Apostila do curso - Moises e o monoteísmo

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    1/36

    ndice

    Introduo.....................................................................................................................2

    Moiss, um egpcio.......................................................................................................4

    Moiss, o seu povo e a religio monotesta

    Parte I

    Nota preambular I ................................................................................................12

    Nota preambular II ...............................................................................................12

    A A premissa histrica .................................................................................13

    B O perodo de latncia e a tradio ..........................................................14

    C A analogia.................................................................................................14

    D Aplicao..................................................................................................15

    E Dificuldades .............................................................................................17

    Parte II Resumo e recapitulao

    A O povo de Israel....................................................................................... 18

    B O grande homem .....................................................................................18

    C O avano em intelectualidade..................................................................19

    D A renncia ao instinto...............................................................................19E O que verdadeiro em religio.................................................................20

    F O retorno do reprimido..............................................................................21

    G Verdade histrica......................................................................................21

    H O desenvolvimento histrico.....................................................................21

    Anexos

    1. A histria de Jos ..............................................................................................23

    2. A histria de Moiss ..........................................................................................233. Algumas lendas de heris..................................................................................25

    4. O Egito................................................................................................................26

    5. Os reis da 18 Dinastia ......................................................................................26

    6. A famlia real de Akhenaton...............................................................................27

    7. Pequeno hino a Aton..........................................................................................27

    8. Breve histria do povo judeu .............................................................................28

    9. A horda primeva.................................................................................................29

    10. A vida de Saulo de Tarso...................................................................................30Bibliografia..................................................................................................................31

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 1

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    2/36

    Introduo

    Sobre Moiss e o Monotesmo:

    Moiss e o Monotesmo a soma de trs partes publicadas em momentosdiferentes: a primeira, com o ttulo de Moiss, um egpcioque apareceu na revistaImago em 1937. A segunda parte, Se Moiss fosse egpcio, publicada na mesmarevista no mesmo ano, trs nmeros depois. Finalmente em 1939, mesmo ano damorte do autor, aparece a obra completa, incluindo a terceira parte.

    A deciso de edit-la no foi fcil para Freud. Uma coisa um artigo numarevista especializada; outra coisa um livro ao alcance do pblico em geral. Almdisso, entre 1937 e 1939 a situao poltica da ustria se deteriorara

    consideravelmente e Freud temia a reao do clero ligado ao governo, o que poderiaprejudicar o movimento psicanaltico. Estava claro que Hitler ia anexar todas asnaes de lngua ou origem alems e populaes inteiras consideradas inferioresseriam exterminadas, principalmente os judeus. Em maro de 1938, os alemesinvadem a ustria e Freud foge com sua famlia para a Inglaterra.

    Podemos perceber claramente que as duas partes publicadas em Viena somenos polmicas que a terceira parte publicada em Londres, aonde Freud seaprofunda em assuntos mais ridos, principalmente ligados religio.

    Tambm existiam os problemas do tema propriamente dito, que Freudconhecia pouco. Lera algo sobre um prncipe egpcio chamado Tuthmosis, quepoderia, a seu juzo, ser Moiss; achou que o assunto deveria ser mais estudado,

    mas no se aprofundou.A necessidade que sentia de escrever esta obra era imperiosa, a tal pontoque o levou a enfrentar um terceiro problema, que ele resume assim: "Privar umpovo de um homem que celebrado como o maior de seus filhos, no umempreendimento gratificante ou leve, principalmente quando se parte dessemesmo povo". Isto no dissuade Freud de seu propsito, que v na atitude do judasmo uma conduta neurtica obsessiva. Finalmente havia a sua doena,entrando em sua pior fase.

    Todo este cenrio leva Freud a escrever este texto de forma repetitiva e comestilo muito aqum do costumeiro. Mas mesmo assim, podemos perceber agenialidade de Freud, que sai do ambiente analtico para entender a formao do

    seu povo e se mostra um visionrio ao conseguir supor fatos histricos,comprovados pela antropologia anos depois, apenas com a sua mente analtica.

    Peter Gay, em seu livro Freud para Historiadores diz: Aprendi em meuprprio trabalho que o historiador pode agrupar as percepes freudianas de modoa descobrir temas sobre os fatores crticos, embora h muito marginalizados noestudo histrico: os programas escondidos que quase imperceptivelmente dominama infncia, a famlia e a cultura como um todo, e os fluxos libidinosos e agressivosque em segredo mais irresistivelmente invadem a vida social e poltica".

    A leitura precoce da Bblia na formao intelectual de Freud, os traos doexlio e do xodo inscritos na histria do povo judeu e a prtica da leitura dasescrituras tm um papel essencial na viso singular de Freud neste texto.

    Apesar de ateu e descentrado do judasmo, Freud j havia se perguntadovrias vezes como os judeus se tornaram judeus e porque atraram sobre si tanto

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 2

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    3/36

    dio. Este artigo traduz sua ambivalncia perante sua judeidade e o ajuda a superara angustia causada pelas perseguies nazistas que se abateram sobre a Alemanhae ustria naqueles anos. neste clima que ele se volta para a figura de Moiss. H

    uma razo para isto: Moiss o lder que tira o seu povo de uma situao deopresso e o conduz para um novo destino, uma figura na qual Freud deve terpensado muitas vezes enquanto tentava, penosamente, escapar de um destino quese afigurava to sombrio quanto o dos judeus escravizados pelo Fara. O choque dabarbrie anti-judaica trouxe a questo do que significa ser judeu e foi isto queforneceu o impulso para a redao de Moiss e o Monotesmo. Mesmo nestasituao de angstia, Freud no perde sua viso crtica. Perde, sim, muito de suaserenidade, e isto se reflete na estrutura da obra.

    Sobre este nosso estudo:

    Todo o resumo deste texto acompanha exatamente a estrutura original doautor para podermos acompanhar de perto o raciocnio e as pocas em que cadaitem foi escrito.

    Este debate destinado aos interessados em psicanlise, histria,antropologia e/ou religio. Vamos tentar aproximar todos estes conhecimentos sob aluz da psicanlise de Freud, mas sem aprofundar nenhum deles. Para os maisinteressados, est em mos um timo material para o incio de uma pesquisa maisprofunda, principalmente com base na bibliografia.

    Nota:

    Para melhor entendimento do atual trabalho, todos os textos escritos com letracursiva so o resumo do texto de Freud, o restante, com letra reta, so comentriosmeus, pesquisas e textos de outros autores.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 3

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    4/36

    Moiss, um egpcio.

    Privar um povo do homem de quem se orgulha como o maior de seus filhos no algo

    fcil e, muito menos por algum que um deles. Mas no podemos permitir que uma reflexocomo esta nos induza a pr de lado a verdade1.

    Moiss, que libertou o povo judeu, lhe deu suas leis e fundou sua religio, data detempos to remotos que no podemos fugir a uma indagao quanto a se ele foi personagemhistrico ou lenda. Se viveu, foi no dcimo terceiro ou dcimo quarto sculos antes de Cristo2.Embora uma esmagadora maioria de historiadores seja a favor de que Moiss foi uma pessoareal e que o xodo do Egito realmente aconteceu.

    -nos dito que a princesa egpcia que salvou o menininho abandonado no Nilo deu-lheo nome de Moiss porque das guas o tenho tirado. Essa explicao, contudo, inadequada,

    pois Mosheh pode significar, no mximo, o que tira fora. absurdo atribuir a umaprincesa egpcia uma derivao de nome hebraico. O nome Moiss tem derivao egpcia,vem da palavra mose, que significa criana. Alm do que, historiadores supem queMoiss foi instrudo em toda a cincia dos egpcios.

    Em 1909, Otto Rank publicou um livro com o ttulo de Der Mythus von der Geburtdes Helden. Ele trata do fato de que quase todas as naes glorificavam seus heris comcontos e lendas poticas. A histria do nascimento e vida dessas personalidades recoberta decaractersticas fantsticas, que em povos diferentes, apresentam muita semelhana.

    O heri filho de pais aristocratas e seu nascimento precedido por dificuldades ouseus pais tm de ter relaes em segredo. H uma profecia que alerta contra seu nascimento,geralmente como ameaa ao pai. Como resultado disso, a criana recm-nascida condenada morte ou ao abandono por ordem do pai ou de algum que o representa. abandonada em

    guas, num cesto. Posteriormente o heri salvo por animais ou por gente humilde. Crescido,redescobre seus pais aristocratas depois de experincias altamente variadas, vinga-se do pai, reconhecido e alcana grandeza e fama. A mais antiga das figuras histricas com esse mito denascimento Sargo de Agade3, fundador de Babilnia (por volta de 2800 a.C).

    O heri algum que teve a coragem de rebelar-se contra o pai e sobrepujou-ovitoriosamente. O abandono num cesto uma representao simblica do nascimento: o cesto o tero, e a gua, o lquido amnitico. Quando a imaginao de um povo liga este mito denascimento a uma figura fora do comum, est pretendendo, dessa maneira, reconhec-la comoheri. Na verdade, a fonte de toda esta fico aquilo que conhecido como o romancefamiliar de uma criana, no qual o filho reage a uma modificao em sua relao emocionalcom os genitores. Os primeiros anos de uma criana so dominados por uma enorme

    supervalorizao do pai, por isso, rei e rainha nos contos de fadas representam os genitores.Mais tarde, sob a influncia da rivalidade e do desapontamento na vida real, a criana comeaa desligar-se deles e a adotar uma atitude crtica para com o pai. Assim, ambas as famlias do

    1 Colocar em juzo uma figura exponencial do judasmo numa poca de grande anti-semitismo , no mnimo, umainconvenincia. Moiss e o Monotesmo foi, de maneira geral, mal recebido nos crculos judaicos, religiosos ouno. Em nota de rodap num artigo sobre Moiss, o filsofo Martin Buber rotulou o livro de Freud como umescrito no-cientfico, baseado em hipteses infundadas. Historiadores antigos acreditavam que os textosbblicos eram realmente histricos e procuravam provas desta premissa. Neste artigo podemos ver um trabalhode anlise em que Freud extrapola a anlise individual para se ater histria do povo judeu.2 No h registro arqueolgico ou histrico exato da existncia de Moiss ou dos fatos descritos no xodo.

    3 Sargo de Agade (ou Akkad) filho de pai desconhecido, sua me, uma sacerdotisa de uma pequena aldeia domdio Eufrates, colocou-o em um cesto, no rio. Recolhido por um horticultor, acabou copeiro do rei de Kish porobra da deusa Istar. Fundou Agade. Anexo h algumas outras lendas similares em Algumas lendas de heris.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 4

    http://xoomer.virgilio.it/bxpoma/akkadeng/akkadengindex.htmhttp://xoomer.virgilio.it/bxpoma/akkadeng/akkadengindex.htm
  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    5/36

    mito, a aristocrata e a humilde, so reflexos da prpria famlia da criana tal como lheapareceram em perodos sucessivos de sua vida.

    Eduard Meyer e outros presumiram que, originalmente, a lenda de Moiss foi

    diferente. O fara, segundo eles, fora advertido por um sonho de que um filho nascido de suafilha traria perigo para ele e para seu reino. Dessa maneira, fez com que a criana fosseabandonada no Nilo depois do nascimento, mas ela foi salva por judeus e criada como filhodeles. A lenda, criada entre judeus, teria ento recebido a forma modificada segundo a qual aconhecemos.

    Apenas um pequeno fragmento de todo o mito permanece eficaz: a certeza de que acriana sobreviveu perante poderosas foras externas. Essa caracterstica reaparece na histriada infncia de Jesus, na qual o rei Herodes assume o papel do fara 1. Assim, podemos

    presumir que a lenda foi adaptada para parecer com as clssicas lendas de abandono queassinalam um heri.

    Como h a parte histrica do mito, na lenda, uma das famlias a da realidade, na qual

    o grande homem nasceu e cresceu realmente; a outra a fictcia, fabricada pelo mito2

    . Setivermos a coragem de reconhecer essa assero verdica e como aplicvel lenda de Moiss,ento, imediatamente, veremos as coisas de modo claro: Moiss era um egpcio3,

    provavelmente um aristocrata sobre quem a lenda foi inventada para transform-lo num judeu.Normalmente um heri se eleva acima de seu comeo humilde, mas Moiss desceu de

    sua posio ao nvel dos Filhos de Israel.Imaginando que Moiss era um egpcio aristocrata e com o auxlio de algumas

    suposies, poderemos compreender os motivos que levaram Moiss ao passo incomum quedeu. Ento entenderemos a base de uma srie de caractersticas e peculiaridades da religiomosaica e ainda seremos levados a importantes consideraes relativas origem das religiesmonotestas.

    Tais concluses no podem, contudo, fundar-se apenas em probabilidades psicolgicas. Mesmo que aceitemos o fato de que Moiss era egpcio, precisaremos umsegundo fato para defender estas possibilidades.

    (1)No fcil imaginar o que poderia ter induzido um egpcio aristocrata a colocar-se

    frente de uma multido de estrangeiros imigrantes e abandonar seu pas com eles. O bemconhecido desprezo que os egpcios sentiam pelos estrangeiros torna particularmenteimprovvel tal procedimento.

    No devemos esquecer que Moiss no foi apenas o lder poltico dos judeus no Egito,mas tambm seu legislador e educador, forando-os a seguirem uma nova religio, que at

    hoje conhecida como a religio mosaica. Mas, seria fcil a um homem isolado criar umanova religio? E de uma forma ou de outra, no faltava ao povo judeu uma religio, e se

    1 Na histria de Jesus,Herodes, o rei da Galilia, ouviu dos reis magos que havia nascido o rei dos judeus eento mandou matar a todas as crianas com menos de dois anos, mas a famlia de Jesus, advertida por umanjo, foge para o Egito at a morte de Herodes.2 Freud tinha um apreo pela funo do mito, no apenas na sua prtica clnica de escuta e deciframento dosromances familiares de seus pacientes, mas tambm no mbito de sua teorizao. No mito, tal como nossonhos, temos o mecanismo da condensao operando diferentes significaes que guardam a memria deexperincias arcaicas e de acontecimentos verificveis ou no historicamente que assumem um valorsignificante para determinado sujeito e para uma cultura.

    3 Ao longo dos sculos, os homens saram modificando textos e conceitos religiosos para agradar soberanos, porinteresses religiosos ou por falta de palavras para traduo, sem falar dos extravios de manuscritos e livros. Esegundo o professor de Histria, J. H. Breasted em History of Egipt, Moiss no foi judeu e sim, egpcio.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 5

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    6/36

    Moiss, que lhes forneceu uma nova, era egpcio, no se pode colocar de lado a hiptese deque essa outra religio era tambm egpcia.

    Mas h um grande contraste entre a religio judaica e a religio egpcia. A primeira

    monotesta e a segunda, politesta com deuses em forma de animais

    1

    e sem distines ntidasentre eles, mas diferindo nas funes que lhes eram atribudas.A religio egpcia estava muito prxima de fases primitivas do desenvolvimento, ao

    passo que a religio mosaica se elevou a alturas de abstrao sublime.Mas ainda existe outro contraste entre as duas religies. Nenhum outro povo da

    antiguidade fez tanto como os egpcios para negar a morte. Por conseguinte, Osris, o deusdos mortos, era o mais popular dos deuses do Egito. Por outro lado, a antiga religio judaicarenunciou inteiramente imortalidade e a possibilidade da existncia continuar aps a morte

    jamais mencionada.

    (2)

    possvel que a religio que Moiss deu ao povo judeu era uma religio egpcia,embora no a religio egpcia.Na XVIII Dinastia, sob a qual o Egito se tornou uma potncia mundial, um jovem

    fara subiu ao trono por volta de 1375 a.C Inicialmente ele foi chamado Amenfis IV. Maistarde mudou seu nome para Akhenaton, deixando de homenagear Amon para homenagearAton. Esse rei imps uma religio monotesta a seus sditos, que ia de encontro a tradiesmilenares e a todos os hbitos familiares de suas vidas. Juntamente com a crena num deusnico, nasceu a intolerncia religiosa2, que fora alheia ao mundo antigo e que permaneceudepois dele. O reino de Amenfis durou apenas 17 anos. Logo aps sua morte, em 1358 a.C, anova religio foi varrida e a memria do rei hertico proscrita. O pouco que sabemos delederiva-se das runas da nova capital real que construiu e dedicou a seu deus, e das inscries

    nas tumbas de pedra adjacentes a ela.As origens do monotesmo egpcio so remontadas aos sacerdotes do templo do Solem On (Helipolis), que tinham manifestado tendncias no sentido de desenvolver a idia deum deus universal e de dar nfase ao lado tico de sua natureza. Durante o reinado deAmenfis III, pai e predecessor do reformador, a adorao do deus-Sol j tinha ganho novafora se opondo a Amon que se tornara poderoso demais. Um nome muito antigo do deus-Sol,Aton, foi trazido tona e o jovem rei encontrou nessa religio um movimento j pronto3.

    Por esse tempo, as condies polticas do Egito haviam comeado a exercer influnciana religio. Como resultado das grandes faanhas de Tutmsis III, o Egito havia se tornadouma potncia mundial, o que se refletiu na religio como monotesmo, j que asresponsabilidades do fara abrangiam agora no apenas o Egito, mas tambm a Nbia e a

    Sria. As divindades foram obrigadas a abandonar sua limitao nacional, tal como o faraque era agora o nico e irrestrito soberano do mundo conhecido dos egpcios. Isso tambmteve de aplicar-se nova deidade egpcia4. Alm disso, com a ampliao das fronteiras doimprio, era natural que o Egito se tornasse mais acessvel a influncias estrangeiras, algumas

    1 O Egito no era rico em animais, mas todos os animais eram sagrados, tanto os selvagens quanto osdomsticos.2 Freud fala de um Akhenaton intolerante, mas bom pensarmos o que deve ser visto como intolerante nocontexto do Antigo Egito, em que os reis detm todo o poder decisrio sobre o destino do pas.3 Apesar de o Egito antigo ser muito estvel, a XVIII Dinastia presenciou esta grande reforma religiosa-poltica,

    conhecida como reforma Amarniana.4 Algo semelhante ocorre mais tarde, quando o Imprio Romano se torna monotesta com Constantino, oGrande.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 6

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    7/36

    das princesas reais eram princesas asiticas1, e possvel que incentivos ao monotesmotenham vindo da Sria.

    Nos dois hinos a Aton2 que sobreviveram nas tumbas de pedra, e que foram

    provavelmente compostos pelo prprio Akhenaton, louva-se o Sol como criador e preservadorde todas as coisas vivas, tanto dentro quanto fora do Egito, com um ardor que no se repeteseno muitos sculos depois, nos Salmos em honra de Jav. No h dvida de que ele noadorou o Sol como um objeto material, mas como smbolo de um ser divino manifestado emseus raios3.

    Akhenaton introduziu algo de novo: o fator da exclusividade. Em um de seus hinos,ele declara expressamente: tu, nico Deus, ao lado de quem nenhum outro existe!. Porisso ele apagou Amon de todas as inscries, inclusive onde aparecia no nome de seu pai,Amenfis III. Pouco depois abandonou a cidade de Tebas, dominada pelo clero de Amon, econstruiu para si uma nova capital, qual deu o nome de Akhetaton (o horizonte de Aton).Seu stio em runas hoje conhecido como Tell el-Amarna.

    A perseguio por parte do rei incidiu mais duramente sobre Amon, mas no s sobreele. Por todo o reino, foram fechados templos, foi proibido o servio divino e foramconfiscadas as propriedades dos templos. Na verdade, o zelo do rei chegou ao ponto de fazerapagar a palavra deus quando ocorresse no plural. No de espantar que essas medidas

    provocassem a vingana da classe sacerdotal e do povo. Como a religio de Aton no setornara popular, provavelmente permanecera restrita a um crculo em torno do rei.

    Na religio de Aton, tudo relacionado com mitos, magia e feitiaria excludo dela. Amaneira como se representava o deus-Sol no era mais como no passado, atravs de uma

    pequena pirmide e um falco, mas por um disco redondo com raios que terminam em moshumanas.

    O fim de Akhenaton permanece obscuro e seu sucessor, seu genro, Tutankhaton, foi

    obrigado a regressar a Tebas e a mudar seu nome para Tutankhamon, trocando Aton porAmon. Seguiu-se um perodo de anarquia at que, em 1350 a.C, um general, Haremhab,obteve xito em restaurar a ordem. A gloriosa XVIII Dinastia estava no fim e suas conquistasna Nbia e na sia foram perdidas. As antigas religies do Egito foram restabelecidas, areligio de Aton abolida; a cidade real de Akhetaton, saqueada e destruda e a memria dofara e de Nefertiti proscrita como a de criminosos.

    (3)

    Moiss era egpcio e, se comunicou sua religio aos judeus, ela deve ter sido a deAkhenaton. No deve ser por acaso que o nome egpcio Aton (ou Atum, ou Aten) soa como a

    palavra hebraica Adonai (Senhor), uma das formas de tratamento para Deus em hebraico.

    Ambas as religies foram formas de monotesmo, mas sob certos aspectos, omonotesmo judaico era ainda mais duro do que o egpcio: ao proibir representaes

    1 Akhenaton casou-se com Nefertiti (a bela que chegou), uma princesa possivelmente asitica, conhecida athoje por sua beleza. Provavelmente com sangue indo-europeu. Casou-se com dez anos e partilhava o podercom Akhenaton.2 Os hinos a Aton (o grande e o pequeno), de suposta autoria de Akhenaton, so as mais belas obras literriasdo antigo Egito e foram encontrados em algumas tumbas de El Amarna. uma das primeiras manifestaesliterrias que fala de um deus de amor e nico.3 O que este deus tinha de diferente que era um deus sem face, representado apenas pelo disco solar, alm de

    ser amoroso e bom, fonte de toda a vida e criador de toda a natureza, e no mais um deus castigador comoantes. At aqui, os faras eram personificaes do deus Hrus, mas para Akhenaton, o fara apenas oprimeiro profeta (ou sumo sacerdote) de Aton.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 7

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    8/36

    pictricas de qualquer tipo1, por exemplo. A diferena mais essencial deve ser vista no fato dea religio judaica ser inteiramente desprovida de adorao solar, na qual a egpcia aindaencontrava apoio.

    Moiss no forneceu aos judeus apenas uma nova religio; ele introduziu tambm ocostume da circunciso. verdade que o relato bblico faz a circunciso remontar erapatriarcal, como sinal de um pacto entre Deus e Abrao, mas tambm descreve como Deusficou irado com Moiss por ter negligenciado este costume e procurou mat-lo, sendo aesposa dele, uma madianita, que o salvou da ira divina, realizando a operao. Sabemos quenenhum outro povo do Mediterrneo oriental praticava esse costume, e pode-se supor comsegurana que os semitas, os babilnios e os sumrios no eram circuncidados. Se Moiss era

    judeu, que sentido faria impor este costume to incmodo, que, at certo ponto, ostransformava em egpcios e manteria viva a lembrana do cativeiro no Egito? Este mais umindcio de que Moiss era egpcio.

    Pode-se supor que Moiss era circuncidado e os judeus no deveriam ser inferiores a

    ele, ento quis transform-los num povo santo e, como sinal de sua consagrao, introduziuentre eles o costume que os tornava iguais aos egpcios e separados dos povos estrangeiros, talcomo os prprios egpcios.

    Comecemos pela suposio de que Moiss era um membro da casa real e acalentava aidia de vir a ser o lder de seu povo e governante do reino. Deveria ser um aderente convictoda nova religio, mas quando o rei caiu, ele viu destrudas todas as suas esperanas e o Egitonada mais teria a lhe oferecer.

    Akhenaton afastara de si o povo e deixara seu imprio despedaar-se2, mas a naturezamais enrgica de Moiss planejou fundar um novo reino com um novo povo, a quemapresentaria a religio que o Egito desdenhara. Talvez Moiss fosse, nessa poca, governadorda provncia da fronteira (Gssen), onde certas tribos semitas se tinham estabelecido e a elas

    escolheu para ser seu povo. Chegou a um acordo com elas, e assim podemos supor que oxodo realizou-se pacificamente e sem perseguio, fato que a autoridade de Moiss tornou

    possvel, o que deve ter acontecido aps a morte de Akhenaton e antes do restabelecimento doreino por Haremhab3. Moiss deve ter levado consigo alguns seguidores da religio de Aton,escribas e criados domsticos.

    (4) No se deve supor que a queda da religio oficial de Aton tenha interrompido

    completamente a corrente monotesta no Egito, pois a classe sacerdotal de On sobreviveu catstrofe e pode ter continuado a influenciar geraes posteriores a Akhenaton. Assim, nossateoria ainda vlida, mesmo que Moiss no tenha vivido na poca de Akhenaton, o que

    apenas adiaria a data do xodo e a colocaria mais prxima da data geralmente adotada, nosculo XII a.C.

    Os judeus possuem, alm da Bblia, uma literatura com lendas e mitos em torno deMoiss que tanto o iluminam quanto o obscurecem. Existem histrias de suas aes militaresvitoriosas como general egpcio na Etipia e de como fugiu do Egito porque tinha motivos

    para temer a inveja de um partido na Corte ou do prprio fara. O prprio relato bblico

    1 Um dos fatos mais importantes da religio mosaica foi essa interdio de representar Deus atravs de imagense a f num Deus nico, inominvel e irrepresentvel, criador e no encarnado na natureza, mas fabricante dela.2 Akhenaton assumiu o trono sem preparo para tal e descuidou-se da parte poltica de seu reino. Com o tempo,os pases agregados ao imprio foram se rebelando, ficando independentes e parando de pagar seus tributos.

    3 Haremhab foi um general com pulso de ferro que colocou o Egito nos eixos novamente e restabeleceu a antigaordem religiosa e poltica. Segundo historiadores, o xodo deve ter ocorrido no final da XVIII e comeo da XIXDinastia.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 8

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    9/36

    atribui a Moiss certas caractersticas de natureza irascvel, como quando matou o brutalfeitor que estava maltratando um trabalhador judeu, ou quando quebrou as tbuas da Lei quetrouxera do Monte Sinai1. Como um trao dessa espcie no algo que sirva para sua

    glorificao, talvez possa corresponder a uma verdade histrica. Tampouco se pode excluir apossibilidade de que alguns dos traos caractersticos que atribuam a Deus (ciumento, severoe cruel), possam ter sido derivados do prprio Moiss.

    Outro trao atribudo a Moiss que ele deve ter sofrido um distrbio de fala, por isso precisou do apoio de Aaro, dito seu irmo. Podemos supor que foi contado de mododeformado que Moiss falava outra lngua e no podia comunicar-se com seus neo-egpciossemticos sem intrprete.

    Historiadores concordam que as tribos judaicas adquiriram uma nova religio emMerib-Cades, um osis ao sul da Palestina, onde assumiram a adorao do deus Jav,

    provavelmente da tribo rabe vizinha dos madianitas.Jav era um deus vulcnico, mas o Egito no possui vulces, e as montanhas da

    Pennsula de Sinai tambm nunca foram vulcnicas; por outro lado, existem vulces quepodem ter sido ativos at recentemente. Assim, uma dessas montanhas pode ter sido o Sinai-Horeb, a morada de Jav, um demnio sinistro e sedento de sangue, que vagueava pela noite eevitava a luz do dia.

    O mediador entre Deus e o povo, na fundao dessa religio, chamava-se Moiss, eragenro do sacerdote madianita Jetro e cuidava de seus rebanhos quando recebeu a convocaode Deus. Moiss em Madi no mais um egpcio neto do fara, mas um pastor a quem Javse revelou. Notemos que no relato das pragas, no se fala mais em suas vinculaes anteriorese o carter herico que a lenda de sua infncia pressupe est totalmente ausente desseMoiss, que apenas um homem de Deus, equipado por Jav com poderes sobrenaturais.Esse Moiss de Cades e Madi algum inteiramente diferente do egpcio, tanto quanto o

    deus Aton diferente do demnio Jav.

    (5)

    Em 1922, Ernest Sellin descobriu no profeta Osias, sinais de uma tradio segundo aqual Moiss encontrou um final violento num levante de seu povo que repudiava a novareligio, mas ao fim do cativeiro babilnico, surgiu entre o povo judeu a esperana de que ohomem que fora assassinado retornasse e os conduzisse cheios de remorso2.

    No Egito, um nmero considervel de pessoas deve ter abandonado o pas comMoiss. A tribo que retornou do Egito juntou-se, posteriormente, entre o Egito e Cana, comoutras tribos aparentadas. Dessa unio surgiu o povo de Israel, que adquiriu uma religio novaem comum. Mais tarde a palavra Jav viria a ser substituda por Adonai (senhor) sob a

    influncia de dois deuses originalmente diferentes. A catstrofe ocorrida com Moiss deve teracontecido muito antes da unio das tribos. Supomos que, entre a morte de Moiss e a novareligio em Cades, at um sculo tenha se passado.

    O nmero dos ex-egpcios era provavelmente menor, embora eles tenham se mostradoculturalmente mais fortes, exercendo influncia sobre a evoluo do povo, j que trouxeramconsigo uma tradio que faltava aos outros.

    1 A ligao dos cumes de colinas e de montes adorao e comunicao com Deus era um dos traoscaractersticos da antiga religio semtica.2 Moiss assassinado e o povo judeu passa a adorar Jav, uma cruel e vingativa divindade do deserto, at queum novo profeta, assumindo o nome de Moiss, os introduz a uma religio, tambm monotesta, mas baseada

    em princpios morais. Diz Peter Gay: "Um Fundador assassinado por seus seguidores, incapazes de se alarema seu nvel, mas herdando as conseqncias do crime e finalmente se corrigindo sob o peso de suaslembranas no podia haver nenhuma fantasia mais talhada para Freud..

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 9

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    10/36

    Um dos maiores enigmas da pr-histria judaica o da origem dos levitas, a tribo deLevi. Nenhuma tradio diz onde essa tribo estava localizada. Os levitas preenchiam osofcios sacerdotais mais importantes, sem serem necessariamente sacerdotes. Os seguidores,

    escribas e criados de Moiss que devem ter sido os levitas, pois apenas entre eles que osnomes egpcios aparecem. Presume-se que esses seguidores se multiplicaram e fundiram-secom o povo hebreu, mas permaneceram fiis a seu senhor. Na unio com os discpulos deJav, formaram uma minoria influente e culturalmente superior.

    Como os seguidores de Moiss davam muito valor sua experincia do xodo doEgito, essa libertao tinha de ser creditada a Jav como prova de seu poder, assim como acoluna de fumaa que se transformava noite numa coluna de fogo1 e a tempestade que abriuo mar. Esse relato aproximou o xodo e a fundao da religio e acabou com o longointervalo ocorrido entre um e outro. Fora Moiss e no o deus vulcnico que libertara o povodo Egito. Desse modo deviam-lhe uma compensao, que foi ele ser transferido para Cades ecolocado no lugar do sacerdote madianita. Dessa maneira Jav estendeu-se at o Egito e

    Moiss at Cades, se fundindo com a figura do fundador religioso posterior e emprestando-lheseu nome. Moiss descrito como prepotente, de temperamento arrebatado e at mesmoviolento, embora tambm seja descrito como o mais suave e paciente dos homens. Essasltimas qualidades evidentemente se ajustariam mal ao Moiss egpcio, ento elas podem ter

    pertencido ao Moiss madianita.

    (6)

    A narrativa bblica contm dados histricos que foram deformados tendenciosamente eembelezados poeticamente. Mas podemos supor que o que foi suprimido est oculto em outrolugar, embora modificado e fora de seu contexto e nem sempre fcil reconhecer.

    H sinais de esforos para negar que Jav era um novo deus, e com esse objetivo,

    foram introduzidas as lendas dos patriarcas do povo: Abrao, Isaac e Jac. Jav assegurou queele j era o deus dos antepassados, embora ele prprio admitisse que no o tivessem adoradocom esse nome, mas no diz qual era o outro nome. Se Jav introduzira a circunciso como

    pacto entre eles, o origem do costume da circunciso no seria egpcio. Mas esta foi umainveno inbil, pois como marca destinada a distinguir seu povo, seria melhor escolher algoque no pudesse ser encontrado em outro povo.

    A introduo dos patriarcas serviu ainda a outro propsito: eles tinham vivido emCana e possvel que fossem, originalmente, heris canaanitas ou divindades locais,tomados pelos israelitas imigrantes para compor a sua pr-histria. Apelando para os

    patriarcas, eles estavam defendendo-se do dio dos conquistadores estrangeiros. Foi umadistoro declarar que Jav estava apenas devolvendo o que seus antepassados tinham

    possudo.No devemos esperar coerncia lgica das estruturas mticas da religio, como a idia

    de um deus que escolhe um povo. Acredito que este o nico exemplo desse tipo na histriadas religies. H povos que adquirem deuses diferentes, mas no um deus que busca um povodiferente. Foi Moiss que se abaixara at os judeus e fizera-os o seu povo escolhido, e noDeus.

    (7)De todos os acontecimentos primitivos, se salienta o assassinato de Moiss, que foi

    apagado da histria. Moiss no empregou mtodos diferentes de Akhenaton, forando sua fao povo. Sua doutrina pode ter sido at mais dura do que a de Akhenaton e defrontou-se com

    1 Tudo indica que era um vulco em atividade. Lembremos que Jav era um Deus vulcnico.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 10

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    11/36

    o mesmo destino que esperam todos os dspotas esclarecidos: os dominados lanaram fora areligio imposta. Os egpcios haviam esperado at que o destino agisse, j os selvagenssemitas tomaram o destino nas mos e livraram-se de seu tirano.

    A Bblia descreve uma sucesso de revoltas contra sua autoridade, que foram abafadasmediante sangrentos castigos por ordem de Jav. fcil imaginar que uma dessas rebeliespossa ter terminado de maneira diferente do que o texto sugere.

    Chegou um tempo em que o povo comeou a lamentar o assassinato de Moiss e aprocurar esquecer seu fim violento. Alm do que, muito improvvel que Moiss pudesse terestado em Cades, ainda que no tivesse sido morto.

    A unio dessas tribos numa nao, atravs da adoo de uma religio comum,facilmente poderia ter-se transformado num acontecimento sem importncia na histriamundial. Jav provavelmente no era um deus proeminente, mas sim um deus grosseiro que

    prometera uma terra que emana leite e mel a seus seguidores e os incitara a guerra. Sequer certo que sua religio fosse um monotesmo genuno, pois talvez fosse apenas suficiente que

    encarassem Jav como mais poderoso do que outros deuses estrangeiros.O Moiss egpcio dera ao povo uma noo espiritualizada de Deus, como umadivindade nica a abranger o mundo inteiro, com averso a magia e uma vida na verdade e na

    justia. Em longo prazo no fez diferena que o povo tivesse rejeitado o ensinamento deMoiss, pois a tradio desse ensinamento permaneceu e sua influncia alcanougradativamente aquilo que fora negado a Moiss. O deus Jav conseguira honras nomerecidas, mas o deus cujo lugar ele ocupara tornou-se mais forte do que ele prprio foi ecapacitou o povo de Israel a sobreviver at nossos dias1.

    Tornou-se funo principal dos sacerdotes desenvolver e supervisionar o ritual, epreservar a escritura sagrada, revisando-a de acordo com seus fins. Surgiram ento os profetasque pregaram a doutrina mosaica e pediam apenas f e uma vida na verdade e na justia. Os

    esforos dos profetas alcanaram sucesso e tornaram-se o contedo permanente da religiojudaica.

    A histria judaica nos familiar por suas dualidades: dois grupos de pessoas que serenem para formar a nao, dois reinos em que essa nao se divide, dois nomes de deusesna Bblia. Acrescentamos ainda: a fundao de duas religies (a primeira reprimida pelasegunda e emergindo depois) e dois fundadores religiosos, (ambos chamados de Moiss ecujas personalidades temos de distinguir uma da outra). Todas essas dualidades existem

    porque uma parte do povo teve uma experincia que tem de ser considerada como traumtica, qual a outra parte escapou.

    1 Em anexo h um resumo da histria do povo judeu.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 11

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    12/36

    Moiss, o seu povo e a religio monotesta.

    Parte INota preambular I(Viena, antes de maro de 1938).Estamos vivendo num perodo especialmente marcante. Descobrimos que o progresso aliou-se

    barbrie. precisamente a instituio da Igreja Catlica que ergue uma defesa poderosa contra a disseminaodesse perigo civilizao. A Igreja que at agora constitura o incansvel inimigo da liberdade de pensamento edos progressos no sentido da descoberta da verdade!

    Estamos vivendo num pas catlico, sob a proteo dessa Igreja, incertos quanto ao tempo que essaproteo resistir. Mas, enquanto durar, hesitamos em fazer algo que estaria sujeito a despertar a hostilidadedesta Igreja. No se trata de covardia, mas de prudncia. O novo inimigo mais perigoso do que o antigo, comquem j havamos aprendido a entrar em acordo. As pesquisas psicanalticas que conduzimos so encaradas comateno suspeitosa pelo catolicismo. No sustentarei que isso seja injusto, j que nosso trabalho nos leva a umaconcluso que reduz a religio a uma neurose da humanidade. Conduziria provavelmente a sermos proibidos deexercer a psicanlise. Mtodos violentos de represso desse tipo no so, em verdade, de maneira algumaestranhos Igreja; o fato que ela sente como invaso de seus privilgios algum mais fazer uso dessesmtodos.

    No apenas acho, mas sei que me deixarei ser dissuadido por esse segundo obstculo, pelo perigoexterno, de publicar a ltima parte de meu estudo sobre Moiss. Assim, no entregarei este trabalho ao pblico.Mas isso no precisa impedir-me de escrev-lo. Ele pode ento ser preservado s ocultas at que, algum dia,chegue a hora em que possa aventurar-se luz sem perigo.

    Nota preambular II(Londres, junho de 1938).Na data anterior, eu estava vivendo sob a proteo da Igreja Catlica, temia que a publicao de meu

    trabalho resultasse na perda dessa proteo e conjurasse uma proibio sobre o trabalho dos adeptos e estudiososda psicanlise na ustria. Ento, veio a invaso alem e o catolicismo mostrou ser uma cana quebrada. Nacerteza de que seria perseguido no apenas por minha linha de pensamento, mas tambm por minha raa,acompanhado por muitos de meus amigos, abandonei a cidade que, desde minha primeira infncia, fora meu lardurante setenta e oito anos.

    Encontrei a mais amistosa recepo na Inglaterra. Aqui vivo agora, hspede bem-vindo; posso exalarum suspiro de alvio agora que o peso foi tirado de mim e mais uma vez posso falar e escrever, quase disse epensar, como quero ou como devo. Aventuro-me a apresentar ao pblico a ltima parte de minha obra.

    No restam obstculos externos, ou, pelo menos, nenhum de que se deva ter medo. Nas poucas semanasde minha estada aqui, recebi incontveis saudaes de amigos que ficaram satisfeitos por minha chegada. E,alm disso, chegaram comunicaes interessadas no estado de minha alma, apontando-me o caminho de Cristo eprocurando esclarecer-me sobre o futuro de Israel. As boas pessoas que dessa maneira escrevem no podem tersabido muito sobre mim1, mas quando este trabalho sobre Moiss se tornar conhecido entre meus novos

    compatriotas, serei privado da simpatia que certo nmero de pessoas sente por mim. Com referncia sdificuldades internas, uma revoluo poltica e uma mudana de domiclio nada poderiam alterar. Sinto-meincerto em face de meu prprio trabalho. Desde 1912, quando escrevi Totem e Tabu, nunca duvidei de que osfenmenos religiosos s podem ser compreendidos segundo os sintomas neurticos individuais que nos sofamiliares. Minha incerteza se instala apenas quando me pergunto se alcancei sucesso em provar essas teses. Seno tivesse podido encontrar apoio numa interpretao analtica do mito e passar da para a suspeita de Sellinsobre o fim de Moiss, tudo teria tido de permanecer sem ser escrito. De qualquer modo, demos agora omergulho.

    1 Freud era ateu. Se auto denominou um judeu sem Deus.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 12

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    13/36

    A A premissa histrica

    Na XVIII Dinastia, o Egito tornou-se um imprio mundial, o que se refletiu nodesenvolvimento das idias religiosas. Sob a influncia dos sacerdotes do deus solar em On

    (Helipolis), fortalecida por impulsos vindos da sia, surgiu idia de um deus universal,Aton. O jovem Amenfis IV chegou ao trono com o interesse de desenvolver essa idia. Elepromoveu religio de Aton a religio estatal e, atravs dele, o deus universal tornou-se onico deus. Inflexvel, ele resistiu e rejeitou a iluso de uma vida aps a morte e identificou naenergia da radiao solar a fonte de toda a vida sobre a Terra, adorando-a como smbolo do

    poder de seu deus. Esse o primeiro e talvez o mais claro caso de uma religio monotesta nahistria humana.

    Com os sucessores de Akhenaton, tudo o que ele havia criado entrou em colapso: suareligio foi abolida e a capital destruda e saqueada. A reforma de Akhenaton parecia ser umepisdio fadado ao esquecimento.

    Entre as pessoas prximas de Akhenaton havia um homem talvez chamado

    Tuthmosis1

    . Como muitas outras pessoas daquela poca, era um adepto convicto da religiode Aton, mas, em contraste com o rei meditativo, era enrgico e apaixonado. Para ele, a mortede Akhenaton e a abolio da sua religio significaram o fim de todas as suas esperanas, poiss poderia permanecer no Egito como renegado. Talvez, como governador de uma provnciada fronteira, tenha entrado em contato com uma tribo semita que imigrara para l algumasgeraes antes. Voltou-se para esses estrangeiros e neles buscou compensao para suas

    perdas. Escolheu-os como seu povo e neles tentou realizar seus ideais. Aps ter abandonado oEgito com eles, acompanhado por seus seguidores, transformou-os em santos pelo sinal dacircunciso, forneceu-lhes leis e introduziu-os na doutrina de Aton, que os egpcios tinhamrejeitado.

    A pesquisa histrica mostrou que os judeus livraram-se da religio de Aton, unindo-se

    mais tarde com tribos afins em Cades e assumindo uma nova religio, a adorao do deusvulcnico Jav. Pouco depois disso, estavam prontos para invadir Cana2 comoconquistadores durante um longo perodo.

    O deus Jav no apresentava semelhana com o deus mosaico. Sem dvida, Jav eramais apropriado a um povo que estava comeando a ocupar novas terras pela fora. Tudo nodeus mosaico que merecia admirao estava muito alm da compreenso destas massas. Como decorrer do tempo, Jav perdeu suas caractersticas e comeou a assemelhar-se ao antigodeus de Moiss, Aton.

    Pode no ter sido fcil ao povo reconciliar a crena em ser preferido por seu deus comas tristes experincias de seu destino. Mas eles no se deixaram abalar em suas convices eaumentaram seu sentimento de culpa para sufocar suas dvidas a respeito de Deus. Se eles se

    espantaram por Deus ter permitido que um agressor aps outro surgisse (assrios, babilnios,persas). Todos esses inimigos conquistados e seus imprios desvaneceram.

    No Egito, o monotesmo cresceu como um subproduto do imperialismo, ou seja, Deusera um reflexo do fara, que era soberano absoluto de um grande imprio mundial. Com os

    judeus, as condies polticas eram altamente desfavorveis ao desenvolvimento da idia de

    1 Um dos netos de Tutms IV, Tuthmsis seria fara, no fosse o fato de ter morrido cedo por motivos que sedesconhece. Ento, quem assume o trono aos 12 anos de idade Amenfis IV (de 1353 a 1336 a.C), que sofreuma grande influncia de sua me, Tye, que o guia para uma reforma religiosa completa no Egito. Tuthmsisdeve ter sido um nome comum na poca.

    2 Cana era uma terra onde se desenvolvia uma forte agricultura e grandes pastagens, era defendida por umamultido de cidades pequenas cercadas por um formidvel sistema de defesa e habitada por um povo belicoso.No entanto este poder havia se enfraquecido com incurses egpcias.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 13

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    14/36

    um deus nacional exclusivo. E onde foi que essa minscula e impotente nao achou aarrogncia de declarar-se a si prpria filha favorita do grande Senhor?

    A idia de um deus nico foi trazida ao povo por Moiss. A narrativa sacerdotal busca

    estabelecer uma continuidade entre seu perodo contemporneo e o remoto passado mosaico;busca repudiar o que descrevemos como o fato mais notvel da histria judaica, que aexistncia de uma lacuna entre a legislao de Moiss e a religio judaica posterior, lacunaque foi preenchida pela adorao de Jav, e s lentamente remendada depois.

    B O perodo de latncia e a tradioA idia do deus nico da doutrina mosaica no teve nenhum prestgio a princpio, mas

    aps um intervalo de tempo tornou-se permanentemente estabelecida. Como explicaremos umefeito retardado desse tipo?

    Tais idias so encontradas nas esferas mais variadas, tal como a teoria da evoluo deDarwin. A princpio, ela defrontou-se com grande rejeio e foi violentamente discutida

    durante dcadas. Isso acontece porque a nova verdade desperta resistncias emocionais e ocombate de opinies toma um grande tempo. Desde o princpio, h adeptos e oponentes paraestas idias at que, por fim, os adeptos se sobressaem.

    No h dificuldade em encontrar, na vida mental de um indivduo, uma analogia quecorresponde a esse processo. Um exemplo um homem que experimentou um acidente edeixou a cena desse evento aparentemente inclume. No decorrer das semanas seguintes,contudo, desenvolve sintomas ligados ao choque. O tempo decorrido entre o acidente e ossintomas o perodo de incubao, numa clara aluso s doenas infecciosas. Apesar dadiferena fundamental entre a neurose traumtica e o monotesmo judaico, h um ponto deconcordncia: a latncia. Segundo nossa hiptese, houve aps Moiss, um longo perododurante o qual no se detectou sinal algum da idia monotesta, pois tinham bons motivos

    para reprimir a lembrana da sorte de seu lder.O povo oriundo do Egito trouxera consigo a escrita e o desejo de escrever histria.

    Inicialmente no tinham escrpulos em modelar as narrativas segundo suas necessidades,assim desenvolveu-se uma discrepncia entre o registro escrito e a transmisso oral do mesmomaterial.

    O fenmeno da latncia na histria da religio judaica pode ser explicado pelo fato deque as idias nunca se perderam realmente. O povo judeu abandonou a religio de Moiss evoltou-se para a adorao de outro deus, mas algum tipo de lembrana manteve-se viva: um

    passado que continuou a operar e que gradativamente adquiriu poder sobre as mentes daspessoas e ao final, conseguiu transformar o deus Jav no deus mosaico.

    Se tudo o que resta do passado so enevoadas lembranas, isso oferece ao artista uma

    atrao peculiar, pois ele fica livre para preencher as lacunas de acordo com os desejos de suaimaginao. Quanto mais vaga uma tradio, mais til ela se torna para um poeta1.

    C A analogiaDenominamos traumas aquelas impresses, cedo experimentadas e mais tarde

    esquecidas que esto na gnese de uma neurose. O aparecimento precoce dessas experinciastraumticas (durante os cinco primeiros anos de vida), o fato de serem esquecidas e seucontedo agressivo, esto vinculados.

    A vida sexual dos seres humanos apresenta uma florescncia precoce que chega ao fimpor volta do quinto ano, sendo seguida pelo perodo de latncia (at a puberdade). No pode

    1 Podemos constatar que Freud reescreve partes da Bblia a exemplo do que fizeram os autores bblicos e/oupoetas da antiguidade: usando em parte o fato histrico e em parte a imaginao.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 14

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    15/36

    ser psicologicamente indiferente que o perodo de amnsia infantil coincida com esse perodoprimitivo da sexualidade.

    Dois pontos devem ser acentuados quanto s caractersticas dos fenmenos neurticos:

    (a) Os efeitos dos traumas podem ser positivos ou negativos. Os primeiros sotentativas de pr o trauma em funcionamento mais uma vez pelas fixaes como umacompulso a repetir. As reaes negativas tm como objetivo que nada dos traumas sejarecordado. So reaes defensivas. Sua expresso principal a evitao, que se podetransformar em inibies e fobias. Sintomas de neurose so causados por conflitos entre osdois tipos de efeitos do trauma.

    (b) Todos esses fenmenos neurticos possuem uma qualidade compulsiva que no influenciado pela realidade externa. Um trauma da infncia pode ser imediatamente seguido

    por um desencadeamento neurtico, dando origem a uma neurose infantil. Esta neurose podedurar um tempo considervel, mas pode tambm no ser notada. Seja como for, so deixadascicatrizes no ego. S raramente uma neurose infantil prossegue sem interrupo at uma

    neurose adulta. Defesas do ego se mostram agora um estorvo ao lidar com as novas tarefas davida adulta, de maneira que surgem graves conflitos entre as exigncias do mundo externo e oego, que busca manter a organizao a que chegou em sua luta defensiva.

    D Aplicao

    Trauma primitivo defesa latncia desencadeamento da doena neurtica retorno parcial do reprimido. Esta a frmula que estabelecemos para o desenvolvimento deuma neurose.

    Ocorre na vida da espcie humana algo semelhante ao que ocorre na vida dosindivduos, aonde um trauma deixa fenmenos semelhantes a sintomas e podemos demonstrarque essas conseqncias so os fenmenos da religio. O totemismo a adorao de um

    substituto paterno1, com a instituio de festivais comemorativos e de proibies cuja infraoera punida pela morte. Essa foi a primeira forma de manifestao religiosa humana.

    O primeiro passo para longe do totemismo foi a humanizao do ser que era adorado.Em lugar dos animais, aparecem deuses humanos, mas que possuem uma derivao do totemque representado sob a forma de um animal, ou o totem se torna o companheiro do deus oua lenda nos conta que o deus matou esse animal que era um estgio preliminar dele prprio.Em certo ponto dessa evoluo aparecem grandes deusas-mes e novamente orestabelecimento patriarcal. Os novos pais jamais conquistaram a onipotncia do pai primevo,estavam obrigados a se manter em bons termos uns com os outros e permaneceram sob aslimitaes das ordenanas sociais.

    provvel que as deusas-mes se tenham originado na poca do fim do matriarcadocomo compensao da desateno s mes. O passo seguinte, contudo, nos conduz ao temaque aqui nos interessa: ao retorno de um deus-pai nico, de domnio ilimitado.

    Tem-se de admitir que esse levantamento histrico possui lacunas e incerto. Partesdo passado aqui reunidas esto historicamente atestadas como o totemismo e as confederaesmasculinas, por exemplo. Outras partes sobreviveram em rplicas. impressionante, porexemplo, a maneira fiel como o sentido da antiga refeio totmica repetido, na comunhocrist, aonde o crente incorpora o sangue e a carne de seu deus, em forma simblica.

    Numerosas relquias da era primeva, esquecidas, sobrevieram nas lendas populares e noscontos de fadas, e o estudo analtico da vida mental das crianas proporcionou umaabundncia de material para preencher as lacunas em nosso conhecimento dos tempos

    1 Ver anexo da histria do pai primevo.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 15

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    16/36

    primitivos. Nada existe de inteiramente fabricado em nossa construo, nada que no possaapoiar-se em fundamentos slidos.

    Nenhuma outra parte da histria da religio se tornou to clara quanto a introduo do

    monotesmo no judasmo e sua continuao no cristianismo. Se aceitarmos o imprio dosfaras como o incio do monotesmo, veremos que essa idia foi, aps um longo perodo delatncia, assumida pelo povo judeu e por ele preservada como uma possesso preciosa que omanteve vivo pelo orgulho de ser um povo escolhido. Foi a religio de seu pai primevo queligou sua esperana de recompensa e de domnio mundial. Fantasia esta, abandonada pelo

    povo judeu, mas que ainda sobrevive entre os inimigos desse povo, na crena de umaconspirao.

    como se um crescente sentimento de culpa se tivesse apoderado do povo judeu ou detodo o mundo civilizado da poca, como um retorno do reprimido. At que um desses judeusencontrou, ao justificar um agitador poltico-religioso, ocasio para criar uma nova religio, acrist. Saulo, um judeu romano de Tarso, fez esse sentimento de culpa remontar sua fonte

    original e chamou essa fonte de pecado original; um crime contra Deus que s podia serexpiado pela morte. Na verdade, esse crime fora o assassinato do pai primevo, posteriormentedeificado. Mas o assassinato no era recordado. Um filho de Deus se permitira ser morto semculpa e tomara sobre si a culpa de todos os homens (tinha de ser um filho, visto que fora oassassinato de um pai1).

    O redentor foi o cabea da reunio de irmos que havia derrotado o pai. E no importase o que temos aqui uma fantasia ou o retorno de uma realidade esquecida2; o heri semprese rebela contra o pai e o mata. A ambivalncia que domina a relao com o pai foidemonstrada na nova religio quando o deus paterno destronado em favor do filho. O

    judasmo fora uma religio do pai, o cristianismo tornou-se uma religio do filho. O antigoDeus Pai tombou para trs de Cristo que tomou seu lugar, tal como todo filho tivera

    esperanas de faz-lo, nos tempos primevos.Saulo foi um homem de vocao inatamente religiosa e os traos sombrios do passado

    espreitavam em sua mente, prontos a irromperem para a conscincia. Ele deveu seu sucessoao fato de exorcizar o sentimento de culpa da humanidade, por abandonar o carterescolhido de seu povo e o sinal visvel (a circunciso), de maneira que a nova religio pdeser uma religio universal, a abranger todos os homens.

    Sob certos aspectos, a nova religio significou uma regresso cultural. No era maisestritamente monotesta, tomou numerosos rituais simblicos de povos circunvizinhos,restabeleceu a grande deusa-me e achou lugar para introduzir muitas das figuras divinas do

    politesmo, apenas ligeiramente veladas, ainda que em posies subordinadas. Acima de tudo,no excluiu o ingresso de elementos supersticiosos que deveriam mostrar-se como uma

    inibio sobre o desenvolvimento intelectual dos dois mil anos seguintes. O triunfo docristianismo foi um novo triunfo dos sacerdotes de Amon sobre o deus de Akhenaton, apsum intervalo de mil e quinhentos anos.

    Valeria pena entender como foi que a idia monotesta causou uma impresso toprofunda sobre o povo judeu e como foram eles capazes de mant-la to tenazmente. Odestino trouxera a morte do pai primevo para perto do povo judeu, fazendo-o repeti-lo na

    pessoa de Moiss. Mais tarde, a morte violenta de outro grande homem se tornou o ponto departida de uma nova religio. Tratava-se de um homem a quem um pequeno nmero de

    1

    Tradies de mistrios orientais e gregos exerceram influncia na fantasia da redeno.2 Na anlise individual, a fantasia tem a fora e o poder da realidade e Freud usa esta mesma regra para aanlise de massa.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 16

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    17/36

    adeptos na Judia encarava como sendo o Filho de Deus e o Messias anunciado, e a quemuma parte da histria da infncia inventada para Moiss foi transferida.

    A morte de Moiss torna-se assim parte indispensvel de nossa construo. O remorso

    pelo assassinato de Moiss forneceu o estmulo para a fantasia de desejo de um Messias, quedeveria retornar e conduzir seu povo redeno e ao prometido domnio mundial. Se Moissfoi o primeiro Messias, Cristo tornou-se seu substituto retornado da horda primitiva ecolocado no lugar do pai.

    O povo judeu expiou o assassinato do pai pesadamente no decurso do tempo.Defrontou-se constantemente com a recriminao: Vocs mataram nosso Deus! Ou melhor:Vocs no admitem que mataram Deus. Mas deveria haver um acrscimo, declarando-se:Fizemos a mesma coisa, verdade, mas o admitimos, e, desde ento fomos absolvidos. Umfenmeno de tal intensidade e permanncia como o dio pelos judeus deve possuir mais deuma fonte, algumas delas derivadas da realidade e outras mais profundas. Das primeirasfontes:

    Por serem estrangeiros em muitos lugares dominados pelo anti-semitismo, onde estavamentre as partes mais antigas da populao. Por viverem como minorias entre outros povos, pois o sentimento de grupos exige a

    hostilidade para com alguma minoria externa, e a debilidade numrica dessa minoriaencoraja essa agresso.

    H, contudo, duas outras caractersticas dos judeus que so inteiramente imperdoveis: O fato de, sob alguns aspectos, terem pequenas diferenas de suas naes hospedeiras. A

    intolerncia dos grupos quase sempre exibida contra essas pequenas diferenas. Outra coisa que as perseguies mais cruis no conseguiram extermin-los, pelo

    contrrio, exibem uma capacidade de manter o que seu na vida comercial, onde podemefetuar contribuies valiosas a todas as formas de atividade cultural.

    Mas os motivos mais profundos do dio pelos judeus esto enraizados nas maisremotas eras passadas e operam desde o inconsciente dos povos: O cime para com o povo que se declarou o filho primognito e favorito de Deus ainda

    hoje no foi superado, como se estes outros povos tivessem pensado que havia verdade nareivindicao.

    A circunciso, que desagrada por lembrar a temida castrao e uma parte do passadoprimevo que fora esquecida.

    Finalmente, todos os povos que tm dio pelos judeus se tornaram cristos tardiamente eimpulsionados por sanguinria coero. Sobrou-lhes aquilo que era dos seus ancestrais:um politesmo brbaro.

    Ainda no superaram o ressentimento contra a nova religio que lhes foi imposta, masdeslocaram esse ressentimento para a fonte de onde o cristianismo os foi buscar. O fato dosevangelhos contarem uma histria que trata apenas de judeus, tornou-lhes fcil essedeslocamento. Seu dio pelos judeus , no fundo, um dio pelos cristos.

    E DificuldadesSob que forma o assassinato de Moiss se apresenta na vida do povo judeu? possvel

    um conhecimento como esse produzir uma emoo to duradoura nas massas? Existe certasemelhana entre o indivduo e o grupo, onde impresses do passado so retidas em traosmnmicos inconscientes. No indivduo podemos ver estes traos atravs da anlise, pois o que esquecido no se extingue, mas apenas reprimido e continua a se esforar para abrir

    caminho at a conscincia.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 17

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    18/36

    O id a instncia mais antiga e o ego desenvolveu-se a partir dele pela influncia domundo externo. Na formao do ego, certas impresses e processos psquicos so reprimidos,como os traumas primitivos, que depois operam na vida psquica de um indivduo. Tambm

    h elementos de origem filogentica que operam aqui. Surge ento a questo de saber em queconsiste essa herana filogentica, o que contm, e qual a prova de que ela existe.Nas reaes a traumas precoces, influem as experincias do individuo e um modelo

    filogentico que corresponde a traos de memria da experincia de geraes anteriores.Se presumirmos a sobrevivncia desses traos de memria na herana arcaica, teremos

    cruzado o abismo existente entre a psicologia individual e a de grupo e podemos lidar compovos tal como fazemos com um indivduo neurtico.

    Se quisermos encontrar qualquer explicao dos instintos dos animais, ela s pode sera de que preservaram recordaes do que foi experimentado por seus antepassados. Com o serhumano no seria diferente. Aps esse exame, no hesito em declarar que os homens sempresouberam que um dia possuram um pai primevo e o assassinaram.

    Sob que condies uma recordao desse tipo ingressa na herana arcaica? Issoacontece se o fato foi suficientemente importante e/ou repetido com bastante freqncia. Ele despertado da memria por uma repetio real e recente do acontecimento. O assassinato deMoiss constituiu uma repetio desse tipo e, posteriormente, o suposto assassinato de Cristo.

    Parte II Resumo e recapitulao

    A parte deste estudo que se segue no pode ser entregue ao pblico sem extensasdesculpas, pois ela quase que uma repetio da primeira parte.

    A O povo de Israel

    De todos os povos que viveram ao redor da bacia do Mediterrneo na Antiguidade, opovo judeu quase o nico que ainda existe. No h dvida de que eles tm uma opinioparticularmente elevada de si prprios, de que se consideram mais eminentes, de posio maisalta, superiores a outros povos e dos quais tambm se distinguem por muitos de seuscostumes. Ao mesmo tempo, so inspirados por uma confiana peculiar na vida. Elesrealmente se consideram o povo escolhido de Deus, e quando se o favorito declarado do pai,no se precisa ficar surpreso com o cime dos irmos. O curso da histria mundial parecia

    justificar a presuno dos judeus, visto que, quando agradou a Deus enviar um Messias,escolheu-o entre o povo judeu, o que s intensificou o dio pelos judeus, ao passo que eles

    prprios, no viram vantagem alguma desse favoritismo, j que no reconheceram o redentor.

    Foi Moiss que elevou a auto-estima deste povo, assegurando-lhes ser o povoescolhido e separando-os dos outros. Essa auto-estima tornou-se parte de sua f. Foi Moissque criou os judeus e a ele que esse povo deve sua tenacidade e muito da hostilidade queexperimentou e ainda experimenta.

    B O grande homem

    Como possvel a um homem isolado formar um povo, cunh-lo com seu carter edeterminar seu destino por milhares de anos?

    Reservamos assim um lugar para os grandes homens, a saber, sob que condiesconferimos esse ttulo de honra. Um grande homem influencia seus semelhantes por sua

    personalidade e pelas idias que apresenta. Essas idias podem acentuar algum antigo desejo

    das massas, apontar um novo desejo ou lanar de algum outro modo seu encantamento sobreas mesmas. Sabemos que na massa humana existe uma necessidade de uma autoridade que

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 18

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    19/36

    possa ser admirada, perante quem nos curvemos, por quem sejamos dirigidos e talvez, atmaltratados. Trata-se de um anseio pelo pai. As caractersticas com que aparelhamos osgrandes homens so caractersticas paternas e a essncia dos grandes homens reside nisso.

    Tem-se de admir-lo, pode-se confiar nele, mas no se pode deixar de tem-lo. Quem, seno opai pode ter sido o grande homem na infncia? Foi um poderoso prottipo do pai que, napessoa de Moiss1, se curvou at os escravos judeus para lhes assegurar que eram seus filhosqueridos. E no menos esmagador deve ter sido o efeito sobre eles da idia de um Deus nico,eterno e todo poderoso, para quem no eram humildes demais para que com eles fizesse um

    pacto e prometesse cuidar deles se permanecessem leais sua adorao. Provavelmente nolhes foi fcil distinguir a imagem de Moiss da de seu Deus, pois Moiss pode ter introduzidotraos de sua prpria personalidade no carter do seu Deus.

    A idia religiosa que Moiss representava no era sua, ele a tomou de Akhenaton quetalvez seguiu sugestes vindas da sia atravs de sua me ou por outros caminhos. claroque muitos tiveram parte no desenvolvimento desta religio e lhe deram contribuies.

    Finalmente devido a grandes reformas, efetuou-se a transformao do deus Jav no Deus deMoiss.

    C O avano em intelectualidadeA fim de obter resultados psquicos duradouros no povo judeu, no bastava assegurar-

    lhes que foram escolhidos por Deus, o fato tambm deveria ser provado de alguma maneira.O xodo do Egito serviu como prova e a festa da Pscoa foi introduzida a fim de manter alembrana desse acontecimento. Posteriormente, os sinais do favor de Deus ficaram escassose a histria do povo apontava antes para seu desfavor2. Os povos primitivos costumavamdepor seus deuses ou at mesmo castig-los, se deixassem de cumprir seu dever de assegurar-lhes vitria, felicidade e conforto. Por que ento, o povo de Israel, apegou-se cada vez mais a

    seu Deus quanto pior era tratado por este?Entre os preceitos da religio de Moiss h a proibio de fabricar uma imagem deDeus. Essa proibio significa uma percepo abstrata, um triunfo da intelectualidade sobre asensualidade ou, uma renncia instintual. A proibio mosaica elevou Deus a um grausuperior de intelectualidade. Todos os avanos desse tipo tm como conseqncia o aumentoda auto-estima do indivduo, tornando-o orgulhoso, de maneira que se sente superior a outras

    pessoas que permaneceram sob o encantamento da sensualidade. A desmaterializao de Deustrouxe uma nova e valiosa contribuio para o tesouro desse povo. O infortnio poltico danao ensinou-a a apreciar a nica possesso que lhe restou, a sua literatura. Imediatamenteaps a destruio do Templo em Jerusalm por Tito, o rabino Jochanan ben Zakkai solicitou

    permisso para abrir a primeira escola de Tor em Jabn. Dessa poca em diante, a Escritura

    Sagrada e o interesse intelectual por ela mantiveram reunidos o povo dispersado.A permanncia aos labores intelectuais atravs de cerca de dois mil anos na vida do

    povo judeu teve seu efeito. Ajudou a controlar a brutalidade e a tendncia violncia, aptas aaparecer onde o desenvolvimento da fora muscular constitui o ideal popular3.

    D A renncia ao instintoNa psicologia individual, o id d origem a uma exigncia instintual que o ego satisfaz

    atravs de uma ao prazerosa, tal como sua no satisfao seria desprazerosa. Esta rennciaconduziria a uma tenso duradoura se no fosse possvel o deslocamentos de energia. Arenncia instintual pode acontecer tambm por razes internas, quando uma parte do mundo1 Na anlise clnica, muitas das autoridades da vida do indivduo so sentidas como o pai.2 Ver anexo: Breve histria do povo judeu.3 Na verdade, esta violncia foi apenas reprimida nestes 3.500 anos, pois hoje o povo judeu est armado.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 19

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    20/36

    externo internalizada no ego para formar o superego. Quando a renncia se deve a razesinternas, o ego orgulha-se da renncia instintual, como se ela constitusse uma realizao devalor, pois o superego o representante dos pais que supervisionam suas aes. Quando o ego

    traz ao superego o sacrifcio de uma renncia instintual, ele espera ser recompensado,recebendo mais amor.Ainda que possa parecer que a renncia instintual e a tica no faam parte da religio,

    geneticamente esto intimamente vinculadas. O totemismo, por exemplo, traz consigo ordense proibies que possuem renncias instintuais.

    O grande homem a autoridade por cujo amor renncia levada a cabo, e visto queo grande homem opera por semelhana com o pai na psicologia de grupo, o papel de superegocabe a ele. Um avano em intelectualidade consiste em decidir contra a percepo sensria emfavor de processos intelectuais e na paternidade ser mais importante do que a maternidade1.

    No desenvolvimento da humanidade, a sensualidade gradativamente superada pelaintelectualidade e os homens se sentem orgulhosos e exaltados por cada avano desse tipo,

    apesar da intelectualidade ser ainda superada pelo fenmeno emocional da f.A religio que comeou com a proibio de fabricar uma imagem de Deus,transforma-se numa religio de renncias instintuais. No que ela exija abstinncia sexual,mas contenta-se com uma restrio sexual. Deus afasta-se da sexualidade e eleva-se para atica, que tambm uma limitao do instinto. Os profetas nunca se cansaram de assegurarque Deus nada exige de seu povo seno uma conduta de vida justa e virtuosa, isto , abstenode toda satisfao instintual. E mesmo a exigncia de crena nele parece ficar em segundolugar, em comparao com a seriedade desses requisitos ticos.

    Estes acontecimentos repetem-se na vida do indivduo quando a autoridade do pai,ameaadora, exige uma renncia ao instinto. Ento, na vida adulta, o bem-comportado outravesso da infncia, descrito como bom ou mau.

    Examinando o conceito de santidade, o sagrado algo em que no se pode tocar. Porexemplo, deveria o incesto com uma filha ser um crime to pior do que qualquer outra relaosexual? O que insultante a nossos mais sagrados sentimentos constitua um costumeuniversal que foi tornado sagrado. No Egito, era natural que o fara tomasse a irm como sua

    principal esposa. O incesto, nesse caso, constitua um privilgio reservado aos reis comorepresentantes dos deuses.

    O horror ao incesto era um produto da vontade do pai que continuou depois que ele foiafastado, da provm sua fora emocional. Aquilo que sagrado, nada mais do que o

    prolongamento da vontade do pai primevo.Quando ouvimos que Moiss tornou santo seu povo pela introduo do costume da

    circunciso, compreendemos que a circunciso o substituto simblico da castrao que o pai

    primevo infligira aos filhos e todo aquele que aceitava esse smbolo demonstrava que estavapreparado para submeter-se vontade do pai, mesmo que esta lhe impusesse o mais penososacrifcio.

    E O que verdadeiro em religio

    Quo invejveis so aqueles que esto convencidos da existncia de um Ser Supremo!S podemos lamentar que certas experincias da vida tornem impossvel aceitar tal Ser2.Como se no mundo j no houvesse enigmas suficientes, -nos proposto compreender comoessas pessoas puderam adquirir sua crena que esmaga a razo e a cincia.

    1

    A me com quem temos contato fsico desde o nascimento, com embalos, amamentao, colo, higiene, etc.O pai quem amamos mesmo sem este contato todo. Hoje isto j um tanto diferente.2 Freud era completamente ateu.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 20

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    21/36

    A religio de Moiss levou longo tempo para ter todo o seu efeito, e foi a tradio deum grande passado que conquistou cada vez mais poder sobre as mentes dos homens,transformando o deus Jav no Deus de Moiss.

    F O retorno do reprimidoH sempre uma identificao com o pai na primeira infncia. As experincias dos

    cinco primeiros anos de uma pessoa exercem efeito determinante sobre sua vida. O egoreprime contedos indesejveis e todos os sintomas emocionais podem ser descritos como oretorno do reprimido. Sua principal caracterstica a deformao do material reprimidocomparado com o original.

    G Verdade histricaUm homem primitivo tem necessidade de um deus como criador do universo, como

    chefe de seu cl, como protetor pessoal e esse deus assume posio por trs dos seus pais

    mortos. Um homem de nossos dias tambm tem essa necessidade de proteo e inclusivepensa que no pode passar sem o apoio de seu deus. difcil compreender por que s podehaver um deus, e no caso do povo judeu, se esse deus universal, isso significa um sacrifcioda intimidade entre esse povo e Deus. E h de haver uma compensao por isso, j que se o

    povo preferido por ele.O intelecto humano no possui um faro bom para a verdade, pelo contrrio, nada

    mais facilmente acreditado por ns do que aquilo que, sem referncia verdade, vem aoencontro de nossas iluses carregadas de desejo. No acredito que exista um nico e grandedeus1, mas, em tempos primevos, houve uma pessoa que estava fadada a parecer imensa eque, posteriormente, retornou na memria dos homens, elevada divindade.

    Quando Moiss trouxe ao povo a idia de um deus nico, ela no constituiu uma

    novidade, mas foi a volta de uma experincia das eras primevas. Uma idia como essa possuium carter compulsivo, e assim deve ser acreditada. At o ponto em que deformada, a idiapode ser descrita como um delrio, mas na medida em que traz um retorno do passado, deveser chamada de verdade. Tambm os delrios psiquitricos contm fragmentos de verdade.Como no sou etnlogo, mas psicanalista, extraio da literatura etnolgica, o que possanecessitar para o trabalho de anlise.

    H O desenvolvimento histricoAps a instituio do cl fraterno, comeou um lento retorno do reprimido. O pai mais

    uma vez tornou-se o cabea da famlia, mas de modo algum era to absoluto quanto o pai dahorda primeva. A idia de uma divindade suprema parece ter comeado cedo, e medida que

    os povos se reuniam em unidades maiores, os deuses tambm se organizavam em famlias ehierarquias. Aps isso, veio o respeito a um s deus, e, tomou-se a deciso de conceder todo o

    poder a este deus no tolerando outros deuses. Foi assim que a supremacia do pai da hordaprimeva foi restabelecida e as emoes referentes a ele puderam ser repetidas com a devooa Deus.

    Os impulsos emocionais de uma criana so intensos e profundos, num grau diferentede um adulto e s o xtase religioso pode traz-los de volta. A ambivalncia faz parte daessncia da relao com o pai, o que impulsionou os filhos a matarem-no. Como no havialugar na religio de Moiss para o dio assassino pelo pai, tudo o que podia haver era umsentimento de culpa por causa dessa hostilidade2. Esse sentimento de culpa foi mantido pelos

    profetas e constituiu parte do sistema religioso judeu. As coisas estavam indo mal para o

    1 um erro imaginar ser possvel reduzir experincias religiosas e psicanalticas ao produto de um mesmoconhecimento.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 21

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    22/36

    povo, no mereciam mais do que serem punidos, visto no terem obedecido aos mandamentosde Deus. E, para satisfazer esse sentimento de culpa, tinham de fazer com que essesmandamentos se tornassem ainda mais duros e impuseram-se mais renncias instintuais

    atingindo ticas que permaneceram inacessveis aos outros povos da antiguidade.O sentimento de culpa daqueles dias apoderara-se de todos os povos mediterrneoscomo uma premonio de calamidade para a qual ningum podia sugerir uma razo 1. Aelucidao dessa situao de depresso surgiu no judasmo atravs de Saulo de Tarso, quecompreendeu o porqu de sermos to infelizes: porque matamos o Deus pai. Saulo s nosapresentou um fragmento da verdade neste delrio da boa notcia: estamos libertos de todaculpa, uma vez que um de ns sacrificou a vida para absolver-nos. Nessa frmula, a morte deDeus no foi mencionada, mas um crime que tinha de ser expiado pelo sacrifcio de umavtima, s poderia ter sido um assassinato. O sentimento bem-aventurado de ser escolhido porDeus foi substitudo pelo sentimento da redeno e o crime inominvel foi substitudo pelo

    pecado original.

    O pecado original e a redeno pelo sacrifcio2

    tornaram-se as pedras fundamentais denova religio fundada por Saulo. Aps a doutrina crist ter queimado a estrutura do judasmo,recolheu componentes de muitas outras fontes, renunciou a uma srie de caractersticas domonotesmo puro e adaptou-se, em muitos pormenores, aos rituais de outros povosmediterrneos. Foi como se o Egito mais uma vez se vingasse dos herdeiros de Akhenaton.Vale a pena notar como a nova religio lidou com a antiga ambivalncia na relao com o pai:seu contedo principal foi a reconciliao com o Deus, mas o filho torna-se um deus em lugardeste. Ou seja, o cristianismo no escapou ao destino de ter de livrar-se do pai.

    Apenas uma parte do povo judeu aceitou a nova doutrina e aqueles que a recusaram,ainda hoje so obrigados a pagar uma pesada penitncia por isso.

    Talvez nossa investigao tenha alcanado um pouco de luz sobre a questo de saber

    como o povo judeu adquiriu as caractersticas que o distinguem.

    2 Quando existe dio, sempre existe destrutividade e no importa ao emocional se esta destrutividade foi levadaa cabo ou no, sempre vai existir a culpa.1 Como a idia de que o mundo ia acabar na virada do milnio.2 Quando Jesus representado na cruz, serve para lembrar seu sacrifcio.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 22

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    23/36

    Anexos1 - A Histria de Jos

    Em Cana vivia Jac e sua famlia. Jac amava e preferia Jos aos outros filhos e mandou-lhe fazer uma tnica de vrias cores. Por isso, os mais velhos comearam a invej-lo. Uma vez, Jossonhou que o sol, a lua e onze estrelas inclinavam-se diante dele. O pai repreendeu-o porque ele, ame e os irmos no haveriam de se prostrar diante dele. E a inveja e o dio dos irmos aumentavamcada vez mais.

    Um dia, os irmos de Jos tinham ido para longe com os rebanhos, e o pai disse a Jos quefosse ver se estavam bem. Assim que eles o avistaram resolveram mat-lo e dizer que uma fera odevorou. Passava por ali uma caravana de mercadores que seguia para o Egito e eles o despiram e ovenderam. Em seguida tingiram a tnica com o sangue de um cabrito e mandaram-na ao pai, que

    nunca mais deixou de chorar pelo filho, achando que estava morto.Os mercadores levaram Jos para o Egito e l o venderam a um dignatrio do fara que o fezadministrador de seus bens. Um dia, a mulher do dignatrio tentou arrast-lo para o pecado, masJos no quis, ela ficou muito irritada e disse ao marido que Jos a assediou. O egpcio acreditou namulher e mandou prender Jos.

    O chefe da priso gostava dele e confiou-lhe a vigilncia dos outros presos. Aconteceu que orei do Egito mandou prender o copeiro e o chefe dos padeiros. Uma manh contaram a Jos quesonharam e ningum sabia interpretar. Jos ouviu os dois sonhos e interpretou que o fara restituiriao cargo do copeiro e mandaria cortar a cabea do chefe dos padeiros. Trs dias depois o fararestituiu o cargo do copeiro e mandou enforcar o padeiro.

    Dois anos depois o fara teve tambm um sonho: viu sair do Nilo sete vacas lindas e gordase sete vacas feias e magras que devoravam as primeiras. Em seguida viu sair do mesmo caule seteespigas cheias de gros e outras sete vazias que engoliam as primeiras. Ento ele mandou chamar

    Jos, que lhe disse que viriam sete anos de grande fertilidade e depois sete anos de penria. O faradeveria escolher um homem sbio e prudente para recolher a sobra das colheitas e reservarprovises para os anos de misria.

    O fara fez a Jos senhor de todo o Egito, vestiu-o ricamente e deu-lhe um nome egpcio quesignifica salvador do mundo. Todos deviam se prostrar diante de Jos. Chegaram os sete anos defertilidade e Jos mandou recolher todo o excedente das colheitas. Seguiram-se os sete anos demisria e o povo comeou a pedir po ao fara. Ento Jos mandou abrir os celeiros e de toda aparte corria gente ao Egito para comprar trigo.

    Jac mandou tambm seus filhos ao Egito comprarem trigo. Mas no deixou que seu filhomais moo fosse, com receio de lhe acontecer algum mal. Jos reconheceu seus irmos, mas elesno o reconheceram. Disse-lhes que eram espies e mandou-os prender. Passados trs dias,ordenou que fossem embora e trouxessem seu irmo mais novo. Depois deu ordem para que lhesenchessem os sacos e junto o dinheiro da compra. Quando eles chegaram em casa e abriram os

    sacos, ficaram muito admirados por l encontrarem o dinheiro.Tendo acabado o trigo, Jac disse a seus filhos que voltassem ao Egito e comprassem

    mantimentos para viverem. Foram eles ao Egito com o irmo caula e chegaram presena de Josque mostrou ser o irmo a quem venderam.

    Os irmos de Jos disseram a seu pai que Jos governava o Egito. Jac ps-se a caminhodo Egito e chegando sua presena, lanou-se ao seu pescoo e abraou-o. Em seguida, Josapresentou seu pai e seus irmos ao fara que ordenou que lhe dessem a melhor parte da terra. Josestabeleceu-os na regio de Gssen aonde Jac viveu ainda 17 anos.

    2 - A Histria de Moiss

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 23

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    24/36

    Os descendentes de Jac tornaram-se muito numerosos no Egito. Chamavam-se filhos deIsrael ou israelitas porque Jac recebera de Deus o nome de Israel. Os estrangeiros chamavam-lhesde hebreus.

    Passado muito tempo, houve no Egito um novo rei que no conhecia a histria de Jos.

    Temendo que os filhos de Israel se tornassem poderosos, oprimiu-os com penosos trabalhos. Por fim,prescreveu que se lanassem ao Nilo todos os seus filhos recm-nascidos. Uma me israelita teveum filho, mas no podendo conserv-lo oculto, colocou o menino dentro de um cesto e levou-o ao rio.A irm do menino conservou-se escondida a alguma distncia para ver o que acontecia.

    Chegou a filha do fara e, vendo um cesto no meio do canavial, mandou uma criada busc-lo.Abriu-o e viu o menino chorando. Ficou cheia de pena quando viu que era hebreu. A irm da crianaaproximou-se e se ofereceu para chamar uma mulher para amament-lo e foi chamar a prpria meque levou o menino e o educou. Quando j estava crescido, levou-o de volta filha do fara, que oadotou e lhe deu o nome de Moiss, porque o tirou da gua.

    Chegado aos 40 anos de idade, Moiss viu a aflio dos israelitas e tomou a sua defesa. Ofara ficou sabendo e mandou procur-lo para lhe matar. Ento Moiss fugiu para a terra de Madi,onde virou pastor. Um dia, chegou com o seu rebanho, perto do monte Horeb e ali o Senhor lheapareceu no meio das chamas de uma sara que no se consumia. Moiss se aproximou e cobriu o

    rosto para no ver a Deus. O Senhor disse-lhe: Vi a aflio do meu povo. Por isso desci para libert-lo e o conduzir a uma terra onde corre o leite e o mel. s tu quem far sair o meu povo do Egito.Moiss partiu para o Egito com seu irmo Aaro para lhe ajudar, j que Moiss tinha problemas defala.

    Moiss e Aaro foram procurar o fara e disseram-lhe que o Deus dos hebreus mandoudeixar partir o seu povo. O fara no consentiu e Deus o castigou, mandando-lhe grandesdesgraas1. Mas o fara continuou endurecido. O Senhor ento mandou uma ltima praga, matandotodo os primognitos dos egpcios. O fara chamou Moiss e libertou os filhos de Israel, que partiramem nmero de 600 mil.

    Guiados por Deus, que ia adiante deles, de dia numa coluna de nuvem, de noite numa colunade fogo2, chegaram ao Mar Vermelho. Entretanto o fara arrependeu-se, perseguiu-os at junto doMar Vermelho. Moiss estendeu a mo sobre o mar, as guas se dividiram e os israelitasatravessaram sem molharem os ps. Os egpcios avanaram e as guas se juntaram e cobriram todo

    o exrcito do fara.No deserto, os israelitas tiveram fome e a terra apareceu coberta de man, que tinha saborde bolo de mel. Os israelitas comeram man durante 40 anos at chegarem a Cana. Uma outra vezfaltou gua e Moiss bateu sua vara no rochedo donde jorrou gua.

    No terceiro ms depois da sada do Egito, os israelitas chegaram ao p do monte Sinai.Armaram as tendas e Moiss subiu at junto de Deus3. O Senhor disse-lhe para se prepararem parao terceiro dia quando houve troves, relmpagos e uma espessa nuvem envolvendo o Sinai. Ouviu-setrombetas e o Senhor promulgou o declogo:

    I. No ters outros deuses, nem fars imagens deles para ador-las.II. No pronunciars em vo o nome do Senhor, teu Deus.III. Lembra-te de santificar o dia do sbado.IV. Honra teu pai e tua me para viveres muito tempo sobre a terra.V. No matars.

    VI. No cometers adultrio.VII. No furtars.VIII. No dirs falso testemunho contra o teu prximo.IX. No cobiars a mulher do teu prximo.X. No cobiars a casa do teu prximo, nem o seu campo, nem o seu servo ou serva, nem o

    seu boi ou jumento, nem coisa alguma que lhe pertena.Logo que os israelitas chegaram fronteira de Cana, Moiss enviou 12 homens, um de cada

    tribo, para explorar a terra. No regresso, trouxeram frutos deliciosos e viram que era uma terra ondecorre o leite e o mel. Porm, os israelitas j estavam cansados de vaguear atravs do deserto e se1 As dez pragas do Egito seriam o eco de um desastre ecolgico ocorrido no Vale do Nilo quando as tribosnmades de semitas estiveram por l. Agua se transformou em sangue; rs por toda parte; piolhos; invaso deanimais selvagens; uma peste matou o gado; sarna; uma chuva de granizo destruiu as colheitas; nuvem degafanhotos e noite por trs dias.2 provvel que fosse um vulco em atividade.3 Montanhas eram usadas como altares por estarem mais prximas de Deus.

    Ciclo de debates Moiss e o monotesmo. 24

  • 8/6/2019 Apostila do curso - Moises e o monotesmo

    25/36

    revoltaram. Para castigo, o Senhor mandou serpentes e muitos israelitas foram picados e morreram.Outros reconheceram seus pecados e arrependeram-se.

    Moiss morreu no topo do monte Nebo com 120 anos de idade.Logo aps Moiss

    Depois da morte de Moiss, Josu introduziu os israelitas na terra de Cana, os fezatravessar o Jordo, tomou a cidade de Jeric, conquistou toda a terra em sete anos, dividindo-apelas 12 tribos.

    Durante os 300 anos que se seguiram, os israelitas no tiveram nenhum chefe nicoreconhecido por todas as tribos. Cada tribo vivia sob um chefe particular e governava-se segundo oscostumes do regime patriarcal.

    Muitas vezes os israelitas esqueciam do Deus de seus pais, ento o Senhor, para castig-los,abandonava-os aos seus inimigos. Mas, logo que se arrependiam, vinha em seu auxlio. Haviam entreeles alguns homens, chamados juzes, que os livravam dos seus perseguidores. Houve 14 juzes emIsrael; os principais foram: Gedeo, Sanso, Heli e Samuel.

    3 - Algumas lendas de heris

    Ciro da Prsia Astages teve um sonho em que uma videira crescia das costas de sua filhaMandame, lanando gavinhas que envolviam toda a sia. Sacerdotes lhe advertiram que a videira eraseu neto Ciro e que ele lhe tomaria o lugar no reino. Ento o rei mandou que seu mordomo o matassenas montanhas. O mordomo se comoveu com a beleza da criana e o entregou aos cuidados de umpastor. Ao descobrir a traio, Astages esquartejou o filho do mordomo e o serviu em um jantar parao prprio pai que apenas soube o que estava comendo quando levaram a ltima travessa mesa: acabea de seu filho.

    Rmulo e Remo Numitor foi deposto e aprisionado porAmlio, seu irmo. Amlio colocousua sobrinha num colgio onde Marte passou e lhe deu filhos gmeos. Os meninos foramabandonados porAmlio num barquinho, que parou perto do Monte Palatino. Os dois irmos foramsalvos por uma loba enviada por Marte, que os amamentou e os protegeu. Quando um pastor osencontrou, ele os recolheu, deu-lhes os nomes de Rmulo e Remo e confiou-os a sua esposa. J

    adulto, Remo envolveu-se numa briga com alguns pastores e foi conduzido a Amlio. Informado porFustulo das circunstncias do seu nascimento, Rmulo dirigiu-se ao palcio e libertou o irmo. Aseguir, matou Amlio, restabelecendo no trono o seu av Numitor. Numitor, agradecido, deu-lhesordem para fundar uma cidade s margens do Tibre, que foiRoma.

    Pris Pouco antes de Pris, filho de Pramo, rei de Tria, nascer, sua me sonhou quedaria luz a uma tocha que incendiaria toda a cidade. Adivinhos a aconselharam a matar a criana,mas ela preferiu simplesmente expor o menino logo aps o nascimento. O servo encarregado datarefa, porm, recolheu a criana e criou-a secretamente. Anos depois, Pris se tornou pastor.Posteriormente, ao vencer jogos, foi reconhecido pela irm Cassandra.

    Perseu Temeroso de ver cumprida a previso de um orculo, segundo a qual sua filhaDnae daria luz quele que lhe roubaria o trono e a vida, Acrsio, rei de Argos, enclausurou-a numatorre. Zeus, sob a forma de uma chuva de ouro, introduziu-se na torre e engravidou Dnae, que gerouPerseu. Logo aps seu nascimento, o av abandonou-o ao mar numa arca, em companhia da me,para que morressem. A correnteza, porm, arrastou a arca at a ilha de Srifo, reino de Polidectes,que se apaixonou por Dnae. Mais tarde, com o intuito de afastar Perseu da me,