, até que, por fim, Líliafalou sobre a brincadeira. Isso, contudo, só foi possível serfeito com a Cláudia por conhecermos seuespírito brincalhão. Sabíamos que nãohavia a mínima possibilidade dela ficarmagoada com tal fato. Ainda hoje, quando a encontro,temos lembranças amistosas desteacontecimento. O fato ocorreu numa das viagens quea delegação da Associação deDeficientes Visuais de Maringá, aAdevimar, realizou para a cidade deUberlândia. Em uma das paradas para umlanche e o tradicional pipi, na cidadede Presidente Prudente, entramos nobanheiro em, mais ou menos, dez cegos.Uma vez lá dentro, depois de passarmosa roleta, o senhor que cuidava dali nosdisse que poucos dias antes haviapassado por ali um cego e que o mesmotinha um relógio que falava as horas. Lavando as mãos e usando o vasosanitário, começamos a falar que aquilonão deveria ser verdade. Não erapossível. Onde já se viu um relógiofalar? E o senhor insistia, sem darfôlego a si próprio. "Mas é verdade, eu vi. O relógiofalava as horas." Sem perder o bom humor, dizíamosque aquilo era impossível. Um papagaiofalar, um rádio, tudo bem. Mas umrelógio! Pedíamos desculpas ao senhor einsistíamos que não podia ser possível.

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Quando deixávamos o banheiro, todosacionamos nossos respectivos relógios,pois todos tínhamos um que falava ashoras. De bom humor, o cuidador daroleta sorriu e até elogiou o espíritobrincalhão de todos. Um amigo, cidadão curitibano, faziauma viagem de avião. Ao desembarcar,tirou de sua pasta 007 uma bengaladobrável. Segurando a mesma pela luva,que fica na extremidade superior,soltou os outros gomos para que osmesmos, tracionados pela força doelástico que fica no interior de cadacanículo, se justa pusessem, ficandoencaixados de forma que pudesse serusado como bengala. Ocorre que isto provoca um barulhoque, para os menos avisados, podeparecer o som de uma arma de fogo sendoacionada. Foi o que aconteceu com osseguranças do vôo. Estes se viraram emseguida ao ato e, imediatamente, secolocaram na posição de defesa dosdemais passageiros. Poucos segundosforam suficientes para perceber que setratava de uma simples bengala de cego. Um amigo estava atravessando a Av.XV de Novembro, em Maringá. Quando jáse encontrava no meio de uma daspistas, alguém gritou: "Cuidado! O caminhão." Ele, que fazia a travessia andando,começou imediatamente a correr.Resultado, deu de cara com a carroceriado dito caminhão, que estavaestacionado do outro lado.

CEGO NÃO É HOMEM: Quando estão andandojuntos dois homens, um deles enxerga, eo outro não. Quem vê os dois caminhando

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afirma: "Lá vem um homem e um cego." Por isso costumamos dizer que cegonão é homem. Certo dia, na Estação da Luz, emSão Paulo, encontrei um senhor, tambémcego, desses que apresentam todo oglobo ocular em perfeitas condições,anatomicamente falando, no seuexterior. Falava-me que, uma vez, umtécnico em eletrônica trouxe umatelevisão, que havia levado paraconcertar. Depois de instalá-la nasala, o referido técnico se preparavapara ir embora quando foi surpreendidopelo cego, que virando-se, afirmou: "Mas o defeito ainda não foiresolvido. A tela continua negra, semnenhuma imagem". Surpreso, pensando que ele falavada qualidade da imagem, o técnico mexeunos botões, afirmando que poderiamelhorar a imagem. O cego insistiu que estava tudonegro. Percebendo não haver nenhumadesconfiança por parte do profissional,este repetiu a brincadeira por quatrovezes. Entretanto, antes de haverqualquer irritação, este resolveudizer-lhe a verdade a respeito de suacegueira. O homem levou tudo no campo do bomhumor e tudo acabou em boas gargalhadaspor parte de ambos. A escrita e a leitura braile,apesar de ser considerada obsoleta poralguns, ainda é muito utilizada. Ointeressante é o nome que muitos dãopara este método. Perguntas como essassão comuns: "Você sabe ler em braule?" "Você lê em hebraico?"

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Só falta perguntar se o cego lêbráulio. Perto da Universidade, em Maringá,aproximei-me de um ponto de ônibus paraapanhar a antiga linha 104. Esperavaque a mesma viesse, quando ouvi duasmoças conversando em tom de voz baixo,para que eu não ouvisse. Mas como elasse esqueceram que o ouvido do cego émelhor do que daqueles que enxergam,consegui captar o teor da conversa.Dizia a primeira: "Ele é cego! Que coisa terrível." A segunda continuou o diálogo: "Se eu ficasse cega, preferiria mesuicidar." Por algum tempo, a conversa ficouem torno da cegueira e o extremo desejode que a mesma ficasse absolutamentelonge das duas. Preferi não emitir qualquercomentário, limitando-me ficar no campodas análises dos seres humanos. Ainda por ouvir muito, outra vezestava caminhando pela Rua Caracas,onde morei por muitos anos. Eramaproximadamente 7h de um dia muitolindo. Duas senhoras, uns trinta metrosà minha frente, conversavam em vozalta, enquanto ambas varriam suasrespectivas calçadas. Quando passei porelas, a conversa tornou-se sussurrante.O assunto, que antes era novela, passoua ser sobre minha pessoa e a coitadavida de um cego. Quando num prato tem um bife, ououtra carne para se comer com garfo efaca, a grande maioria dos cegos pedeajuda, solicitando que alguém a corte.Mas existem aqueles que preferem nãopedir esse auxílio. Foi assim que,certa vez, um cego jantava

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tranqüilamente em companhia de algumaspessoas. Para beber havia chopp. Tallíquido, depois de ser colocado numataça, normalmente também é posto sobreum pequeno círculo de papelão cortado,talvez com a função de absorver apequena umidade do líquido gelado. Ao levar o copo a boca, essepapelão, semi-grudado ao fundo domesmo, acompanhou temporariamente omovimento, caindo no prato. A seguir ocego foi flagrado tentando cortar opapelão, com garfo e faca, pensando queera o bife. Chegando, pela madrugada, narodoviária de Maringá, depois de umaviagem cansativa, juntando-se a issoalgumas bagagens pesadas, resolvi ir aoponto de táxi existente na Rua Joubertde Carvalho. Diante da minhadificuldade com a bengala e aquelasbolsas, fui auxiliado por uma senhora,dama da noite, que, depois, tornou-sealvo de eméritos comentários,principalmente por parte do motoristado taxi, que em tom de zombaria, citavao caso de um cego estar andando, emplena madrugada, com uma prostituta. Ao dirigir-me ao Paço Municipal,para ir à Secretaria de Cultura, queficava no segundo andar, fuisurpreendido com um acúmulo muitogrande de pessoas no térreo, o que mecausou dificuldades para encontrar arampa ou a escada de acesso aos andaressuperiores. Estava diante destadificuldade quando uma senhorita seaproximou e, de forma simpática,ofereceu-se para ajudar-me, ao que depronto aceitei. Foi neste momento que ajovem apanhou uma das minhas mãos esegurando-a como se fossemos namorados,

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ajudou-me a chegar ao local pretendido.Confesso meu constrangimento diante dasituação e, também, minha ignorânciadiante de um coração sem malícia, comose mostrou o dessa senhorita. Chegando na Secretaria de Cultura,os sorrisos de chacotas não puderam serevitados. Até explicar que focinho deporco não é tomada, a moça, que vimdescobrir depois, era a rainha docarnaval daquele ano, passou-se porminha namorada, ou qualquer outra coisaque a mente humana possa imaginar. Por acaso você já viu, ou ouviufalar, de algum cego que tenha sidoassaltado? Pois neste caso, a situaçãopode ser um pouco diferente. Um amigo, que morava na capitalpaulista, gostava de andar semprevestido com calças, camisetas ecalçados de marcas famosas. Um bom chamariz para certosdelinquentes. De nada adiantou o pedidodo meu amigo para pouparem-lhe osobjetos. A seguinte frase foi dita porum dos assaltantes: "Fica quieto ceguinho, senão te douum tiro no pé." O jeito foi ficar sem os pertencese sair assobiando como se nada tivesseacontecido. O duro, é um cego andar só com abengala e de calção, sem absolutamentemais nada a cobrir-lhe o corpo, etentar mostrar para os observadores queaquilo era uma situação normal. Dois cegos que moravam num bairrodistante, também na cidade de SãoPaulo, estavam num ônibus. Um deleshavia recebido, naquele dia, seu míseropagamento quando, de repente, o ônibusé alvo das ações dos senhores amigos do

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alheio, cujo grupo tinha seu líder.Este, vendo que um dos seus comandadosiria também levar o dinheiro dosceguinhos, disse ao mesmo: "Não. Eles não. Este é o professorceguinho." Resultado. Os cegos foram poupados,enquanto todos os demais passageirostiveram seu dinheiro levado. Será que às vezes vale a pena sercego? Por falar em dinheiro, um dia meaproximei de um carrinho de cachorrão epedi ao dono que me preparasse umdeterminado lanche. Depois de comê-lo,paguei com uma nota onde deveriareceber um troco. Posteriormente, emminha residência, vim descobrir que aquantia recebida era menor do queaquela que deveria estar em minha mão.Contudo, gostaria de salientar que essafoi a única vez, em toda minha vida decego, que recebi dinheiro a menos detroco. Fato que não posso afirmar tersido voluntário. Voltei no dia seguintepara conversar com o senhorcachorreiro, sem contudo conseguirencontrá-lo. Mesmo depois de algumastentativas, não logrei êxito na minhaescalada para revê-lo. Quando uma alma caridosa resolvedar uma carona de automóvel para umcego, sem, no entanto, conhecer umpouquinho sobre como proceder com este,ocorrem alguns fatos engraçadíssimos.Entre eles, podemos citar aquelescidadãos que abrem a porta do carona,puxam o cego pelo braço, com uma certaforça anormal, empurram-no pelascostas, forçando sua cabeça para baixoe para dentro e ao mesmo tempo,segurando-o pelos ombros para impedirque o mesmo se choque contra o

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automóvel. Dessa forma, depois que o cegoconsegue se acomodar, é inevitávelficar com algumas pequenas dores emcertas partes do corpo. Obs. Para agir de forma corretaneste caso, recomenda-se apanhar a mãodo cego e colocá-la na maçaneta doautomóvel. Caso semelhante ocorre, por vezes,quando algumas pessoa vão nos auxiliar,servindo de guia para deixarmos umacerta repartição. Em vez de oferecerseu braço para que o cego segure-o, oque seria o mais correto, o cidadão fazo contrário ou seja, ele é quem segurano braço do cego. Aperta, puxando paraesquerda, para trás, empurrando paradireita e para frente, isso quando obraço segurado é o esquerdo. Ao chegarnuma escada, ele segura o cego, mesmoquando este está querendo mudar o passopara começar a pisar o primeiro degrau,mas não consegue fazê-lo, ficando comum pé no ar enquanto luta contra seuparceiro, que insiste em segurá-lo, commedo que o mesmo despenque escadaabaixo. Só depois de muita força é que seconsegue o objetivo. Isto porque, emalguns casos, não conseguimos, mesmocom esforço, explicar para osauxiliares a forma correta de sermosajudados, pois não lhe parece segura. Uma vez apanhei uma carona com ovice-prefeito da época em Maringá. Omesmo me levou até o bairroMorangueirinha, onde moram meus pais.Expliquei-lhe detalhadamente o caminho,citando, inclusive, os nomes das ruasque passávamos, ou cruzávamos. Quando omesmo me deixou no local para onde me

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dirigia, falou o seguinte: "Se eu disser que fui guiado por umcego, ninguém acredita." CAPÍTULO X

NAMORO DE CEGO

O amor é cego. Este é um dos ditospopulares mais conhecidos. Sabemos, noentanto, que esta frase nada tem a vercom a cegueira que tratamos nestelivro. Vamos aqui falar um pouco arespeito do namoro de quem não enxerga. É inato no ser humano a aproximaçãocom o sexo oposto. O tradicionalfriozinho na barriga não constituiprivilégio apenas daqueles que vêemalguém que toca profundamente, mastambém daqueles que ouvem a voz. Dizem que é muito fácil um cego,por carência afetiva, aproximar-se deoutro ser humano e logo dizer que estáapaixonado. Isto, todavia, no nossoconceito, não constitui a verdade.Encontramos, com muita facilidade,pessoas que têm esse lado bemtrabalhado, com conceitos devalorização de si próprio, e que, porisso, valorizam também o possível amorque estaria se apresentando. Como fazer para mostrar ao cego quevocê está interessada nele? Essaindagação nos é feita de vez em quando.Não se pode simplesmente falar o que sepensa ou o que se sente. Quando os doisenxergam, se torna mais fácil perceberpelos olhares. Naturalmente que se umdos dois enxerga, então se faznecessário o entendimento de quemenxerga, para assumir os padrões destetipo de relacionamento e suasdiferenças. O que, às vezes, se torna

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até mais atraente. Aprimoram-se ossentimentos, passando a ser, em algunscasos, gratificante. Queremos afirmar, entretanto, quenão constitui regra dizer que quando umdos dois enxerga, a iniciativa,obrigatoriamente, deva ser desteúltimo. Em raros casos acontece ocontrário. Em casos onde ambos são cegos, apaquera se apresenta de forma maisverbal. Se o interesse surge, ele podeou não ser relatado de maneira mais oumenos direta, variando o grau detimidez das pessoas, ou de tática deconquista. Mas, além da atração pela vozaveludada, do cheiro animal expelidopelo outro, do sorriso por eleapresentado, temos também o contatofísico, que no caso dos cegos, se tornasumamente importante. Não nos referimosàquele contato enquanto prática sexual.Falamos somente do carinho, em sentiros cabelos, o rosto, os braços e ocorpo, mesmo que ainda não estejaefetivado o namoro. Percebemos que emalguns casos, há uma permissão mútuapara tais atos. Com isso, o cego adquire uma noçãoda pessoa que ele pretende para namoro,entre outros, se é gorda ou magra,cabelos curtos ou longos. A partir daí vem o namoro e osconhecimentos mais profundos,descobrindo-se, posteriormente, seaquela é, ou não, a pessoa escolhida ese os valores de vida adotado porambos, são suficientemente grandiososao ponto de assumirem uma vida emcomum. Detalhe: quando falamos acima arespeito dos contatos físicos, queremos

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citar também, a título de curiosidade,os pequenos esbarrões, que são julgadoscomo involuntários, mas que, naverdade, são premeditados pelo cego quedeseja tocar naquele alguém por eleescolhido. Cumpre-me relatar um fato curiosoacontecido na cidade de Curitiba. Dois casais, sendo os quatro cegos,moravam em casas separadas, cada um comseu respectivo marido e esposa. Tinhamo hábito de se visitaremconstantemente. Depois de enobrecedoraamizade, os dois maridos resolveramconversar, particularmente entre si,acertando uma troca de esposas. Fatomuito bem aceito entre eles e tambémpelas esposas. Com a efetivação datroca, a amizade entre os quatrocontinuou muito bonita, chegandoinclusive, ao ponto de confessarementre si que, mesmo antes do acertoconsumado, a troca já havia acontecido,por algumas ocasiões, sem que o outro,ou melhor, os outros ficassem sabendo.

Interessante se torna o caso decasais de namorados, onde ambos nãoenxergam e procuram um local escurinhopara namorar. Mas justamente porfazerem esta tentativa sem a ajuda deninguém é que acontece de observarmoscertos deles, pensando que estãoisoladamente no escuro, serem alvos defáceis olhares. Nestes casos, os que entendemrecomendam o máximo de prudência eindicam, ainda, aos que enxergam e quesão amigos do casal, quando istoacontecer, não tenham o menorconstrangimento em avisá-los. Tais manifestações são uma

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demonstração de carinho para com oscegos. Aliás, se torna oportuno dizer daexistência de algumas intimidades que,às vezes, foge do conhecimento de quemnão enxerga. Por isso, é de bom alvitrese, de forma discreta, em particular,avisasse ao cego. Entre outros exemplos, poderíamoscitar os casos de existir caspa navestimenta; uma pequena mancha,mostrando possivelmente menstruação; umcadarço desamarrado; um zíper aberto;uma pequena sujeira na roupa, quandovai sair de casa, ou ainda, roupaamarrotada; batom borrado; algumresquício de alimento no queixo; ou umdetalhe de roupa íntima aparecendo.---------------------------------------

CAPÍTULO XI

PERGUNTAS FEITAS AOS CEGOS

Por onde o cego anda, ele estásempre sujeito a ouvir perguntas que eudenomino de, no mínimo, curiosas. Entreelas, selecionei algumas que vamos aquimostrar. Todas sempre demonstram odesconhecimento do ser humano para coma pessoa cega.

1- Cesar, você nasceu assim?R- Não, eu nasci pequenininho e depoiscresci.

2- Como cego faz sexo sem enxergar?R- Quem enxerga apaga a luz para ficarno escuro.

3 - Como você faz para comer? Enfiar ogarfo na boca?

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R- Por acaso você usa um espelho paraenxergar a boca, porque eu uso.

4- Como você anda?R- Coloco um pé na frente do outro, comum certo espaço entre ambos ealternadamente, com um subseqüente aooutro, vou me deslocando.

5- Faz tempo que você...é...é...R- Que sou cego?

5a- Não fale assim. Esse nome é muitopesado.R- Sou cego desde quando tinhadezenove anos de idade.

6- Sua esposa é normal?R- Não, ela usa capacete com antena etem rodinhas nas patas.

7- Adivinha quem sou eu?R- Você é o Leonel Brizola. Nãoacredito. Você não me conhece pela voz?

8- Como o cego conhece a linha deônibus que quer apanhar no ponto?R- Pelo barulho do motor.

9- Tem certeza de que não enxerga? Vocêestá olhando para mim?R- Não tenho certeza, acho que enxergo.Não sei, porque não estou vendo nada.

10- Quantos dedos tem aqui?R- Cinco. Errou, só tem dois. Você nãome perguntou quantos tem levantado.

11- Como eu sou? Ou seja, descreva-me.R- Dois olhos, duas orelhas, um nariz,uma boca...

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12- De que cor é minha roupa? Nestaresposta qualquer chute vale, com odetalhe de que, às vezes, se acerta.

13- Como você conhece dinheiro?R- Não conheço. Conhece sim, você pegouo dinheiro certinho e me pagou.

14- Como você faz para pedir um produtonuma loja?R- Eu falo.

15- Quando dois cegos estão andando narua, um acompanhado do outro, por vezesouve-se a seguinte pergunta. Vocês sãoirmãos?R- Somos. Detalhe: as característicasfísicas são completamente diferentes,às vezes, um é negro e o outro branco.

16- Como você toma banho?R- Papapi e mamãe me lavam.

17- Como você faz para assistirtelevisão?R- Coloco meus óculos.

18- Como você faz para atravessar arua?R- Eu olho para lá. E quando nãovem nenhum carro, eu atravesso.

19- Sua bengala tem algum sensor?R- Quando tem algum obstáculo, ou umburaco na frente, acende no meio delauma luz vermelha que me avisa.

20- Você conhece suas filhas?R- Conheço. Mas como, se você nãoenxerga?

21- Como você anda de automóvel?

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R- Com um motorista dirigindo.---------------------------------------

CAPÍTULO XII

RECEITAS MILAGROSAS

Sempre existem algumas receitasmilagrosas que nos apresentam para quevoltemos a enxergar. Entre elas,selecionamos algumas.

1- Essa é do senhor Felício, quemora no interior de São Paulo. Tomartodo dia, pela manhã, um copo de águacom duas gotas de creolina, durantetrês meses. Essa receita já salvou doiscegos de vinte e cinco anos de idade eele próprio, que também estava porperder a visão. 2- Pingar em ambos os olhos, trêsgotas de limão rosa, por dia. Uma demanhã, outra à tarde e a última, antesde dormir. 3- Pingar uma gota de mel de abelhajataí em cada olho, todos os dias. 4- Colocar folhas de arruda numpano e depositar sobre os olhos todasas noites. Essa é infalível, não hácegueira que agüente. 5- Coloque sobre os olhos um pedaçode pano embebido em salamargo. Pinguegotas desse mesmo produto em ambos osolhos e ainda beba um pouco dele. 6- Coloque sobre os olhos a maçã dealgodão. É infalível, em dois mesesvocê estará enxergando. 7- Pegar casca de ovo de galinha etorrá-la. Com o pó, fazer umcigarrinho, de forma que fique umcanudinho, depois assoprar nos olhos docego.

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8- Pegar sangue de boi, aindaquente, ou seja, assim que o bovinomorrer, e colocar dentro de ambos osolhos. Obs: São receitas nada científicase não se recomenda.---------------------------------------

CAPÍTULO XIII

COMO SONHAR

Entre as grandes arguições sobre apessoa cega, estão os sonhos. Não énada raro encontrarmos indivíduos quenos questionam sobre esse assunto. Nós perguntamos a vários cegossobre esta questão e aqui vamos relataro que nos parece interessante. Primeiro, queremos dizer nossaspróprias experiências, que nãoconstitui regra, principalmente depoisque coletamos outros relatos. Muitas pessoas perguntam se nosmeus sonhos eu enxergo. A resposta,muitas vezes, espanta o interlocutor. Eu tenho perfeita visão nos meussonhos. Vejo os detalhes das pessoas,bem como suas fisionomias, cabeloscurtos ou longos, lisos ou crespos,sendo que os detalhes não param por aí.Tenho também minuciosidades de objetos,coisas e lugares. E ainda pormenoresquanto a sua extensão, tipos depaisagem, características de animais,tamanho dos mesmos, etc. Às vezes fico a perguntar se asimagens que faço das pessoas sãoaquelas que crio em minha mente. Porexemplo: uma pessoa que conheci aindaquando enxergava, nos meus sonhos elaaparece com aquela fisionomia de quando

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a via. Se hoje ela é mais gorda, eusonho com seu corpo anterior, ou seja,mais magra. Por outro lado, uma pessoaque conheci somente depois de cego, nosmeus sonhos eu a vejo com detalhes,principalmente se tenho amizade maisíntima ao ponto de saber de suascaracterísticas físicas. Percebemos que na maioria dasvezes, a aparição no sonho é umtanto diferente da real. Sem, todavia,sê-lo na sua totalidade. Sempre há umpercentual considerável de acerto. Cumpre-me ainda relatar algunssonhos que tenho, onde existe umacerta dificuldade para enxergar. Ondetento, com esforço, ver alguns detalhesque a dificuldade visual me impede.Tais tipos de sonhos são raros. Talvezpudesse dizer que ocorre um ou dois porano e nada mais. Mas nunca sonhei comosendo cego total, precisando de bengalapara me locomover ou enfrentandoqualquer outra dificuldade que a vidareal me impõe.

SONHAR COLORIDO

Não constituem sonhos raros tambémaqueles onde tudo aparece colorido,tendo, inclusive, a facilidade desonhar com cores secundárias. Só não melembro se algum dia, depois que fiqueicego, sonhei também com alguma corterciária. Esse tipo de sonho também mereceude minha parte uma análise maisprofunda, uma vez que queria saber seos coloridos eram, ou não, aquelascriações que faço no meu dia a dia,onde reforço, quase que constantemente,a existência delas na minha vida.

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Todavia, entendo que isso não é regra,uma vez que as cores aparecem demaneira diferente do real para o sonho. Meu amigo Pedro Abel da Silvanasceu cego. Conversando com ele arespeito de seus sonhos, obtive ainformação de que os acontecimentos quelhe surgem nos sonhos, são relatadosapenas com vozes e que, em sualembrança, jamais teria sonhadoenxergando alguma coisa. Se issoaconteceu, faz parte do esquecimento. Aliás, esse tipo de informação foisimilar àquela que vários cegoscongênitos deram no relato para o nossotrabalho.

LEMBRANÇA DAS CORES

Dr. Hermes, amigo de longa data,relatou que em sua mente não restammuitas cores, apesar de terem existidono passado. Atualmente, só se recordade algumas cores primárias. Dizem algumas leituras que se umapessoa enxerga alguns anos, antes deficar cego, vai perdendo, com o tempo,a lembrança das cores. Isso acontecedepois de dez anos, para as coressecundárias e quinze, para algumasprimárias. No entanto, contestando estasafirmações, gostaria de relatar que meencontro com dezoito anos de cego e atéagora preservo em minha lembrança todasas cores primárias, todas assecundárias e muitas cores terciárias. Este assunto faz-me lembrar,inclusive, de um detalhe de uma corcujo nome nunca havia sido relatado amim enquanto enxergava. Não sei dizerse a mesma, na época, era pouquíssimo

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divulgada, ou se a minha ignorânciadeixou que assim parecesse. Entretanto, a título de análise,preocupei-me em me prender à cor ocre,que serve de exemplo para dizer que eununca vi esta cor no tempo queenxergava. Todavia, hoje tenho a mesmagravada em minha memória. É conveniente salientar ainda quequando afirmamos existir esta ou outracor em nossa memória, estamos afirmandoque as mesmas não existem somenteenquanto suas nomenclaturas, mas simsuas pigmentações coloríferas.

Dizem que todos nós temos nossa corou cores de preferência, variandoconforme o local onde as mesmas seencontram: numa roupa, num automóvel ounum calçado. Eu, por ter enxergado, tenho umaimensa preferência pelo azul. Contudo,em automóvel prefiro a cor vinho e nossapatos, o tradicional preto. Todavia, a grande maioria dos cegoscongênitos também tem suaspreferências, mesmo não tendo enxergadoas cores. O desejo maior por esta ouaquela cor, em boa parte das vezes, éporque recebeu um elogio de uma pessoamuito significativa na sua vida, ou dealgumas pessoas, onde as mesmasafirmaram que determinada cor ficavamuito bem para ele. Se este for argüido sobre qualseria a cor de sua preferência, aresposta natural será aquela do elogio.---------------------------------------

CAPÍTULO XIV

USO DA BENGALA

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As pessoas que perdem a visãodepois de uma certa idade, tendem a teruma série de dificuldades paraadaptação ao meio social. Uma delasestá no uso da bengala, este bastão tãonecessário para a locomoção dos cegos,uma vez que ele pretenda locomover-sesozinho. A vergonha toma conta e se tornauma barreira que, no início, dá aimpressão de ser intransponível. A bengala marca aquele cidadão comosendo cego. Isso incomoda, pois é umaconfissão da existência da deficiência.Para alguém que gostaria de não sê-lo,é difícil se apresentar com esta novaroupagem. A primeira vez que portei umabengala, saí de casa andando pelobairro onde morava e parecia que todosme olhavam, me apontavam com o dedo.Todo meu corpo parecia receber aquelaenergia vindo das pessoas que me viampassar pelas ruas. Eu tinha a nítidaimpressão de que todos diziam: "Aquele é o Cesar." "Não me diga! Ele ficou cego?" As pessoas estavam acostumadas a mever andando sem bengala e, naquelasituação distinta, tudo era pesado.Passei por aquelas ruas, atingi outrobairro e outro, até chegar ao centro dacidade, onde eu ia aprender a leitura eescrita braile, na BibliotecaMunicipal. No terceiro andar funcionavao Centro Municipal de Atendimento aoDeficiente. O pior, entretanto, é não ter tidosequer noção do sério risco que corride ser atropelado, e portanto, atérisco de vida. Existe uma técnica

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especial para a utilização da bengalaque eu, na época, desconhecia. Conheço vários cegos que não andamcom bengala. Preferem ser dependentesde alguém, mas não se mostram para nãocorrer o risco de serem motivos dechacotas. Conheço ainda casos depessoas que usam bengala no centro dacidade, ou em outros bairros, mas nobairro em que moram, dobram suabengala, guardam-na escondida, buscandoocultar dos vizinhos e amigos que sãocegos, dependentes de uma bengala. Temos também o lado humorístico dabengala. Algumas vezes, a coitadinha écolocada por aqueles que têm espíritobrincalhão, como se fosse um órgãosexual. Um saudoso amigo, locutor de rádio,que trabalhava em uma das emissoras deMaringá, gostava muito de fazerbrincadeiras. Uma vez, quando eu e umoutro amigo, que também utilizabengala, íamos chegando perto do gruporeunido, ao nos ver ele falou entresorrisos, acompanhado pelos que estavampresentes na sala: "Legal! O ceguinho coloca o pau nafrente, segura nele e vai abrindocaminho." Também existe o inconveniente deandarmos em locais com muita gente e,por vezes, a bengala bater entre aspernas de alguma moça. Os amigos, semperder tempo, falam em voz baixa, paraque apenas o cego e os demais da rodaouçam: "Êh ceguinho safado. Enfiando abengala no meio das pernas damulherada, hem!" Em outra ocasião, eu estava andandocom minha bengala na Av. Brasil, em

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Maringá, quando esta quebrou. Eu meencontrava, mais propriamente dito, naPraça Napoleão Moreira da Silva.Naquela época, os ônibus que melevariam até a Morangueirinha, ondemorava, faziam parada na Praça RaposoTavares, pela Rua Joubert de Carvalho,para onde tive que me deslocar sem ouso da minha companheira. Por estepequeno trecho, tive sériasdificuldades para caminhar, pois fuiobrigado a fazê-lo sozinho e, por trêsvezes, ouvi a seguinte frase: "Parece que é cego." A facilidade em esbarrar era muitogrande e, até as pessoas entenderem queaquele cidadão não enxergava, setornava mais fácil irritar-se. Chegueiao meu destino quase intacto. Eu digoquase porque o abalo emocional foimuito forte, só mesmo amenizado peloespírito aventureiro de que todocidadão é portador. A imensa maioria dos cegos tem emsua residência um local, predeterminadopor ele próprio, onde fica sua bengala.Se alguém a muda de lugar, é osuficiente para deixar o prezadoceguinho em maus lençóis. É como dizemnas brincadeiras: ele fica sem seusolhos para poder sair de casa.

RIDÍCULOS

Em minhas pesquisas, notei ser atécerto ponto comum algumas atitudes decegos que, no início de sua vida nanova condição e, em outros casos, mesmodepois de alguns anos, têm um grandepreconceito em usar a bengala. Por issomesmo, acabam praticando certosridículos, assim hoje chamados pelos

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próprios donos das ações. Entre elesdestacamos o já citado caso dos cegosque não utilizam a bengala quando estãono bairro em que moram, ou perto desuas residências. Estes, para sedirecionar, usam as lâmpadas dospostes, pois o pequeno resíduo visualpermite que vejam apenas a claridadedelas. Assim procedendo, vão andandopelo meio da rua para não trombar nasárvores das calçadas, ou em automóveisestacionados perto do meio fio.Todavia, andando com a cabeça ereta, setorna impossível enxergar a claridadeda lâmpada. É necessário andar muitotempo de "cabeça erguida para o céu",de forma que possa ver a claridade, ecom isso, ir contando as lâmpadas atéque dê o número correspondente ao desua casa. Com a adoção dessaestratégia, se torna comum transeuntesfalarem ao cego: "Você está andando no meio da rua." Mas para o cego, o fato das pessoasdescobrirem que ele não enxerga é maisterrível do que passar por algumridículo. Essa noção fica quaseinexistente. Temos também o caso daquela meninaque já estava cega e ainda insistia emandar de bicicleta. Sua mãe deveria,obrigatoriamente, deixar a lâmpada dafrente de sua residência acesa, paraque a mesma pudesse chegar e saber,entre tantas, qual era a sua casa.Quando um ou outro vizinho tambémresolvia deixar a lâmpada de suaresidência acesa, a coitada da ceguinhase via em papos de aranha, flagrando-setentando abrir o portão do vizinho,pensando ser aquela, sua casa. Naturalmente que os vizinhos sabiam

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de sua condição, mas pensavam serapenas um certo comprometimento visual. Situação terrível para o cego édescobrir que as pessoas estão olhandoe percebendo que ele não enxerga. Temos ainda aquele caso, que é maiscomum, do cego que anda arrastando ospés. A maioria o faz para não sersurpreendida por um buraco ou umaescada com degraus para descer. Emalguns casos, o recurso é usado tambémpara ouvir os sons ecoando nas paredese possibilitar que se desviem delas. Háainda, para esses casos, o estalar dededos, que proporciona o mesmo retornode eco. Observamos ainda pessoas que andamcom as mãos à frente do corpo batendopalmas. Este ato permite que suas mãoscheguem primeiro a um possívelobstáculo que esteja a sua frente,livrando-o de passar pelo ridículo dedar uma cabeçada. O detalhe é que seele apenas andasse com as mãos à frentedo corpo, sem bater palmas, daria nacara, todos saberiam que ele é cego.Batendo palmas, ele pensa que enganaráa todos que o estão observando. Eleparecerá com isso um "ótimo" no que sediz respeito a locomoção sem bengala. CAPÍTULO XV

CEGO POR CONVENIÊNCIA

Não se pode afirmar que seja muitodifícil encontrar pessoas cegas que seimportem, claramente, de serem cegas,quando a situação lhes convier. Ou naoutra hipótese, que se colocam naposição de, convenientemente, mostrarque é pessoa perfeitamente capaz derealizar qualquer função, como se fosse

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uma pessoa que enxergasse. Não temos a menor intenção de fazera apologia de uma pessoa que é cega eque, ao mesmo tempo, é desprovida dequalquer sentimento de maldade, oumostrar que todos os atos são de pessoaextremamente bondosa, que nunca erra eque seus sentimentos sempre são dealguém que vive sob um estado de sextosentido. Tais fatos são inerentes aosseres humanos, não constitui privilégiodos cegos. Basta ter conscientização deque isso é possível e buscar suarealização.---------------------------------------

CAPÍTULO XVI

QUESTÕES PESSOAIS

Existem vários cegos que moramsozinhos, ou então, mesmo morando comparentes, têm sua vida pessoal dentroou fora de casa. E ainda outros que sãocasados, com ambos, marido e esposa,sendo cegos. Vamos aqui falar dealgumas situações que acontecem e quesão frutos de curiosidades de pessoasque enxergam. Entretanto, nãopretendemos fazer qualquer comentárioalusivo a intimidades. Qualqueridentificação será mera coincidência decegos, tendo os mesmos seus direitospreservados de não tornarem públicosuas atividades de fórum íntimo. Não queremos dizer com isso que osfatos aqui relatados são atos comuns atodos, só afirmamos que sãoacontecimentos fáceis de seremobservados em vários cegos. Primeiramente, vamos falar de cegosque vivem com suas famílias, antes,

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porém, lembramos que as diferençasexistentes entre uns e outros, se dápela maior ou menor dependência de cadaum. Neste primeiro caso, encontramosaqueles cegos que pedem, aos queenxergam, o favor de procurar para elesdesde um par de meias, passando pelascamisas, calças, camisetas, etc.Alguns, se importando com as cores paracombinar, enquanto outros se limitamapenas a vestir ou calçar, para nãodizer que não está se arrumando parasair. Neste mesmo grupo, encontramosaqueles que gostam de usar perfume que,na maioria das vezes, é de péssimaqualidade. Não digo que alguns delesnão teriam condições de comprar algomelhor. Ocorre que apenas o desejo dedizer que usa algum perfume o faz fugirdo incomodo de alguém dizer que cegonão usa nenhum. Às vezes, a falta dosenso de ridículo faz alguns delesensopar o cabelo e as roupas que veste. Situações como: "coloque comidapara mim", "pegue o sapato", "onde estáminha bengala?", são muito comuns entreos cegos que gostam de mordomias, outêm alto grau de dependência. Vale aquiabrir um parênteses. A exemplo dequalquer pessoa que enxerga, mas quetambém costuma pedir para alguémapanhar algumas coisas, enquanto ficatranqüilamente no sofá assistindo seujogo de futebol pela televisão, nóscegos temos o pleno direito de gostarde mordomias e, isso é confundido,muito facilmente, com dependência. Epor acomodação, alguns cegos preferemdeixar como está, ou seja, que osoutros pensem que o mesmo é dependentedeles, contanto que façam aquilo que

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deseja. Em residências onde moram juntaspessoas que enxergam e um ou outrocego, recomenda-se que os móveis mudempouco de lugar e quando isso acontecer,que o cego seja avisado logo emseguida, pois o mapa da casa onde mora,está muito bem delineado em sua cabeça.Isto permite que ele domine esse espaçocom tranqüilidade, até parecendo paraalgumas pessoas, que ele enxerga, comoaquele cidadão que me viu andando emminha residência, subindo e descendo asescadarias, e não quis, depois disso,acreditar que eu sou cego, perguntando,várias vezes, se eu não enxergava pelomenos um pouco. No caso, quando os cegos moram comsuas famílias, é comum as pessoasmudarem objetos pessoais dos cegos dolugar onde eles tinham deixado. Issocausa inúmeros transtornos e, às vezes,pequenos conflitos, pois há umacobrança de onde estaria seu objeto enem sempre a pessoa admite que tirouaquilo do local onde estava. E nesteparticular, não falamos somente dealguns objetos, mas sim de todos ospertences pessoais. Às vezes encontramos casais ondeambos são cegos. Eu conheço algunsdeles e, nesses contatos, onde acuriosidade é aguçada, fiz váriasperguntas e observações, de onde tireialgumas conclusões. Em São Paulo, numa residênciadessas, havia apenas os dois comomoradores, ou seja, não havia nenhumfilho, ou qualquer outro membro nafamília. Em alguns cômodos, não seusava a luz, e a bem da verdade, nãohavia sequer lâmpada. Um desses cômodos

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era a cozinha, onde minha amiga Ednapreparava as refeições para seu maridoe também para os amigos, assim comopara mim, que tive o prazer dedesfrutar da simpática amizade docasal. Havia na mesinha de centro da salauma revista em tinta. Por cima dasletras em tinta, em quase todas aspáginas, encontrei escritas braile, quevim descobrir depois, era a agenda dosdois, com números de telefone eendereços. Isto era apenas uma amostra.Muitos objetos ali existentes erametiquetados, na referida escrita, parafacilitar a localização dos mesmos.Nando, como era chamado este meu amigo,tinha uma grande habilidadeprofissional na área de massagem. Osaparelhos que precisavam serlocalizados, estavam também sempremuito bem dispostos, de maneira que setinha enorme facilidade em apanhá-los. O mesmo acontecia com Edna. Aliásisso é comum entre os cegos, variandoapenas o grau de organização entre um eoutro. Se houver a pretensão de se fazerum teste, basta ir a uma residênciaonde more um cego que organize seuspertences e tirar um ou outro objeto dolugar, para que ele tenha dificuldades.Mesmo que o referido objeto estejapróximo a ele, ainda assim terá enormesdificuldades para encontrá-lo, sendoprovável que não consiga. O guarda-roupas do cego normalmenteé disposto de acordo com sua própriavontade e sentido de organização. Porexemplo: camisetas claras de um lado,escuras do outro, idem com as calças,

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camisas, meias, cuecas, etc. Às vezes,ainda separando-as pelo gosto pessoalou também, aquelas que são de sair,daquelas que servem para usar em casa. Fitas e discos são etiquetadas embraile, facilitando a localização. Alguns cegos costumam pedir que secompare o alimento que está no seuprato com um relógio de ponteiros. Ouseja a pessoa lhe informa o que tempara comer, dizendo que ao meio diaestá a salada, às três horas o frango,às seis o arroz, às nove a batata fritae assim por diante. Existe uma situação, um tantointeressante, que ocorre com muitoscegos. É aquela em que se apresentam àsociedade, em algumas vezes, como setodos que estão a sua volta fossemtambém cegos. Isso é demonstrado emalgumas ações praticadas em público,como por exemplo, enfiar o dedo nonariz para extrair pelotinhas; coçarpartes íntimas do corpo sem o menorpudor e outros casos, que é só observarpara conferir. Atribui-se isso ao fato de que nóscegos, muito comumente, esquecemosexistir perto de nós pessoas queenxergam. Eu, a exemplo de tantos,esqueço-me disso com uma freqüênciaabsolutamente espantosa. Costumo citarcomo exemplo, quando assisto televisão.Tenho o meu raciocínio sempre voltadopara o fato de que todas as pessoas queestão ali na sala, vêem o mesmo que euvejo. Isto só é quebrado, por algunssegundos, às vezes, quando perguntosobre uma determinada cena, mas logovolto ao meu normal.---------------------------------------

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CAPÍTULO XVII

SENTIDOS REMANESCENTES

Dos cinco sentidos que os sereshumanos usam de forma consciente, jáouvi muitos afirmarem que a ausência davisão é aquela que ninguém gostaria queacontecesse com ele. Existem tambémlivros que apontam para um grandepercentual de riquezas, no que serefere ao recebimento de informações,que vem pelo órgão da visão, cujoíndice se posiciona bem acima dosoutros quatro. Em nossos contatos com pessoasdeficientes, não é muito difícilencontrar surdos que preferem nãoescutar do que serem cegos. Ouparalisados físicos que assim preferemsê-lo, do que serem cegos. Valesalientar, todavia, que isso nãoconstitui pesquisa e nem podemosafirmar que representa a maioria,embora percebemos, nos nossos contatos,que existem muitos deficientes com essepensamento. Por outro lado, encontramos várioscegos que jamais desejariam, segundosuas palavras, serem surdos,deficientes físicos ou mentais.Percebam, neste caso, que não fazemosmenção aos outros dois sentidos, ouseja, o tato e a gustação, pois aausência de um desses dois não éencarada como grave no contesto dadeficiência. Os livros afirmam que os sentidosremanescentes do deficiente se tornammuito mais apurados. Essa conclusão eupude tirar na minha própria

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experiência. Enxerguei até meusdezenove anos de idade. Até essaocasião, minha audição eracompletamente distinta da existentehoje, de forma que posso afirmar queouço muito melhor do que quandoenxergava. Não compactuamos, no entanto, dopensamento de que, automaticamente, aoficar cego, a pessoa passa a ter umaaudição mais apurada. Acreditamos que ouso freqüente, pela necessidade, fazesse referido órgão ser melhor do que odaquelas pessoas que usam a visão, paraenxergar onde nós precisamos usar aaudição. Entre outros exemplos, citamoso de utilizar os ouvidos, como olhos,para perceber a aproximação de umautomóvel, quando queremos atravessaruma rua; o som da moeda que caiu; paraapanhá-la, ou o som do caixa bancário,para nos dirigirmos a ele. No caso do olfato, não é muitodiferente. Nós cegos utilizamos esteórgão com bastante freqüência,tornando-o bem mais apurado do que o damaioria das pessoas que enxergam.Lembro-me perfeitamente de um cego, emSão Paulo, que conhecia a entrada daempresa onde trabalhava pelo cheiro deuns amendoins torrados que eramvendidos por um senhor no local. Nós,em muitas ocasiões, encontramos lojaspelo cheiro característico das mesmas,como a de sapatos, a farmácia, oaçougue, a padaria, a perfumaria, etc. No entanto, estes exemplos citadosacima possuem odores fortes e de fácilpercepção. Mas existem aqueles cheirosque apenas o cego percebe. Ou então,quando é percebido também pelas pessoasque enxergam, é comum, mesmo estando

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ambos à mesma distância do odor, esteser captado primeiro pelas narinas docego. O tato da pessoa cega segue o mesmocaminho. Conheço alguns que sãoexcelentes massagistas. Em Maringá, nóstemos vários exemplos trabalhando emclubes. A grande maioria é extremamenteelogiada por sua performance tátil,assim como também o foram quando darealização do curso. A própria leitura braile é umaaliada para o bom desenvolvimentotátil. Conheço pessoas que conseguem sabero valor das moedas pelo relevo dosnúmeros nelas empregados, sem precisarpara isso medir o tamanho das mesmas,comparando umas com as outras. Esteartifício é usado por alguns cegos,entre eles, nós mesmos. Se você acha que essa tarefa éfácil, basta fazer o teste. Eu játentei e confesso que ainda nãodesenvolvi meu tato o suficiente paraconsegui-lo. É preciso, tão somente,treinamento, não só para mim, como paraqualquer pessoa, mesmo que enxergue. Percebe-se claramente a diferençaentre cegos que estão num alto estágiode desenvolvimento dos sentidosremanescentes e outros que aindaencontram muitas dificuldades para estemister. Às vezes, uma pessoa é cega há maistempo do que outra e apresenta menorescondições de desenvolvimento dos seussentidos, principalmente o do tato.Isso se dá pelo fato de maior ou menorbusca de desenvolvimento dos mesmos. Isto ocorre também em relação àmemória, que uma vez exercitada, terá

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sua capacidade valorizada eaproveitada. Com relação a isso, possofalar por experiência própria. Quandoeu enxergava, sabia o nome da rua ondenós morávamos, mais umas duas ou trêsdo bairro, algumas do centro, além dedecorar meia dúzia de números detelefone. Hoje, todavia, depois dasexperiências adquiridas como cego, seio nome de todas as ruas do bairro ondemorei, de todas as ruas e avenidas docentro, um número considerável de ruase avenidas espalhadas por toda cidadee, além disso, tenho memorizado mais deuma centena de números de telefone. Salientamos que não somos melhoresdo que ninguém por isso. Apenas tivemosa necessidade de desenvolver tal área.As pessoas que enxergam não fazemassiduamente este exercício, pois issoé substituído pela facilidade de umaagenda ao alcance de sua mão. E agora,para facilitar ainda mais, existe aeletrônica.---------------------------------------

CAPÍTULO XVIII

ASSUNTOS POLÊMICOS

Outubro de 1978, janeiro de 1979.Um jovem pós-adolescente, já com seus19 anos de idade, entra para o mundo dacegueira. Como isso pode alterar ocomportamento de um ser humano!Sugerimos usar um pouco do nosso tempopara uma leitura e análise, no sentidode atingirmos nossos propósitos dedescoberta da ação do mundo daescuridão, comparado com o mundo cheiode luz, de cores e de vida. A sensibilidade humana estaria

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diretamente ligada às coisas que estãodentro de si, assim como suasexperiências anteriores. A utilização de um colírio, à basede corticoides, por um tempo muitoprolongado, foi o suficiente para quemudanças profundas acontecessem naminha vida. Fiquei cerca de um ano preso entrequatro paredes, morando em casa de meuspais, a lamentar minha situação. Afirmações tais como: Deus éculpado da minha cegueira, a sociedadetambém é culpada, meus amigos são todosculpados, a vida perdeu o valor, euquero que tudo se dane, eram bastantecomuns. Para agravar ainda mais a situação,e crer que a vida era realmente umadroga, fui surpreendido com orompimento de um noivado. Eu tinhacomeçado a namorar quando aindaenxergava. Por isso, aquilo significoupara mim uma rejeição por causa dacegueira. Temos afirmado para as pessoas, comas quais conversamos, que nossaexperiência permite algumas conclusões.Entre elas, a de que sentimos na carne,de forma compulsória, a relatividade dotempo. Para um indivíduo que passa um anotrabalhando, estudando, estabelecendoprojetos de vida, tendo intensaatividade social, este tempo tem a suaduração. Contudo, para nós que vivemosuma situação atípica, querendo esomente pensando em voltar a enxergar,com dias sem nada para fazer, a não serobedecer o relógio biológico para comere dormir, sem o menor desejo de sair decasa, esse mesmo tempo pode parecer uma

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eternidade.

POLÊMICOS

Em grande parte das cidadesbrasileiras, principalmente nascapitais, as pessoas que não enxergam,não pagam passagem em ônibus urbano. Agrande maioria dos cegos concorda comessa concessão, porque acredita quesomos coitadinhos e, por isso,precisamos andar de graça. Outro bompercentual faz vistas grossas e há atéo caso dos cegos parciais, fatobastante comum, que fingem maiorcegueira para não pagar a tarifa. Em algumas cidades, assim como SãoPaulo, Rio de Janeiro e Curitiba, nãohá qualquer necessidade de crachá oucarteira que comprove a deficiência dapessoa. O motorista está autorizado apermitir o acesso gratuito nos ônibusapenas com a identificação do uso dabengala. É comum vermos um cego parcial, queno seu cotidiano não precisa da bengalapara se locomover, não se acanhar emapanhá-la para mostrar ao motorista queé cego e, portanto, ter o direito deusar o ônibus sem nada pagar. Aquientra o caso dos que muitos chamam decegos por conveniência. Uma minoria, quase em extinção, éfrontalmente contra a gratuidade paracegos no ônibus urbano.

Em Maringá, ouvi a seguinteafirmação de um cego: "Nós, seja qual for a classefinanceira, não devemos pagar ônibus,pois não podemos sequer portar umguarda-chuva nos dias chuvosos. O

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barulho da água caindo no mesmo impedeque ouçamos os automóveis e, portanto,impossibilita que possamos noslocomover. E andar num ônibus, porapenas duas ou três quadras, solucionaeste problema".---------------------------------------

CAPÍTULO XIX

CRESCENDO ATRAVÉS DA CEGUEIRA

É perfeitamente possível pensar, deforma racional, com relação a vida. Háuma série de pessoas cegas que usa estebeneficio para melhorar sua forma deagir, afirmando, com enorme clareza,que julga isso uma oportunidade de sermelhor hoje que ontem. Se pensarmospelo lado de que, comprovadamente,todos os seres humanos estãoconstantemente crescendo, fica evidenteser possível, em qualquer período,desenvolver-se o sexto sentido, mesmoque, para isso, a pessoa não apresentequalquer aparente deficiência em um dossentidos: físico, mental ou sensorial. Nós que somos cegos, temos, por umaquestão de obrigatoriedade, noexercício natural do dia a dia, ouvirbem. Melhor do que as pessoas queenxergam, por exemplo. Dessa forma,desenvolvemos um outro sentido, quepoderíamos chamar de sexto. Isso pode se dar de maneiraconsciente e inconsciente. Quem o fazde forma consciente, tem maispossibilidades de ser uma pessoa melhornos seus princípios e, principalmente,na maneira de ver a vida. Quem o faz da segunda forma, tendeapenas a usar sua arma para

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sobrevivência, pois só mais tarde é quepode aproveitar, de maneira total,aquilo que a lei permitiu que estivessea seu favor. Vamos então pensar na cegueirafísica como sendo uma dádiva a nósconcedida, de forma a permitir quevenhamos a aperfeiçoar a nós mesmos.Ela possibilita ao ser humano encarar avida sob um prisma completamentediferente do normal. Não quero,contudo, afirmar que isso é condição"sine qua non". Podemos encontrarmuitos cegos que não utilizam estebeneficio para enxergar, o que eu chamode enxergar com os olhos daespiritualidade, mas que pode ser dadoo nome que melhor convier. Não é muito difícil encontrarmospessoas, que perderam a visão,afirmando que quando enxergavam com osolhos físicos, encontravam-se cegospara os verdadeiros valores da vida. Por exemplo: quem de nós já nãoteve, um pouquinho que fosse, dediscriminação quando, enxergando, viuuma pessoa mal vestida, mal encarada,mal isso ou mal aquilo? Já a cegueira,de forma compulsória, faz com que ocego esteja sempre recebendo aquilo quesai do seu coração, sem a predisposiçãoem pré-conceituar a pessoa que dele seaproxima. Corre-se, dessa forma, menorpossibilidade de erro, pois a pessoanão está sujeita a dizer, através dofísico, que aquela outra é de máíndole. Quantas vezes nós não ouvimos umapessoa dizer assim para outra: "Quando eu a vi pela primeira vez,fiz mau juízo de você. Hoje,entretanto, vejo que estava errado."

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Ou seja, depois de conhecer melhoruma pessoa, quase sempre se muda deopinião. Aqui, estabeleço uma análise docego e sua busca contínua de provarpara a sociedade sua capacidade. Nestecaso, ocorre uma distorção por parte demuitos membros desse meio. Trata-se deuma ilusão de conceito. As razões são as mais diversas,mas, encontramos cegos de todo tipo.Há, por exemplo, aqueles que bebem emdemasia, falam pouco, gastam muito,amam a todos, choram, riem, etc, etc.Quero dizer com isso que nós, os cegos,somos seres humanos comuns, e como tal,sujeitos a acertos e erros. Todavia, há aqueles cegos que, porcircunstâncias da vida, estão atrasadosnos pensamentos, nas novidades domundo, etc. Estes são tachados como os"coitadinhos". Há aqueles que são osmais ou menos. Atraem para si todo tipode conceito, desde o radicalismo deserem ignorantes, até o de serem omáximo do supra-sumo. Ainda temos o caso dos que estão umpouquinho acima da média entre oscegos. Estes são observados pelasociedade como sendo superdotados. Eaí, os mesmos sentem-se na obrigação dematar um leão por dia, caso contrário,são diminuídos no seu conceito. Ouseja, devem, a todo instante, estarprovando sua capacidade. O meio exigeque ele seja melhor em tudo o que faz.Isso é comum na escola. Se ele tiranotas boas, é o melhor aluno docolégio. Com isso, a sociedade o colocacomo sendo o gênio em todas as outrasatividades da vida, trazendo prejuízopara o próprio cego, que se frustra

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quando percebe que é fraco, ou quaseincapaz de realizar certas tarefas. Háque se ter uma estrutura emocional parasuplantar essa informação do meio, quefez de si o melhor em tudo. E a partirdaí, agir coerentemente, mostrando queé bom em algumas atividades e, que emoutras, terá uma performance mediana e,ainda, em outras, será muito fraco.---------------------------------------

CAPÍTULO XX

JESUS

A manjedoura já o dizia,Ser cego para a vida é a pior,Os obstáculos do escuro,Estão primeiro em sua mente,Se aclarar não parece possível,Confie nele e acredite no tempo,Se lhe parece nebulosa a noite,Aguarde o dia retornar,Quando tudo parecer perdido,Apanhe as traves do seu olho,Dissipando-as do seu existirPara consegui-lo, abranda seu coração,Suba um degrau no seu amor,Mesmo quando não parecer conseguir,Ainda assim é preciso insistirQuando estiveres com persistênciaenxergando,Com seus olhos que não são desta carne,Terás iniciado, assim,Seu convívio com a eternidade,Donde a luz do cego é vista,Mesmo por aqueles que um dia,Ousaram em pensar que tudo viam,Se tomares de súbito, como caprichoterreno,A revolta de não ter seus olhosfísicos,

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Lembre-se que o íntimo de cada umÉ que faz a noite sem luzEsforce-se no exercício da paciência,Busque as energias de Jesus,Deixe penetrar em sua almaO sabor amável da brisa da manhãInsista na busca constante da pazE os vícios se lhes parecerãoEstar longínqüos na eternidade,Ainda assim estarás lembrandoDo que disse à manjedoura,A cegueira faz parte dos fracos deespíritoE os fortes assim como você,nxergam com os olhos do amor.

28/01/97.---------------------------------------

CAPÍTULO XXI

DICAS PARA SE RELACIONAR COM OS CEGOS

Existem algumas técnicas, no que serefere a locomoção de cegos, assim comosituações do dia a dia, em que aspessoas normalmente procedem de formaerrada, a respeito das quais passaremosa dar algumas dicas e orientações.

Quando os cegos vão atravessar umarua ou avenida, alguns motoristasbuzinam seus automóveis uma, duas ouaté três vezes. A intenção dos mesmos éinformar algo ao cego, mas como nãoexiste nada previamente combinado, nósnunca sabemos qual é a informação quese deseja passar. Por vezes, queremdizer com isso que o cego pode passar,que ele aguarda, ou então, que espere,pois ele é quem vai passar, ou ainda,pode ficar tranqüilo que ele está

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atento e vai passar devagarinho, sepreciso for, frea instantaneamente, semesquecer que às vezes esse sinal éapenas para cumprimentar o cego.Recomendamos, neste caso, que não use abuzina. Ela pode atrapalhar muito maisdo que ajudar.

RELACIONAMENTO COM A PESSOA DEFICIENTEVISUAL

Não acredite na "compensação danatureza", ou seja, que a naturezacompensou a pessoa cega pela falta devisão. O que existe nela é o simplesdesenvolvimento de recursos latentes emtodos nós e que qualquer um podedesenvolver.

Quando for falar com uma pessoa cega,dirija-se diretamente a ela e nãoatravés de seu acompanhante.Identifique-se e toque o seu braço ouseu ombro para que ela saiba que é comela que está falando.

Ei menino! Venha aqui por favor.

Não dê informações com gestos ousinais.

Onde é o ponto de circular?

É do lado de lá.

Esta atitude de nada adianta para ela.Responda verbalmente

Siga a sua direita.

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Quando estiver conversando com umapessoa cega, não deixe de avisá-laquando tiver que se ausentar.

Principalmente se houver muito barulhoque a impeça de perceber sua ausência.Ela pode dirigir-lhe a palavra e acabarfalando sozinha.

... e no trabalho, como está indo?

Não deixe de falar sempre que entrar emum ambiente onde haja uma pessoa cega.

Estamos na rodoviária, Antônio.

Isso anuncia sua presença e a auxilia aidentificá-lo. Evite que ela tenha queadivinhar com quem está falando.

Em ambientes desconhecidos ou emsituações novas, ofereça-lhe o maiornúmero de informações possíveis, sóassim ela poderá localizar-se e saberexatamente o que está acontecendo aoseu redor.

Não deixe de apresentá-lo às pessoasque estejam participando de seu grupo.Assim agindo você facilitará a suaintegração ao grupo.

Não deixe de aproximar-se de uma pessoacega com medo de ser contagiado pela"doença". A cegueira é uma deficiênciasensorial, não é doença.

Quando for guiá-la, não a empurre oupuxe pelo braço. Basta deixá-la segurarseu braço que o movimento de seu corpolhe dará a orientação de que ela

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precisa.

Quando for ajudá-la a atravessar a ruaou subir escada, ofereça-lhe seu braçoou ponha-lhe a mão no corrimão.

Não a empurre ou a levante paraajudá-la a subir no ônibus ou carro.Basta pôr-lhe a mão na alça externa damaçaneta que ela subirá sozinha.

Se você encontrá-la em qualquer lojacomercial, dirija-se a ela e oriente-asobre os produtos, marcas e preços.

Temos lanches a três Reais por pessoa.E suco grátis na compra de trêslanches.

Não deixe objetos no caminho por ondeela possa passar, ou em locais onde apessoa cega não possa perceber suapresença com o uso da bengala (carrosna calçada, janelas abertas).