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GLAUBER CESAR KLEIN UMA DEFESA DA LEITURA DOS CLÁSSICOS NO ENSINO MÉDIO Trabalho apresentando à disciplina Seminários de Ensino de Filosofia I, do curso de licenciatura em Filosofia Universidade Federal do Paraná. Professor Emmanuel Appel.

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GLAUBER CESAR KLEIN

GLAUBER CESAR KLEIN

UmA defesa da leitura dos clssicos no ensino mdio

Trabalho apresentando disciplina Seminrios de Ensino de Filosofia I, do curso de licenciatura em Filosofia Universidade Federal do Paran.

Professor Emmanuel Appel.Curitiba

2008

At ento no se pode aprender nenhuma filosofia; pois onde est ela? Quem a possui? Por que caracteres se pode conhecer? Pode-se apenas aprender a filosofar, isto , a exercer o talento da razo na aplicao dos seus princpios gerais em certas tentativas que se apresentam, mas sempre com a reserva do direito que a razo tem de procurar esses prprios princpios nas suas fontes e confirm-los ou rejeit-los.

Immanuel Kant, Crtica da razo pura, B 866.

Resumo: A questo principal que permeia nosso texto a seguinte: deve-se trabalhar com os clssicos da filosofia nos planos de ensino de filosofia para o ensino mdio? A questo complexa, exigindo que faamos uma reflexo sobre diversos conceitos que a esto subjacentes: O que um clssico?, o que o ensino mesmo da filosofia?, o que formao?, etc. Esse trabalho procura fazer essas reflexes a fim de elaborar uma resposta suficiente questo principal.Introduo

Nosso texto parte da seguinte questo: defensvel a leitura dos clssicos da filosofia, dos pequenos grandes textos dos "principais" filsofos j no ensino mdio? Ao argumentar, leve tambm em conta a afirmao de Italo Calvino (in Perch leggere i classici/Por que ler os clssicos, Cia. Das Letras, SP, l993) "... no se pense que os clssicos devem ser lidos porque "servem" para qualquer coisa: a nica razo que se pode apresentar que ler os clssicos melhor do que no ler os clssicos".

A questo pertinente a todo estudante de filosofia que se prepara para o exerccio de dar aulas a nvel de ensino mdio. De certo, no uma questo nova, pelo contrrio, j comeou a ser debatida h alguns anos, como o compravam os textos de diversos professores de filosofia do pas . Mas hoje particularmente impositiva, pois vivemos, por conta da recente aprovao da Lei n. 11.684/08 , um momento de intenso e premente dilogo acerca da importncia da filosofia no ensino mdio, assim como sobre o que e como deve ser ensinado nesta disciplina.

Entendemos que a questo envolve ainda que no necessariamente vrias outras, a saber, o que um clssico da filosofia?, como deve ser o ensino da filosofia?, o que formao?, qual o valor da tradio ou, em outras palavras, qual o papel do estudo da histria da filosofia para o aprendizado da filosofia dentro da grade curricular do ensino mdio?, etc.

Nossa estratgia para uma resposta questo proposta consistir em, num primeiro momento, fazer uma (1) anlise dos principais conceitos envolvidos, nomeadamente, o de texto clssico, o de formao e o de ensino (especificamente, de filosofia); em um segundo, fazer uma (2) reflexo geral sobre o ensino de filosofia no ensino mdio a partir dos ganhos da primeira parte desse trabalho.

1. Conceitos e princpios para uma defesa da leitura dos clssicos da filosofia no ensino mdio1.1 O que um texto clssico.

Uma primeira anlise que se impe a de definio de texto clssico. Comecemos com o mais geral. O termo classicus indicava, durante o Imprio Romano, uma qualificao social, ou seja, era usado para se referir ao cidado romano pertencente a uma alta classe. Neste sentindo, tinha j conotaes de autoridade e superioridade. Em termos literrios, ao que parece, o termo foi empregado pela primeira vez por Aulus Gellius, justamente para qualificar autores como exemplares, que exercem autoridade e so tecnicamente superiores: est classicus adsiduusque aliquis scriptor, non proletarius . Gellius no forjou essa acepo da palavra, uma vez que seus trabalhos consistiam em compilao e historiografia, o que significa que o termo era empregado neste sentido ordinariamente, notadamente para a classificao dos livros ou autores usados ao longo da formao dos jovens .

Modernamente, a questo sobre o que um clssico foi discutida por diversos autores. Eliot, em seu ensaio O que um clssico , determina inicialmente algumas condies para o uso do termo: devo utilizar a palavra "clssico" apenas para reconhecer um "autor modelar" em qualquer lngua - empregando-a simplesmente como indicao da magnitude, ou da permanncia e da importncia de um escritor em seu prprio campo de atividade . A seguir, Eliot mais preciso ao enunciar o que, para ele, a marca essencial de uma obra clssica: Se houvesse uma palavra que pudssemos nos fixar, capaz de sugerir o mximo do que pretendo dizer com a expresso "um clssico", esta seria maturidade . Com maturidade ele quer indicar que uma obra clssica s floresce e a expresso maior de uma civilizao, com lngua e literatura amplamente desenvolvidas, o que implica a noo de completude .

Um aspecto interessante da leitura de Eliot a sua distino entre clssico relativo e clssico absoluto. A distino repousa sobre a universalidade da importncia da obra . Se uma obra a expresso de uma sociedade, lngua e literatura, se ela , enfim, uma obra nacional, ento Eliot classifica-a como um clssico relativo. Ao contrrio, clssico absoluto aquela obra que tem as caractersticas antes mencionadas magnitude, permanncia e importncia, assim como maturidade , mas no mais relativas a uma civilizao, mas antes a um conjunto de lnguas e culturas .

Por fim, temos um fator essencial da anlise eliotiana acerca dos clssicos: A obra clssica um padro, padro de excelncia, que contm as caractersticas que foram desenvolvidas ao longo de seu ensaio. A obra clssica um padro e/ou critrio de avaliao de uma sociedade, de uma lngua e de toda uma literatura : Todavia, mantendo-nos fiis aos problemas de literatura, ou aos termos literrios quando abordamos a vida, podemos nos permitir ir alm do que afirmamos. Em termos literrios, o mrito de Virglio reside para ns no fato de que ele nos proporciona um critrio. Podemos, como j disse, ter motivos para nos alegrar com a circunstncia de que esse critrio fornecido por um poeta que escreve numa lngua diferente da nossa, mas esta no constitui uma razo para rejeitar o critrio. Preservar o padro clssico, e avaliar por meio dele cada obra literria individual, comprovar que, enquanto nossa literatura em conjunto pode abarcar tudo, cada uma de suas obras pode ser imperfeita em algum pormenor (...) Em suma, sem a contnua aplicao da medida clssica, tenderemos a nos tornar provincianos.

Aparentemente oposta leitura de Eliot, Borges apresenta uma anlise mais curta e direta. Sua divergncia com Eliot est fundada na rejeio de um conjunto de critrios tcnicos intrnsecos obra: Clssico no um livro (repito) que necessariamente possui estes ou aqueles mritos; um livro que as geraes de homens, urgidas por razes diversas, lem com prvio fervor e com uma misteriosa lealdade . O autor argentino oferece, no entanto, uma definio que no deixa de ser criteriosa: Clssico aquele livro que uma nao, ou um grupo de naes, ou o longo tempo decidiram ler como se em suas pginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e passvel de interpretaes sem fim . Temos, assim, para Borges, duas marcas prprias das obras clssicas: Ser uma obra (1) que lida com permanncia, que alm disso desperta uma profunda ateno e importncia, (2) que comporta infindveis interpretaes. O que Borges parece descartar (pelo menos como caractersticas absolutamente necessrias) a qualidade essencial de a obra clssica ser um padro tcnico, portanto, uma expresso perfeita de uma cultura inteira, na linguagem de Eliot, de uma civilizao e de um autor com maturidade. Por outro lado, Borges mantm com Eliot a marca de permanncia das obras clssicas. E, por fim, acrescenta outro fator : a obra clssica comporta infindveis interpretaes.

Outro texto clssico sobre o que um clssico, o de Italo Calvino . Mais prximo de Borges e, por conseguinte, mais distante de Eliot, Calvino est menos preocupado com a funo sociolgica ou com os critrios metodolgicos para uma crtica literria do que com uma leitura mais pessoal ou, digamos, com as qualidades imprescindveis que um clssico proporciona aos leitores no especializados. Essas qualidades do nfase ao prazer de leitura de um clssico, ou quilo que o leitor carregar ao longo de sua vida pessoal , muito embora no deixe de assinalar fatores que podemos ver como ganhos coletivos ou funcionais. Entre essas qualidades, enumera um carter formador dos clssicos, o que molda certos padres, escala de valores, paradigmas, etc., que ficam gravados na memria e inconsciente dos leitores . Esta potncia de um clssico, qual seja, de afetar ou impor indelevelmente seu contedo, no vale apenas para os leitores individuais, mas tambm para toda uma cultura: Os clssicos so aqueles livros que chegam at ns trazendo consigo as marcas de leituras que precederam a nossa e atrs de si os traos que deixavam na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes) .

Assim, temos a idia do clssico como o locus do dilogo entre perodos histricos, havendo sempre uma influncia formativa: Aquilo que distingue o clssico no discurso que estou fazendo talvez seja s um efeito de ressonncia que vale tanto para uma obra antiga quanto para uma moderna mas j com um lugar prprio numa continuidade cultural . O clssico um livro que conversa com os outros clssicos . Sendo este dilogo infindvel, uma vez que o clssico um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha por dizer , ou ainda, uma obra que nunca deixa de ser nova, isto , com algo a ensinar .

Por fim, Calvino marca dois pontos: 1. O clssico nos ensina o que somos e por que somos o que somos ; 2. O clssico justifica-se por si mesmo, sua leitura vale por seu prprio valor . No obstante essa ltima afirmao, que no deixa de ser irnica, Calvino bem claro no seu julgamento sobre a importncia e lugar dos clssicos na formao escolar :

Os clssicos no so lidos por dever ou por respeito mas s por amor. Exceto na escola: a escola deve fazer com que voc conhea bem ou mal um certo nmero de clssicos dentre os quais (ou em relao aos quais) voc poder depois reconhecer seus clssicos. A escola obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma opo: mas as escolhas que contam so aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola.

Aps essa anlise de trs grandes autores, vimos que a obra clssica comporta as seguintes caractersticas, fundamentais: devido a sua excelncia tcnica e poder expressivo e sinttico de toda uma civilizao ou de vrias, ela par excellence o lugar a partir de onde podemos entender os valores e construes culturais. Como a obra clssica tem tambm o carter de permanncia, isto , de atravessar as mudanas histricas, influenciado-as e devido a isso tambm sendo sucessivamente rejuvenescida, a sua relevncia nunca deixa de ser atual. Por fim, lembremo-nos da marca atribuda ao clssico por Eliot: uma obra que nos fornece um padro de qualidade, um critrio de avaliao das novas obras, sem o qual corremos o perigo de tornamo-nos provincianos, isto , cegos para a historicidade e amplitude das obras e perodos anteriores.

Pensamos, afinal, que os resultados dessa anlise no diferem em quase nada quando da aplicao a uma rea especfica da literatura, qual seja, a filosfica. O que acreditamos ser bem expresso em uma frase famosa de Whitehead, que reflete bem as marcas anteriormente estabelecidas: A caracterizao geral mais segura da tradio filosfica europia consiste em que ela se compe de uma srie de notas de rodap da obra de Plato . E, para endossar duplamente essa referncia essencial da importncia de um clssico, lembremos tambm das palavras de Marcuse, quando em uma entrevista perguntaram-lhe o que explica ou o que procura um jovem ao querer estudar filosofia, seria por acaso tornar-se filsofo?

Sim. Mas filsofo num sentindo hoje quase inconcebvel, quer dizer, algum que com base no que aprendeu e na sua experincia possa realmente entender, descobrir e transformar a realidade em que vive. Uma definio consideravelmente poltica da filosofia, que contudo remonta a ningum menos que Plato.1.2 O ensino da filosofia e a noo de formao

Grard Lebrun, em Por que filsofo? , debruou-se sobre a questo do que deve haver de mais essencial no ensino da filosofia no ensino mdio. Assim ele nos diz:Nunca acreditei que um estudante pudesse orientar-se para a filosofia porque tivesse sede da verdade: a frmula vazia. de outra coisa que o jovem tem necessidade: falar uma lngua da segurana instalar-se num vocabulrio que se ajuste ao mximo s "dificuldades" (no sentido cartesiano), munir-se de um repertrio de "topoi" em suma, possuir uma retrica que lhe permitir a todo instante denunciar a "ingenuidade" do "cientista" ou a "ideologia" de quem no pensa como ele. Qual melhor recurso se lhe apresenta seno tomar emprestado um discurso filosfico?

Dois aspectos devem ser sublinhados nesta passagem de Lebrun, (1) a filosofia o recurso par excellence que permite s pessoas defender um ponto de vista, ou certos valores e critrios, mesmo quando h uma tradio oposta que hegemnica; assim, a formao filosfica implica, e tem mesmo como um dos seus pontos essenciais, a j decorada expresso senso crtico; mas o que mais importante no trecho, e que vai alm do mero chavo, a defesa de que a filosofia por essncia, e no qualquer outra disciplina curricular que proporciona o carter crtico, isto porque ela oferece (2) a capacidade de se apreender e determinar uma lngua de segurana, um vocabulrio prprio e assimilar um conjunto de tpicos, elementos apenas a partir dos quais possvel denunciar a "ingenuidade" do "cientista" ou a "ideologia" de quem no pensa como ele.

O senso crtico e a capacidade de denncia, claro, no devem ser tomados sem qualificao, mas em sentidos precisos que no se confundem com o mero exerccio de contradizer e tentar refutar teorias. Ao contrrio, Lebrun precisa que atravs da passagem pelos textos, conceitos e doutrinas filosficas, [os alunos] aprendem a marcar o sentido de todas as palavras, educando-se para a inteligibilidade, pois onde os ingnuos s vem fatos diversos, acontecimentos amontoados, a filosofia permite discernir uma significao, uma estrutura . Definio esta, que salienta o carter filosfico de significao sistemtica, que concorda com o juzo de Jaeger acerca do especfico da filosofia e da educao clssicas dos gregos:

A posio especfica do Helenismo na histria da educao humana depende da mesma particularidade de sua organizao ntima a aspirao forma que domina tanto os empreendimentos artsticos como todas as coisas da vida e, alm disso, do seu sentido filosfico do universal, da percepo das leis profundas que governam a natureza humana e das quais derivam as normas que regem a vida individual e a estrutura da sociedade. (...) Pr estes conhecimentos como fora formativa ao servio da educao e formar por meio deles verdadeiros homens, como o oleiro modela a sua argila e o escultor as suas pedras, uma ideia ousada e criadora que s podia amadurecer no esprito daquele povo artista e pensador.

A noo de ordem permanente, isto , a investigao acerca daquilo que est no fundo de todos os acontecimentos e mudanas da natureza e da vida humanas , que para Jaeger marca essencial da filosofia grega, o fundamento da educao helnica, do conceito de formao, est de pleno acordo com a definio de filosofia que nos proporciona Lebrun :Filosofar consiste principalmente em expulsar o acaso, decifrar a todo custo uma legalidade sob o fortuito que se d na superfcie. Especificamente filosfico o problema de compreender o funcionamento de uma configurao a partir de uma lei que lhe infusa ( preciso que haja uma), conforme a ordem que se exprime nela ( preciso que haja uma) - quer se trate de compreender a possibilidade do juzo a partir da afinidade dos materiais sintticos ou, de maneira mais desembaraada, a sociedade feudal a partir dos moinhos de vento...

Embora nossa anlise no seja sistemtica, podemos a partir dos elementos aqui trabalhados determinar o que h de especfico na formao e no contedo filosficos, que devem nortear um ensino prprio da filosofia. Como bem aponta Fabbrini, em seu artigo O Ensino de Filosofia: A Leitura e o Acontecimento , uma leitura no necessariamente filosfica por lidar com textos de filsofos, antes possvel que uma leitura seja filosfica mesmo de textos de outra natureza. O que determina o carter filosfico de uma leitura, e, acrescentamos, de um ensino, repousa justamente numa postura crtica dos contedos postos por si ss, crtica que s possvel a partir de uma linguagem prpria, de uma lngua de segurana, como nos dizia Lebrun, que, num segundo momento, permite uma investigao que encontre uma idea que proporcione uma inteligibilidade sistemtica. Dessa forma, os alunos tero, no sentido forte destes termos, uma formao que lhes permita ter senso crtico a partir de uma procura de leis sistemticas de significao.2. Uma reflexo geral sobre os clssicos da filosofia no ensino mdio

A primeira coisa que vem mente quando se pergunta se os clssicos devem ser lidos no ensino mdio, outra pergunta: Se no os clssicos, o que ento? Temos, pois, de retornar ao ensaio de Calvino, que, julgamos, apresenta um argumento irrefutvel : A leitura de um clssico deve oferecer-nos alguma surpresa em relao imagem que dele tnhamos. Por isso, nunca ser demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possvel bibliografia crtica, comentrios, interpretaes. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questo; mas fazem de tudo para que se acredite no contrrio. Existe uma inverso de valores muito difundida segundo a qual a introduo, o instrumental crtico, a bibliografia so usados como cortina de fumaa para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que s pode dizer-se se o deixarmos falar sem intermedirios que pretendam saber mais do que ele.

Como vimos, clssica a obra que representa um padro de excelncia, tcnico e histrico; sua caracterstica de modelo exemplar deve-se, em primeiro lugar, ao fato de ele ser a melhor expresso de uma cultura e seus valores e ganhos, em segundo lugar, ao fato de sua permanncia histrica estar fundada na importncia que teve no dilogo formativo com as obras subseqentes e a constante renovao de seu significado e valor. Ora, se a obra filosfica tem essas caractersticas, que outra melhor obra poder servir de estudo da filosofia? Nenhuma seno uma obra ainda mais clssica.

Duas objees so as mais comuns a esse tipo de argumento. A primeira alega que os alunos de ensino mdio, notadamente os de instituies pblicas de ensino, no conseguem assimilar obras de tamanha densidade. Alega-se que as obras dos filsofos so sobremaneira difceis e de complicada penetrao. Ao que apresentamos duas contra-objees:

1. Esse tipo de raciocnio recai numa circularidade: no se deve aplicar determinado contedo porque os alunos no esto aptos a assimil-lo. Ora, o papel do ensino justamente tornar os alunos aptos e capazes de assimilar e compreender os contedos que, de antemo, foram julgados necessrios e fundamentais. Usar os clssicos da filosofia nas aulas do ensino mdio tem como objetivo justamente tornar os alunos capazes e aptos a entender essas obras capitais.

2. Poder-se-ia dizer que o contedo presente nos clssicos da filosofia tem um grau de complexidade que exige uma formao e um preparo que os alunos de ensino mdio ainda no possuem; assim, esta tentativa seria comparvel a ensinar matemtica computacional na disciplina de matemtica, quando o correto, devido ao grau de informao dos alunos, seria aplicar noes bsicas, como teoria dos conjuntos ou trigonometria. A isso, nenhuma objeo. O fato que (1) os clssicos da filosofia no so, via de regra, comparveis a livros didticos de outras disciplinas, que trazem de forma distinta contedos com graus de complexidade distintos; os livros de filosofia, via de regra, trazem de forma indistinta contedos de graus distintos; com isso queremos dizer apenas que um e mesmo texto filosfico pode, e em geral o faz, oferecer leituras de profundidade e preciso desiguais: o mesmo texto de Aristteles fornece uma interpretao coerente e legvel tanto a um iniciante quanto a um especialista erudito; entendemos ento que um texto clssico da filosofia, embora possa conter uma profundidade densa, permite tambm leituras de compreenso gradual, portanto, um grau de leitura perfeitamente compatvel com o nmero padro de informaes para o ensino mdio (O que perfeitamente correlato ao que ocorre com os clssicos da literatura. Ningum duvida que Memrias Pstumas uma obra densa, complexa e de mltiplas referncias textuais, que para entend-la com mais preciso necessrio um vasto cabedal de conhecimento literrio, em alguns momentos domnio de obras que no esto ainda traduzidas para o portugus. Ora, disso no segue que esse clssico seja ilegvel e que no seja agradvel e assimilvel em algum grau por qualquer leitor interessado. E a prtica j corriqueira de oferecer a leitura desse livro no ensino mdio prova essa possibilidade de leitura gradual). Por outro lado ainda, (2) muitos clssicos da filosofia esto escritos em uma linguagem acessvel e, at mesmo, agradvel e sedutora: Os Dilogos de Plato, A Potica de Aristteles, as Confisses de Santo Agostinho, os Tratados de Sneca, os Ensaios de Montaigne, as Meditaes de Descartes, os Contos de Voltaire, etc., etc., so todos textos claros, corridos, quando no belos e apaixonantes. Estes textos so, sem dvida, complexos e profundos; mas quem h de negar que so de saborosa leitura? Talvez quem no os tenha nunca lido...

parte esse tipo de objees, temos ainda outro ponto a considerar: um dos objetivos mesmo do ensino da filosofia o senso crtico. Com isto, como j vimos anteriormente, est se falando do desenvolvimento da capacidade do indivduo de contestar contedos prontos e impostos, tornar o sujeito em um cidado que tem ferramentas para avaliar e, se for o caso, objetar ideologias, valores e conhecimentos transmitidos de forma dogmtica. Ora, que contradio no se cometer ao transmitir esta postura crtico-filosfica com textos que se pretendem codificaes e interpretaes corretas dos textos clssicos! Criar uma conscincia crtica e anti-dogmtica a partir de textos didaticamente dogmticos! S possvel ser coerente com o ideal de senso crtico se a metodologia de ensino for, ela mesmo e seus instrumentos, crtica e anti-dogmtica, o que, em filosofia, significa: ler o dilogo filosfico ali onde ele nasce e se desenvolve, nos textos filosficos, e, como negar?, nos melhores deles, os clssicos.

Referncias bibliogrficas

APPEL, E. Filosofia nos vestibulares e no ensino mdio. In: Cadernos PET-Filosofia 2. Curitiba, 1999.

Borges, J. L. Sobre os clssicos. In: Obras completas, vol. 2, Outras Inquisies. So Paulo: Globo, 1999. Disponvel em: CALVINO, I. Por que ler os clssicos. Cia. Das Letras SP, 1993.ELIOT, T.S. O que um clssico. In: A funo social da poesia, De poesia e poetas. Trad. Ivan Junqueira. So Paulo, Brasiliense, 1991. Disponvel em:. Acessado em 25 de junho de 2008.FAVARETTO, C. F. Sobre o ensino de filosofia. In: Revista da Faculdade de Educao, So Paulo, v. 19, n. 1, p. 97-102, jan.jun./1993. Disponvel em:

Acessado em 25 de junho de 2008.

FABBRINI, R. N. O Ensino de Filosofia: A Leitura e o Acontecimento. In: Trans/form/ao, v. 28 (1). Marlia, Unesp. 2005. Disponvel em:

Acessado em 25 de junho de 2008.

JAEGER, W. Paideia: a formao do homem grego. Lisboa, Editorial Aster, 1979.Kant, I. Crtica da Razo Pura. Traduo: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujo. Lisboa: Edio da Fundao Calouste Gulbekian: 2001.MARCUSE, H. A Grande Recusa Hoje. Organizado por Isabel Loureiro. Petrpolis, Vozes, 1999.Whitehead, A.N. Process and Reality (Gifford Lectures Delivered in the University of Edinburgh During the Session 1927-28). New York: Free Press, 1979. Discusso que abrange tambm a presena da filosofia entre as disciplinas cobradas nas provas do vestibular, inteno est j presente, embora no explicitada, na Lei de Diretrizes e bases de 1996 e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio de 1998 (Cf. Appel, 1999, p. 70).

Cf. Agncia Brasil, de 3 de Junho de 2008, acesso em:

HYPERLINK "http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/06/02/materia.2008-06-02.5878491729/view" http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/06/02/materia.2008-06-02.5878491729/view.

Cf.: Gellius, Noctes Atticae, Liber XIX. Disponvel em: HYPERLINK "http://penelope.uchicago.edu/Thayer/L/Roman/Texts/Gellius/19*.html" http://penelope.uchicago.edu/Thayer/L/Roman/Texts/Gellius/19*.html

Cf.: Charles Augustin Sainte-Beuve, O que um clssico?: Entre eles [os romanos], chamava-se propriamente de clssico, no os cidados das diversas classes, mas somente os da primeira, que possuam um bom rendimento, a partir de certa quantia determinada. Todos os que possuam um rendimento inferior eram designados pela denominao infra classem, abaixo da primeira classe. No sentido figurado, a palavra clssico se encontra empregada em Aullus Gallius, e aplicada aos escritores: um escritor de valor e de importncia, classicus assiduusque scriptor, um escritor que conta, que tem seu lugar ao sol, que no confundido com os proletrios. Uma tal expresso supe um bom distanciamento temporal para que haja uma escolha e a classificao dentro da literatura. (Grifos nossos.) Disponvel em: HYPERLINK "http://sainte-beuve.classicauthors.net/WhatIsAClassic/" http://sainte-beuve.classicauthors.net/WhatIsAClassic/.

Disponvel em: HYPERLINK "http://letras.fflch.com.br/?cont=listas/cb1" http://letras.fflch.com.br/?cont=listas/cb1.

Cf. Eliot, 1991, pp. 76-7.

Idem, p. 78.

Idem, ibidem: Um clssico s pode aparecer quando uma civilizao estiver madura, quando uma lngua e uma literatura estiverem maduras; e deve constituir a obra de uma mente madura. a importncia dessa civilizao e dessa lngua, bem como a abrangncia da mente do poeta individual, que proporcionam a universalidade. Definir maturidade sem admitir que o ouvinte j saiba o que isso significa quase impossvel. Permitam nos dizer, portanto, que, se estivermos adequadamente maduros e formos pessoas educadas, poderemos reconhecer a maturidade numa civilizao e numa literatura. Cf. tambm p. 94, na nota seguinte.

Cf. tambm p. 94: Podemos concluir, portanto, que o perfeito clssico deve ser aquele em que todo o gnio de um povo esteja latente, seno de rodo revelado; e que ele s pode se manifestar numa lngua se todo o seu gnio puder estar presente de uma vez. Devemos assim acrescentar, nossa lista de caractersticas do clssico, a da completude. Dentro de suas limitaes formais, o clssico deve expressar o mximo possvel da gama total de sentimento que representa o carter do povo que fala essa lngua. Represent-Io- o melhor que puder, e exercer tambm o mais amplo fascnio: junto ao povo a que pertence encontrar sua resposta entre todas as classes e condies humanas. Quando uma obra literria, alm dessa completude relativamente a sua prpria lngua, haver idntica significncia em relao a vrias outras literaturas, podemos dizer que possui tambm universalidade.

Idem, p. 93.

Idem, p. 96. Cf. tambm Arantes, 1997, p. 27: Tudo isso no obstante, voz corrente entre os discpulos que a idia de literatura como sistema em Antonio Candido est muito prxima da noo de tradio em T. S. Eliot, segundo a qual, como sabido, no se pode apreciar devidamente o significado de um escritor a no ser por comparao e contraste, situando-o idealmente entre os autores mortos, de tal sorte que a ordem constituda pelos monumentos literrios se modificaria toda vez que entrasse em cena uma obra verdadeiramente nova.

Borges, 1999, p. 168. Disponvel em HYPERLINK "http://letras.fflch.com.br/?cont=listas/cb1" http://letras.fflch.com.br/?cont=listas/cb1.

Idem, p. 169.

Fator este que, prima facie, contraria a aposta eliotiana de total adequao de um clssico ao seu tempo e cultura, o que parece implicar que uma leitura de uma obra clssica ser mais precisa e completa quando as interpretaes dela resultante sejam compatveis com a histria da cultura que tornou possvel aquela criao.

Calvino, Por que ler os clssicos, 1993.

Idem, p. 10: Dizem-se clssicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado, definio 2.

Idem, pp. 10-11, definio 3.

Idem, p. 11, definio 7.

Idem, p. 14.

Cf. definio 12.

Idem, p. 11, definio 6.

Idem, p. 12, definies 4, 5 e 9.

Idem, p. 16: os clssicos servem para entender quem somos e aonde chegamos.

Idem, ibidem: ...no se pense que os clssicos devem ser lidos porque servem para qualquer coisa. A nica razo que se pode apresentar que ler os clssicos melhor do que no ler os clssicos.

Idem, pp. 12-13. Grifos nossos. Assim como, p. 12: A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questo; mas fazem de tudo para que se acredite no contrrio.

Whitehead, 1979, p. 39: The safest general characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to Plato.

Marcuse, 1999, pp. 11-12.

Lebrun G. Por que filsofo?In: Estudos CEBRAP, So Paulo, n. 15, 1976, apud Favaretto, 1993.

Favaretto, 1993, p. 3. Disponvel em:

. Acessado em 25 de junho de 2008.

Jaeger, 1979, p. 12. Grifos nossos.

Idem, p. 11.

Lebrun, op. cit., apud Favaretto, op. cit., p. 4. Grifos nossos.

Fabbrini, 2005, p. 2. Disponvel em:

.

Op. cit., p. 12. Grifos nossos.