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Apostila para cursos de introduo filosofia da linguagem do Depto

Draft 1/1/2012 - Claudio F. Costa, ppgfil/UFRN

COMO EXPRESSES REFERENCIAIS REFEREM?

A filosofia perene, mas tambm efmera. Est constantemente sendo confundida e destruda e transformada em algo que no ela mesma, de modo que se desejamos filosofar estaremos continuamente fazendo face tarefa de redescobri-la e restaur-la.

Thomas Proffen

A filosofia fantasmolgica triunfa porque mundos possveis elegantemente estruturados so to mais agradveis de explorar do que a realidade de carne e sangue que nos cerca aqui na terra... Uma tradio filosfica que sofre endemicamente do vcio do horror mundi condena-se futilidade.

Kevin Mulligan, Peter Simons, Barry Smith

No se deve confundir a importncia com a dificuldade. Um conhecimento pode ser difcil sem ser importante. Por isso a dificuldade no decide nem pr nem contra o valor de um conhecimento. Esta depende da magnitude e pluralidade de suas conseqncias.

Immanuel Kant

No existe uma qualidade refinada de conhecimento que se possa obter do filsofo.

Bertrand Russell

Tudo est bem como est.

Wittgenstein

PREFCIO

Meu primeiro encontro com as teorias filosficas dos nomes prprios aconteceu h mais de vinte anos, quando me encontrava na Alemanha escrevendo uma tese sobre a concepo de significado na ltima filosofia de Wittgenstein. Como era de se esperar, a melhor resposta parecia-me ser a teoria do feixe de descries, tal como fora defendida por Wittgenstein na seo 79 de suas Investigaes Filosficas. Por contraste, as poucas leituras que fiz na poca sobre a concepo causal-histrica da referncia dos nomes prprios proposta por Kripke me deixaram escandalizado. O recurso ao batismo e s cadeias causais soava-me como uma explicao mgica da referncia. No que eu me sentisse vontade com a teoria do feixe. Minha opinio era a de que seria necessrio impor uma ordem ao apanhado arbitrrio de descries constitutivas do feixe, e que isso s poderia ser feito pelo recurso a alguma regra-descrio de ordem superior, capaz de estabelecer o papel e a fora das regras-descries a ele pertencentes. Mas logo me esqueci do assunto.

S voltei a me interessar pela questo dos nomes prprios em 2006, por razes acidentais. Lembrei-me ento de meu antigo projeto. Escrevi um breve esboo no qual propunha a existncia de uma regra cognitiva meta-descritiva para nomes prprios, capaz de conferir papel e valor aos diversos tipos de descrio pertencente aos feixes de descries a eles associados a partir de uma demanda fundamentadora de localizao e/ou caracterizao. Apresentei esse esboo em vrias ocasies, sempre surpreso com a forte reao de rejeio dos ouvintes. Contudo, como ningum me apontava um erro de princpio e como um pouco de reflexo me mostrava que as objees seriam facilmente refutveis, prossegui. A teoria resultante o metadescritivismo causal encontra-se exposta no captulo 9 do presente livro, sendo ela o que posso oferecer de mais interessante. Embora ela seja uma teoria mista, incorporando inovaes provenientes da concepo causal-histrica, ela s condiciona s categorias descritivistas, o que faz com que ela se deixe mais propriamente classificar como uma refinada elaborao da velha teoria do feixe de descries. Embora inevitavelmente mais complexo, o metadescritivismo causal possui maior poder explicativo do que as teorias anteriores, sendo capaz de vrios feitos que o recomendam: ele capaz de explicar melhor a maneira como o contedo cognitivo (sentido) do nome prprio contribui para a identificao do seu portador (referncia), de gerar a idia de que nomes prprios so designadores rgidos do prprio interior do descritivismo, de explicar de dentro do prprio descritivismo porque se d o contraste entre a rigidez dos nomes prprios e a flacidez das descries definidas e, finalmente, de responder mais eficazmente aos contra-exemplos apresentados teoria do feixe.

Uma vez que me encontrava investigando a funo dos nomes prprios, meu interesse alargou-se para a histria das teorias descritivistas e tambm para a necessidade de alcanar um entendimento crtico da concepo causal-histrica que fizesse justia ao trabalho genial de Kripke. Disso resultaram os captulos 7 e 8 desse livro.

A investigao do funcionamento dos nomes prprios inevitavelmente me levou a considerar outras expresses referenciais, como descries definidas, termos indexicais e mesmo termos gerais, onde a mesma disputa entre cognitivismo e referencialismo se repete. Minha pergunta foi irreprimvel. Se havia obtido to bons resultados defendendo uma espcie de cognitivismo metadescritivista para o caso dos nomes prprios, por que semelhante maneira de ver no poderia produzir resultados igualmente interessantes quando aplicada s outras expresses referenciais? A tarefa me parecia imensa, mas a intuio era boa, de modo que decidi considerar tambm essas questes. O objetivo era duplo. De um lado, queria demonstrar as limitaes das teorias referencialistas aplicadas s outras expresses referenciais; de outro, considerando as objees, queria desenvolver melhores explicaes cognitivistas (neo-descritivistas ou neo-fregeanas) para os modos como descries definidas, indexicais e termos gerais referem. Foi isso o que tentei fazer nos captulos 5, 6, 10, 11 e 12 desse livro. Alguns resultados me parecem memorveis. Entre eles est a compatibilizao do descritivismo de Russell com o de Frege, a defesa da irrelevncia das incongruncias parciais no resgate descritivista do contedo dos indexicais, a tese da elasticidade do pensamento, a crtica ao externalismo semntico de Putnam e a proposta de regras meta-descritivas parcialmente anlogas s dos termos singulares na constituio de regras de aplicao dos termos gerais. Muito do que escrevi, porm, no passa de esboos rudimentares, que lano na expectativa de que venham a ser mais adequadamente desenvolvidos por outros. Assim deve poder ser, dado que a filosofia work in progress por definio.

Finalmente, senti a necessidade de esclarecer as assunes filosficas que me conduziram a abordar as expresses referenciais da maneira como fiz. Meus heris so Frege e Wittgenstein. A meu ver no h nada na filosofia da linguagem contempornea comparvel obra desses dois filsofos. Ombreados por Russell, eles foram at o osso das questes filosficas no que concerne amplitude e profundidade de seus insights, longe de permanecerem na exterioridade dos problemas, ou na discusso de hipteses sobre hipteses, to comum filosofia contempornea (uma razo para tal seria que a filosofia um produto cultural e porque as filosofias de Frege e Wittgenstein foram produzidas em um tempo no qual a cultura ainda era a principal fonte de valor, ao invs da cincia, como veio a se tornar o caso).

Escrevi os captulos 1, 2 e 3 desse livro com o objetivo de aclarar pressupostos geralmente motivados pelas concepes semnticas desses dois grandes filsofos. Foi luz de meu entendimento de Frege que procurei definir, nos trs primeiros captulos desse livro, o meu desiderato como sendo o de fazer uma defesa sustentada de uma concepo que pelo menos to antiga quanto a doutrina aristotlica dos conceitos e a doutrina estica das lekta: o ponto de vista de senso comum, segundo o qual uma expresso referencial s capaz de referir devido a um elo intermedirio, que no pertence nem a ela mesma nem ao que ela se refere. Procurei esclarecer essa tese geral interpretando o elo intermedirio em termos de sentidos (modos de apresentao), que s diferem dos sentidos fregeanos por serem incapazes de existir fora de suas instanciaes cognitivas. Esses sentidos, por sua vez, so analisveis em termos de regras e/ou combinaes de regras semntico-cognitivas, determinadoras dos usos referenciais das expresses correspondentes uma idia de inspirao wittgensteiniana.

Ao fazer isso percebi, em retrospecto, que aquilo que eu estava tentando fazer poderia ser entendido como a retomada de um programa deixado inconcluso por Ernst Tugendhat em seu livro de 1976. Esse programa poderia a meu ver ser fregeanamente concebido como sendo, para o caso fundamental da frase predicativa singular, o de analisar o sentido epistmico (Erkenntniswert) do termo singular como a sua regra de identificao, do termo geral como a sua regra de aplicao e da frase predicativa completa como a sua regra de verificao. Essa ltima regra seria a resultante da aplicao combinada das duas primeiras, o que foi visto por Tugendhat como uma forma analiticamente aprofundada de se falar da condio de verdade identificada ao significado. Por conseguinte, meu desiderato nesse livro deixa-se tambm explicar como sendo o de justificar e analisar em maiores detalhes cada uma dessas regras em sua natureza, subdivises e relaes, alm de esclarecer atributos a elas relacionados, como os de existncia e verdade.

Reconheo que a minha tentativa de produzir uma elaborao geral dessas assunes nos trs primeiros captulos permaneceu inevitavelmente esquemtica e em alguns momentos selvagemente especulativa. Mas o prprio sucesso do tratamento posterior das expresses referenciais que depende apenas do que h de mais bem fundado nessas assunes em certa medida tambm as vindica.

Essas so as estaes do presente texto, que foi escrito na inteno de ser entendido por leitores sem conhecimento especializado de filosofia da linguagem, pois como a entendo ela deve servir antes de tudo aos que se interessam pela filosofia em geral.

AGRADECIMENTOS

Devo agradecer ao CNPq por uma bolsa de ps-doutorado na Universidade de Konstanz junto ao professor Wolfgang Spohn, onde permaneci no perodo de 2009/2 a 2010/1 e onde pude desenvolver uma primeira verso completa do presente texto. Tenho muito a agradecer a muitas pessoas, mas em especial gostaria de agradecer ao professor Wolfgang Spohn por ler e discutir comigo verses em ingls e em alemo de minhas idias sobre nomes prprios e termos gerais. Tambm gostaria de agradecer ao professor Joo Branquinho pelas discusses sobre nomes prprios e verificacionismo em seus colquios na Universidade de Lisboa. Outras pessoas a quem sou grato so ao professor Manuel Garcia-Carpintero, que em 2006 me incentivou a dar incio a essa pesquisa, assim como aos professores Nelson Gomes, Andr Leclerc e Daniel Durante, por objees e estmulos. Devo tambm agradecimentos ao professor John Searle, que me recebeu como pesquisador em Berkeley em 1999 e que em termos de metodologia e idias , junto com Ernst Tugendhat, o filsofo vivo que mais me influenciou no desenvolvimento das idias aqui expostas. Finalmente, gostaria de agradecer aos professores Raul Landin e Guido Antnio de Almeida por me terem, h muitos anos, tornado consciente da importncia de uma aproximao sistemtica das questes filosficas atravs do exemplo incomparvel dos grandes clssicos.

SUMRIO

PREFCIO

PARTE I: SEMNTICA FILOSFICA

1. INTRODUO

2. SEMNTICA WITTGENSTEINIANA

3. FREGE: PARFRASES SEMNTICAS

PARTE II: TERMOS SINGULARES

4. CLASSIFICANDO OS TERMOS SINGULARES

5. A SEMNTICA DOS TERMOS INDEXICAIS

6. A SEMNTICA DAS DESCRIES DEFINIDAS

7. NOMES PRPRIOS (I): TEORIAS DESCRITIVISTAS

8. NOMES PRPRIOS (II): TEORIAS CAUSAIS-

HISTRICAS

9. NOMES PRPRIOS (III): META-DESCRITIVISMO

CAUSAL

PARTE III: TERMOS GERAIS

10. INTRODUO: DESCRITIVISMO VERSUS CAUSALISMO

11. PUTNAM, A TERRA GMEA E A FALCIA

EXTERNALISTA

12. AS IRREGULARIDADES DO TERRENO CONCEITUAL

PARTE I: SEMNTICA FILOSFICA

1. INTRODUO

Explicar os mecanismos pelos quais as expresses referenciais referem tem sido o problema seminal de toda a filosofia da linguagem iniciada com Frege. Mas o que so expresses referenciais? Ora, elas so todas as expresses (palavras, combinaes de palavras) capazes de referir (designar, denotar). Tais expresses so chamadas de categoremticas, distinguindo-se das expresses sincategoremticas, de palavras como e, no, se... ento, alguns, cuja funo na linguagem meramente estrutural.

Em frases h duas espcies mais gerais de expresso referencial: os termos singulares e os termos gerais. Os assim chamados termos singulares so expresses cuja funo a de especificar um objeto (um particular) especfico, ao indicar qual ele dentre todos. Eles referem no sentido mais estrito da palavra, sendo a forma mais distintiva a dos nomes prprios. Os termos gerais, por sua vez, so expresses que designam propriedades de objetos ou relaes entre eles, podendo por isso serem predicados de mais de um objeto. Nas frases predicativas singulares os termos singulares comparecem como sujeitos e os termos gerais como predicados. Tais frases so tipicamente capazes de ser verdadeiras ou falsas. caracterstico dos termos gerais que eles possam se aplicar a uma variedade indefinida de objetos, identificados pelos termos singulares aos quais se associam. Assim, o termo geral planeta se aplica ao objeto Vnus, mas tambm se aplica a Marte e a Saturno, enquanto o termo singular Vnus s pode ser aplicado ao planeta Vnus. O tema desse livro sero os termos singulares e gerais em suas vrias formas e os variados mecanismos atravs dos quais eles so capazes de alcanar as suas referncias.

A metafsica da referncia

Uma grande parte do contedo desse livro ser, todavia, crtico. Em minha opinio, a filosofia da linguagem contempornea se encontra assolada pelo que eu gostaria de chamar de metafsica da referncia. So idias prima facie contra-intuitivas, como o caso da sugesto de Saul Kripke, Keith Donnellan, Michael Devitt e outros, de que o mero recurso a cadeias causais externas ligando o objeto ao seu nome possa bastar para explicar a sua funo referencial, independente do que possamos ter em mente com esses nomes, ou da tese de Hilary Putnam, Tyler Burge, John McDowell e outros, segundo a qual os significados das palavras, os seus entendimentos, os pensamentos, e mesmos as prprias mentes, possam existir no mundo externo (fsico ou social) fora de nossas cabeas, ou ainda, da posio de David Kaplan, John Perry, Nathan Salmon e outros, segundo a qual muitas de nossas sentenas contm elementos do prprio mundo como constituintes daquilo que esto a dizer. No obstante o fato de semelhantes idias ofenderem as mais elementares intuies semnticas de qualquer pessoa que no tenha sido filosoficamente iniciada, elas so hoje vistas por muitos especialistas como resultados slidos da reflexo filosfica.

Quero nesse livro tornar plausvel o insucesso das doutrinas mais propriamente metafsicas desses filsofos. Isso no o mesmo que rejeitar o interesse filosfico de muitos dos argumentos por eles desenvolvidos. Se tal interesse no existisse, no haveria porque perder tempo com a sua discusso. Pois insights filosficos equvocos, na medida em que forem sugestivos, so indicadores de alguma coisa importante, possuindo um potencial esclarecedor em filosofia, onde o progresso costuma ser dialtico. Sem o criativo e ousado revisionismo desses filsofos, sem os desafios e problemas por eles criados, idias concorrentes dificilmente seriam providas do combustvel intelectual necessrio para levantarem vo.

O primado do saber comum

Para combater a metafsica da referncia so necessrias algumas armas. A primeira delas diz respeito deciso metodolgica de levar a srio o um tanto esquecido princpio fundamental da filosofia da linguagem ordinria admitido por filsofos como J.L. Austin e G.E. Moore, segundo o qual ao menos o ponto de partida de nossas investigaes deve residir em nossas intuies pr-filosficas de senso comum, refletidas nos usos das expresses em nossa linguagem corrente. A idia subjacente a isso conhecida: os usos correntes das palavras sedimentam a experincia milenar das comunidades humanas, e uma ateno excrupulosa a esses usos pode ser capaz de revelar distines categoriais importantes e prevenir confuses. Exemplos de princpios do senso comum que foram selecionados por filsofos como Moore so Sabemos com certeza que existe um mundo externo, Sabemos que existem outras pessoas, Sabemos que o mundo tem um passado, Sabemos que o preto no branco e ainda Sabemos que uma coisa ela mesma.

O problema que parece claro que ao menos alguns dos princpios do senso comum foram falseados, quer pela cincia, quer por alteraes em nossa prpria concepo de mundo (Weltanschauung). Para exemplificarmos o primeiro caso, basta nos lembrarmos que crenas de senso comum de que o sol gira em torno da terra e de que os corpos mais leves caem mais lentamente foram refutadas por Galileu. E para exemplificarmos o segundo caso basta nos lembrarmos das crenas de que um Deus pessoal existe e de que temos uma alma que pode existir fora do corpo. Houve tempo em que essas crenas poderiam ser consideradas verdades de senso comum.

Uma resposta a essa dificuldade consiste na alternativa de muitos dos filsofos que defenderam o senso comum, que consistiu na adoo do assim chamado sensismo comum crtico (critical commonsensism), segundo o qual os princpios de senso comum so altamente confiveis, mas no so indubitveis. Contudo, essa opo enfraquece a prpria posio de quem defende o senso comum como ponto de partida, pois se os princpios do senso comum podem ser falsos, ento parece que precisamos de um critrio para distinguir os princpios verdadeiros dos falsos. Esse critrio, porm, no pode se basear no senso comum, sob pena de circularidade.

No pretendo, nos argumentos que se seguem, garantir os princpios do senso comum contra toda e qualquer objeo. Mas quero demonstrar que a fora das objees contra a confiabilidade dos princpios de senso comum advindas do progresso da cincia e das mudanas de concepo do mundo como as recm-consideradas aparente e deriva da confuso entre formas de senso comum inautnticas com a forma mais autntica, que gostaria de chamar de forma modesta.

Comecemos com as objees vindas da cincia. Quanto cincia emprica, considere os enunciados

(a) O sol circunda a terra diariamente,

(b) Os corpos mais pesados caem mais rapidamente, mesmo descontando a resistncia do ar,

(c) O tempo flui igualmente, mesmo quando um corpo se desloca a velocidades prximas s da luz.

Esses pretensos enunciados do senso comum foram todos corrigidos pela cincia. Galileu demonstrou que (a) e (b) so enunciados falsos, o primeiro porque a terra que circunda o sol e o segundo porque no vcuo todos os corpos caem com a mesma acelerao. E Einstein demonstrou que (c) falso, pois a passagem do tempo torna-se exponencialmente mais lenta conforme o corpo se aproxima da velocidade da luz. O filsofo Bertrand Russell, por exemplo, procurou tornar claro que a teoria da relatividade veio a demonstrar que no s essa, mas vrias outras crenas de senso comum no resistem a uma considerao mais acurada.

Meu ponto, porm, que nenhum dos enunciados acima legitimamente pertencente ao senso comum no sentido prprio da expresso, que chamei de modesto. Esses enunciados so na verdade extrapolaes radicadas nos enunciados do senso comum mais modesto, feitos no interesse da cincia por cientistas e mesmo por filsofos. Os verdadeiros enunciados do senso comum, dos quais (a), (b) e (c) so extrapolaes, podem ser versados respectivamente como se segue:

(d) O sol cruza os cus diariamente,

(e) A pedra cai mais rpido do que a pluma,

(f) O tempo flui igualmente para todos ns, estejamos em movimento ou parados.

Vemos que o senso comum cientificamente ou especulativamente motivado historicamente interpretou esses enunciados de senso comum como implicando respectivamente (a), (b) e (c). No obstante, os enunciados que foram efetivamente originados de nossas prticas lingsticas ordinrias so como (d) (e) e (f), os quais continuam perfeitamente confiveis, mesmo aps Galileu e Einstein. Afinal, bvio que (d) um enunciado verdadeiro, pois ele anterior distino entre o movimento real e aparente do sol e tudo o que ele afirma que aquele crculo luminoso cruza o cu a cada dia, o que ningum discutiria. Mesmo tendo sido provado que os corpos caem em velocidades diferentes no vcuo (e) tambm um enunciado indiscutvel, pois tudo o que ele diz que a pluma cai mais lentamente do que a pedra em circunstncias normais. Finalmente, mesmo tendo sido demonstrado que a passagem do tempo se torna mais lenta com o aumento da velocidade, o enunciado (f) correto, pois ele no foi pensado sob a considerao de medidas impossivelmente acuradas da passagem do tempo, uma vez que para as diferenas de velocidade dos corpos ao nosso redor a dilatao do tempo to insignificante que seria absurdo no desprez-la. O que esses exemplos demonstram que no foram as verdades do senso comum modesto, radicadas em nossa forma de vida cotidiana que foram refutadas pela cincia, mas extrapolaes do senso comum fora de seu lugar prprio, produzidas por cientistas e filsofos. Fora isso no h nenhum conflito entre as descobertas da cincia e as afirmaes do homem comum.

Esse mesmo raciocnio se aplica ao conhecimento a priori do senso comum, como o de que um enunciado no pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo, de que o branco no preto ou de que no existem frases sem verbos. Considere o caso de enunciados como (g) O bem admirvel, que gramaticalmente idntico a enunciados como (h) Scrates sbio. Ambos tm a mesma forma gramatical sujeito-predicado. Como no primeiro caso o sujeito no designa nenhum objeto visvel, Plato teria concludo que esse sujeito precisa designar O Bem em si mesmo, a idia do bem, existente apenas no reino inteligvel das idias eternas e imutveis.

Para chegar a sua concluso, Plato se baseou em intuies da linguagem ordinria concernentes distino gramatical entre sujeito e predicado. Todavia, a introduo da lgica quantificacional por Frege no final do sculo XIX demonstrou que frases como (d) se deixam analisar como dizendo que tudo o que bom admirvel ou Para todo x, se x bom, ento x admirvel, onde a palavra bem passa funo do predicado bom, deixando de se referir a um objeto, o que diminui a presso para a aceitao da idia platnica do bem. Contudo, a sugesto de que o sujeito O Bem se refere a um objeto abstrato, a idia, no pertence ao senso comum e nem se encontra inscrita na linguagem ordinria. Embora ela seja uma extrapolao especulativa feita por filsofos por apelo implcito gramtica da linguagem ordinria, seria injusto responsabilizar esta ltima por isso. Afinal, o advento da lgica quantificacional no refutou a gramtica da linguagem ordinria, mas adicionou a essa linguagem uma nova e fundamentalmente diversa dimenso de anlise.

O que todos esses exemplos demonstram a falsidade da freqente afirmao de que o desenvolvimento da cincia veio a contradizer o senso comum. O que o desenvolvimento da cincia veio a contradizer foram extrapolaes especulativas que cientistas e filsofos fizeram com base no senso comum e na linguagem ordinria, como a sugesto de que o sol gira em torno da terra e a de que existe um outro mundo formado por objetos abstratos. Pois nada disso tem a ver com a aplicao do senso comum modesto e da linguagem ordinria no contexto em que essas intuies emergiram.

Consideremos agora alteraes do senso comum que foram colocadas em questo por alteraes em nossa concepo do mundo, como a crena de que Deus existe ou de que temos mentes independentes de nossos corpos. Praticamente em todas as culturas humanas a crena em Deus e na alma foi admitida inquestionvel, mesmo na cultura europia, at dois ou trs sculos atrs. Mas hoje no se pode dizer que essas crenas sejam mais universalmente obtidas. Assim, parece que o senso comum pode se alterar com a alterao de nossa concepo do mundo.

Minha reao a essa objeo no difere muito da que tenho para a objeo proveniente do progresso da cincia. Essas crenas no pertenceram propriamente ao cerne que chamo de senso comum modesto. Elas resultaram do senso comum modesto adicionado ao wishful thinking. Era certamente mais fcil acreditar na existncia de um Deus pessoal ou de uma alma independente do corpo h dois mil anos atrs, na falta de informaes divergentes produzidas pelo progresso cientfico; contudo, mesmo assim sempre foi aqui adicionado um elemento de f, de crena para alm dos fatos, ao que foram aduzidas razes. Isso se demonstra linguisticamente: uma pessoa comum geralmente no diz que sabe que uma alma independente do corpo ou que sabe que Deus existe: ela prefere dizer que acredita nessas coisas, enquanto ela mesma em momento algum recusa a admitir que sabe que existe um mundo externo, que o mundo existia antes de ela ter nascido etc., mas no que apenas acredita nisso.

Espero ter com isso tornado plausvel a idia de que o mais alto tribunal da razo realmente o senso comum modesto. Afinal, como a prpria cincia s pode ser construda sob a assuno de conhecimentos de senso comum modesto, no parece ser sequer em princpio possvel destruir o senso comum sem que com isso se destrua os prprios fundamentos da racionalidade. No pretendo, contudo, considerar sequer o senso comum modesto necessariamente constitudo de princpios indubitveis, mas apenas mostrar que nem a cincia nem as alteraes em nossa concepo do mundo foram suficientes para desfazer a fora dos princpios do senso comum adequadamente considerado.

Uma concluso resultante da comparao entre senso comum e cincia que quando consideramos a razo natural dentro de seus despretenciosos limites prprios, a cincia no se revela como oposio, mas como extenso do senso comum. Essa concluso refora nossa confiana em que no comeo de tudo se encontram as verdades do senso comum, adequadamente escolhidas e interpretadas. (Com isso no estou defendendo que elas sejam suficientes contra os argumentos filosficos que as contestam, como pretendia um filsofo como Reid. O que quero dizer que elas servem como pontos de apoio confiveis. Assim, tomando um exemplo de P.M.S. Hacker concernente ao ponto de vista de Wittgenstein, embora a resposta de senso comum ao paradoxo de Zeno seja a de que Aquiles pode vencer a tartaruga colocando um p diante do outro no nos satisfaz, pois no pe descoberto a fonte de confuso apesar de ser uma indubitvel verdade de senso comum que Aquiles pode vencer a tartaruga. Tambm um princpio de senso comum modesto, como o de que o mundo externo existe, pode a meu ver ser justificado contra argumentos filosficos Contudo, nada disso pode ser feito sem base em outros princpios de senso comum.)

Diversamente do que possa parecer, no acho que devamos nos restringir ao senso comum ingnuo e ao seu reflexo nas intuies da linguagem comum. Quero estender a base daquilo que serve de fundamento para nossas atitudes diante das idias filosficas ao senso comum informado pela cincia o que gostaria de chamar de saber comum. Melhor dizendo: tanto a cincia formal quanto a emprica (o que inclui a fsica, a biologia, a psicologia, a lingstica...) so capazes de adicionar ao conhecimento de senso comum modesto novas verdades, como a de que o bem na frase O bem admirvel no deve ser interpretado como um sujeito lgico, ou de que a frase O sol atravessa o cu diariamente no implica em que ele circunda a terra. O que chamo de saber comum , pois, a extenso daquilo que inclui o senso comum ingnuo e o conhecimento cientfico lhe foi adicionado. Esse saber comum no precisa, certamente, ser compartilhado por todas as pessoas. Mas ele comum no sentido de que passvel desse compartilhamento: ele aquele conhecimento com o qual qualquer pessoa razovel ir por-se de acordo, caso esteja habilitada a compreend-lo e avali-lo. Assim, minha proposta a de que aquilo que capaz de possibilitar um juzo adequado sobre a razoabilidade de nossas teses filosficas o senso comum cientificamente informado, nomeadamente, nosso saber comum. Podemos construir a respeito o seguinte esquema:

Teoria filosfica

Princpios do senso Conhecimento cientfico

comum modesto

(saber comum)

Os vetores sugerem que no a filosofia que corrige o senso comum modesto nem o conhecimento cientfico, mas, pelo contrrio, ela deve harmonizar-se a eles. No se trata, pois, de equilbrio reflexivo, mas de harmonizao com a base do saber comum. O ponto a ser acentuado o da necessidade de coerncia das teorias filosficas com o saber comum. As nossas teorias filosficas tornam-se razoveis quando alcanam essa espcie de coerncia. Quanto s teorias que no alcanam essa coerncia, elas podem ser admitidas como propostas interessantes e mesmo instigantes do ponto de vista especulativo, mas nem por isso merecem ser seriamente consideradas em sua face de valor. Esse , em meu juzo, o caso das metafsicas da referncia.

Essas consideraes tambm oferecem uma soluo para o problema que surge quando a razo (filosfica) e o senso comum colidem. Minha suspeita que a razo (quando adequadamente seguida e suficientemente explicitada) e o senso comum (em seu lugar prprio e devidamente reconciliado com o conhecimento cientfico) nunca colidem, a no ser na aparncia, uma vez que a prpria racionalidade da teoria filosfica decorre de seu equilbrio reflexivo com o saber comum. Assim, quando uma pretensa contradio emerge, cabe ao filsofo trat-la como um paradoxo do pensamento, buscando argumentos que conciliem a teorizao filosfica com o senso comum e a informao cientfica.

O filosofar por exemplos

Quero complementar esse princpio do primado do saber comum com o que j foi chamado de mtodo de filosofar por exemplos preconizado por Avrum Stroll. Trata-se do mtodo wittgensteiniano de proceder atravs do exame minucioso e comparativo de uma variedade de exemplos de usos de uma expresso lingstica, possivelmente imaginando novas situaes de uso, na inteno de elucidar os seus sentidos, o quanto isso nos for necessrio. Assim, com base na aplicao do princpio da priorizao do saber comum (nomeadamente, do senso comum informado pela cincia) e com o mtodo do filosofar por exemplos, pretendo exercitar aqui uma crtica da linguagem, cujo desiderato o de demonstrar que as teses positivas mais audaciosas da metafsica da referncia, mesmo que inovadoras e capazes de apontar para fenmenos de fundamental importncia, se tomadas apenas em sua face de valor no passam de sofisticadas iluses conceituais.

A noo de uma crtica da linguagem teve proeminncia na filosofia teraputica do ltimo Wittgenstein. O que ele pretendia era, no seu dizer, trazer a linguagem de suas frias especulativas para o seu labor cotidiano. E isso era para ser feito mostrando, atravs de exemplos, os modos como realmente usamos as expresses, com o resultado de que os absurdos encobertos da metafsica acabariam por se demonstrar absurdos evidentes. Parece-me que disso que muito da presente metafsica da referncia e de resto muito da prpria filosofia contempornea necessita.

Essa tarefa especialmente importante em um tempo como o nosso, em que o veio da filosofia do senso comum e da linguagem ordinria, que vem de Thomas Reid a G.E. Moore e do ltimo Wittgenstein a J.L. Austin, parece ter se extinguido, dando lugar ao cientismo e a filosofias compartimentadas, que servem curiosidade especulativa de especialistas nesse ou naquele domnio cientfico mesmo que ao preo de colocar entre parnteses o saber comum. Como conseqncia disso estamos a meu ver assistindo, na filosofia da linguagem, a um entulhamento com efeitos potencialmente obscurantistas do que Wittgenstein chamou de castelos de areia conceituais resultantes de ns do pensamento, bem urgidos equvocos semnticos resultantes do desejo de inovao acompanhado de uma desconsiderao das sutis diferenas de significao ganhas pelas expresses em seus diversos contextos de uso, o que conduz a uma sucesso de debates entre teorias cada uma mais implausvel do que a outra, em uma forma de escolasticismo filosfico.

Contra a filosofia teraputica de Wittgenstein observou que no plausvel a idia de que a filosofia no possa nem deva ser tambm teortica e sistemtica, no sentido de conter generalizaes abrangentes e substantivas. Eu concordo com isso. Mas discordo que essa tenha sido verdadeiramente a posio de Wittgenstein. Pois ele mesmo era consciente de que por trs das confuses conceituais, como explicao de seu carter de profundidade, h insight teortico legtimo para cuja expresso falta uma conceitologia adequada. Com efeito, qualquer que seja a crtica da linguagem que venhamos a fazer, a sua eficcia se deve ao fato de que ela se encontra inevitavelmente impregnada de pressupostos tericos, que podem ser ou no ser explicitamente trabalhados. Como o prprio Wittgenstein percebeu, possvel e mesmo necessrio o estabelecimento de apresentaes panormicas (bersichtliche Darstellungen) da estrutura lgico-gramatical dos conceitos constitutivos dos ncleos mais centrais de nosso entendimento. Como ele escreveu em uma famosa passagem:

Uma fonte principal de nossa incompreenso que no temos uma viso panormica dos usos de nossas palavras falta carter panormico nossa gramtica. A representao panormica permite a compreenso, que consiste justamente em ver as conexes. Da a importncia de encontrar e inventar articulaes intermedirias.

interessante notar que as articulaes intermedirias no precisam se encontrar j prontas. Aqui entra o elemento teortico. A articulao intermediria pode ser simplesmente a regra geral, o elo comum relacionando uma variedade de casos. Esse elo comum ser mais propriamente chamado de descritivo se ele j se encontrar manifesto na linguagem; mas ele ser melhor chamado de teortico se tiver de ser descoberto como uma maneira de dar conta da unidade na diversidade daquilo que fazemos com a linguagem. verdade que ao propor essas coisas, Wittgenstein tambm afirmava que a filosofia deve ser descritiva e no-teortica. Mas como notaram G.P. Baker e P.M.S. Hacker, o que Wittgenstein quis atravs disso foi rejeitar o cientismo, entendido como a assimilao do trabalho filosfico ao modelo de teoria da cincia particular e teoretizao metafsica que mimetiza a cincia o cientismo, que hoje em dia redutivo no s no sentido de abandonar a mediao do senso comum, mas at mesmo do saber comum, quando se encontra comprometido com o que pensado em alguma rea especfica da cincia. Contra isso, o que desejamos encontrar e expor as regras que governam a aplicao de nossos termos filosoficamente relevantes, sem para tal comprometer o equilbrio reflexivo com o nosso saber comum.

O conhecimento tcito do significado: a explicao tradicional

Tambm assumimos o fato bvio de que uma linguagem um sistema de signos governados por regras e que essas regras so convencionais. Uma conveno lingustica uma regra que os participantes da comunidade lingustica geralmente seguem e esperam que os outros participantes tambm sigam, mesmo que lhes falte conscincia dessas regras. devido a esse carter compartilhado das convenes que governam a linguagem que somos capazes de us-la de maneira a comunicar verbalmente o que pensamos. Uma das assunes mais conhecidas da filosofia da linguagem tradicional a de que no temos conscincia das regras semnticas que governam os usos que fazemos de expresses centrais de nossa linguagem. Essas regras encontram-se geralmente automatizadas em ns, de modo que ao usarmos uma expresso no precisamos tomar conscincia do complexo entrelaado de acordos tcitos envolvidos. Uma razo disso encontra-se no prprio modo como as expresses geralmente so aprendidas. Filsofos analticos de Wittgenstein a Gilbert Ryle, P.F. Strawson, Michael Dummett e Ernst Tugendhat sempre apontaram para o fato de que nosso aprendizado do significado das palavras, a saber, das regras convencionais que determinam os seus usos, no costuma se dar atravs de definies verbais, mas de modo no-reflexivo, atravs de exemplificaes positivas e negativas realizadas em contextos interpessoais nos quais esses usos costumam ser confirmados ou desconfirmados e corrigidos por outros falantes.

Se considerarmos que esse aprendizado no-reflexivo inclui termos filosficos centrais como conhecimento, conscincia, causalidade, bem, e mesmo termos da filosofia da linguagem como significado, referncia e verdade, que por sua estrutura conceitual supostamente muito complexa so particularmente elusivos, torna-se claro que essa falta de conscincia semntica pode se tornar uma grande fonte de confuses quando o filsofo procura esclarecer o que esses termos querem dizer, especialmente se ele estiver sob a presso de alguma finalidade generalizadora extrnseca s demandas do prprio objeto de sua investigao. A amplitude e fora dessa idia foi aceita por Wittgenstein do incio ao fim de sua trajetria filosfica:

A linguagem ordinria parte do organismo humano e no menos complicada do que este. (...) As convenes implcitas para o entendimento da linguagem ordinria so enormemente complicadas.

Nosso esforo pela generalidade tem outra origem maior. Filsofos tm os mtodos da cincia natural sob os olhos e so inevitavelmente tentados a perguntar e responder questes ao modo da cincia. Essa tendncia a prpria fonte da metafsica e deixa o filsofo em completa escurido.

Os homens no se do conta dos verdadeiros fundamentos de suas pesquisas. A menos que uma vez tenham se dado conta disto. E isso significa: no nos damos conta daquilo que, uma vez visto, o mais marcante e o mais forte.

A filosofia uma luta contra o enfeitiamento de nosso intelecto pelos meios de nossa linguagem.

Muitos e talvez o prprio Wittgenstein, pensaram no procedimento de explicitao das convenes implcitas da linguagem ordinria como um procedimento revolucionrio. Mas parte artifcios como aquilo que Quine chamou de ascese semntica (semantic accent) o uso de uma metalinguagem de maneira a descrever o contedo do que se encontra sob anlise e a cuidadosa considerao dos usos lingsticos demonstrando conscincia das sutis diferenciaes semnticas no h nada de verdadeiramente revolucionrio nesse procedimento. Pois a anlise do significado de termos filosoficamente relevantes dentro do escopo de uma metafsica descritiva (dedicada, como a definiu Strawson, a descrever a verdadeira estrutura de nosso pensamento sobre o mundo) no mais do que uma retomada, com a adio de novos mtodos de anlise e de uma mais rigorosa ateno s sutilezas da linguagem, de um projeto que perpassou toda a histria da filosofia ocidental e que j havia tomado a forma de anlise conceitual nos dilogos de Plato. Afinal, nesses dilogos Scrates tipicamente aparecia com uma questo do tipo O que X?, onde X estava no lugar de termos como conhecimento, justia, beleza, seguindo-se da as tentativas geralmente aporticas de se encontrar uma definio capaz de resistir a objees e contra-exemplos.

Duas objees explicao tradicional

A idia de que possumos cognies implcitas das convenes que determinam os significados de nossas expresses lingsticas foi desafiada por defensores do externalismo semntico. Segundo o externalismo, os significados das expresses podem residir fora do domnio do psicolgico, no mundo fsico e social, dependendo assim apenas de seus objetos de referncia, assim como, eventualmente, de processos neurofisiolgicos envolvendo mecanismos causais autnomos. Em apoio a essa idia pode ser aduzido o prprio carter no-reflexivo das regras semnticas que determinam nossos usos lingsticos: se no temos conscincia do significado, ento por que ele no pode ser simplesmente no-psicolgico, dependente apenas da maquinaria neuronal? Mas nesse caso no seria em princpio sequer necessrio o envolvimento de elementos cognitivos no significado. Ele poderia envolver apenas mecanismos causais autnomos, irresgatveis para a conscincia. John McDowell ilustra essa posio ao observar contra Michael Dummett que

Podemos ter a habilidade de dizer que um objeto visto o portador de um nome familiar sem ter a menor idia de como o reconhecemos. O presumvel mecanismo de reconhecimento pode ser maquinaria neural [e no psicolgica] suas operaes sendo totalmente desconhecidas de quem as possui .

Para McDowell a funo referencial dos nomes prprios no para ser explicada com base em regras cognitivas implcitas de identificao do objeto, a serem descritivamente resgatadas, pois:

As opinies dos falantes sobre as suas susceptibilidades evidenciais divergentes com respeito a nomes so produtos de auto-observao, tanto quanto isso acessvel, de um ponto de vista externo. Elas no so intimaes vindas do interior, de uma teoria normativa implicitamente conhecida, uma receita para o discurso correto, que guia o comportamento do lingista competente. (grifo nosso)

Essas consideraes encontram-se em oposio ao que pretendo defender nesse livro. Quero vir a demonstrar que alguma instanciao de regra semntico-cognitiva interna acaba por ser indispensvel funo referencial, se esta for entendida em seu sentido prprio. Veremos que para haver referncia um elemento cognitivo geralmente no-consciente associado a nossas expresses deve precisar ser instanciado em alguma medida, em algum momento e em algum de seus usurios, ainda que isso no costuma ser necessrio em toda medida, a todo momento e para todo usurio.

Eis como podemos argumentar contra McDowell. Uma diferena entre a opinio dos falantes resultante da auto-observao do ponto de vista externo sugerida por McDowell e a opinio resultante da auto-observao do ponto de vista interno pretendida por Dummett a de que o resultado da primeira deveria ser gradualmente reforado pela considerao de uma multiplicidade de exemplos, diversamente do resultado da segunda. Mas no parece que esse reforo indutivo acontea do modo esperado. Considere, por exemplo, o significado de uma palavra como cadeira. Todos ns sabemos o significado dessa palavra, mas normalmente no nos damos conta de qual seria a explicitao analtica atravs de uma definio. Assim, seguindo o motto wittgensteiniano de que o significado aquilo que a explicao do significado explica eis uma definio perfeitamente razovel a explicar o significado da palavra cadeira:

(C) Cadeira (Df.) = banco provido de encosto.

Quando ouvimos essa definio pela primeira vez ela se nos afigura imediatamente como algo que parece ser correto. Depois que a ouvimos, podemos tentar imaginar uma cadeira sem encosto, percebendo que no conseguimos. Mas s isso j basta. No precisamos ir alm, imaginando toda sorte de cadeiras (cadeiras de balano, cadeiras de lona, cadeiras de rodas, poltronas...) de modo a irmos reforando indutivamente nossa crena na definio. Mas se McDowell estivesse certo, nosso conhecimento acerca do significado de um nome comum como cadeira fosse resultado da auto-observao de um ponto de vista externo, ento parece que ganharamos maior certeza de que cadeiras so bancos com encosto na medida em que isso fosse indutivamente confirmado pela considerao de um nmero de exemplos cada vez maior. Mas no isso o que acontece e a explicao bvia que a definio apenas recupera a conveno semntica resultante de um acordo tcito entre os falantes que governa o uso da palavra cadeira em identificaes de cadeiras. Mas se o que temos uma conveno, ento um elemento psicolgico precisa estar envolvido, mesmo que de modo no-consciente, mesmo que constitudo apenas do que poderia ser chamado de uma cognio no-reflexiva. Confirmando a explicao tradicional, a definio torna explcita uma conveno que se instancia em cognies implcitas, no-reflexivas, no-conscientes.

Outro argumento que vai contra a idia de que temos acesso cognitivo implcito s convenes semnticas que governam nossas expresses foi desenvolvido por Gareth Evans, o filsofo que mais diretamente influenciou McDowell. Evans pede-nos para contrastar a crena que um ser humano tem de que certa substncia venenosa com a disposio de um rato de evit-la. No caso do ser humano trata-se de uma cognio no sentido de uma crena genuna envolvendo conhecimento proposicional; j no caso do rato trata-se de uma simples disposio para reagir a certo odor, e no propriamente de uma crena. A diferena se mede no fato de que

da essncia de um estado de crena que ele esteja a servio de muitos distintos projetos, e que sua influncia sobre qualquer projeto seja mediada por outras crenas.

Assim, se temos a crena de que certa substncia venenosa podemos com ela tentar matar um rato na expectativa de que ele venha a ingerir o venenou ou, digamos, ingerir o veneno na inteno de nos suicidarmos. Ns relacionamos inferencialmente o contedo cognitivo-proposicional da crena de que algo seja venenoso a uma diversidade de outras crenas, como no caso de algum que acredita que se tornar imune a um veneno ao digerir diariamente uma pequena quantidade dele e ir aumentando gradativamente a dose. Como nosso conhecimento das regras semnticas no susceptvel de tais inferncias, raciocina Evans, ele no constitudo de estados de crena reais, mas de estados insulares, semelhantes disposio do rato. Eles no so, pois, estados psicolgicos propriamente cognitivos.

A caracterizao da crena proposta por Evans interessante e correta. Minha dificuldade com o seu argumento, porm, que ele nos fecha os olhos para a imensa distncia que existe entre nosso conhecimento das regras semnticas e a mera regularidade disposicional que leva o rato a evitar o veneno. Considere, como analogia, o caso de nosso conhecimento das regras da gramtica portuguesa. Considere o caso simples das regras gramaticais de concordncia verbal. Uma criana as aplica sem conscincia do que faz. Mas tais regras j permitem criana realizar uma diversidade de aplicaes a verbos muito diferentes em contextos muito distintos. Noam Chomsky manteve, creio que corretamente, que mesmo no sendo consciente o conhecimento da gramtica envolve conhecimento proposicional e crena, tanto quanto o conhecimento ordinrio, sendo o conhecimento tcito que o falante tem da gramtica inferencialmente avalivel na interao com os seus outros sistemas de conhecimento e crena, sendo sempre capazes de ser trazidos para a conscincia quando sob circunstncias apropriadas.

A concluso clara que h uma gradao entre o estado mental inconsciente mais primitiva e outras mais sofisticadas, que incluem crenas e pensamentos. O problema o do status da regra semntica implcita. Contudo, se o que consideramos regras semnticas so aquelas que tm como exemplo mais simples o caso da regra semntico-criterial (C) para identificar cadeiras como bancos com encosto, ento devemos rejeitar posies como a de Evans e McDowell. Afinal, (C) tambm nos permite fazer inferncias simples, como a de que uma cadeira no um banco, tendo assim muito maior proximidade com as regras da gramtica portuguesa do que com a regularidade disposicional demonstrada por um rato de evitar alimentos com certos odores. Parece que em tais casos, diversamente do caso da disposio do rato, inferncias implcitas para outras cognies encontram-se disponveis, ainda que elas sejam limitadas e que no se possua uma disponibilidade to ampla quanto aquilo que possui o carter de ser conscientemente colocado a servio de muitos e diferentes projetos, como pretende Evans. A razo dessa confuso se encontra a meu ver no fato de que as regras semnticas em questo no tm sido nem seriamente nem suficientemente investigadas em si mesmas, diversamente do que espero fazer no curso da presente investigao.

Cognies semnticas no-reflexivas

Em apoio ao modo de ver recm-sugerido quero apelar para as teorias reflexivas da conscincia. A idia introduzida na discusso contempornea por D.M. Armstrong a de que existem basicamente dois sentidos da palavra conscincia. O primeiro o do que ele chama de conscincia perceptual, que consiste no organismo estar acordado, percebendo, reconhecendo os objetos ao seu redor e a si mesmo. Esse nvel de conscincia compartilhado com espcies inferiores: dizemos que um hamster sedado com ter perdeu a conscincia porque ele deixou de perceber o mundo. Claro que nesse nvel j existe mentalidade e cognio! Mas ao perceber o mundo o organismo no percebe que percebe, no tem conscincia de sua percepo. O rato percebe o gato, mas discutvel se ele capaz de tomar conscincia disso no sentido prprio; quando ameaada, uma serpente deve sentir raiva, mas certamente no tem conscincia da raiva que tem, pois ela no possui autoconscincia... Quando ento temos conscincia de que percebemos, sentimos, pensamos? A resposta dada pela introduo de um segundo e verdadeiramente importante sentido da palavra conscincia, que Armstrong chamou de conscincia introspectiva e que ns, seguindo Locke, chamaremos de conscincia reflexiva (responsvel pela autocosncincia). A conscincia reflexiva nasce quando os estados mentais de primeira ordem, incluindo os da prpria conscincia perceptual, se tornam objetos de cognies de ordem superior, a saber, de metacognies, as quais so reflexivas do que se processa no primeiro nvel (o que D.M. Rosenthal chamou de higher order thoughts). S quando temos a conscincia reflexiva de um estado perceptual que podemos dizer que ele se tornou consciente (por isso, quando dizemos que uma sensao ou sentimento ou pensamento consciente, estamos querendo dizer que ele se tornou objeto de metacognies). Isso demonstra que a conscincia dita perceptual na verdade uma conscincia inconsciente, posto que sendo no-reflexiva, nada sabe de si mesma. Provavelmente s os seres humanos e alguns mamferos superiores so capazes de conscincia reflexiva.

Frente ao que acabamos de considerar podemos distinguir entre duas formas de cognio:

(i) cognio no-reflexiva: essa cognio prpria da conscincia perceptual, ela uma cognio que enquanto tal inconsciente, nada sabendo de si mesma.

(ii) cognio reflexiva: trata-se da metacognio de estados mentais de ordem inferior, os quais se tornam por esse meio conscientes no sentido importante da palavra. Entre seus objetos esto cognies no-reflexivas como as que ocorrem na prpria conscincia perceptual, que podem ento ser chamadas de cognies reflexivas, por serem objetos de reflexo.

Podemos agora aplicar a distino proposta ao entendimento do status dos modos de uso de nossas expresses. Quando dizemos que as regras determinantes de nossos usos das expresses, inclusive as regras criteriais determinantes de seus usos referenciais, no so em geral conscientes, no estamos querendo dizer que suas instanciaes so realmente no-cognitivas, que lhes falta qualquer forma de mentalidade, ou que elas se encontram verdadeiramente insuladas ou excludas. O que queremos dizer apenas que as cognies que instanciam psicologicamente essas regras so de um tipo pr-reflexivo (ou seja, elas no aparecem na forma de cognies reflexivas, falta-lhes conscincia no sentido importante da palavra). Mais ainda: parece ser sempre em princpio possvel que essas cognies no-reflexivas envolvidas em nossos usos significativos das palavras se transformem para ns em cognies reflexivas, conscientes, na medida em que as tornamos objetos de metacognies reflexivas, e que isso nos sirva de base para a compreenso consciente e a explicao verbal de sua decomposio analtica. Proponho ser esse o caminho pelo qual nos tornamos conscientes das regras semnticas envolvidas nos usos das expresses lingsticas.

Ainda preciso fazer uma observao a respeito da sugesto de que a conscincia de um estado mental possa ser o resultado da simples integrao inferencial desse estado mental com os outros estados mentais constitutivos do sistema. Sob essa perspectiva, uma cognio inconsciente seria aquela que permanecesse em maior ou menor medida dissociada de outros estados mentais (embora no insulada, no excluda). Isso pode ser correto. Contudo, por que pensar que essa maneira de ver incompatvel com uma teoria reflexiva da conscincia? Afinal, parece razovel pensar que a propriedade de um estado mental de ser objeto de reflexo metacognitiva seja tambm uma condio talvez fundamental para que esse estado mental possa ser mais extensamente, claramente e refletidamente integrado aos outros estados mentais constitutivos do sistema.

Essas consideraes vm em apoio tese geral desse livro porque nos permitiro admitir a existncia de ocorrncias semntico-cognitivas, mesmo para os casos nos quais no temos conscincia das convenes semnticas que estamos seguindo. As regras criteriais envolvidas no uso referencial das expresses no precisam ser usadas de forma verdadeiramente no-cognitiva, como mecanismos causais irresgatveis para a conscincia reflexiva, como alguns pretenderam. Elas podem ser consideradas como sendo sempre, de um ou de outro modo, cognitivamente aplicadas. S que essas cognies, mesmo sendo eventos psicolgicos, por nunca terem se tornado objetos de metacognies capazes de torn-las cognies reflexivas, no se fazem conscientes, por isso mesmo no se tornando facilmente integrveis a outros estados mentais constitutivos do sistema. Por isso, a falta de conscincia do que est envolvido no uso significativo das expresses no basta para fazer-nos rejeitar a eventual indispensabilidade semntica de um elemento psicolgico-cognitivo.

2. SEMNTICA WITTGENSTEINIANA

Quero nesse captulo esboar uma apresentao panormica do conceito de significado em nossa linguagem representativa, com base principalmente em uma leitura reconstrutiva de sugestes feitas por Wittgenstein. No prximo captulo irei aplicar os resultados dessa proposta semntica fregeana, no intento de produzir uma anlise filosoficamente esclarecedora de suas principais distines.

1. O elo semntico-cognitivo

O ponto de vista que pretendo sustentar nesse livro o de que uma expresso referencial, seja ela qual for, s capaz de referir devido a algum elo intermedirio que a vincula a sua referncia. Quero defender que esse elo intermedirio de natureza semntico-cognitiva no sentido de que ele pode ser considerado sob duas perspectivas: uma semntica e outra psicolgica. Sob uma perspectiva semntica ele chamado de sentido ou significado, uso, intenso, conotao, conceito, contedo informativo e ainda modo de uso, critrio ou regra semntico-criterial. J sob a perspectiva psicolgica esse memo elo pode ser chamado de idia, representao, inteno, concepo e cognio. Eis um esquema:

ELO SEMNTICO-COGNITIVO

a) sentido, significado, contedo,

EXPRESSO intenso, modo de uso, critrio, REFERNCIA

LINGUSTICA regra criterial, proposio...

b) idia, representao, pensamento,

cognio, inteno, concepo...

Quais so as denominaes mais adequadas? Quais as que devem ser excludas? Devemos excluir os tens psicolgicos, de modo a no confundir semntica com psicologia? Ou devemos abandonar as abstraes semnticas vazias em troca das concretudes empricas?

Essas so maneiras comuns, mas em meu juzo incorretas, de se colocar as questes. Quero sugerir que as perspectivas semntica e psicolgica no so alternativas que se excluem, mas que se complementam. Isso assim pelo fato de que o elo intermedirio entre as palavras e as coisas pode ser aproximado de dois modos. Enquanto elo cognitivo ele possui natureza psicolgica, consistindo de elementos que devem ser no final remetidos a tokens mentais em indivduos concretos; mas enquanto o elo semntico de natureza semitica, devendo ser remetidos a types considerados na abstrao de suas instanciaes em indivduos concretos, no sendo assim psicolgicos, mesmo no possuindo nenhuma realidade fora dessas instanciaes. Essa maneira de ver parece confirmar-se quando notamos a correspondncia aproximada que alguns sub-tens de (a) e (b) demonstram entre si. Eis algumas:

Perspectiva semntica Perspectiva psicolgica:

Sentido, significado idia

Conceito concepo, idia

Configuraes criteriais representaes, imagens mentais

demandadas

proposies ocorrncias de pensamento

No que se segue quero buscar alguma elucidao para esses sub-itens e para as relaes entre eles vigentes, usando como fio condutor sugestes feitas por Wittgenstein.

2. Porque o significado no pode ser a prpria referncia

As palavras que mais facilmente nos ocorrem so sentido e significado (em geral usadas como sinnimas), alm de termos cognatos mais tcnicos como contedo ou intenso. O que o significado? Uma primeira resposta oferecida pelo referencialismo semntico, concepo segundo a qual o significado de uma expresso a sua prpria referncia ou extenso. Essa concepo nega a existncia ou a importncia de um elo intermedirio. Wittgenstein considerou essa maneira de ver em sua forma mais primitiva, que ele chamou de teoria agostiniana da linguagem:

As palavras da linguagem denominam objetos frases so ligaes de tais denominaes. Nessa imagem da linguagem encontramos as razes da idia: cada palavra tem um significado. O significado correlacionado palavra. Ele o objeto para o qual a palavra aponta.

O principal objetivo de Wittgenstein nessa passagem foi o de objetar contra o seu prprio referencialismo semntico dos nomes de objetos simples defendido em seu primeiro livro, o Tractatus Logico-Philosophicus. Esse modo de ver tem um apelo natural. Afinal, comum que ao esclarecermos o significado de uma palavra ns apontemos para um objeto que exemplifique o que ela quer dizer. Explicamos o que queremos dizer com o nome Fido apontando para o co que leva esse nome. Isso faz parecer que o significado da palavra seja o prprio objeto referido: aqui est o nome, l est o seu significado. Contudo, essa foi por muitos apontada como uma idia primitiva e enganosa, que tem sido apontada como uma sria fonte de equvocos em filosofia da linguagem, ainda que a sua influncia at hoje perdure.

H uma variedade de argumentos que parecem tornar evidente a falsidade da concepo referencialista do significado. Um deles que muitos termos singulares tm a mesma referncia, mas sentidos (significados) claramente diversos: os termos singulares Scrates e o marido de Xantipa tm significados claramente diferentes, embora se refiram a um mesmo homem. E o oposto acontece usualmente com termos gerais: o predicado ... rpido na frase Bucfalo rpido se refere a uma propriedade de Bucfalo e na frase Silver rpido se refere a uma outra propriedade, pertencente a Silver. Mas embora se referindo a diferentes propriedades, o termo geral guarda certamente o mesmo significado ao ser aplicado a um e ao outro cavalo. Assim, parece que o significado no pode ser confundido com a referncia nem dos termos singulares nem dos termos gerais.

O principal argumento contra a concepo referencialista do significado, contudo, mais bsico e em meu juzo o mais destrutivo: trata-se do fato de que quando uma expresso referencial no tem referncia, ela no parece perder nada do seu significado. O termo singular Eldorado e o termo geral flogisto no tm nenhuma referncia, mas nem por isso deixam de ser significativos.

Consciente dessas dificuldades, Bertrand Russell decidiu defender a concepo referencialista do significado em uma forma minimalista, concernente apenas aos supostos elementos atmicos da linguagem e do mundo. Ele deu a entender que ao menos o significado de alguns termos designadores de objetos simples, por ele chamados de nomes prprios lgicos, seria o prprio objeto referido; esse poderia ser o caso de uma palavra como vermelho. Afinal, um cego no capaz de aprender o seu significado.

Contudo, um pouco de reflexo demonstra ser insustentvel a idia de que o significado de uma palavra possa em algum caso se reduzir a sua referncia tout court. Suponha que algum aplique demonstrativamente a palavra vermelho a uma ocorrncia do vermelho (seja ela uma ocorrncia no mundo externo, como no caso da propriedade espao-temporalmente singularizada de um objeto de ser vermelho (o tropo), seja ela uma ocorrncia interna, como seria o caso de perceptos (sense data) de vermelho presentemente experienciados, como queria Russell. Poderia ser essa ocorrncia o significado da palavra?

H uma razo bvia para pensarmos que no, que a falta de critrios de identidade. Isso se nota quando consideramos que a ocorrncia de vermelho seja ela fisicamente ou fenomenalmente pensada ser sempre outra a cada nova experincia. Assim, se o significado de vermelho for apenas o vermelho-como-ocorrncia, cada nova ocorrncia de vermelho poder ser um novo e distinto significado.

Russell tinha como se defender dessa acusao, mas s ao preo de cair em uma dificuldade muito pior. Ele sugeriu que o objeto-significado do nome prprio lgico fosse um sense datum referido por um demonstrativo como isso apenas pelo tempo em que possussemos conscincia do sense datum. Claro est que tal soluo conduz diretamente ao solipsismo. Como inserir um nome prprio assim pensado na linguagem? Que regras de correo poderiam ser aplicadas ao seu uso se nem a sua prpria reutilizao no mesmo sentido pode ser considerada?

Com efeito, conhecer o significado de uma palavra como vermelho na verdade saber reconhecer uma ocorrncia do vermelho como sendo ao menos igual a outras ocorrncias do vermelho. Mas esse reconhecimento no est incluido na idia de que o significado da palavra se reduz prpria coisa a qual ela se refere. A noo de significado de um termo exige essencialmente que este unifique mltiplas ocorrncias daquilo a que se refere sob um mesmo significado. Mas essa unificao deixa de ser possvel para a palavra vermelho se o seu significado for reduzido a sua prpria ocorrncia.

verdade que uma concepo realista do significado, segundo a qual o significado de uma palavra como vermelho seria um vermelho-type, entendido como uma entidade abstrata, comum a todas as ocorrncias (tokens), resolveria esse problema. Mas essa soluo nos comprometeria com alguma forma de platonismo, levantando a justificada suspeita de uma reificao ininteligvel do type em um topos atopos.

Uma alternativa seria considerar o vermelho-type em questo como sendo o conjunto das ocorrncias idnticas entre si. Isso diminui o risco do platonismo, mas no o elimina, pois conjuntos so entidades abstratas aparentemente irredutveis. Alm disso, conjuntos podem ser maiores ou menores, aumentando ou diminuindo, enquanto o significado da palavra vermelho no tem tamanho e nem aumenta nem diminui.

A seguinte alternativa parece ser mais vivel. Podemos considerar o significado de vermelho como sendo qualquer ocorrncia considerada igual a uma ocorrncia que estejamos usando como modelo. Assim, se reconheo aquilo que me est sendo atualmente dado como sendo uma ocorrncia de vermelho, pode ser porque percebo que essa ocorrncia igual a outra que j me foi dada antes como vermelho o modelo do qual guardo memria o que me faz ganhar a conscincia de que se trata de uma cor igual a que experienciei da outra vez. Assim, chamando as diversas ocorrncias experienciadas de vermelho de {V1, V2... Vn } e a ocorrncia que serve de modelo de Vm, posso dizer que V1 = Vm, que V2 = Vm... e que Vn = Vm, e que por isso {V1 = Vm = V2}, sem recorrer a uma entidade platnica ou sequer noo de conjunto. O que chamamos de significado da palavra vermelho pode, sob esse prisma, ser identificado com a conexo referencial, a saber, com a regra cognitiva que relaciona a ocorrncia experienciada ocorrncia-modelo de maneira a produzir a conscincia do que est sendo experienciado como sendo uma cor vermelha. Como essa regra cognitiva requer modelos intersubjetivamente experienciados ou a memria desses modelos, fica explicado porque o significado da palavra vermelho no pode ser aprendido por um cego. Parece, pois, que o significado da palavra vermelho deve ser dado por uma regra semntico-cognitiva dependente de ocorrncias-modelos para a identificao de novas ocorrncias como sendo instncias de vermelho. Contudo, tal regra independente dessa ou daquela ocorrncia particular do vermelho. Enfim: ao refletirmos sobre a questo, mesmo para uma coisa to simples como a cor vermelha, acabamos por ir alm de uma concepo propriamente referencialista do significado.

Mesmo que o referencialismo estrito jamais se sustente, h uma lio a ser aprendida. Nossa ltima sugesto de entendimento salva do referencialismo russelliano uma sugesto importante, que a da necessria existncia de algum objeto de referncia para os supostos nomes de objetos simples. Mesmo entendendo a expresso objeto simples em um sentido que no absoluto, restringindo-se a uma entidade no-decomponvel em certa prtica lingustica, como bem poderia ser o caso de um percepto de vermelho ou do vermelho como uma propriedade singularizada dada experincia (um tropo), a concluso a de que para que tais nomes tenham significado eles precisam ter referncia. Eis porque, em um sentido importante, um cego no pode saber o significado da palavra vermelho. Pois no podendo ter contato sensorial com coisas vermelhas, ele no pode construir a regra semntico-cognitiva constitutiva do significado da palavra. Ao menos no caso de nomes de objetos simples, referidos por algum subrogado dos nomes prprios lgicos restrito a certa prtica lingustica, necessrio que exista alguma referncia. Mas isso no quer dizer que o significado do nome seja a prpria referncia. Isso quer dizer apenas que a referncia necessria constituio da regra semntica atravs da qual o nome do objeto admitido como simples ganha referncia.

3. Significado, uso, regra semntica

Passemos agora a outro candidato a elo semntico: o uso ou aplicao. Wittgenstein sugeriu que o significado de uma expresso lingstica o seu uso (Gebrauch) ou aplicao (Verwendung). Como ele escreve em uma famosa passagem das Investigaes Filosficas:

Pode-se, para uma grande classe de casos de utilizao da palavra significado seno para todos os casos de sua utilizao explic-la assim: o significado de uma palavra o seu uso na linguagem.

Essa sugesto se aplica tanto a palavras quanto a frases. Ela se aplica claramente aos usos performativos das expresses, como o do verbo pedir em proferimentos do tipo Peo que p. Esses usos constituem tipos de interao entre o falante e o ouvinte chamadas de foras ilocucionrias.

Contudo, a identificao do significado com o uso no se aplica to somente ao significado descritivo, representacional ou semntico-cognitivo das expresses, que aquele que est em causa quando tratamos da referncia. O significado da frase descritiva O cu est azul no parece se reduzir aos seus usos. Uma soluo consiste em se fazer uma extenso justificada do conceito de uso. Podemos dizer que aquilo que est em causa nesses casos o uso referencial de termos e frases: o uso envolvido no ato de tornar pblica uma descrio de como as coisas so. Podemos entender o uso referencial de expresses como aquele em que um falante comunica a cognio de como as coisas so ao ouvinte. Assim, no proferimento O cu est azul estou usando a assero de modo constatativo, para comunicar o contedo por ela descrito.

Contudo, o que dizer da compreenso de um proferimento pelo ouvinte? O ouvinte afinal no o est usando ao compreender o seu significado (quando leio um livro tenho acesso ao significado das frases, mas no as estou usando). Aqui precisamos recorrer a uma segunda extenso da palavra uso. Posso dizer que tambm uso as expresses em pensamento. Quando penso que o cu est azul, uso a linguagem no pensamento. E o pensamento , como o definiu Plato, um dilogo da alma consigo mesma. Se concordo com algo, se me pergunto algo, se constato algo para mim mesmo, trata-se de usos internalizados de expresses determinados por regras tambm envolvidas na comunicao.

Tambm importante perceber que no se trata simplesmente de uso no sentido de uma mera ocorrncia espao-temporal (token) da expresso lingstica, pois uma ocorrncia difere sempre da outra em sua localizao espao-temporal. Se fosse assim o significado seria um outro a cada nova ocorrncia, o que tornaria o nmero de significados de cada expresso ilimitado. A alternativa plausvel entender o uso no sentido de modo de uso (Gebrauchsweise) ou modo de aplicao (Verwendungsweise), pois uma mesma palavra pode ser usada muitas vezes do mesmo modo. Mas o que o modo de uso? Ora, ele no parece ser outra coisa seno algo do tipo de uma regra (etwas Regelartiges). O prprio Wittgenstein chegou a essa concluso em uma passagem menos quotada de Sobre a Certeza:

Um significado de uma palavra um modo de sua aplicao (Art der Verwendung)... Da que existe uma correspondncia entre os conceitos significado e regra.

Com efeito: usar uma expresso de modo significativo us-la de acordo com o seu modo de uso. us-la corretamente, a saber, segundo as regras de significao apropriadas. A correspondncia entre modo de uso e regra fica clara atravs de uma ilustrao: imagine que voc compre uma cmara de vdeo e que na embalagem encontre um livreto no qual est escrito modo de uso. O que vem a seguir so instrues que nada mais so do que regras para a correta utilizao do aparelho. O significado s pode ser aproximado do uso se for entendido no sentido de modo de uso, de algo do tipo de uma regra, que determina os usos-ocorrncias singulares. E o uso referencial uma forma particularmente importante de modo de uso.

Mas por que ento no podemos identificar o significado de nossas expresses lingsticas com regras simpliciter? A resposta tambm foi aproximada por Wittgenstein com a sua analogia da linguagem com um clculo. As expresses lingsticas em seu uso geralmente envolvem clculos, os quais nada mais so do que combinaes ou concatenaes de regras. E os significados que elas possuem parecem constituir-se dessas combinaes de regras que so convenes automatizadas, mais ou menos compartilhadas entre os falantes. isso o que justifica a comparao da linguagem com um clculo. A multiplicao 12 . 30 = 360, por exemplo, pode para certa pessoa resultar da combinao de trs regras, uma multiplicando 10 . 30, outra multiplicando 2 . 30, e ainda outra somando os resultados 300 + 60, de modo a obter 360. O sentido epistmico da multiplicao 12 . 30 = 360 se encontraria ento dado por essa e por outras calculaes equivalentes, pois tal proposio no faria sentido se tais clculos no pudessem ser realizados. O que havamos chamado de algo do tipo de uma regra parece esclarecer-se, pois, como uma combinao de regras. O significado de uma expresso lingstica deve ser o mesmo que certas regras ou combinaes de regras que eventualmente determinam usos-ocorrncias corretos, quer pragmticos, quer referenciais, quer na linguagem falada, quer na linguagem pensada. Nesse livro usarei o termo regra de maneira a incluir combinaes de regras, o que no final das contas uma extenso justificada do termo, posto que uma combinao de regras no mais do que uma regra composta, que embora no seja ela prpria convencional (o seu compartilhamento pelos falantes no pressuposto), costuma ser convencionalmente fundada, a saber, constituda com base em convenes.

H ao menos duas espcies de regras de significao que no podem deixar de ser distinguidas. A primeira a das regras cognitivo-criteriais responsveis pelo significado epistmico das sentenas declarativas. Critrios so, no dizer de Wittgenstein, aquilo que confere s nossas palavras os seus significados comuns. Para ele essas regras so baseadas em critrios, que so condies que precisam ser independentemente dadas para que tenhamos a cognio de que algo o caso. Usando um exemplo do prprio Wittgenstein, se algum afirma Est chovendo, isso envolve a aplicao de uma regra criterial, uma regra que demanda que sejam dadas certas condies, como a de gotas de gua caindo das nvens, para que haja a cognio, a tomada de conscincia do fato de que est chovendo. A segunda espcie de regras de significao a ser mencinada a das regras ilocucionrias, determinadoras do sentido ilocucionrio, ou seja, estabelecedoras da espcie de interao que deve ocorrer entre falante e ouvinte. Se ao fazer um pedido digo Por favor, feche a porta, essa frase no ser verdadeira ou falsa, mas bem sucedida ou no, sendo a regra ilocucionria aquilo que nela tematizado. As regras ilocucionrias esto fora do mbito de investigao desse livro, sendo mencionadas apenas no intuito de prevenir confuses.

Contudo, se uma anlise do apelo ao uso termina por apontar para regras cognitivas semntico-criteriais, ento por que comear pelo uso? Por que no comear logo pela investigao dessas regras e de suas combinaes? A resposta que comear pelo uso tem para Wittgenstein uma importncia heurstica. As ocorrncias de uso correto, devidamente interpretadas, devem constituir-se nos hard data semnticos: evidncias pblicas e indiscutveis da aplicao das regras de significao, pois a linguagem primeiramente um instrumento de ao e as regras cognitivo-criteriais esto inevitavelmente associadas a funes ilocucionrias. Ademais, o apelo ocasies de uso torna patentes as sutis variaes semnticas que uma mesma expresso pode sofrer ao ocorrer em diferentes contextos (prticas, jogos de linguagem), o que permite desfazer equvocos surgidos de usos filosficos da linguagem, que venham a confundir essas variaes.

4. Significados e prticas lingsticas

H mais a se dizer sobre o significado como funo do uso: que uma expresso lingstica normalmente usada dentro de um sistema de regras. Podemos comparar uma expresso lingstica com uma pea de um jogo de xadrez e o seu uso com um lance no jogo. Quando movemos a pea de xadrez, o significado do movimento no dado somente pela regra segundo a qual movemos a pea. Ele mais completamente dado pela estratgia, pelo clculo das combinaes possveis de regras na previso de possveis movimentos do adversrio e das respostas que poderiam se seguir. Esse clculo prprio para o jogo de xadrez e ser diferente, digamos, no jogo de damas. Algo semelhante se d com um proferimento lingstico. As regras lingstico-gramaticais de superfcie so como as que permitem os movimentos das peas de xadrez. No so elas as que mais importam. Elas do expresso o seu sentido meramente gramatical. As regras constitutivas do significado da expresso se assemelham mais s combinaes de regras que justificam o movimento no contexto do jogo de xadrez. Essas regras de uso de uma expresso lingustica s se articulam no contexto de sistemas de regras geralmente sintticas, semnticas e pragmticas, que Wittgenstein inicialmente chamava de jogo de linguagem e mais tarde passou a chamar de prtica lingstica. Exemplos dados por Wittgenstein de jogos de linguagem so ordenar, descrever um objeto pela aparncia, informar um acontecimento, fazer suposies sobre um acontecimento, inventar uma estria, contar uma histria, explicar, descrever uma paisagem, fazer teatro, contar uma piada, traduzir etc.

Ao fazer depender o significado das expresses de seus usos segundo as regras de prticas lingsticas, Wittgenstein estava endossando o que hoje chamaramos de uma forma de molecularismo semntico: o significado da expresso no depende dela mesma em isolamento (atomismo semntico), nem de sua insero na linguagem como um todo (holismo semntico), mas de ela ser usada no contexto de uma prtica lingstica (um subsistema molecular da linguagem). Em apoio a essa concepo ele descreveu a linguagem natural como uma nebulosa de jogos de linguagem. Como ele escreveu:

A linguagem do adulto apresenta-se aos nossos olhos como uma massiva nebulosa, a linguagem ordinria, circundada de jogos de linguagem particulares mais ou menos definidos, que so as linguagens tcnicas.

A nebulosa de prticas lingusticas, por sua vez, algo que s encontra a sua razo de ser como parte constitutiva do que Wittgenstein chama de uma forma de vida. Ao que consta, ele teria sido influenciado pela leitura de um artigo do antroplogo Bronislaw Malinovski, o qual sugeriu que para aprender a lngua de um povo primitivo precisamos compartilhar da vida em sua sociedade. O exemplo usado por Malinovski para ilustrar o seu ponto de vista pode ser til: quando os pescadores das ilhas Trobriandes usam a expresso remamos em lugar, eles querem dizer com ela que esto prximos de uma aldeia, pois como as guas, mesmo prximas da praia, so profundas, varar a canoa impossvel e eles precisam usar os remos para chegar aldeia. S quando conhecemos o contexto em que os nativos vivem ganhamos condies de entender o que essa expresso quer dizer.

Como em outros pontos, a importncia do que Wittgenstein diz consiste em ter percebido o alcance e a abrangncia de certas idias. Para ele a expresso forma de vida tem o sentido de modo de vida em sociedade, a dizer, do complexo de regras que determinam a vida das pessoas em um grupo social. Assim, a linguagem um sistema imensamente complexo que multiplamente divisvel em subsistemas que so as prticas lingsticas, os jogos de linguagem, os quais se encontram por sua vez enraizados em outro sistema, que o constituido pelas regras que determinam a vida das pessoas em sociedade, no podendo ser inteiramente separado desse ltimo. As prticas lingusticas constitutivas de nossa linguagem ordinria nascem espontaneamente de nossa forma de vida e dela dependem. Mesmo o aprendizado dos jogos de linguagem especializados das cincias, s possvel porque j pressupe algum domnio das prticas da linguagem ordinria, tambm dependendo, por isso, em ltima instncia, da forma de vida. Eis porque um computador no seria capaz de dar sentido s palavras com as quais opera: ele no membro participante de uma forma de vida.

Podemos sintetizar essas sugestes na idia de que um significado de uma expresso (palavra, frase) consiste em seu uso determinado pelas regras de uma prtica lingstica pertencente a uma forma de vida. Ou seja:

Um significado de uma expresso x = um uso de x segundo regras de uma

prtica lingstica radicada em uma

forma de vida.

Com isso temos uma primeira representao panormica da gramtica do conceito de significado, com alguma utilidade tambm como fundamento para uma crtica da linguagem.

5. Transgresses do uso lingstico

Gostaria de fazer agora um breve excurso sobre as duas maneiras como, em concordncia com os textos de Wittgenstein, o uso lingstico correto pode ser transgredido em filosofia de maneira a produzir maladies que demandam terapia. Podemos cham-los de uso deslocado e condensado de uma expresso, termos que tomo de emprstimo da teoria freudinana sobre os mecanismos do processo primrio. No uso deslocado uma expresso usada em uma prtica lingstica B preservando o seu modo de uso na prtica lingstica A (ou seja, segundo as regras semnticas de A). J no uso confus tenta-se usar uma mesma expresso que pode ser usada em duas ou mais prticas lingsticas, digamos, A e B, simultaneamente, como se isso constitusse uma nica prtica lingstica.

Exemplos filosficos desses mecanismos so sempre contestveis, por isso vou considerar dois casos muito simples. Quanto ao uso equvoco, considere o paradoxo de Estilpo. Esse filsofo negou a possibilidade de predicao. Para ele, se digo que Scrates sbio, caio em contradio, pois estou negando que Scrates Scrates... Para ele podemos dizer de alguma coisa que ela o que . Mas se quisermos dizer algo mais do que isso, ento camos em contradio, pois estamos negando que ela o que . Podemos identificar a falcia cometida por Estilpo distinguindo uma prtica lingustica do tipo A, na qual o verbo ser usado no sentido de identidade (ex: Scrates Scrates), de uma prtica lingusticas do tipo B, nas quais o verbo ser ganha um sentido predicativo (ex: Scrates sbio). Estilpo comea por assimilar a segunda prtica primeira. Ou seja: ele tenta usar o verbo ser em prticas do tipo B preservando o sentido que ele tem em prticas do tipo A, que o nico que ele admite. Com isso ele produz um uso deslocado que ele reconhece como sendo equvoco. Ao perceber isso ele conclui pela rejeio da possibilidade de usarmos o verbo ser em prticas lingusticas do tipo B.

Para tentarmos um exemplo de uso condensado, considere a sugesto de alguns filsofos, segundo a qual o verbo ser deve ter um sentido unvoco originrio, que tanto o de identidade quanto predicativo e mesmo existencial! Digamos que, como comprovao disso, nos seja apresentada a frase: O Ser Ser, com a qual se pretenderia afirmar que o tambm tem uma propriedade mais originria, superior a da mera identidade, que simultaneamente subsume tanto a predicao da seridade do Ser quanto de sua prpria existncia. Contra tal sugesto, o crtico da linguagem nos dir ser muito mais plausvel que aquilo que o filsofo pretende com o da frase O Ser Ser seja uma incoerente mistura de sentidos, a saber, uma simples confuso decorrente da condensao de trs usos da mesma palavra, advindos de vrias prticas lingsticas distintas: A (de afirmar identidade: ser = ser), B (de predicar algo: Do ser se predica o ser) e C (de afirmar existncia: O ser , ele existe), do que resulta no melhor dos casos em ambigidade e no pior em confuso e impossibilidade conceitual.

Apresento essa explicao porque repetidamente nesse livro, ao praticar a crtica da linguagem, recorrerei a argumentos que denunciam formas do uso deslocado ou condensado das expresses. Lembremo-nos, porm, que a crtica (ou terapia) da linguagem no esgota a questo. Usos deslocados e condensados em filosofia esto geralmente apontando para questes relevantes, ainda que inadequadamente abordadas.

6. Verificacionismo wittgensteiniano

Por hiptese, sob o suposto de que o sentido referencial das expresses seja dado por regras semntico-cognitivas, podemos distinguir para cada expresso referencial uma regra semntico-cognitiva especfica. Para chegar a isso sugiro seguirmos a estratgia de Ernst Tugendhat de nos concentrarmos nas regras expressas pelos enunciados singulares, sejam eles predicativos ou relacionais. Afinal, so eles os enunciados mais fundamentais, se considerarmos que enunciados universais e existenciais podem ser analisados respectivamente como conjunes e disjunes de enunciados singulares. Assim, lembrando que a frase singular predicativa constituida por um termo singular e por um termo geral e seguindo uma classificao do prprio Tugendhat, chamo a regra semntico-cognitiva para o termo singular de uma regra de identificao do objeto (Identifikationsregel), chamo a regra semntico-cognitiva para o termo geral de sua regra de aplicao (Verwendungsregel) e chamo a regra semntico-cognitiva para a frase predicativa singular de sua regra (mtodo, procedimento) de verificao (Verifikationsregel) do fato, o qual pode ser por enquanto simplesmente estipulado como sendo o fazedor da verdade independente do sujeito. Tambm como Tugendhat podemos supor que o significado da frase singular predicativa envolve uma regra de verificao resultante da aplicao combinada das duas regras anteriores, nomeadamente, da regra de aplicao de termo geral com base na aplicao da regra de identificao do termo singular. No caso da frase singular relacional, a diferena apenas que o termo geral relacional tem uma regra de aplicao que se aplica em combinao com duas ou mais regras de identificao de termos singulares para formar a regra de verificao da frase relacional. Este recurso regra de verificao foi, alis, visto por Tugendhat como uma maneira analiticamente mais aprofundada de se falar da condio de verdade da frase, identificao qual deveremos retornar mais tarde.

Com a admisso terica de que o contedo de significao da frase singular possa ser dado por sua regra de verificao chegamos a um ponto bastante polmico: a admisso do que poderamos chamar de verificacionismo semntico, que a identificao do contedo de significao cognitivo ou descritivo ou factual ou informativo ou (como prefiro chamar aqui, seguindo o termo fregeano Erkenntniswert) o significado epistmico de uma frase enunciativa com a sua regra de verificao. Embora nem todos saibam, foi Wittgenstein a primeira pessoa a sugerir essa idia. Vale, pois, considerarmos o que ele disse a respeito. Eis algumas de suas declaraes:

Uma frase (Satz) que no se deixa verificar de modo algum no tem nenhum sentido (Sinn).

So duas frases verdadeiras ou falsas sob as mesmas condies, ento elas tm o mesmo sentido (mesmo que elas nos paream diferentes).

Determino sob que condies uma frase pode ser verdadeira ou falsa, ento determino desse modo o sentido da frase. (Esse o fundamento de nossas funes de verdade.)

Para saber o sentido de uma frase, preciso conhecer um procedimento muito bem definido para saber se a frase verificada.

O mtodo de verificao no um meio, um veculo, mas o prprio sentido. Determino sob quais condies uma frase deve ser verdadeira ou falsa, assim determino o sentido da frase.

O sentido de uma frase o mtodo de sua verificao.

O que primeiro chama ateno em tais formulaes que elas so quase trivialmente intuitivas, parecendo confirmar a sugesto wittgensteiniana de que teses filosficas so exposies de lugares comuns acerca dos quais deveramos todos estar de acordo. Sem dvida, se considerarmos exemplos muito simples (e penso que modelares de condies mnimas) como O cu est azul ou A chave est em cima do armrio, parece claro que s sabemos o que esses enunciados querem dizer na medida em que sabemos como eles podem ser tornados verdadeiros. Outro aspecto importante que, diversamente do que os membros do Crculo de Viena fizeram com a sua sugesto, Wittgenstein no se colocava dentro de uma perspectiva logicista em busca de uma formulao formalmente precisa do princpio, capaz de dar conta de suas mais variadas aplicaes. Suas formulaes so genricas, possuindo um vis operacionalista: nelas as condies de verdade dadas experincia seriam melhor entendidas como constituintes distais da regra (procedimento, mtodo) verificacional. Alm disso, o princpio no de antemo apresentado como arma ideolgica no combate metafsica; a sua funo primeira a de expor uma condio lgico-gramatical que se encontra no fundamento de toda a linguagem factual. Finalmente, questionvel a sugesto frequente de que Wittgenstein teria mais tarde abandonado o princpio da verificao em favor da idia de que o significado o uso, posto que as duas sugestes podem ser vistas como complementares. Como notou Moritz Schlick, o melhor leitor de Wittgenstein daquele perodo:

Enunciar o significado de uma sentena o mesmo que enunciar as regras de acordo com as quais a sentena para ser usada, e isso o mesmo que enunciar o modo pelo qual ele pode ser verificada. O significado de uma proposio o mtodo de sua verificao.

Uso aqui modo de uso que regra de uso que uma regra cognitiva, uma regra (mtodo, procedimento) de verificao, a qual tambm uma regra criterial, posto que estabelecedora dos critrios de verificao.

7. Regra verificacional como portadora da verdade

preciso ter em mente o que a regra de verificao verifica. Ela verifica o portador da verdade. Ela no verifica a frase, pois a frase no o portador da verdade. A frase no possui a estabilidade necessria ao portador da verdade, que precisa ser sempre verdadeiro ou sempre falso na independncia das circunstncias. Tambm o enunciado, que entendo como sendo a frase adicionada ao seu sentido gramatical (ao seguimento de regras sintticas) no pode ser portador da verdade pelas mesmas razes. O que a regra de verificao verifica o contedo ou o sentido epistmico do enunciado, e como ela mesma esse contedo, o que ela verifica a si mesma. A regra de verificao verifica-se a si mesma por meio de sua aplicao. Por isso a verdade da regra de verificao a sua aplicabilidade e a sua falsidade a sua inaplicabilidade.

Tambm preciso considerar que a regra de verificao vem associada tanto verificao quanto falsificao do enunciado. E a razo disso encontra-se no fato de que essa regra, sendo o prprio significado epistmico do enunciado, ou seja, o seu prprio contedo cognitivo ou epistmico verifica-se a si mesma ao aplicar-se e se falsifica a si mesma ao se demonstrar inaplicvel. Considere o enunciado Frege usava barba. Aqui a regra de verificao se aplica a um fato no mundo, logo o contedo enunciativo verdadeiro, a prpria regra verdadeira. Considere agora o enunciado Russell usava barba: aqui a regra de verificao no se aplica a nenhum fato no mundo, logo o contedo enunciativo falso, a prpria regra falsa. (Similarmente, no existem fatos negativos: a frase Napoleo no usava barba no se aplica ao fato negativo de ele no usar barba. Pois Napoleo no usava barba quer dizer o mesmo que falso que Napoleo usava barba, o que, por sua vez, deve querer dizer o mesmo que A regra de verificao para o enunciado Napoleo usava barba no se aplica.)

8. Regra verificacional como regra cognitivo-criterial

Podemos compreender melhor a noo de regra de verificao tal como ela apresentada por Wittgenstein pela considerao da noo de critrio e regra criterial que, como j notamos, tambm tem a sua origem na filosofia de Wittgenstein. As inicialmente supostas regra semnticas de identificao, caracterizao e verificao, tambm podem ser vistas como regras criteriais, a saber, regras que estabelecem os critrios de identificao do objeto para o termo singular, os critrios d