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Revista Portuguesa de Filosofia Constituição do Sentido e justificação da validade. Heidegger e o problema da filosofia transcendental Author(s): Karl-Otto Apel and Jorge Neves Reviewed work(s): Source: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 45, Fasc. 3, Martin Heidegger (Jul. - Sep., 1989), pp. 413-461 Published by: Revista Portuguesa de Filosofia Stable URL: http://www.jstor.org/stable/40335963 . Accessed: 08/03/2013 16:48 Your use of the JSTOR archive indicates your acceptance of the Terms & Conditions of Use, available at . http://www.jstor.org/page/info/about/policies/terms.jsp . JSTOR is a not-for-profit service that helps scholars, researchers, and students discover, use, and build upon a wide range of content in a trusted digital archive. We use information technology and tools to increase productivity and facilitate new forms of scholarship. For more information about JSTOR, please contact [email protected]. . Revista Portuguesa de Filosofia is collaborating with JSTOR to digitize, preserve and extend access to Revista Portuguesa de Filosofia. http://www.jstor.org This content downloaded on Fri, 8 Mar 2013 16:48:22 PM All use subject to JSTOR Terms and Conditions

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Revista Portuguesa de Filosofia

Constituição do Sentido e justificação da validade. Heidegger e o problema da filosofiatranscendentalAuthor(s): Karl-Otto Apel and Jorge NevesReviewed work(s):Source: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 45, Fasc. 3, Martin Heidegger (Jul. - Sep., 1989), pp.413-461Published by: Revista Portuguesa de FilosofiaStable URL: http://www.jstor.org/stable/40335963 .

Accessed: 08/03/2013 16:48

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Constitui9ao do Sentido e justifica^ao da validade. Heidegger e o problema

da filosofia transcendental

1. Posi^ao do problema retomando o processo de influencia de Heidegger: e a descontru^ao da filosofia (transcendental) a consequencia temporalmente condicionada e necessaria da posi9§o heideggeriana?

Eu gostaria de fazer preceder a minha consideragao da obra de Heidegger pela seguinte pergunta: onde se situa propriamente na actualidade o poder de influencia da filosofia de Heidegger? De certo ele ja nao se situa - como nos anos apos 1945 - na fascinagao por uma filosofia da «existencia» expressivamente e apelativamente formulada em Sein und Zeit, i. e por uma filo- sofia da «autenticidade» («Eigentlichkeit») de uma assungao deci- dida, em cada caso, do meu ser-ai (entschlossene Ubernahme des jemeinigen Daseins), regressando a si do «progredir para a morte» («Vorlaufen zum Tode»). 0 objectivo da «ontologia fundamental » - a resposta a pergunta pelo sentido do ser, que so pode ser mediatizada at raves da «hermeneutica existencial do ser-ai » - , que o proprio Heidegger desde o inicio contrapos ao equivoco «existencialista», nao parece tambem estar hoje no centro do processo de influencia de Heidegger. Este papel desem- penha antes a exigencia - ja postulada em Sein und Zeit, no entanto mais tarde, depois da «Kehre», tambem dirigida contra a concepgao da «ontologia fundamental - de uma «destruigao» do todo da metafisica ocidental: a exigencia de uma ultrapas- sagem do esquematismo onto-logico que, desde Platao, tera predisposto o pensar ocidental para o «Gestell» da ciencia tecnica no sentido da relagdo-sujeito-objecto do processo de disponibilizagao do mundo (Weltverfugbarmachung). Por outras palavras: no primeiro piano do interesse encontra-se hoje a tenta- tiva heideggeriana de, mediante a reconstrugao critica e descons- truQao de todas as formas habituais da metafisica e da ciencia,

Revista Portuguesa de Filosofia, 45 (1989) 413-461

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414 RE VISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

pensar regressivamente os inicios da filosofia classica dos gregos e assim de algum modo recuperar o espago - possivelmente ainda existente no mito e nos pensadores pre-socraticos - de um «pensamento inicial» («anfangliches Denken») - um espago que ao mesmo tempo poderia criar as condigoes onto-historicas (seinsgeschichtlichen) para um pensar pos-metafisico e pos- -tecnico, na medida em que estas condigoes estao contidas como possibilidade no «acontecimento» imemorial (unvordenklichen «Ereignis») da «clareira do ser» («Lichtung des Seins»).

Esta tendencia para um pensar pos-metafisico, mais ainda pos-filosofico e enquanto tal tambem pos-racional, se bem que - segundo Heidegger - nao irracional x foi a que, no meu parecer, causou a maior fascinagao no ultimo decenio - assim por exemplo no «pos-modernismo» f ranees e italiano 2, e tambem, para alem disso, numa versao do neopragmatismo americano que - embora com algumas reservas politicas - pretende poder pensar Dewey, Wittgenstein e Heidegger conjun- tamente 3.

Estas actualizagoes mais recentes da filosofia heideggeriana nao sao sem diivida independentes de certas transformagoes da filosofia continental europeia e da filosofia anglo-saxonica, que

1 Cf. Heidegger, M., «Das Ende der Philosophic und die Aufgabe des Denkens», in: id., Zur Sache des Denkens, Tubingen 1969, 79): Que quer dizer ratio, nous, noein, apreender [Vernehmen]? O que quer dizer fundamento e principio de todos os principios? Poder-se-a de modo suficiente determina-los sem que experimentemos a Aletheia em grego como desvelamento e entao, para alem do mundo grego [das Griechische], pensa-la como clareira do ocultar-se [Lichtung des Sichverbergens]? ... Talvez haja um pensar que se situa de fora da distingao entre racional e irracional, mais sobrio ainda do que a tecnica cientifica.

2 Cf. Lyotard, Jean Frangois, La Condition postmoderne: rapport sur le savoir, Paris 1979; Vattimo, Gianni, La fine della modernita: nichilismo ed erme- neutica nella cultura post-mo derna, Milano 1985; Villani, Antonio, «Le 'chiavi' del postmoderno. Un dialogo a distanza», in: // Mulino XXXV, n. 303 (1986) 5-22; Palmer, R., «Ex-postulations on the Postmodern Turn», in: Krisis 2 (1984) 140-49.

3 Cf. recentemente Rorty, R., «Pragmatism and Philosophy», in: K. Baynes/J. Bohaman/Th. McCarthy (eds.): After Philosophy: End or Transforma- tion?, Cambridge/Mass. 26-66 (MIT Press); id: « Philosophic als Wissenschaft, als Metapher und als Politik», in: M. Benedikt/R. Burger (Hrsg.): Die Krise der Phdnomenologie und die Pragmatik des Wissenschaftsfortschritts, Wien 1986 (Osterreichische Stattsdruckerei), 138-149.

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HEIDEGGER E A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL 415

estao inteiramente relacionadas com o processo de influencia de Sein und Zeit. Ai se situam, na minha opiniao, as seguintes convergencias, que se poderiam em conjunto caracterizar como aspectos de uma viragem hermeneutico-linguistica, i. e semio- tica e pragmdtica da filosofia:

1) a convergencia da hermeneutica do ser-ai orientada para a «interpretagao publica» («6ffentlichen Ausgelegtheit») do «ser- -no-mundo quotidiano» com a versao de G. Ryle da « ordinary language philosophy» e principalmente com a filosofia tardia de Wittgenstein dos jogos da linguagem e formas da vida;

2) a convergencia da filosofia hermeneutica de Heidegger e de Gadamer com a chamada «teoria da ciencia pos-empiristica» de Thomas Kuhn e de outros representantes da «New philo- sophy of Science » 4 ate a paraleliza^ao dos «paradigmas inco- mensuraveis» da historia da ciencia com os desvelamentos e simultaneamente ocultamentos onto-historicos do sentido do ser (seinsgeschichtlichen Entbergungen und zugleich Verbergungen des Sinns von Sein);

3) a concordancia - condicionada pelas convergencias ulti- mamente designadas - do pos-modernismo e do neopragma- tismo rortyano na separa^ao retorica-estetica entre o discurso filosofico e o discurso argumentativo da ciencia.

No entanto face a estas vagas conotagoes do processo de influencia de Heidegger temos, na minha opiniao, de por a questao de forma mais precisa: onde, i. e em que formas de pensamento se podem propriamente apoiar as acima mencio- nadas actualizagoes do processo de influencia de Heidegger?

Eu gostaria de tentar resumir antecipadamente a resposta a esta pergunta numa tese que me permite introduzir o tema exposto no titulo do meu texto: a fascinagao e a consideravel recepgao dos seu pensamento no pos-modernismo frances e italiano e no neopragmatismo pos-wittgensteiniano ocidental baseia-se na destranscendentalizagdo e historizagao do problema quasi-transcendental da constituigdo do sentido no Lebenswelt. Esta consequencia estava implicita para Heidegger na concepgao da verdade como «A-letheia»; i. e da «clareira» do sentido (Sinn-

4 Cf. principalmente Bernstein, R., Beyond Objectivism and Relativism, Philadelphia, 1983 (Univ. of Pennsylvania Press).

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416 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

-«Lichtung») 5 anterior a toda a correcgao e falsidade do juizo que ja em Sein und Zeit encontrava apoio na analise hermeneutico-existencial da «pre-estructura» («Vorstruktur») de toda a compreensao do mundo: do «em cada caso ja» («je schon») ou «sempre ja» da «abertura» («Erschlossenheit») ou «claridade» («Gelichtetheit») do «ser-no-mundo». No ambito do pos- -estruturalismo frances - por exemplo Derrida - foi especial- mente estabelecida uma relagao entre a estrutura da «diferenga ontico-ontologica» - que em Heidegger se relaciona com o «acontecimento» da «clareira» - como condigao de possibilidade da constituigdo linguistica do sentido e o ponto de vista inaugu- rado por Ferdinand de Saussure da formagdo paralela da dife- renga por parte dos «signifiants» e dos « signifies » em ordem a uma concepgao do acontecimento irredutivel da «diffe- rance» 6.

Em que medida contudo e possivel dizer que a analise heideggeriana do «em cada caso ja» da «abertura» do «ser-no- -mundo» constitui um problema quasi-transcendental e que, ao mesmo tempo, faz depender esse problema do ponto de vista da tendencia, da des-transcendentalizagdo no sentido da histo- rizagdo?

Eu gostaria de tentar dar uma resposta a esta pergunta a partir da perspectiva da minha investigagao da obra de Heidegger que remonta a 1948 7. Esta investiga^ao guiava-se nomeadamente em primeiro lugar pela hipotese de que no «em cada caso ja» da «estrutura» da compreensao do mundo e da autocompreensao analisada por Heidegger se realiza uma trans- formagdo hermeneutico-fenomenologica da filosofia transcen- dental: uma transformagao nomeadamente no sentido do alargamento e nova resposta a questdo das condigoes de possi- bilidade da compreensao do mundo e} nessa medida, da consti- tuigdo do sentido e do mundo (Welt- Sinnkonstitution).

5 Cf. mais recentemente M. Heidegger: Zur Sache des Denkens, 79 ss. 6 Cf. para este ponto, Frank, Manfred, Was ist Neostrukturalismus,

Frankfurt a. M. 1984 (Suhrkamp). 7 Cf. a minha dissertagao nao publicada: «Dasein und Erkennen. Eine

erkenntnistheoretische Interpretation der Philosophie Martin Heideggers», Bonn 1950, bem como a «Introducao» a Apel, K.-O., Transformation der Philosophie, Frankfurt a. M. 1973 (Suhrkamp), Bd. I.

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HEIDEGGER E A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL 417

Com o decorrer do tempo - e f inalmente com a ref lexao sob re a «Kehre» do pensamento heideggeriano e sob re o processo da sua influencia - tornou-se-me tambem claro o seguinte: a reconstrugao e nova resposta - que o proprio Heidegger ainda sugeriu em Sein und Zeit e antes de mais no primeiro livro sobre Kant 8 - a pergunta pelas condigoes de possibilidade «fundamental-ontologicas» da metafisica referia- -se apenas a um aspecto das condigoes de possibilidade da verdade, por assim dizer apenas a uma metade da intengao kantiana. Heidegger interessou-se nomeadamente apenas pela constituigao do sentido do ser iluminante e ocultante (lichtend- -verbergende) que e possibilitada no «ai» da «ex-sistencia». Acerca desta constituigao dizia por fim Heidegger que embora ela ainda nao seja a verdade e no entanto a condigdo de possibi- lidade de juizos verdadeiros (i. e certos) e falsos 9. E certo que esta posigao da questao tambem nao pode ainda ser entendida como reconstrugao da questao transcendental de Kant; contudo Kant nao pos imediatamente a questao das condigoes de possi- bilidade de juizos verdadeiros e falsos, mas sim a questao das condigoes de possibilidade da «objectividade», que so entao torna possivel para Kant o conhecimento verdadeiro diferenciado. Mas para Kant a questao - e a resposta possivel a questao - das condigoes de possibilidade da constituigao do objecto - i. e da constituigao do sentido de objectividade - era identica a questao - e a resposta possivel a questao - das condigoes de possibili- dade da validade intersubjectiva do conhecimento verdadeiro.

Esta identificagao - profundamente decisiva para a posigao da Critica da razdo pura - entre ambos os aspectos da questao transcendental das condigoes de possibilidade da compreensao do mundo nao pode ser mantida por Heidegger - pelo menos no sentido, evidente para Kant, de uma possivel fundamentagao de uma pura e simples validade intersubjectiva universal (para toda a «consciencia em geral»). Antes de mais tinha a posigao de Sein und Zeit de orientar a reflexao decisiva e irredutivel em direcgao ao «projecto langado» («geworfene Entwurf») do «em cada caso ja» aberto (e simultaneamente encerrado) «em

8 Heidegger, M., Kant und das Problem der Metaphysik, Frankfurt a. M. 2 1951 (Klostermann)

9 Cf. nota 5.

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cada caso meu», i. e «em cada caso nosso», ser-no-mundo - em direcgao a uma contingentizagdo, particularizagdo e finalmente radical historizagdo da resposta a questao da constituigdo do sentido - ter-se-ia de orientar em direc$ao a sugestao implicita de que esta resposta conduziria tambem a resposta correspon- dente a questao da validade intersubjectiva, na medida em que, segundo Heidegger, a verdade possivel do juizo e ja sempre dependente da clareira e ocultagao previas do sentido do ente.

Resumidamente: a transformagao da filosofia transcendental introduzida por Heidegger deve conduzir a «des-transcenden- talizagao» da filosofia postulada por Rorty; ou seria possivel e necessario relacionar de outra forma a questao - e a possivel resposta a questao - da validade intersubjectiva da nossa compreensao do mundo com a questao da constituigdo de sentido do mundo, de tal modo que a resposta a prmeira questao, ja como justificac^ao da sua propria validade, conduzisse a uma re-transcendentalizagdo da filosofia e isto de tal modo, que a insistencia na validade universal de juizos verdadeiros fosse unificavel com a historicidade de toda a constituigdo do sentido iluminante e ocultadora?

Isto sera bastante no que se refere a exposigao da minha posigao da questao que manifestamente se coloca face ao problema de uma transformagdo da filosofia transcendental. Seguidamente gostaria de tentar responder a pergunta colocada sobre a reconstrugao critica de algumas passagens centrais da transformagao heideggeriana da filosofia transcendental.

2. A contribui^ao de Heidegger para uma transforma^ao da filosofia transcendental, que conduz ultimamente a uma destrui9ao.

2.1. A «pre-estrutura» da abertura do em-cada-caso-ja-ser-no- -mundo como resposta a questao transcendental das condi- £oes de possibilidade da constitui9§o do sentido do mundo.

Seja-me permitido em primeiro lugar retomar mais uma vez o inicio dos meus estudos sobre Heidegger na epoca da minha dissertagao sobre Sein und Zeit, a que dava o titulo de «Dasein

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HEIDEGGER E A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL 419

und Erkennen: eine erkenntnistheoretische Interpretation der Philosophic Martin Heideggers». 0 termo apropriado seria propriamente interpretagao gnosio-antropologica (erkenntnisanth- ropologische), pois foi a Antropologia do conhecimento e da cultura de Erich Rothacker inspirada na Filosofia da Vida que naquela altura constituia o suporte da minha interpretagao de Heidegger. Neste contexto foi de modo especial importante o chamado «principio da significabilidade» («Satz der Bedeutsam- keit»), que Rothacker - retomando Dilthey, mas tambem numa generalizagao antropologica da teoria do «mundo ambiente» de Uexkiill - contrapos ao «principio da consciencia», que tinha sido concebido por K. Reinhold no seguimento de Kant 10. No nosso contexto ele poderia ser formulado do seguinte modo:

Um consciencia pura (i. e no sentido de Kant: uma cons- ciencia transcendental, que esta equipada com faculdades como «intuigao pura» e «entendimento puro», ou tambem uma cons- ciencia pura intencional no sentido de Husserl), nao seria capaz de conferir ao mundo qualquer significabilidade, i. e nao seria capaz de constituir qualquer Lebenswelt como mundo de cone- xoes de significabilidade.

Nesta medida - isto parece-me ser uma consequencia do «principio de significabilidade » - a filosofia transcendental clas- sica esta ja na sua posigao insuficientemente fundada se tern de resolver o problema - explicitamente colocado, pelo menos por Husserl - da «constituigao» transcendental «do sentido». Como contraposigao poder-se-ia - assim me parecia entao - encontrar na «pre-estructura» do ser-no-mundo, analisada por Heidegger como o apriori irredutivel de uma transforma^ao da filosofia transcendental, as pretendidas condigoes de possibili- dade da constituigao do sentido do mundo. Seguidamente procuro distinguir e elucidar mais de perto duas dimensoes da «pre-estrutura» da compreensao do mundo e da autocom- preensao que foram abertas por Heidegger e sao relevantes para este aspecto:

10 Cf. Rothacker, E., Zur Genealogie des menschlichen Bewu&tseins, Bonn 1966 (Bouvier), § 13. Para tanto cf. Funke, G., «'Satz des Bewufkseins' und 'Satz der Bedeutsamkeit»', in: Funke (ed.), Konkrete Vernunft, Festschr. f. E. Rothacker, Bonn 1958 (Bouvier), 79-98, onde e defendido sem duvida o primado do «principio da consciencia» no sentido de Husserl.

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420 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

1) A analise de Heidegger mostra, por um lado, que a relagao sujeito-objecto da consciencia do objecto cientifica - e tambem a analise da consciencia do objecto filosoficamente tematizadora - se encontra sempre ja enraizada na conexao estrutural da «conjuntura» («Bewandtnis»), i. e da «significabi- lidade» do ser-no-mundo interpretador enquanto ser-proprio junto ao ente no «ser-com» com os outros («Mit-sein» mit anderen «beim Seienden selbst-Seins»). Deste modo o ente que vem ao encontro no interior do mundo (innerweltlich begeg- nende) nao e apenas «simplesmente presente» («vorhanden») como objecto da observa^ao teoretica e da determinagao predi- cativa, mas e antes compreendido «como algo» a partir da circunspecgao do «ter a ver com ocupado» como «instrumento a mao» (aus der Umsicht des besorgenden Zutunhabens» als «zuhandenes Zeug») e, assim, de um modo sempre ja ante- -predicativo. De acordo com isto, o mundo e para o ser-no-mundo quotidiano, em primeiro lugar, nao um agregado daquilo que e objectivamente simplesmente presente (des gegenstandlich Vorhandenen), e tambem nao - como para Kant, ou para a cons- titui^ao do mundo da ciencia da natureza reflectida por ele - a «existencia das coisas, na medida em que elas constituem uma conexao de acordo com a lei», mas sim o «para onde da compreensao referencial, como aquilo em direcgao ao qual do deixar encontrar do ente no modo de ser da conjuntura» n.

As questoes «critico-gnosiologicas» proximas da reflexao tradicional - especialmente da reflexao pos-cartesiana - sobre a objectividade pura do ente - por exemplo a questao da possivel pura imanencia a consciencia de todos os objectos (tambem da pura imanencia dos outros sujeitos de acgoes e de conhecimento enquanto objectos) - revelam-se, sob o pressu- posto do conceito heideggeriano de mundo, como pseudo- -problemas; pois os modos respectivos do ser-no-mundo - o «ser junto de» («Sein bei») puras representagoes ou dados dos sentidos ou o ser so do ser-ai em cada caso men (Alleinsein des jemei- nigen Daseins) nao podem ser compreendidos por nos senao

11 «Das Worin des sichverweisenden Verstehens als Woraufhin des Begegnenlassens von Seiendem in der Seinsart der Bewandtnis» cf. Heidegger, M., Sein and Zeit, Halle 51941 (Niemeyer), 86.

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HEIDEGGER E A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL 421

como «modos deficientes» do ser-no-mundo como ser junto do ente e do ser-com com os outros 12.

A analise da linguagem pos-wittgensteiniana - a analise do «enredamento» dos jogos de linguagem, das interpretagoes do mundo e das actividades como partes de uma forma da vida - confirma rigorosamente neste ponto a analise hermeneutico- -fenomenologica de Heidegger mediante a demonstragao da dependencia «parasitaria» dos paradigmas idealistas da cons- ciencia e solipsistas da certeza cartesiana face aos - ai ja pressupostos - paradigmas do jogo da linguagem, que tern tambem ainda de recorrer a Descartes (e a Husserl!) para arti- cular o seu problema. Assim, no argumento cartesiano do sonho - que foi retomado por Husserl 13 - , e possivel demonstrar a dependencia parasitaria do sentido da frase «tudo aquilo que e tido por real e talvez apenas o meu sonho » face ao pressu- posto paradigmatico do jogo da linguagem da diferenga que por principio existe entre o mundo real exterior e aquilo que e «apenas o meu sonho». Assim justifica-se tambem a replica de Heidegger a Kant, de que um «escandalo da filosofia» consiste nao na falta de uma prova da existencia do mundo real exte- rior, mas sim na exigencia de uma tal prova 14. A reflexao hermeneutico-fenomenologica sobre o em-cada-caso-jd-ser-no- -mundo (je-schon-in-der-Welt-sein) manifesta no mesmo sentido a sua prioridade face a reflexao pos-cartesiana sobre a cons- ciencia objectivante, na medida em que a analise pragmatica- mente orientada dos jogos de linguagem da « ordinary language » enredados na praxis da vida se manifesta como pressuposto dos jogos de linguagem filosoficos - por exemplo tambem da linguagem-constructo da logica da ciencia.

Deste modo seguimos a abertura heideggeriana daquilo que, mais tarde, Husserl chamou «Lebenswelt» e da sua relagao de fundagao (Fundierungsverhaltnisses) face a tematizagao abstrac- tiva do mundo da ciencia, ou das ciencias, ate ao seu ponto fulcral; e isto parece-me ser mais elucidativo e radical do que aquilo que se pode retirar das analises do "Lebenswelt» - sem

12 Id. 89 ss. 13 Cf. Husserl, E., Cartesianische Meditationen und Pariser Vortrdge, Den

Haag 1966 (Nijhoff), § 7. 14 Cf. Heidegger, M., Sein und Zeit, 205.

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diivida ja reagindo a Heidegger - das secedes postumas da "Krisis» de Husserl 15.

Isto porque era possivel incluir sem dificuldade na analise de Heidegger do em-cada-caso-jd-ser-no-mundo, que ja nao se orientava pela auto-reflexao da consciencia objectivante mas sim pela reflexao sob re a «pre-estructura» da consciencia objecti- vante, uma serie de ideias que punham a descoberto na Feno- menologia e na Antropologia do Conhecimento elementos necessarios de um apriori quasi-transcendental da constituigdo do sentido do mundo: assim por exemplo a descoberta por Merleau-Ponty do apriori do corpo como ponto de vista da posse do mundo 16, assim tambem o conceito de praxis de um neo- -marxismo fenomenologicamente inspirado 17, assim finalmente o conceito, introduzido por J. Habermas e tambem por mim de conhecimento interessado 18. (No meu caso esse conceito inspirava-se quer no «principio da significabilidade» de Rothacker quer na analise de Heidegger da estrutura-«cuidado» («Sorge»-Struktur), i. e do «ser antecipado» («Sich-vorweg-Sein») do ser-ai que, como o recuar a partir do projecto do «por causa de» («Worumwillen»), torna possivel um compreender da signi- ficabilidade no deixar encontrar (Begegnenlassen) do ente «como algo»). Ultimamente a reflexao sob re o «ser langado» («Gewor- fenheit») pre-reflexivo do ser-ai num mundo, que e sempre ja «interpretado publicamente», e a que mais se presta para produzir a supra mencionada relagao entre a Fenomenologia do Lebenswelt e a analise dos jogos da linguagem. Neste ponto, a analise do «ser langado» corresponde por exemplo a desco-

15 Cf. Husserl, E., Die Krisis der europdischen Wissenschaften und die transzendentalen Phdnomenologie, Den Haag: 1962 (Nijhoff), especialmente 105 ss.

16 Cf. Merleau-Ponty, M., Phenomenologie de la Perception, Paris 1945. Podlech, A., Der Leib als Weise des In-der-Welt-seins, Bonn 1956 (Bouvier).

17 Cf. Petrovic, G., Revolutiondre Praxis. Jugoslavischer Marxismus der Gegenwart, Freiburg 1969 (Rombach), e B. Waldenfels/J. M. Broekmann/A. Pazanin (eds.): Phdnomenologie und Marxismus, 4 vols., Frankfurt a. M. 1977-79 (Suhrkamp).

18 Erkenntnisinteresse cr. Habermas, J., «Erkenntnis und Interesse», in: id., Technik und Wissenschaft als Ideologie, Frankfurt a. M. 1968 (Suhrkamp), 146-69, e id., Erkenntnis und Interesse, Frankfurt a. M. 1968 (Suhrkamp); Apel, K.-O., Transformation der Philosophic, Einleitung e Vol. II, 96 ss.

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HEIDEGGER E A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL 423

berta - ja implicada por Wittgenstein e mais recentemente proposta por John Searle 19 - dos pressupostos-« piano de f undo » (« Hintergrund »-Voraussetzungen) da compreensao normal da linguagem.

2) No entanto: com a agora esquematizada enraizagao no Lebenswelt da rela?ao sujeito-objecto da consciencia objectivante cientifica e filosofica ainda nao se tornou completamente trans- parente o alcance do «em cada caso ja» da pre-estrutura do ser- -no-mundo. Pois que a referenda a enraiza^ao, em cada caso sempre pressuposta, da consciencia objectivante no Lebenswelt poderia tambem ser entendida num sentido puramente estatico- -sistematico de pressuposto necessario; e, no entanto, ja com base neste pressuposto, poder-se-ia falar de um aprofundamento da problematica transcendental-filosofica da constituigao do sentido. Neste caso, contudo, a dimensao da temporalidade exis- tencial, que em Heidegger e apontada pelo «em cada caso ja» da « pre-estrutura » do ser-no-mundo, nao seria de todo tomada em consideragao. O ser-ai e, no entanto, em Heidegger, face ao «pressuposto» da sua «pre-estrutura», nao apenas dependente num sentido logico-transcendental, como tambem se «antecede» (ist sich «vorweg») temporalmente «em cada caso ja» nele, de tal modo que o ser-ai nao pode retomar temporalmente, nem o seu «ser langado» como este num mundo situacional histori- camente condicionado, nem o seu «ser decadente» («Verfalle- nheit») ja acontecido em cada caso.

Se executada a analise da estrutura da temporalidade do em-cada-caso-ja-ser-no-mundo, entao resulta dai a percepgao inevitavel da «historicidade» do ser-ai finito e do compreender, para ele possivel, do sentido - tal como foi ja elaborada na ultima parte de Sein and Zeit. Nesta direcgao, pois, desenvolveu- -se, na minha opiniao, a influencia mais radical da filosofia heideggeriana sobre o todo da filosofia contemporanea: aquela influencia que, precisamente como percepcionar dos pressu- postos quasi-transcendentais da constituigao do sentido e do mundo, mais contribuiu para a des-transcendentalizagdo tenden-

19 Cf. Searle, J. R., Intentionality , Cambridge 1983 (Cambridge Univ. Press), Cap. 5: «The Backgrounds Cf. tambem Habermas, J., Theorie des kommunikativen Handelns, Frankfurt a. M. 1981 (Suhrkamp), Vol. 1, cap. Ill e Vol. 2, Cap. VI.

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cial da filosofia contemporanea. Isto refere-se primeiro que tudo ao aspecto quasi-gnosiologico (i. e ao aspecto no qual ultima- mente, segundo Rorty, a hermeneutica do dialogo deveria subs- tituir a teoria do conhecimento 20:

No que diz respeito a este ponto, hoje em dia seria possivel, de um modo geral, aceitar a seguinte tese de Heidegger, que em seguida foi elaborada por Gadamer: a pre-estrutura histo- rica e temporalmente condicionada de todo o compreender - quer do quotidiano quer do da ciencia - pertence uma «pre- -compreensao» do mundo, que se articula sempre jd linguisti- camente no sentido da «interpretagao publica» do mundo do ser-ai. A este respeito diz Heidegger ja em Sein und Zeit\ «0 ser-ai nao pode jamais subtrair-se a esta interpretagao quoti- diana, em direcgao a qual ele cresce. Nela e a partir dela e contra ela realiza-se todo o autentico compreender, interpretar e comu- nicar, redescobrir e novo apropriar. Nao de modo tal que em cada caso um ser-ai intocado e sem ser seduzido pela interpre- tagao fosse colocado diante da terra de ninguem de um 'mundo' em si, para apenas olhar aquilo que lhe vem ao encontro» 21.

Neste ponto torna-se mais clara aquela dimensao do « sempre ja» da « pre-estrutura » do ser-no-mundo atraves da qual a feno- menologia da «evidencia» optico-pre-linguisticamente orientada de Husserl e atraves da qual foi possibilitada a convergencia da fenomenologia hermeneutica com o desenvolvimento pos- -wittgensteiniano da filosofia analitica da linguagem a que foi feita alusao no inicio. A « hermeneutica filosofica» de Gadamer com a sua « reabilita^ao do preconceito» - e nesta medida tambem das concepgoes da «Ret6rica» e da «T6pica» aristote- licas acerca da necessidade de pressupor ja no discurso um «acordo» com aquele a quern a palavra e dirigida acerca do «acei-

20 Cf. Rorty, Der Spiegel der Natur, Frankfurt a. M. 1981, 3.a parte, cf. tambem nota 3.

21 Dieser alltaglichen Ausgelegtheit, in die das Dasein zunachst hinein- wachst, vermag es sich nie zu entziehen. In ihr und aus ihr und gegen sie vollzieht sich alles echte Verstehen, Auslegen und Mitteilen, Wiederentdecken und neu Zueignen. Es ist nicht so, dap je ein Dasein unberuhrt und unver- fuhrt durch diese Ausgelegtheit vor das freie Land einer «Welt» an sich gestellt wiirde, um nur zu schauen, was ihm begegnet. Cf. Heidegger, M., Sein und Zeit, § 35, 169.

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HEIDEGGER E A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL 425

tdvel», ou «plausivel», «para todos, para a maioria ou para os sabios» (nao acerca do em si «verdadeiro» ou « evident e»)22 - desempenhou um papel verdadeiramente coroado de sucesso na realizagao da referida convergencia no sentido do «her- meneutic-pragmatic turn» da filosofia ocidental 23. Para tan to, a concepgao da historia da ciencia de Thomas Kuhn, inspirada em Wittgenstein, foi, de um modo particular, ao encontro da hermeneutica continental: a concepgao, nomeadamente, de que aos pressupostos necessarios da ciencia bem sucedida pertence o facto de que a « scientific community » tern sempre ja de parti- lhar uma « pre-compreensao » de um «acordo» comuns na forma dos chamados «paradigmas» da ciencia normal 24.

(Neste ponto gerou-se, e certo, a confusao, de que tambem as ciencias nomologicas da natureza deveriam ser «hermeneu- ticas» nos seus pressupostos epistemologicos e metodologicos, ja que elas - tal como todo o conhecimento humano - estao dependentes de uma pre-compreensao do mundo historicamente condicionada. Para tanto, foi esquecido o seguinte aspecto, de que esta pre-compreensao - socio-culturalmente condicionada - e sem diivida tema e «objecto» da teoria hermeneutica da ciencia, contudo nao e tema e objecto das ciencias nomologicas da natu- reza mesmas. Estas teem antes de mais, qualquer que seja a pre-compreensao do mundo historicamente condicionada de cada uma delas, o objecto permanente do seu especifico conhecimento interessado na «existencia das coisas, na medida em que elas constituem uma conexao de acordo com a lei» (Kant). Que isto assim se verifica torna-se patente, hoje como outrora, na insis- tencia metodologica destas ciencias em experimentagao extric- tamente repetivel - e nesta medida inter-culturalmente valida. Precisamente para a compreensao de Heidegger e Gadamer pouco ajudaria confundir a « hermeneutica » da pre-compreensao historicamente condicionada, ou da compreensao do «aconteci- mento do sentido e da verdade», no qual o logos das ciencias

22 Cf. Gadamer, H.-G., «Rethorik, Hermeneutik und Ideologie-Kritik», in: id., Kleine Schriften I, Tubingen 1967 (Mohr-Siebeck).

23 Cf. principalmente os trabalhos de R. Rorty (veja-se nota 20) e R. Bernstein (veja-se nota 4).

24 Cr. Kuhn, In., Die btruktur wissenscnajtlicher Kevolututwnen, rrank- furt a. M. 1976 (Suhrkamp), bem como id., Die Entstehung des Neuen, Frank- furt a. M. 1978 (Suhrkamp).

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nomologicas da natureza deve ter tambem, no fundo, a sua origem historica, com este ultimo logos - que Heidegger chamou «Gestell» des technischen Verfiigungswissen).

Em que medida podem as esbogadas concepgoes da tempo- ralidade e historicidade da «pre-estrutura» do ser-no-mundo ter ainda algo a ver com a possivel reconstrugao e transforma^ao da filosofia transcendental? Com esta questao fica exposta, na nossa opiniao, a dimensao propriamente «questionavel» e «pensavel» do nosso tema.

Em primeiro lugar e sustentavel - historico-hermeneuti- camente - que as condigoes de possibilidade do compreender do mundo, que se caracterizam pelo «em cada caso ja» da «pre- -estrutura», foram conjugadas, e neste sentido discutidas, com a questao das condigoes de possibilidade transcendentais do compreender, ou do discurso, quer por Heidegger e Gadamer quer tambem pela filosofia anglo-saxonica.

Na filosofia anglo-saxonica - para que fique ja dito antecipadamente - a problematica do sempre ja pressuposto no compreender do discurso encontra-se por exemplo sob o titulo dos «pressupostos» necessarios. Ai a tematica e abordada, por um lado, por Peter Strawson e na discussao dos «argumentos transcendentais » sem tomar em conta ainda, no essencial, a dimensao da temporalidade e historicidade do «em cada caso ja» dos pressupostos 25. Por outro lado encontra-se a contra- partida da problematica heideggeriana da «pre-estrutura do compreender » no sentido da « historicidade » no conceito de «pressupostos» («metafisicos») que remonta a Collingwood 26. Aqui a ideia dos pressupostos facticamente irredutiveis, trans- cendentais ou metafisicos do poder-pensar foi pela primeira vez pensada conjuntamente - como no ultimo Heidegger - com a ideia da condicionalidade historico-epocal dos mesmos pressu- postos e nessa medida relativizada na sua exigencia de validade universal. Assim, e certo, apresenta-se aqui pela primeira vez o problema paradoxal de saber como foi, ou deve ser possivel

25 Cf. Strawson, P., Logik und Linguistik, Munchen 1974 (List), bem como id., The bounds of sens. An Essay on Kant's Critique of Pure Reason, London 1966 (Methuen). 26 Collingwood, R. G., An Essay on Metaphysics, Chicago 1972 (Henry Regnery).

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HEIDEGGER E A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL 427

a filosofia captar simultaneamente, acima da historia dos pres- supostos metafisicos irredutiveis do pensar, a ideia - mani- festamente apresentada com exigencia universal de validade - dessa mesma historia - e de tal modo que esta verdade da reflexao nada deve mudar na averiguagao da irredutibilidade dos pressupostos metafisicos historicamente condicionados do pensar.

De que modo relacionou o proprio Heidegger as suas concep- Qoes da «pre-estrutura» do ser-no-mundo interpretador, da «aber- tura do mundo » a pressupor em cada caso, com a problematica da filosofia transcendental?

2.2. A tentativa de Heidegger de compreender Sein und Zeit como radicalizacao da filosofia transcendental kantiana:

Heidegger deixa claro em Sein und Zeit que o seu programa de uma «ontologia fundamental », qiie a ontologia tradicional antepoe a pergunta pelo «sentido do ser»e busca a sua resposta na «compreensao do ser» onticamente condicionada do ser-ai humano, nao pode de modo algum recorrer a uma compreensao pre-kantiana do conhecimento como de uma relagao intramun- dana entre um ente sujeito e um ente objecto. Nesta medida Heidegger distancia-se da concepgao de ontologia ou do conhe- cimento como relagao metafisica de ser de Max Scheler e prin- cipalmente de Nikolai Hartmann: « Scheler bem como Hartmann esquecem... do mesmo modo, apesar dos distintos pontos de partida fenomenologicos, que a 'ontologia', na sua orienta^ao de fundo tradicional, fracassa perante o ser-ai, e que precisa- mente a 'relagao de ser' incluida no conhecer... urge a sua revisao fundamental e nao apenas a um melhoramento critico.»27 A «relagao de ser» em questao nao e, para Heidegger, pensavel como uma relagao ontico-empirica entre dois entes no mundo, mas sim como problema « transcendental », na medida em que

27 Scheler wie Hartmann verkennen ... in gleicher Weise bei aller Ver- schiedenheit ihrer phanomenologischen Ausgangsbasis, dap die «Ontologie» in ihrer uberlieferten Grundorientierung gegenuber dem Dasein versagt, und dap gerade das im Erkennen beschlossene «Seinsverhaltnis ... zu ihrer grundsat- zlichen Revision und nicht nur kritischen Ausbesserung zwingt. Cf . Heidegger, M., Sein und Zeit, 208, nota 1.

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so com a compreensao do ser-ai o horizonte do mundo, que transcende todo o objecto possivel bem como todo o sujeito - pensado com Descartes como coisa intramundana - , e entao projectado e simultaneamente se estende.

Nesta medida e que Heidegger em Sein und Zeit pode afirmar retomando ainda Husserl: «Face ao realismo tern o idea- lismo, seja ele no final de contas tao contraditorio e insusten- tavel como possivel, uma primazia fundamental, caso ele nao se entenda a si mesmo equivocamente como idealismo 'psicolo- gico'. Se o idealismo acentua que ser e realidade so existe 'na consciencia', entao expressa-se aqui a compreensao de que o ser nao pode ser explicado mediante o ente. Contudo na medida em que permanece por esclarecer que [da(i] aqui se realiza a compreensao do ser e aquilo que [was] esta compreensao do ser mesma quer dizer, de que modo ela e possivel, e que ela pertence a constituigao de ser do ser-ai, ele constroi a interpretagao sobre o vacuo. Que o ser nao e explicavel mediante o ente, e que a realidade so e possivel na compreensao do ser, nao e dispensa para nao perguntar pelo ser da consciencia, da propria res cogi- tans. Como consequencia da tese idealista a analise ontologica da consciencia mesma continua a ser prescrita como tarefa previa inevitavel. So porque o ser existe 'na consciencia', i. e e compreensivel no ser-ai, e que o ser-ai pode tambem compreender e conceptualizar caracteres de ser como indepen- dencia, 'em si', realidade em geral.» 28

28 Gegeniiber dem Realismus hat der Idealismus, mag er im Resultat noch so entgegengesetzt und unhaltbar sein, einen grundsatzlichen Vorrang, falls er nicht als «psychologischer» Idealismus sich selbst mipversteht. Wenn der Idealismus betont, Sein und Realitat sei nur «im Bewuptsein», so kommt hier das Verstandnis davon zum Ausdruck, dap Sein nicht durch Seiendes erklart werden kann. Sofern nun aber ungeklart bleibt, dap hier Seinsver- standnis geschieht und was dieses Seinsverstandnis selbst ontologisch besagt, wie es moglich ist, und da(B es zur Seinsverfassung des Daseins gehort, baut er die Interpretation der Realitat ins Leere. Dap Sein nicht durch Seiendes erklarbar und Realitat nur im Seinsverstandnis moglich ist, entbindet doch nicht davon, nach dem Sein des Bewuptseins, der res cogitans selbst zu fragen. In der Konsequenz der idealistischen These liegt die ontologische Analyse des Bewuptseins selbst als unumgangliche Voraufgabe vorgezeichnet. Nur weil Sein «im Bewuptsein» ist, d. h. verstehbar im Dasein, deshalb kann das Dasein auch Seinscharaktere wie Unabhangigkeit, «Ansich», iiberhaupt Realitat verstehen und zu Begriff bringen.» Id. 207 s.

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HEIDEGGER E A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL 429

Ja aqui se torna claro que Heidegger antes de mais compreende a «diferenga 6ntico-ontologica» da sua «ontologia fundamental » inteiramente em analogia com a diferenga empirico-transcendental de Kant e de Husserl: «Se a designagao idealismo quer dizer o mesmo que compreensao daquilo que nunca e explicavel mediante o ente, mas e para cada ente em cada caso ja o 'transcendental', entao o idealismo oferece a unica possibilidade justa da problematica filosofica». No entanto Heidegger acrescenta: «Se idealismo significa a redugao de todo o ente a um sujeito ou consciencia que apenas se destacam porque permanecem no seu ser indeterminados e sao caracteri- zados de modo sumamente negativo como 'nao coisa', entao este idealismo e, metodicamente, nao menos ingenuo do que o mais grosseiro realismo» 29. Com isto sinaliza Heidegger a necessi- dade de uma transformagao fundamental-ontologica da filosofia transcendental de Kant.

De modo muitissimo mais preciso esclareceu Heidegger em seguida no seu primeiro livro sobre Kant a relagao entre o programa da ontologia fundamental e a filosofia transcen- dental - entendida a sua luz 30. Em primeiro lugar citarei em seguida algumas passagens respeitantes ao problema kantiano da «sintese a priori » como problema da compreensao onto-logica do ser no sentido de Heidegger. A partir delas tornar-se-a claro por que razao Heidegger queria, entao, contrapor a sua « onto- logia fundamental » como alternativa mais adequada a usual interpretagao gnosiologica de Kant:

«No problema [criado por Kant] dos juizos sinteticos a priori, contudo, e abordado um outro modo de sintese [sc. do que o aduzir empirico da legitimidade da conexao de represen- tagoes a partir do ente mesmo]. Esta deve aduzir acerca do ente algo que nao e ganho a partir dele segundo a experiencia. Este

29 Besagt der Titel Idealismus soviel wie Verstandnis dessen, dap Sein nie durch Seiendes erklarbar, sondern fur jedes Seiende je schon das «Trans- zendentale» ist, dann liegt im Idealismus die einzige und rechte Moglichkeit philosophischer Problematik. (...) Bedeutet Idealismus die Ruckfuhrung alles Seienden auf ein Subjekt oder Bewuptsein, die sich nur dadurch auszeichnen, dap sie in ihrem Sein unbestimmt bleiben und hochstens negativ als «undin- glich» charakterisiert werden, dann ist dieser Idealismus methodisch nicht weniger naiv als der grobschlachtigste Realismus. Id. 208.

30 Heidegger, M., Kant und das Problem der Metaphysik, (veja-se nota 8).

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aduzir da determinagdo do ser [sublinhado de K.-O. A.] do ente e um relacionar-se previo ao ente, a qual pura 'relagao a...' (sintese)so entao constitui o para onde e o horizonte no inte- rior do qual o ente se torna experienciavel em si mesmo na sintese empirica... O conhecimento transcendental nao investiga pois o ente mesmo mas a possibilidade da previa compreensao do ser, i. e simultaneamente: da constitui^ao do ser do essente. Ele diz respeito ao ultrapassar (transcendencia) da razao pura para o essente, de modo que entao a experiencia se pode adaptar a este ultimo como objecto possivel.

Problematizar a possibilidade da ontologia significa: interrogar-se sobre a possibilidade, i. e sobre a essencia desta transcendencia da compreensao do ser, significa filosofar trans- cendentalmente.» 31

No entanto, em Kant und das Problem der Metaphysik, tinha que se colocar tambem a pergunta mais dificil para a relagao da posigao heideggeriana com a filosofia transcendental clas- sica: a da relagao de uma filosofia transcendental da « razao pura» com uma filosofia transcendental que pressupoe o ser-ai humano na sua «temporalidade» e «historicidade» como condigao de possibilidade «6ntica» da compreensao do ser. De que modo - assim deve perguntar imediatamente o filosofo transcendental de proveniencia kantiana - deve a pre-estrutura do ser-no-mundo historico-temporal - a estrutura do «projecto

31 In den [von Kant] zum Problem gemachten synthetischen Urteilen a priori ... handelt es sich um eine noch andere Weise der Synthesis [sc. als die des empirischen Beibringens der Rechtmapigkeit der Vorstellungsverbindung aus dem Seienden selbst]. Diese soil iiber das Seiende etwas beibringen, was nicht erfahrungsmapig aus ihm geschopft ist. Dieser Beibringen der Seinsbe- stimmung [Hervorhebung: K. O. A.] des Seienden ist ein vorgangiges Sichbe- ziehen auf das Seiende, welche reine «Beziehung auf...» (Synthesis) allererst das Worauf und den Horizont bildet, innerhalb dessen Seiendes an ihm selbst in der empirischen Synthesis erfahrbar wird ... Transzendentale Erkenntnis untersucht also nicht das Seiende selbst, sondern die Moglichkeit des vorgan- gigen Seinsverstandnisses, d. h. zugleich: die Seinsverfassung des Seienden. Sie betrifft das Uberschreiten (Transzendenz) der reinen Vernunft zum Seienden, so dap sich diesem jetzt allererst als moglichem Gegenstand anmessen kann.

Die Moglichkeit der Ontologie zum Problem machen heipt: nach Erfah- rung der Moglichkeit, d. i. nach dem Wesen dieser Transzendenz des Sein- sverstandnisses fragen, transzendental philosophieren. Id. 24 s.

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HEIDEGGER E A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL 431

langado» - ser posta em relagao com a base estrutural da «razao pura», ou do «sujeito transcendental », - pressuposta por Kant (e ainda por Husserl) - como base estrutural da consciencia objectivante em geral?

Heidegger procurou ainda no seu primeiro livro sobre Kant resolver este problema na medida em que tentou interpretar primeiramente a «razao pura» de Kant como «razao finita» e, neste sentido, com Kant ultrapassando Kant, procurou por a descoberto as raizes da «sintese transcendental » da compreensao do ser na «imaginagao» e, nessa medida, na «temporalidade origi- naria». Para esse fim, contudo, viu-se obrigado a contrapor o texto da primeira edigao da Critica da razdo pura ao da segunda edigao e assim a autocompreensao critica de Kant.

Na primeira edigao da Critica Kant tinha, segundo Heidegger, posto a descoberto a «imaginagao transcendental » como «faculdade da sintese pura» e, nessa medida, como «meio mediatizador» entre ambos os «troncos do conhecimento», da «sensibilidade» e do «entendimento»: enquanto, como diz o proprio Kant, « raizes desconhecidas», a partir das quais provem ambos os troncos do conhecimento humano (cf . Critica da Razdo Pura A 15/B 29 bem como A 835/B 863) 32. Kant viu-se obrigado a esta concep^ao, porque - como especialmente mostra o Capi- tulo do «Esquematismo» da «Analitica transcendental » - os conceitos puros do entendimento so podem ser relacionados mediante a mediagao da sintese pura da imaginagao transcen- dental com a forma universal da intuigao do tempo - mais preci- samente: com o tempo enquanto «a imagem pura ... de todos os objectos dos sentidos ... em geral » (Critica da Razdo Pura A 142/B 182). Para Heidegger is to significa: «O esquematismo transcendental e, assim, o fundamento da possibilidade intrin- seca do conhecimento ontologico. Ele constroi o objecto na pura objectivagao de tal forma que aquilo que e representado no pensar puro se da necessariamente sob uma forma intuitiva na pura imagem do tempo. »33 «E so no esquematismo transcen- dental que as categorias se formam enquanto categorias. Mas

32 Id. 41. 33 «Der transzendentale Schematismus ist sonach der Grund der inneren

Moglichkeit der ontologischen Erkenntnis. Er bildet das im reinen Gegenste- henlassen Gegenstehende dergestalt, dap sich das im reinem Denken Vorge- stellte notwendig im reinen Bild der Zeit anschaulich gibt.» Id. 102.

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se estas sao os autenticos 'conceitos primitives', entao o esque- matismo transcendental e a propria e originaria forma^ao do conceito em geral» 34.

A imaginagao transcendental e entao, enquanto faculdade da «sintese pura», a faculdade do projecto formador (bildende Entwurf), no qual se tern de formar o horizonte de todo o compreender do ser antes de qualquer afec?ao mediante o ente para a razao finita do homem. Isto elucidado por Heidegger com a ajuda da Metaphysikvorlesung de Kant, na qual Kant caracteriza a «potencia formadora» mediante a distingao entre a faculdade da formagao de imagens (Abbildung) relacionada com o presente («facultas formandi»), a faculdade da reformagao de imagens (Nachbildung) relacionado com o passado («facultas imaginandi») e a faculdade da ante-formagao de imagens (Vorbil- dung) relacionada com o futuro («facultas praevendi») 35. Neste caracter «triplamente-uno» do formar da imaginagao reencontra Heidegger os tres extases da temporalizagao da temporalidade originaria do ser-ai: enquanto projecto relacionado com o objecto da «pura intuigao» no sentido de Kant a imaginagao transcen- dental deve « formar » o horizonte do tempo de tal modo que ela simultaneamente formando, re-formando e ante-formando (ab-, vor- und nachbildend) faz surgir a possibilidade da «pura sequencia do agora » como «imagem-esquema» da doagao possivel de representagoes objectivas 36.

Assim, Heidegger reconstroi a «imaginagao transcendental » de Kant como justifica^ao para a fungao-« temporal » tripla- mente ex-statica do « tempo originario» (como temporaliza^ao triplamente-una de presenga, passado e futuro) e, simultanea- mente, justificagao para a dependencia da «representa£ao vulgar do tempo » - da « sequencia do agora » que ele proprio tematizou: «A imaginagao transcendental e o tempo originario» 37.

34 «Im transzendentalen Schematismus bilden sich allererst die Katego- rien als Kategorien. Sind diese aber die echten 'Urbegriffe', dann ist der trans- zendentale Schematismus die urspriingliche und eigentliche Begriffsbildung iiberhaupt.» Id. 103.

35 Id. 159, refencia a Politz, Kants Vorlesuns iiber die Metaphysik, 2. Aufl., nach der Ausgabe von 1821 neu herausgegeben von K. H. Schmidt 1924.

36 Id. 159 s. 37 «Die transzendentale Einbildungskraft ist die urspriingliche Zeit»

id. 160.

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HEIDEGGER E A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL 433

E Heidegger nao da lugar a qualquer diivida de que na fungao temporal originaria daquilo a que Kant chamou «imaginagao transcendental » enquanto fungao da «sintese pura» tambem se encontra a essencia do atendimento - da «sintese transcen- denmtal da apercepgao» - e, alem disso, da razdo tedrica e prdtica.

A unidade da sintese do entendimento com a fun^ao-sintese do tempo originario e ilucidada por Heidegger mediante a distingao kantiana dos tres modos da sintese: « sintese da apreensao na intuigao», « sintese da reprodu^ao na imaginagao» e « sintese da recognigao no conceito» (cf. Critica da Razdo Pura A 97): «Se todavia o tempo e a totalidade triplamente-una da presenga, do ser-do-passado (Gewesenheit) e do futuro, se no entanto Kant acrescenta ... a ambos os modos da sintese, dos quais se demonstrou que sao constitutivos do tempo [sc. apreensao e reprodugao], um terceiro modo, ... entao este terceiro modo da sintese deve 'formar' o futuro. »38 A « sintese da recognigao no conceito» trata da condigao de possibilidade da identificagdo, A este proposito afirma Heidegger: «Kant da a esta sintese da identificagao um nome bem adequado: o seu unificar e um reconhecer. Ela pro-specta e 'espia' atraves daquilo que previamente deve ser retido como identico, para que as sinteses apreensora e reprodutora possam encontrar um dominio circunscrito de essente, no interior do qual elas poderao fixar e receber como ente aquilo que elas igualmente podem contri- buir e encontrar. ... Se parecia inicialmente nao ter qualquer exito, mesmo ate ser contraditorio, explicitar a formagao intrin- seca do conceito puro enquanto essencialmente determinada pelo tempo, agora nao apenas se esclareceu o caracter temporal do terceiro modo da sintese pura, como este modo da pre-formagao pura mostra ate, segundo a sua estrutura interior, uma primazia face aos outros dois, com os quais, no entanto, ele se encontra essencialmente ligado. E se nesta analise kantiana da sintese pura no conceito, aparentemente sem qualquer relagao com o

38 «Wenn nun aber die Zeit das dreifach-einige Ganze von Gegenwart, Gewesenheit und Zukunft ist, kant aber den beiden ... als zeitbildend nach gewiesenen Modi der Synthesis [sc. Apprehension und Reproduktion] einen dritten Modus anfugt,... dann mu(3 dieser dritte Modus der Synthesis die Zukunft 'bilden»\ Id. 166.

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tempo, se tornasse visivel precisamente a essencia mais origi- naria do tempo: que ele primeiramente se temporaliza a partir do futuro?» 39.

Heidegger complementa ainda esta interpretagao com a demonstragao da temporalidade da «auto-afecgao pura» e, assim, da temporalidade da auto-consciencia: «A auto-afecgao pura define a estrutura transcendental primaria do si-mesmo finito enquanto tal. O espirito nao existe de tal maneira que, entre outros modos de ser, relacionasse determinadas coisas a si mesmo e se posicionasse a si mesmo, antes este 'a partir de si para... e de volta a si-mesmo' e que entao constitui o caracter espiritual do espirito como si-mesmo finito » 40. Assim, pode concluir resumindo: «o tempo e o 'eu penso' ja nao se contra- poem como irreconciliaveis e dissemelhantes; eles sao o mesmo. Kant, gragas ao radicalismo com que na instaura?ao da metafi- sica pela primeira vez interpretou transcendentalmente o tempo enquanto tal e o 'eu penso' enquanto tal reuniu-os na sua mesmi- dade originaria - sem que contudo a tivesse concebido explici- tamente» 41.

39 «Kant gibt dieser Synthesis der Identifizierung einen recht treffenden Namen: ihr Einigen ist ein Rekognoszieren. Sie erkundet im voraus und ist 'hindurchspahend' auf das, was im vorhinein als das Selbige vorgehalten sein mup, damit die apprehendierende und die reproduzierende Synthesis uberhaupt einen geschlossenen Umkreis von Seiendem vorfinden konnen, innerhalb dessen sie das, was sie beibringen und antreffen, als Seiendes gleichsam anbringen und hinnehmen konnen. ... Wenn es anfangs aussichtslos, ja widersinnig erschien, die innere Bildung des reinen Begriffs als wesenhaft zeitbestimmte aufzuhellen, so ist jetzt nicht nur der Zeitcharakter des dritten Modus der reinen Synthesis ans Licht gekommen, sondern dieser Modus der reinen Vorbil- dung zeigt sogar seiner inneren Struktur nach einen Vorrang vor den beiden anderen, mit denen er gleichwohl wesentlich zusammengehort. Wenn in dieser scheinbar ganz zeitabgewandten Kantischen Analyse der reinen Synthesis im Begriff gerade das urspriinglichste Wesen der Zeit zum Vorschein kame: dap sie sich primar aus der Zukunft zeitigt?» id. 169 s.

40 «Die reine Selbstaffektion gibt die transzendentale Urstruktur des endlichen Selbst als eines solchen. Es ist ganz und gar nicht so, dap ein Gemiit existiert, unter anderem auch fur sich etwas auf sich bezieht und Selbstset- zung ausiibt, sondern dieses «Von-sich-aus-hin-zu ... und Zuriick-auf-sich» kons- tituiert gerade erst den Gemutscharakter des Gemiits als eines endlichen Selbst.» Id. 173.

41 «Die Zeit und das «ich denke» stehen sich nicht mehr unvereinbar und ungleichartig gegeniiber, sie sind dasselbe. Kant hat durch den Radika- lismus, mit dem er bei seiner Grundlegung der Metaphysik zum erstenmal

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HEIDEGGER E A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL 435

Deste modo procurou Heidegger mostrar em «Kant und das Problem der Metaphysik», que a fungao do «tempo originario», por ele descoberta em Sein und Zeit, enquanto condigao de possi- bilidade da compreensao do ser, e nessa medida do pensamento humano (da razao finita), conceptualizou simultaneamente o fundamento mais profundo da critica da razao pura de Kant e nessa medida da filosofia transcendental (enquanto resposta a questao das condigoes de possibilidade da ontologia).

Contudo, como Heidegger sabe e faz salientar, o pressuposto da «imaginagao transcendental, como uma «raiz para nos desco- nhecida» de ambos os troncos do conhecimento, nao e retomada pelo proprio Kant na segunda edi^ao da « Critica da razao pura»; ele suprimiu ou reformulou as passagens correspondentes da primeira edigao, com o fim de determinar a fungao da «sintese pura» como sendo essencialmente sintese do entendimento (cf. B 130, 135, 140, 152, 153, 154). Por que razao e que tal aconteceu?

Heidegger responde a questao da razao da mudan^a de posigao de Kant, em primeiro lugar, com a habitual referenda geral a tradigao da ratio ou do logos, a qual prevalece tambem na fundamentagao critica da metafisica como orienta?ao funda- mental pela «logica» no sentido de uma «logica transcendental » efectuada por Kant. Alem disso a concepgao do caracter da estrita «generalidade» do conhecimento ontologico-metafisico (da compreensao do ser no sentido da condigao transcendental da objectividade) abriu tambem a possibilidade para a filosofia moral de «siibstituir a generalidade empirica indeterminada das teorias popular-filosoficas acerca da moral pelo caracter originario-essencial das analises ontologicas, as quais - e so elas - sao capazes de assegurar uma «metafisica dos costumes » bem como a sua respectiva fundamenta?ao. Assim teve Kant que recuar perante o «abismo» sem fundo que perante ele se abriu na «raiz desconhecida» dos troncos do conhecimento42.

Heidegger identifica de forma mais precisa as possiveis razoes para este recuo de Kant no contexto da sua interpre-

sowohl die Zeit je fur sich als auch das «ich denke» je fur sich transzendental auslegte, beide in ihre ursprungliche Selbigkeit zusammengebracht - ohne diese freilich als solche selbst ausdrucklich zu sehen.» Id. 174.

42 Cf. Id. 153.

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tagao da «temporalidade originaria» da sintese da imaginagao transcendental. Ele proprio poe a seguinte questao: «Pode o tempo enquanto sensibilidade pura formar uma unidade origi- naria com o 'eu penso' da apercepgao pura? Podera ser que o eu puro o qual, de acordo com a interpreta?ao geralmente admi- tida, e concebido por Kant fora de qualquer temporalidade e oposto ao tempo, seja 'temporal' ?» 43 As razoes que aqui se opoe a interpretagao heideggeriana da « sintese pura» resultam, de facto, como o proprio Heidegger reconhece, da aplicagao da interpretagao temporal a « sintese da recogni£ao» no conceito kantiano. Kant fez notar explicitamente que «a razao pura, como uma faculdade puramente inteligivel ... nao esta sujeita nem a forma temporal nem tambem, por isso mesmo, as condigoes da sequencia temporal» (Critica da razao pura A 551/B 579). E ele fez notar principalmente aquando da interpretagao do «principio supremo de todo os juizos analiticos», do principio de contradigao, que o «simultaneamente» (ajxa) nao pode ter lugar na formula deste principio, ja que, caso contrario, «o principio e afectado pela condigao do tempo» (id. A 152/B 191).

Que pode Heidegger apor a estas objecgoes a sua interpre- ta^ao da « sintese pura»?

Ele pode, no que diz respeito a objecgao por ultimo mencio- nada, fazer notar que o principio supremo de todos os «juizos analiticos» (e nesta medida tambem do principio de identidade logico-formal!) nao tern precisamente nada a ver com a «sintese pura» como condi^ao de possibilidade da compreensdo do ser, que ele, pelo contrario, - enquanto principio relacionavel com o conhecimento - tern sempre de pressupor a fungao transcen- dental da « sintese pura». No entanto concede a Kant que ele se opoe com razao ao «simultaneamente» na formula do prin- cipio de contradigao, se o «simultaneamente» for entendido no sentido da «intratemporalidade» do ente intencionado. Ja que, neste caso, - assim Heidegger - o principio limitar-se-ia ao ente acessivel na experiencia «intratemporal» e nao poderia valer para todo e qualquer «algo». Esta e contudo para Heidegger

43 Die Zeit als reine Sinnlichkeit soil mit dem «ich denke» der reinen Apperzeption in einer urspriinglichen Einheit stehen? Das reine Ich, das Kant doch nach der allgemein herrschenden Auslegung aus aller Zeitlichkeit heraus und aller Zeit entgegenstellt, soil «zeitlich» sein? id. 157.

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uma compreensao estreita da temporalidade no sentido da expressao kantiana da « forma temporal » como forma da intra- temporalidade possivel. A esta compreensao orientada pelo «conceito vulgar de tempo » contrapoe Heidegger a seguinte interpretagao:

«Se e certo que o 'simultaneamente' e incontestavelmente uma determinagao temporal, ele nao tern necessariamente de significar a 'intratemporalidade' do ente. Pelo contrario, o 'simul- taneamente' expressa aquele caracter temporal que pertence originariamnete como 'recogni^ao' previa (ante-formagao) a toda a identificagao como tal. Esta, no entanto, situa-se como suporte quer da possibilidade quer da impossibilidade da contradigao. Kant tern de negar o caracter temporal ao 'principio de contra- di$ao' na sua orientagao pela essencia nao originaria do tempo; pois que nao tern sentido querer determinar na sua essencia aquilo que o tempo originariamente e com a ajuda de um produto que dele resulta. Precisamente porque o si-mesmo na sua mais intima essencia e originariamente o tempo mesmo, pode o eu ser concebido como nao 'temporal' i. e, neste caso, intratemporal. Sensibilidade pura (tempo) e razao pura sao nao apenas homogeneas como tambem pertencem conjuntamente a unidade da mesma essencia, que torna possivel a finitude da subjectividade humana na sua totalidade» 44.

De novo aqui se torna claro que Heidegger em Kant und das Problem der Metaphysik tenta ate ao extremo reconstruir o ponto fulcral da filosofia transcendental a luz da questao de

44 «... so gewi(3 das 'zugleich' eine Zeitbestimmung ist, so wenig braucht es die 'Innerzeitgkeit' von Seiendem zu bedeuten. Das 'zugleich' driickt viel- mehr denjenigen Zeitcharakter aus, der urspriinglich als vorgangige 'Rekog- nition' ('Vor-bildung') zu aller Identifizierung als solcher gehort. Diese liegt aber sowohl der Moglichkeit als auch der Unmoglichkeit des Widerspruchs zugrunde. Kant mu(3 bei seiner Orientierung am nichtursprunglichen Wesen der Zeit dem 'Satz vom Widerspruch' den Zeitcharakter absprechen; denn es ist sinnwidrig, das, was urspriinglich die Zeit selbst ist, mit Hilfe eines von ihr abkiinftigen Produktes wesensmapig bestimmen zu wollen. Gerade weil das Selbst in seinem innersten Wesen urspriinglich die Zeit selbst ist, kann das Ich nicht als 'zeitliches', d. h. hier innerzeitiges, begriffen werden. Reine Sinn- lichkeit (Zeit) und reine Vernunft sind nicht nur gleichartig, sondern sie gehoren in der Einheit desselben Wesens zusammen, das die Endlichkeit der mens- chlichen Subjektivitat in ihrer Ganzheit ermoglicht.» Id. 177.

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Sein und Zeit - Lea luz do conceito de « tempo originario» - tomando-o como apoio para a sua propria posigao. Contudo poe-se desde ja a questao, se e sustentavel a adaptagao heideg- geriana da propria distingao entre tempo «originario» («exta- tico») e « vulgar » a distingao kantiana entre «sintese transcendental » e temporalidade empirica. Pode a sequencia constante de momentos-agora (a «intra-temporalidade» de Kant e Heidegger) - ja reconhecida por Aristoteles como base para a possivel mediagao do tempo - ser descriminada analitica- mente na temporalizagao extatica dos tres horizontes tempo- rais da compreensao do ser (presen^a, ser do passado e ser do futuro) de modo a que apenas este ultimo possa ser equiparado com o « tempo originario» e nesta medida com o projecto do mundo da imaginagdo (Weltentwurf der Einbildungskraft), ate mesmo com a sintese pura do pensar (da identidade)?

O significado desta questao parece-me tornar-se suficiente- mente claro a partir da interpretagao heideggeriana de Kant: se a mencionada distingao dos conceitos de tempo, em analogia com a distingao transcendental de Kant, nao for sustentavel, entao torna-se plausivel que Kant teve boas razoes para manter a temporalidade afastada da resposta a questao das condigoes de possibilidade da validade objectiva do pensamento e do conhe- cimento. Pois que a dependencia (transcendental!) da validade do pensamento e do conhecimento face a qualquer forma de intra-temporalidade - isto sera demonstrado ainda por meio do pan-historismo pos-heideggeriano - nao e susceptivel de ser pensada ou expressa validamente.

2.3. A «Kehre» heideggeriana como confirma9ao tacita da insus- tentabilidade da interpreta^ao transcendental-filosofica da distin£ao entre tempo «originario» e « vulgar ». E inevitavel o resultado - destrui£ao da filosofia transcendental em favor do primado do tempo?

Ja em Kant und das Problem der Metaphysik se encontram alguns indicios de que a separa^ao analitica entre «intra- -temporalidade» empirica e o tempo extdtico da sintese pura e contra-intuitiva e, por isso, nao pode ser mantida. Assim, viu-se

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Heidegger por fim obrigado, quando resume a sua interpreta^ao da Critica da razdo pura no sentido da sua «ontologia funda- mental » 45, a fazer rebentar a arquitectonica transcendental de Kant ao abordar, aparentemente so de passagem, o «acontecer» «Geschehen» da finitude da transcendencia da compreensao do ser «no ser-ai» e, nesta medida, tambem no «sujeito transcen- dental» de Kant. Este «acontecer» deve precisamente, segundo Heidegger, formar a «subjectividade transcendental » do sujeito enquanto finitude da razao: a metafisica do ser-ai nao e apenas metafisica sobre o ser-ai mas e tambem a metafisica que neces- sariamente acontece como ser-ai: «com ela [i. e com a transcen- dencia do ser-ai] acontece o projecto, embora oculto e quase sempre indeterminado, do ser do ente em geral...»46 «... a compreensao do ser, o seu projecto e a sua re-jeigao, acontece no ser-ai enquanto tal. A 'metafisica » e o acontecer fundamental que surge com o irromper no ente, que propriamente acontece com a existencia factica de algo como o homem» 47.

Em que medida conduz o emprego da palavra « acontecer » ao rebentamento da arquitectonica kantiana da filosofia trans- cendental? No meu parecer, a palavra «acontecimento» (que com as expressoes « acontecer do sentido », « acontecer da verdade» tambem tern um significado central em Wahrheit und Methode de Gadamer) remete ja para uma dificuldade da analise do tempo em Sein und Zeit, que se torna patente quando se tenta - no sentido de Kant und das Problem der Metaphysik - tomar em analogia a «diferen$a 6ntico-ontologica» com a «diferen<ja empirico-transcendental» de Kant. E certo que Heidegger asse- gura constantemente que o « tempo originario», que forma a essencia da sintese transcendental, se distingue radicalmente do tempo no sentido da sequencia do agora intratemporal, na medida em que esta pressupoe aquela como condi?ao que forma

45 Id. 208 ss. 46 «Mit ihr [sc. der Transzendenz des Daseins] geschieht der obzwar

verborgene und zumeist unbestimmte Entwurf des Seins des Seienden iiber- haupt...», id. 212.

47 ... das Seinsverstandnis, sein Entwurf und seine Verwerfung, geschieht im Dasein als solchem. Die « Metaphysik » ist das Grundgeschehen beim Einbruch in das Seiende, der mit der faktischen Existenz von so etwas wie Mensch iiberhaupt geschieht. Id. 218.

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o seu horizonte. No entanto, poe-se a questao se, no fundo, tern sentido falar de um «acontecer» da «transcendencia», como sintese transcendental que forma um horizonte, sem fazer uso do conceito tradicional de temporalidade - tambem empirica- mente orientado - enquanto sequencia intra-temporal?

Sem dificuldade pode conceder-se a Heidegger que no conceito tradicional de tempo o momento da temporalizagdo (quasi-transcendental) dos tres extases do tempo (presente, ser do passado e ser do futuro) nao foi levada em conta e que esta temporalizagao extatica esta sempre ja implicita como essencia da imaginagao simultaneamente apreensiva, reprodutiva e recog- nitiva quando se diz «agora» (em oposigao a «ha pouco» «daqui a pouco»). No entanto, na minha opiniao, ha ao mesmo tempo que fazer valer que, ao falar de acontecer, a sucessao factica dos momentos-agora e, nessa medida, da intratemporalidade no sentido kantiano se encontra tambem sempre ja implicita. Se se quer - como Heidegge pelo menos em Kant und das Problem der Metaphysik - abstrair totalmente da intratemporalidade dos momentos-agora, ou entender o tempo em sentido originario so como a originariedade conjunta dos tres extases da temporali- zagao transcendental, entao ja nao e possivel, por assim dizer, entender a mobilidade do tempo. (Esta dificuldade era ja cons- tantemente discutida aquando da leitura de Sein und Zeit nos meus tempos de estudante e remetia-se entao para o facto de que nao e por acaso que, quer Kant quer tambem William James e Edmund Husserl, utilizam a metafora da corrente (Strom), para falar do tempo ou do tempo da consciencia. Uma corrente - e neste sentido um acontecer continuo - e no entanto algo que, no sentido kantiano, e experienciavel intratemporalmente, i. e experienciavel no ambito da forma temporal da intuigao: tern tambem de se deixar verif icar empiricamente - por exemplo no sentido do « simultaneamente » e do «sucessivamente» de dois acontecimentos.)

A suspeita de que a reconstrugao heideggeriana do conceito de sintese transcendental no conceito de «tempo originario» estava condenada ao fracasso e, na minha opiniao, confirmada pela mudanga da «arquitectonica» filosofica que em Heidegger se encontra ligada com a chamada «Kehre»: juntamente com a filosofia da «subjectividade», agora a ser «superada», e mani- festamente abandonada a compreensao quasi-transcendental do

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tempo («originario») e, assim, tambem a diferen^a, adaptada a Kant, entre o tempo extatico e a intratemporalidade. Aberta- mente fala-se agora de um «acontecer» da «clareira» e (simul- taneamente) «ocultagao» do ser e, nesta medida, de uma « historia do ser». Certamente ha que reconhecer que Heidegger com o «acontecimento» da doagao aclaradora e ocultadora do ser («Ereignis» der lichtend-verbergenden Schickung des Seins) procura pensar ainda, antes de mais, a «temporalizagao» (e «espacializagao») («Einraumung») dos horizontes de sentido de um Lebenswelt como aquilo que sucede dentro de um mundo ja temporalizado. Nesta medida, a concepQao transcendental ou existencial (existenzial) da temporalizagao como constituigao do sentido mediante o projecto do mundo transforma-se na concepgao da doagao do ser constitutiva do mundo e do sentido. Contudo ha que reconhecer tambem que Heidegger fala agora dos acontecimentos «epocais» («aclaradores e ocultadores») da historia do ser («epochale» («lichtend-verbergende») Ereignisse der Seinsgeschichte) que se sucedem uns aos outros e podem ser relacionados com as epocas intratemporais e intra-historicas da historia da filosofia por nos conhecidas - assim, com a fundamentals^ da metafisica pelos gregos, com a transformagao desta funamentagao pelos romanos e pelo cristianismo e, final- mente, pela instauragdo da ciencia e da tecnica modernas.

Precisamente nesta intratemporalidade e, assim, na depen- dencia historica dos « acontecimentos » que simultaneamente devem possibilitar a fundamentagao do sentido do mundo - e com ele da possivel verdade e falsidade de preposigoes - , nesta limitagao da temporalizagao e intratemporalidade quasi- -transcendentais situa-se agora o desafio da filosofia heidegge- riana para uma filosofia transcendental que se orienta pela concepgao kantiana de constituigao do mundo universalmente valida pelo exercicio sintetico do entendimento ou da razao. 0 desafio agudiza-se na medida em que agora, segundo Heidegger, a propria filosofia do «sujeito-transcendental» - e, alem disso, a filosofia em geral como empreendimento do « logos » ou da « razao suficiente» - deve ser entendida como resultado de um acontecimento da historia do ser limitado segundo a v alidade. Aqui poe-se a pergunta, como pode ainda isto ser pensado ou expresso com exigencia de validade. Nao leva aqui de vencida o tempo no sentido tradicional, que ja Parme-

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nides e Platao tinham entendido como a maior ameaga da possivel validade do pensamento, sobre a razao com a qual ele, enquanto « tempo originario», deveria, segundo Heidegger, a partida ser identico? 48

(Em Gadamer repete-se esta problematica - apenas com a diferenga de que Gadamer ja nao se da de todo ao trabalho de negar o caracter intratemporal do «acontecer do sentido ou da verdade». E certo que ele ainda pretende responder a questao das condigoes de possibilidade da compreensdo 49. No entanto ele ja nao ve qualquer dificuldade de responder a esta questao exclusivamente com a ajuda de conceitos do acontecer histo- rico - ultimamente de conceitos de uma «ontologia» (manifes- tamente pensada de modo pre-kantiano) do acontecer do «jogo» 50).

Depois desta reconstrugao da filosofia heideggeriana do tempo, que ultimamente conduz a uma destruigao da filosofia transcendental, coloca-se de novo a nossa questao da justificagao da posigao de Heidegger como resposta a pergunta das condi- goes de possibilidade da constituigdo do sentido e do mundo. No que diz respeito a esta pergunta, fizemos no inicio alusao a que ela remete para uma necessaria transformagdo da filo- sofia transcendental ja que uma «consciencia transcendental pura» nao e capaz de esclarecer a constituigdo da pre- -compreensdo concreta do mundo com que tern sempre de comegar todo o conhecer. A nossa reconstrugao da transfor- magao, e ultimamente destruigao, da filosofia transcendental conduziu-nos sempre ate aquele ponto em que o pressuposto heideggeriano de uma temporalidade e hitoricidade constitui- dora do sentido da compreensao do mundo se mostrou irrecon- ciliavel com a resposta a questao kantiana das condigoes de

48 Em Kant und das Problem der Metaphysik afirmou Heidegger que «o eu, a razao pura, e segundo a sua essencia temporal » (id. 174); depois da Kehre a «razao» da metafisica ocidental no seu todo e entendida como resul- tado epocal, limitado na sua validade, da «historia do ser». Cf. acima p. 0 sobre Collingwood.

49 Cf. H.-G. Gadamer no «Prefacio» a 2.a ed. de Wahrheit und Methode, Tubingen: 2 1965 (Mohr/Siebeck), XV s.

50 Id. 3.a parte: «Ontologische Wendung der Hermeneutik am Leitfaden der Sprache».

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possibilidade da validade universal objectiva e, nessa medida unicamente intersubjectiva da compreensdo do mundo. Que consequencia ha a tirar desta situagao? Deve-se - como Heidegger - ponderar a possibilidade de que a validade objec- tiva do conhecimento - e respectivamente a possivel verdade como certeza on falsidade de juizos de conhecimento - e por principio dependente da previa abertura aclaradora e oculta- dora do sentido do mundo (lichtendverbergende Weltsinners- chlie(3ung) (que aconteceu e foi transmitida nas linguas historicas)?

A mentalidade da epoca parece querer seguir esta sobrepo- sigao por principio da questao da constituigdo do sentido e do mundo e da questao da validade, como acima ja tivemos ocasiao de ver: verdade e falsidade de preposigoes cientificas podem ser concebidas - aparentemente - , como Thomas Kuhn, como dependentes da constituigao previa de paradigmas da «normal science », que sao comparaveis as clareiras e ocultagoes do sentido em Heidegger. De modo semelhante a possivel correcgao ou incorrecgao de normas morais parece estar dependente da pressuposigao de formas da vida que se formam historicamente, ou da respectiva «base de consenso» (Rorty). Em resumo: a v ali- dade do logos e dos seus fundamentos, que tende para a univer- salidade e identidade parece remeter para um acontecer constituidor do sentido da formagdo historico-temporal da dife- renga (a «differance» de Derrida).

Contudo, ja tivemos ocasiao na presente exposi^ao de poder opor um argumento - ele proprio transcendental-reflexivo - a esta tendencia: a exigencia universal de validade dos esbo- ?ados argumentos da «destranscendentalizagao» nao e compa- tivel com o conteiido proposicional desses argumentos: argumentos que relativizam a sua exigencia de validade em favor de acontecimentos historico-temporais nao podem afirmar essa relativiza?ao pelo menos com uma exigencia de validade. Alem disso poe-se a questao: se uma relagao de dependencia - no sentido da teoria da verdade heideggeriana - entre a verdade ou falsidade de juizos empiricos e a - previa - abertura acla- radora e ocultadora do sentido e do mundo se verifica ralmente. Nao poderia dar-se o caso de que se verifica antes uma relagao mutua de dependencia de tal modo que abertura do sentido e do mundo na linguagem (que ja esta implicita nas palavras,

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respectivamente nos «campos de sentido das palavras» («Wort- -feldern») das linguagens 51) esta dependente da sua confir- magao ou rejeigao nos - possiveis pela sua suposigao - pro- cessos da experiencia e, nesta medida, dependente de juizos falsos ou verdadeiros? Uma tal relagao da dependencia miitua foi precisamente o que Heidegger em Sein und Zeit de modo antecipatorio tinha tematizado no «circulo hermeneutico» da compreensao do mundo que se corrige a si mesma.

Contudo, mesmo quando se defende esta estrategia, pressupoe-se manifestamente - ao contrario da filosofia trans- cendental classica de Kant - a ndo-identidade da questao das condigoes de possibilidade da constituigdo do sentido e da questao das condigoes de possibilidade da justificagdo da vali- dade referida a compreensao do mundo concreta que esta sempre ja linguisticamente interpretada. Nesta distingdo, e na possibilidade que a partir dela se abre de um relacionamento renovado de ambas as dimensoes do problema vejo, de facto, um resultado provisorio da transformagao da filosofia trans- cendental introduzida por Heidegger. Contudo, este resultado provisorio possibilita tambem, na minha opiniao, uma alterna- tiva para a actual tendencia de «destranscendentalizagao» da filosofia - uma alternativa que pode atender de modo correcto, por um lado a historicidade da constituigdo do sentido e do mundo e a sua suposigao em ordem aos juizos do conhecimento verdadeiros e falsos, mas por outro lado tambem a validade universal e intemporal destes juizos - e isto significa validade, quer dos juizos empiricos, quer tambem dos juizos filosoficos acerca da relagao entre constituigao do sentido e do mundo e a validade do juizo.

Para apoiar a tese principal da minha investiga^ao, deverei em seguida incluir, em primeiro lugar, um breve excurso sobre a relagao interna e a diferenga entre questao da constituigdo do sentido e questao da validade na historia da filosofia trans- cendental.

51 Cf. Apel, K.-O., «Der philosophische Wahrheitsbegriff als Vorausset- zung einer inhaltlich orientiert Sprachwissenschaft», in: id. Transformation der Philosophie, Vol. I, 106 ss.

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3. A rela9ao entre constituigao do sentido e justificasao da validade numa filosofia transcendental transformada linguistico-pragmaticamente

3.1. Excurso: Sobre a relagao entre questao da constituicao do sentido, questao da validade na historia da filosofia trans- cendental

Em Kant a questao das condigoes de possibilidade da vali- dade objectiva do conhecimento e identica a questao da consti- tuigdo transcendental do sentido de objectividade. Mais precisamente: a primeira questao responde Kant na medida em que ela e remetida para a segunda questao. Ai situa-se o ponto fulcral da «revolugao copernicana» que se inspira no topos fundamental da filosofia qnoderna: nos so entendemos aquilo que nos proprios fizemos ou podemos fazer 52. Contudo, Kant so pode tornar plausivel esta solugao do problema das condi- goes de possibilidade da validade por que se limitou, na sua posigao geral da questao, a constitui^ao da forma da objectivi- dade - como forma do pressuposto da validade objectiva - do conhecimento.

Se atendermos mais de perto, vemos que nesta posi?ao da questao se situava uma limitagao em duplo sentido: em primeiro lugar a limita^ao consistia em que nao se perguntava pela cons- titui^ao do conteudo concreto de sentido da possivel experiencia do mundo (e assim tambem pelas condigoes de verdade ou falsi- dade de juizos concretos da experiencia), mas sim pelas condi- goes de constituigao da - em sentido kantiano transcendental deduzivel, valida a priori - forma da experiencia possivel do mundo. (Nesta limitagao residia tambem a razao pela qual Kant julgava poder abstrair das condigoes linguisticas de possibili- dade da constituigao no facto de que Kant identificou a questao das condigoes de possibilidade da constituigao da objectivi- dade - e assim da possivel validade objectiva - do conheci-

52 Para a historia deste topos cf. Apel, K.-O. Die Idee der Sprache in der Tradition des Humanismus von Dante bis Vico, Bonn 1963 (Bouvier), 31980, 321 ss., bem como: id. «Das Verstehen (eine Begriffsgeschichte als Problems- geschichte)», in: Archiv fur Begriffsgeschichte, Bd. 1, Bonn 1955, 142-199.

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mento com a questao das condigoes da ciencia da natureza (mais precisamente da fisica classica). Entre outros aspectos, isto signi- fica: ele perguntava nao pelas condi^oes de constitui?ao daquela objectividade secunddria (e da por ela condicionada validade objectiva de juizos de conhecimento) que torna possivel algo como ciencias sociais ou humanas.

A esta diferenga da problematica da constituigao, que pelo menos na Alemanha motivou ate aos nosso dias uma ininter- rupta discussao sobre a fundamentagao 53, seja aqui feita mengao, apenas de modo aproximativo, nos seus tragos estru- turais essenciais: a objectividade da natureza conhecivel cienti- ficamente pressuposta por Kant como caso paradigmatico e - como hoje pode ser visto - uma tal que se apoia nao so na «sintese da apercepgao» de uma consciencia objectiva - que, alem disso, e mediada pela referenda e interpretagao num ambito linguistico de juizos proporcionais 54 - como tambem simultaneamente na objectivagao experimental dos processos da natureza que sao mensuraveis e causavelmente explicaveis, que tern de ser mediatizada por uma manipulagao tecnico- -instrumental precisa e de caracter pratico e corporal. Neste sentido, a constituigao de uma natureza objectivamente expe- rienciavel - e, assim, a validade objectiva da ciencia experien- ciavel - e, assim, a validade objectiva da ciencia experiencial da natureza - e manifestamente dependente do facto de a cons- tituigao linguistica do sentido dos conceitos fundamentals da «protofisica» estar ligada apriori (por introdugao exemplar) a construgdo dos objectos ideais que necessitamos como medidas regularizadas ou como instrumentos de medigao 55. Resumida- mente: a constituigdo do sentido e do mundo como constituigdo do objecto originaria cientificamente relevante esta ja segundo a sua forma ligada aquela «posigao» do mundo que Kant expos no prefacio a 2.a ed. da Critica da razdo pura num, por assim dizer, encurtamento transcendental-idealistico como caso para-

53 Cf. Apel, K.-O. Die Erkldren-Verstehen Kontroverse in transzendental- pragmatischer Sicht, Frankfurt a. M. 1979 (Suhrkamp).

54 Cf. Tugendhat, E. Vorlesungen zur Einfuhrung in die sprachanaly- tische Philosophie, Frankfurt a. M. 1976 (Suhrkamp).

55 Assim o programa de rundamentagao construtivista da «proto-hsica» de P. Lorenzen, P. Janich e outros. Para esta discussao cf. Bohme, G. (ed.): Protophysik, Frankfurt a. M. 1976 (Suhrkamp).

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digmatico da «revolugao copernicana» e que, na minha opiniao, subjaz tambem a concepgao heideggeriana do «Gestell» como modo da ocultagao moderna do sentido do ser.

A constituigdo do objecto relevante para as ciencias sociais e humanas - bem como a objectivagdo de fenomenos temdticos que ha tambem ultimamente que pressupor em ordem a vali- dade das proposigoes filosoficas (por exemplo das aqui defen- didas) - distingue-se em varios aspectos desta constituigao originaria - a realizar tambem material e tecnicamente - da objectividade da natureza no sentido da «protofisica». Ja nao se trata aqui de uma objectivagao do mundo originaria consti- tuidora do sentido dos fenomenos experienciaveis (em todo o caso existe um analogo - por sua vez secundario - nas cien- cias sociais de tipo nomologico que sao socio-tecnologicamente relevantes e na psicologia experimental), mas sim de uma objec- tivagdo secunddria dos fenomenos do Lebenswelt da experiencia comunicativa, i. e daqueles fenomenos que hoje em dia se cons- tituem, segundo o seu sentido fenomenal, de um modo mais complementar face a objectivagao da natureza - por exemplo na experiencia do acordo intersubjectivo dos cientistas acerca da natureza ou do conhecimento da natureza 56. (Embora na transigao da reciprocidade eu-tu da situagao de comunicagao performativa para a perspectiva da observagao da terceira pessoa se de uma objectivagao distanciadora, que e a primeira condigao para a possibilidade da historia narrativa, permanece contudo aqui tambem de forma virtual a possibilidade da expe- riencia comunicativa e possibilita-se a compreensao hermeneu- tica da realidade simbolicamente estruturada, i. e de fenomenos do sentido que estao ligados a convengoes de sinais e intengoes subjectivas, exigencias de validade e razoes a priori.)

O facto de, assim, ser possivel, apesar de tudo, chegar a uma constituigao do sentido no modo da objectividade formal dos fenomenos tematizaveis cientificamente baseia-se, na minha opiniao, na fungao universal de representagao de proposigoes linguisticas, mais precisamente: no jogo reciproco de referenda

56 Para a tese da complementaridade cf. Apel, K.-O. Die Erkldren- -Verstehen Kontroverse in transzendentalpragmatischer Sicht, Frankfurt a. M. 1979 (Suhrkamp), bem como Apel, K.-O. Transformation der Philosophic, Frank- furt a. M. 1973 (Suhrkamp), B. II, 96ss.

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objectiva e predicagao que fazem coincidir o ambito da possivel constituigao do objecto com o da tematiza?ao linguistica do mundo.

Que isto nao esta tambem necessariamente ligado a uma objectivagao do mundo fenomenologicamente relevante no sentido da ciencia da natureza esta patente na tao polemica ambiguidade do conceito de validade objectiva: no caso das cien- cias naturais nomologicas, a validade objectiva dos juizos de conhecimento pressupoe a estrita neutralidade de valor do sentido formal da constituigao do objecto; so com a reniincia a compreensao enfatica e teleologicamente valorativa dos processos naturais e que se tornou possivel no sec. XVII a ciencia da natureza experimental e nomologica 57. No caso das ciencias sociais e humanas critico-hermeneuticas (ou das cien- cias sociais e humanas racional-reconstrutivas), pelo contrario, validade objectiva pode tambem significar a capacidade universal intersubjectiva de consenso de juizos normativamente valora- tivos - assim, por exemplo, a da reconstrugao da historia da ciencia «interna» no sentido de Imre Lakatos 58, ou a das cien- cias sociais reconstrutivas no sentido geral, tambem eticamente relevante de Jiirgen Habermas 59. Objectividade significa aqui, portanto, ja nao independencia de valorizagoes humanas em geral, mas sim apenas dependencia de valoriza^oes idiossincra- ticas. Ultimamente, objectividade deveria aqui ter o seu criterio na validade intersubjectiva de noemas eticos.

Quais sao as consequencias que se tiram desta reconstrugao critica da limitagao, que remonta a Kant, da questao da consti- tuigao transcendental do sentido como constitui?ao da forma da objectividade do mundo enquanto condi^ao de possibilidade da validade objectiva do conhecimento?

57 Cf. Apel, K.-O., «Diltheys Unterscheidung von 'Erklaren' und 'Vers- tehen' im Lichte der Ergebnisse der modernen Wissenschaftstheorie». In: Orth, E. W. (ed.), Dilthey und die Philosophie der Gegenwart, Freiburg i. Br. 1985 (Alber), 285-347.

58 Cf. Lakatos, I., «Die Geschichte der Wissenschaft und uhre rationalen Rekonstruktionen», in: W. Diederich (ed.), Beitrdge zur Wissenschaftstheorie, Frankfurt a. M. 1974 (Suhrkamp), 55-119. 59 Cf. Habermas, J., «Rekonstruktive vs. verstehende Sozialwissens- chaften», in: id., Moralbewu(3tsein und kommunikatives Handeln, Frankfurt a. M. 1983 (Suhrkamp), 29-52.

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3.2. Consequencias da reconstrugao critica da relagao entre cons- tituigao do sentido e justificagao da validade na filosofia transcendental para uma apreciagao critica da teoria «aletheia» heideggeriana da verdade, i. e do desvelamento historico-epocal do sentido do ser.

No que diz respeito, em primeiro lugar, a distingao entre dois significados de objectividade ou validade objectiva, abre-se aqui a possibilidade de uma questiona?ao da unicidade da cons- tituigdo do sentido como desvelamento do sentido do ser, mani- festamente pressuposta por Heidegger, que subjaz ao «Gestell» - desenvolvido na metafisica ocidental - da rela^ao sujeito- -objecto da ciencia e da tecnica modernas. Sem diivida ha que se conceder que o processo de disponibilizagao do mundo no sentido do «Gestell» se tornou tao dominante na Idade Moderna que determinou em grande parte no piano ideologico a auto- consciencia das ciencias sociais, humanas e da cultura. Isto exprime-se precisamente na tese da «liberdade face a valores» (Wertfreiheit) de Max Weber - e isto, na medida em que ela nao distingue entre a neutralidade valorativa principal da cons- tituigao de sentido dos objectos da natureza, que por principio exclui a suposigao de exigencias de validade e de fundamentos judicaveis, e a eventual abstengdo de valorizagdo metodicamente recomendada das ciencias hermeneuticas que, por principio, estao dependentes da compreensao de fundamentos judicaveis destas exigencias. Alem disso, o dominio do «Gestell» no piano ideologico tern como consequencia que estas mesmas ciencias, que pelas suas consequencias tecnicas tornaram a fundamen- ta^ao de uma macro-etica planetaria da responsabilidade soli- daria na necessidade mais urgente da actualidade, fa?am que uma fundamentals^ racional da etica - mediante o conceito da racionalidade valorativamente neutral - pare^a impos- sivel 60.

60 A partir da perspectiva desta situagao historica chamei repetidamente a atengao para a dificuldade e necessidade de uma fundamentacao racional da etica na era da ciencia. Cf. principalmente Apel, K.-O., Transformation der Philosophie, Frankfurt a. M. 1973, Suhrkamp, Bd. II, 359 ss., bem como id., «Weshalb benotigt der Mensch Ethik?», in: Funkkolleg Praktische Philoso- phie/Ethik, Dialoge, ed. por K.-O. Apel, D. Bohler e G. Kadelbach, Frankfurt a. M. 1984 (Fischer), 49-162, e Studientexte, ed. por K.-O. Apel, D. Bohler e K. Rebel, Weinheim/Basel 1984 (Beltz), 13-156.

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Actualmente parece-me porem ser possivel provar com evidencia irrefutavel que a constituigao do sentido e do mundo que subjaz a experiencia comunicativa - a experiencia, portanto, que e fundamental, por exemplo, nas ciencias juridicas, e que nas ciencias da natureza «tecnogomicas» 61 se constitui, de um modo complementar a objectivagao da natureza, na dimensao comunicativa da intersubjectividade da comunidade cientifica - nao pode nunca ser completamente abafada pela perspectiva - «Gesteir cientifica ideologicamente dominante. Na direcgao contraria apontam, nao apenas a controversia-explica^ao/ /compreensao que se desenvolveu continuamente - e certo que de modo muito confuso - desde Droysen e Dilthey, mas tambem, por exemplo, o facto de que o «processo de racionalizagao ocidental» do direito (inclusivamente do direito do estado e do direito constitucional por exemplo da consolidagao dos direitos humanos) se nao limitou apenas, como Max Weber sugeria, a dimensao da sistematizagao logica e da «racionalidade finalista», mas se referia pelo menos tambem - assim por exemplo na tradi^ao do direito natural e suas transformagoes trans- cendental-filosoficas - a relagao comunicativa de reciprocidade dos sujeitos humanos do direito como pessoas.

Assim, na minha opiniao, nao e actualmente necessario contrapor, como Heidegger, a era da racionalidade-«Gestell» metafisica determinada (ou pelo menos: a racionalidade da «modernidade» como tal) um pensar «pos-moderno» ja nao racional (eventualmente em nome da «alternativa da razao ») (das «Andere der Vernunft»), antes pelo contrario, os defices da (em sentido estrito objectivistica) constituigao do sentido e do mundo (ou do ocultamento do sentido do ser que, segundo Heidegger, se lhe encontra ligado) podem ser corrigidos, na minha opiniao, se se atender - em ordem a uma autodiferenciagao critico- -reflexiva da razao - a dimensao da razao, complementar ao «Gestell», e ao seu «processo de racionalizagao ocidental».

Esta possibilidade de uma alternativa a critica heidegge-

61 Cf. Apel, K.-O., «Technognomie - eine erkenntnisanthropologische Kategorie», in: Funke, G. (ed.), Konkrete Vernunft, Festschr. f. E. Rothacker, Bonn 1953 (Bouvier), 61-78.

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riana e pos-moderna da «razao» ocidental e especialmente digna de atengao porque nao diz respeito, em primeiro lugar ou apenas, a dimensao do problema da justificagdo da validade mas « antes disso» ja a dimensao da constituigdo do sentido e do mundo enquanto desvelamento do sentido do ser, posta a descoberto pelo proprio Heidegger. Quando nao se confunde a objectivagao originaria do mundo das ciencias naturais, tecnicamente media- tizadas apriori, com a objectivagao secundaria de todos os feno- menos pura e simplesmente tematizaveis do mundo - mesmo dos nao originalmente objectivos - que e possibilitada por refe- renda proposicional torna-se, na minha opiniao, claro e delimita- te o alcance fenomenologico e constituidor do sentido da concepgao-«Gestell» heideggeriana da constituigao do sentido e do mundo.

De resto, transparece aqui a suspeita de que, pelo menos em rela?ao a constitui^ao formal do sentido e do mundo no modo da objectividade - i. e dos dois sentidos possiveis de objectivi- dade por nos distinguidos - , poderia ser mais plausivel uma transforma?ao gnosio-antropologica da filosofia transcendental do que a sugestao do ultimo Heidegger, segundo a qual a cons- tituigao do sentido e do mundo como «Gestell» deveria remontar a um «acontecimento epocal» - ou uma sequencia de aconteci- mentos do desvelamento do sentido do ser, determinante para o ocidente. Na verdade, tudo leva a crer que a diferenga entre a constituigao do sentido e do mundo tecnicamente relevante e a comunicativamente relevante foi, pelo menos no piano sub- -ideologico da experiencia, sempre relevante e permanecera sempre relevante. (Mesmo na era do conceito mitico-simpatetico da natureza havia junto dos ritos totemicos de reconcilia^ao com a natureza ja tambema experiencia tecnico-experimental da natureza do saber laboral; e ainda hoje, na era do modelo- -computador da inteligencia humana, sera sempre possivel reco- nhecer a relagao de complementaridade entre a simulagao tecnica da inteligencia humana e a relagao de acordo, por ela pressuposta, entre os sujeitos humanos da tecnologia informa- tica.) A possibilidade de levar a cabo a reconstru^ao critico- -hermeneutica, mesmo a valorativamente nao-neutral, do processo de racionalizagao nao tecnico-cientificista da revolugao cultural humana sob o ponto de vista de um criterio normati- vamente relevante da validade intersubjectiva depende, e certo,

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em ultima instancia, de saber se e possivel substituir o criterio quasi-normativo do «pensamento rigoroso» no sentido do ultimo Heidegger - a «escuta obediente» da «doagao do ser» («H6rig- keit» gegeniiber dem «Seinsgeschick») - por uma fundamen- tagao ultima transcendental do princlpio normativo da etica. Isto conduz-nos a segunda consequencia da nossa reconstrugao da relagao entre constituigao do sentido e justificagao da vali- dade na filosofia transcendental e da sua transformagao destru- tiva por Heidegger.

A consequencia mais importante no sentido do resultado provisorio (cf. acima), da nossa interpretagao de Heidegger - i. e da distingao e relacionamento renovado da questao da constituigao do sentido e da questao validade - da-se, na minha opiniao, a partir do alargamento, inaugurado por Husserl, da problematica da constituigao do sentido e do mundo, limitada formalmente por Kant, no sentido da plenitude (Fiille) concreta do conteudo do sentido da nossa experiencia - expressa linguis- ticamente - do Lebenswelt. Um tal alargamento tern, nomea- damente, a sua questao-pressuposto plausivel - a identificagao das condigoes da constituigao do sentido com as condigoes de justificagdo da validade ja nao pode ser mantida. Isto porque o desmoronar do pressuposto da constituigao do sentido como abertura linguistica do mundo remete, de facto, para as condi- goes historico'temporais de constituigao do mundo iluminadora- -ocultadora elaboradas por Heidegger.

Alem disso, a relagao da constituigao do sentido condicio- nada historicamente com a possivel justificagao da validade nao pode ser concebida, no sentido da conhecida distingao entre genese e valor (Geltung), ser trivializada transcendental- -filosoficamente. A questao e nao apenas de que cada «desco- berta», independentemente da sua validade, tern de suceder sob condigoes temporais - que, eventualmente, podem ser de todo casuais - (neste sentido a prorpia razdo foi naturalmente tambem, de modo trivial, «originada» numa dada altura, i. e so entao e que surgiu); a questao e antes de mais que as consti- tuigoes historico-temporais do sentido e do mundo, veiculadas pela linguagem, determinam antecipadamente as direcgoes e limites das questoes possiveis e, assim, o foco e horizonte de possiveis juizos verdadeiros ou falsos - supondo que todos os juizos de conhecimento podem em principio ser concebidos como

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respostas a questoes possiveis 62. Assim, nao existe para as «formas da vida» socio-culturais uma relagao externa mas sim uma relagao interna entre constituigao historico-temporal do sentido e do mundo e a verdade, i. e validade que e para ela possivel (Os Hopi 63, no ambito da sua abertura linguistica do mundo, nao puderam com toda a probabilidade por a questao que no ocidente conduziu as respostas da ciencia da natureza moderna).

Contudo, esta relagao interna entre constituigao do sentido e possivel verdade ou validade nao significa de todo que seja possivel reduzir a questao das condigoes de possibilidade da validade a questao das condi?6es de possibilidade da constituigao do sentido - tal como o foi para Kant, uma vez que tomou como pressuposto a restrigao a questao das condigoes da constituigao do sentido formal de objectividade. Uma tal redugao da questao das condigoes de validade nao e hoje possivel, na minha opiniao, quer no sentido da filosofia transcendental kantiana (que tema- tiza a relagao constituidora - historicamente independente - do sujeito transcendental do conhecimento), quer no sentido do historismo total heideggeriano e pos-heideggeriano da historia do ser.

A especificidade e a deficiencia da transforma^ao husser- liana da filosofia transcendental consiste, na minha opiniao, em que a estrategia de resolugao da filosofia kantiana do sujeito transcendental tambem permanece sob o pressuposto de uma problematica da constitui?ao do sentido nao delimitada no conteiido. Husserl relacionou pela primeira vez - indo para alem de Kant - , por um lado, a questao da constituigao trans- cendental do sentido e das suas condigoes com a plenitude concreta de conteiido de todos os «noemas» possiveis do «Lebenswelt»; por outro lado - contudo - quiz reconduzir tambem de novo - tal como Kant - a resposta a questao da validade intersubjectiva do conhecimento a resposta a questao da constitui?ao do sentido - de tal modo que, nomeadamente, reconduziu a constituigao do sentido nao delimitada no conteiido

62 Cf. Gadamer, H.-G., Wahrheit und Methode, Tubingen 21965 (Mohr/Siebeck), 344 ss.

63 Para tanto cf. Gipper, H., Gibt es ein sprachliches Relativitdtsprinzip? Untersuchung zur Sapir-Wohrf-Hypothese, Frankfurt a. M. 1972 (Fischer).

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- sem por principio atender a sua media^ao linguistica! - as realizaQoes intencionais de uma «consciencia transcendental » que sao sempre possiveis. Uma vez que nao levou em conta a dependencia da constituigao dos «noemas» ou «significados» face ao meio semiologico das linguagens concretas e, assim, face a formas de vida socio-culturais e historicas 64, pode evitar a problematica da constituigao historico-temporal do sentido e do mundo posta por Heidegger e, assim de algum modo, enfra- quecer transcendental-filosoficamente a sua descoberta do «Lebenswelt» como ambito da constituigao pre-cientifica do sentido.

De que modo porem possibilita ainda esta recondu^ao do programa husserliano da filosofia transcendental a abertura de uma possibilidade para uma alternativa a transformagao e destruigao heideggerianas da filosofia transcendental? Nao sera a alternativa necessaria para a redugao husserliana da justifi- cagao da validade a uma constituigao do sentido fundada no sujeito transcendental da intencionalidade a redugao da justifi- cagao da validade as constituigoes do sentido ontologico- -historicas, tal como foi sugerida por Heidegger?

3.3. Para uma repetigao transcendental-pragmatica da pre- -estrutura do ser-no-mundo «sempre ja» interpretador em «Sein und Zeit»

Na minha opiniao, a alternativa a redugao onto-historica e tambem possibilitada pela possivel validade da compreensao do mundo pela mesma reflexao (na linha de uma filosofia trans- cendental transformada) que obriga, antes de mais, a pressupor uma constituigao historico-temporal do sentido e do mundo: mediante a consideragao da mediagdo linguistica da compreensao do mundo. A consideragao da abertura linguis- tica do sentido e do mundo remete, nomeadamente, nao apenas para a inegavel historicidade da constituigao do sentido) ja no piano do acordo acerca do sentido das nossas expressoes linguis-

64 Cf. para tanto a critica de Derrida, J., La voix et le phenomene: Intro- duction au probleme du signe dans la phenomenologie de Husserl, Paris 1967 (PUF).

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ticas ha que pressupor uma exigencia do sentido e da validade, que - a ser possivel - so pode ser desempenhada de modo defi- nitive* mediante o possivel consenso de uma comunidade ilimi- tada e ideal de comunicagdo e interpretagdo (Peirce e Royce) 65. Numa filosofia transcendental semiologicamente transformada, esta «ideia reguladora» no sentido de Kant toma de algum modo o lugar do sujeito transcendental da constituigdo do sentido (por exemplo o lugar do sujeito de Husserl, concebido transcendental- -solipsisticamente ao qual bastariam as suas realizagoes inten- cionais e solitarias para garantir a validade universal e intersubjectiva dos significados linguisticos). Sob o pressuposto do consenso definitivo da comunidade interpretadora - ao qual, naturalmente, jamais podera corresponder qualquer facto empi- rico - o desempenho universalmente valido das exigencias de validade e do sentido justificaveis 66 seria, em primeiro lugar, conjugavel com a constituigdo do sentido e do mundo (i. e seria possivel que todos se pudessem pelo menos entender). E sob este pressuposto ideal e sob o pressuposto adicional do esgota- mento de todos os criterios disponiveis de verdade - princi- palmente da evidencia - da comunidade de investigadores ilimi- tada, seria tambem possivel o desempenho definitivo das exigen- cias de verdade discursivamente justificaveis como exigencias de validade e das exigencias de correcgdo normativas, eticamente iustificaveis dos membros da comunidade de comunica?ao

65 Cf. Apel, K.-O., «Szientismus oder transzendentale Hermeneutik? Zur

Frage nach dem Subjekt der Zeicheninterpretation in der Semiotik des Prag- matismus», in: id., Transformation der Philosophic, Frankfurt a. M. 1973, (Suhr- kamp), Bd. II, 178-219.

66 Esta concepgao normativa do significado linguistico que em Ch. Peirce esta implicada na ideia do « ultimate logical interpretant» dos sinais como pressuposto do consenso de verdade definitivo nao e, naturalmente, compativel nem com a identificagao do significado com o uso fdctico (no ambito de um jogo de linguagem ou de uma forma da vida), sugerida por Wittgens- tein, nem com a funda^ao ontologico-historica do sentido mediante a aber- tura linguistica do mundo, sugerida por Heidegger; entre estas posicoes nao e possivel estabelecer uma media^ao, se se distinguir entre o problema da constituic.ao do sentido historicamente condicionada e o da justificagao ideal e universal da validade no sentido de uma pragmatica transcendental da

linguagem. Para tanto cf. Apel, K.-O., «Linguistic Meaning and Intentionality», in: Silverman, H. e D. Welton (eds.), Critical and Dialectical Phenomenology, Albany 1987 (State Univ. of New York Press), 2-53.

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ideal 67 necessariamente pressuposta na comunidade ideal daqueles que buscam a verdade.

Nesta suposigao contra-factica do ideal da justificagao consensual da validade, que foi concebida pela primeira vez por Charles Pierce, reside, de algum modo, a instancia contraria que, pressuposta face a temporalidade e historicidade da cons- tituigao do sentido e do mundo factualmente, pode ser reivin- dicada pelos logos das nossas exigencias discursivas de validade - o qual nao se pode negar a si mesmo sem cair em autocontradigao - e pode, e deve, ser contraposta ao poder aparentemente invencivel do tempo e da historia do ser (e da variedade infinita dos jogos de linguagem e formas de vida facticas que lhe correspondem). E claro que esta suposigao contrafactica do ideal da justificagao consensual da validade nao esta em contradigao com a dependencia factica da nossa capacidade de questionar - e, assim, com a possivel verdade e falsidade de juizos de conhecimento - face a constituigao historico-temporal do sentido e do mundo no meio linguistico. No entanto ele deve insistir no facto de que, a partir da depen- dencia mostrada por Heidegger, nao se segue que a constituigao limitada do sentido pressuposta condiciona unilateralmente a justificagao da validade.

Face a multiplicagao e a diferenciagao das linguagens ou dos jogos de linguagem - que sem diivida limita facticamente o poder-pensar - , o postulado da justif icagao consensual da vali- dade funciona, em primeiro lugar, como ideia reguladora da traduzibilidade principal e da tradugao progressiva ou interpre- tagao hermeneutica; em segundo lugar, tambem, como ideia reguladora da investigagao cientifica progressiva enquanto busca da verdade sob as condi^oes restritivas da constituigao abstrac- tiva do sentido ou do objecto. Mas ja estas condigoes, na minha opiniao, nao se constituem de modo algum so na dependencia do pressuposto-« piano de fundo» onto-historico da pre-

67 Cf. Apel, K.-O., «Szientismus oder transzendentale Hermeneutik? Zur Frage nach dem Subjekt der Zeicheninterpretation in der Semiotik des Prag- matismus», in: id., Transformation der Philosophie, Frankfurt a. M. 1973, (Suhr- kamp), Bd. II, 178-219, bem como id., «Fallibilismus, Konsenstheorie der Wahrheit und Letztbegrundung», in: Forum fur Philosophie Bad Homburg (ed.), Philosophie und Begrundung, Frankfurt a. M. 1987 (Suhrkamp), 116-211.

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HEIDEGGER E A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL 457

-compreensao pre-cientifica do Lebenswelt. Pelo contrario, elas constituem-se tambem ja na dependencia de processos de apren- dizagem no sentido do « trial and error » e, na era da ciencia, isto significa: na dependencia de processos do desempenho discursivo da validade ou da rejei?ao por meio de criterios de prova ou falsificagao metodologicamente controlados. Final- mente, o postulado da justificagao consensual da validade funciona tambem como ideia reguladora para a formagao do consenso sob re a correc^ao daquelas normas da moral ou do direito que nao sugerem aos individuos ou aos povos a reali- zagao da vida perfeita, antes prescrevem os criterios univer- sais restritivos e universalmente validos, sob os quais e possivel a coexistencia segundo os mesmos direitos e, alem disso, a responsabilidade reciproca solidaria e a cooperagao na reali- zagao pluralista da vida perfeita 68.

E claro que - no piano do acordo que e verif icavel como um facto - permaneceremos sempre no ambito de influencia dos pressupostos-« piano de fundo» historicos e diversamente socioculturais do Lebenswelt. Assim, pode parecer para uma perspectiva que se apoia em Heidegger (e Wittgenstein), que so toma a serio as condigoes fdcticas da compreensao, que so ha que contar ultimamente com um «acontecer do sentido e da verdade» - no sentido da «fusao de horizontes» e do «compreender diversamente » dependente do contexto 69. Contudo uma tal posi^ao, que so ja pensa em categorias do «acontecer», torna-se cega face as exigencxias de validade do homem que se incluem performativamente no acordo comuni- cativo - ultimamente do discurso reivindicado pelo proprio filo- sofo - qUe so e compreensivel sob o pressuposto de ideias reguladoras da possivel justificagao universalmente valida e consensual da validade.

0 proprio Heidegger, na fase da sua «ontologia-existencial», estabeleceu ainda algo semelhante a uma instancia normativa eticamente relevante face a temporalidade da compreensao do ser: tratava-se do chamamento da consciencia a «autenticidade»

68 Cf. Apel. K.-0., Diskurs und Verantwortung, Frankfurt a. M. 1988 (Suhrkamp).

69 Cf. Gadamer, H.-G., Wahrheit und Methode, Z8U.

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da existencia em cada caso propria, que se podia derivar do progredir para a morte como possibilidade inultrapassavel do ser-ai individual 70. Ai situava-se, de algum modo, uma ideia reguladora - universalmente valida e formal, embora impotente no conteiido - que aparentemente poderia evitar uma sujeigao moral do homem ao tempo do destino do ser. Em seguida - na fase actualmente relevante - a identificagdo decidida do indi- viduo com o destino do seu povo - que no «kairos» do instante da historia mundial deve ser reconhecido e decisivo pelo condutor politico determinante - tomou o lugar do chamamento da consciencia existencialmente determinante 71. Finalmente - no periodo do pos-guerra - Heidegger parece querer retirar todos os criterios normativos para o pensar e para o proprio agir da atitude da «escuta obediente» (do pensar meditativo (andachtig) e, nessa medida rigoroso) do « destino do ser» - que se temporaliza ainda a partir do futuro.

Em todo o caso, Heidegger, o pensador que descobriu o ser temporal - i. e que se temporaliza - (que nao deve ser confun- dido com a essencialidade (Seiendheit) abstracta da ontologia tradicional), nunca pode mobilizar uma instancia no sentido da razao oposta ao tempo: por exemplo, algo semelhante aos postu- lados morais e as ideias reguladoras de Kant que, por um lado - pela primeira vez! - , relacionam ideias, como puras ficQoes heuristico-normativas, com o tempo como futuro indisponivel e, por outro lado, face ao poder aparentemente invencivel do tempo, manifestam e consolidam, a partida, de certa maneira, a exigencia racional da validade universal (no sentido da verdade e da correcgao normativa) como potencia inata e irredutivel. Este defice fundamental de uma filosofia do ser puramente orientada pelo tempo parece depender do facto de que Heidegger, ja em Sein und Zeit aquando da analise da «pre- -estrutura» do «ser-no-mundo» interpretador, nunca justificou transcendental-reflexivamente a - imprescindivel - exigencia universal de validade e os pressupostos da sua propria analise

70 Cf. Heidegger, Martin, Sein und Zeit, §§ 54-60. 71 Para tanto cf. os estudos em Gethmann-Siefert, A. e O. Poggeler (eds.),

Heidegger und die praktische Philosophie, Frankfurt a. M. 1988 (Suhrkamp), bem como Habermas, J., Introducao a Farias, V., Heidegger und der National- sozialismus, Frankfurt a. M. 1989 (Fischer).

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HEIDEGGER E A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL 459

filosofica das estruturas (existencial-ontologicas) do ser-no- -mundo. Em vez disso, a sua analise «decaiu» 72 imediatamente de algum modo sobre as - sem duvida ate entao quase igno- radas - estruturas condicionadas historica e contingentemente da «facticidade» do ser-no-mundo «em cada caso ja» interpre- tador como «projecto lan£ado»: as estruturas daquilo a que hoje se chama «Lebenswelt» e dos seus pressupostos-« piano de fundo» (cf. acima). A «Kehre» tardia do filosofar heideggeriano no sentido da derivagao do «Projecto lan<;ado» a partir do «acon- tecimento» da doagao do ser ja estava assim inscrita, uma vez que ja nao se lhe podia opor o logos do conceber filosofico como instancia transcendental contraria. 0 caminho de destranscen- dentaliza?ao que hoje parece plausivel estava, assim, aberto.

No entanto, a possibilidade desta viragem repousava - pelo menos para Heidegger - no facto de que a parte da pre- -estrutura do ser-no-mundo interpretador a analisar, que contem as exigencias especificas de validade e os pressupostos do seu desempenho no piano da filosofia, tinha sido a partida ultra- passada. Resumidamente: foi introduzido um dejice reflexivo que se poderia caracterizar como esquecimento do logos - embora o termo « logos » nao deve ser entendido como o « logos », intencionado por Heidegger (e Derrida), do processo apresen- tador de disponibilizagao do ente no sentido do «Gestell», mas sim o logos consideravelmente mais alargado que o acordo comu- nicativo - ultimamente na forma reflexivamente indiscutivel do proprio discurso filosofico - tern de pressupor e reivindicar 73.

Para uma transforma^ao da filosofia transcendental orien- tada linguistico-pragmaticamente impoe-se aqui a tarefa de uma repetigdo da analise heideggeriana da pre-estrutura do ser-no- -mundo interpretador. Ela teria de evitar o defice reflexivo do esquecimento do logos sem ignorar a descoberta heideggeriana dos pressupostos-plano de fundo historico-temporais do Lebens- welt - principalmente da abertura linguistica do mundo no sentido da constituigao aclaradora e ocultadora do sentido e

72 «Verfiel». Apel joga aqui com o conceito heideggeriano de «Verf alien » tematizado em Sein und Zeit\ cf. principalmente o § 38, p. 175 ss.

73 Cf. Apel, K.-O., «Die Logosauszeichnung der menschlichen Sprache. Die philosophische Trageweite der Sprechakttheorie», in: Bosshardt, H.-G. (ed.), Perspektiven auf Sprache, Berlin 1986 (W. de Gruyter), 45-87.

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460 REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA

do mundo. E claro que esta tarefa nao pode ser resolvida pelo recuo a filosofia transcendental do sujeito transcendental da consciencia - quer mediante uma restrigao da problematica da constitui^ao do sentido, como em Kant, quer no sentido de Husserl mediante o recurso a uma constituigao do sentido que e concebida como realiza^ao intencional de um sujeito autarca no sentido do «solipsismo transcendental » 74. Em vez disso importa hoje, na minha opiniao, no inicio do trabalho filoso- fico - bem como no inicio de qualquer analise do Lebenswelt - reflectir sobre os pressupostos do discurso argumentative) que sao transcendentalmente necessarios (i. e que nao podem ser negados, sob pena de autocontradi^ao performativa) sobre os quais tern «ja em cada caso» necessariamente de se apoiar todo aquele que argumenta - e isto significa tambem: todo aquele que na individualizagao empirica pensa. O que importa e o certificar-se em «reflexao estrita» 75 daqueles pressupostos aos quais ha que recorrer, mesmo quando se quer atender aos pres- supostos contingentes e historico-temporais do pensar, contanto que se fa$a uso da argumentagao. Este tra^o de abertura do jogo de linguagem filosof ico, que aqui foi proposto, e sem duvida bem esoterico e, na actualidade, impopular.

KARL-OTTO APEL

(Tradugao do alemao por Jorge Neves)

74 Cf. Husserl, E., Cartesianische Meditationen und Pariser Vortrdge, Den Haag 1966 (Nijhoff), § 13, bem como a V/ Meditacao.

75 Cf. Kuhlmann, W., «Reflexive Letztbegrundung», in: Zeitschrift fur philosophische Forschung 35 (1981) 3-26; e id., Reflexive Letztbegrundung. Unter- suchung zur Transzendentalpragmatik, Freiburg/Miinchen 1985 (Alber).

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BIBLIOGRAFIA SOBRE HEIDEGGER 461

Resumo

O artigo interpreta o pensamento de Heidegger como transformacao da filosofia transcendental que conduz a sua radicalizacao e, ultimamente, destruicao. A este projecto contrapoe Apel a sua tentativa de estabelecer uma filosofia transcendental linguistico-pragmatica que procura estabelecer um compromisso entre as tematicas da constituicao antepredicativa do sentido e da exigencia de validade intersubjectiva.

Constitution du sens et justification de la validite: Heidegger et le probleme de la philosophie transcendantale

Resume

L'article interprete la pensee de Heidegger comme transformation de la philosophie transcendantale qui conduit a sa radicalisation et, en dernier lieu, a sa destruction.

A ce projet, Apel oppose sa tentative d'etablir une philosophie transcen- dantale linguistique pragmatique qui cherche a faire un compromis entre les thematiques de la constitution antepredicative du sens et de l'exigence de vali- dite intersubjective.

Constitution of Sense and Justification of Validity: Heidegger and the Problem of Transcendental Philosophy

Abstract

The author interprets Heidegger's thought in terms of a transformation of transcendental philosophy, leading to its radicalization and finally its destruc- tion. In the place of this project, the author proposes a transcendental philo- sophy of a linguistic and pragmatic kind, wich seeks to establish a compro- mise between the thematics of ante-predicative constitution of sense and the demand for intersubjective validity.

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