Appiah, Kwame - Velhos Deuses, Novos Mundos

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    K wame A nthony A ppiah

    NA CASA DE MEU PAIA frica na filosofia da cultura

    TraduoVera Ribeiro

    Reviso de traduoFernando Rosa Ribeiro

    Doutor em Antropologia pela Universidade de Utrecht, Pases BaixosPesquisador do Centro de Estudos Afro-Asiticos das Faculdades Cndido MendesProfessor-visitante do Museu N acional da UFRJ

    COf lTRf lPOOTO

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    Vedada, nos termos da lei, a reproduo totalou parcial deste livro sem autorizao da editora.

    r-----"nivers;T;---e deProjeto grficoRegina Ferraz

    Reviso tipogrficaTereza da Rocha

    la edio, maio de 1997

    Ttulo original: In my father's house : Africa in the philosophy of cultureC) Kwame Anthony Appiah 1992

    da traduo, Vera Ribeiro 1997Direitos adquiridos para a lngua portuguesa por

    CONTRAPONTO EDITORA LTDA.Caixa Postal 56066 C EP 22292-970

    Rio de Janeiro, RI BrasilTelefax: (21) 2544-0206 / 2215-6148Site: www.contrapontoeditora.com.br

    E-mail: [email protected]

    3 reimpresso, maro de 2010Tiragem: 1.000 exemplares

    Appiah, Kwame Anthony.Na casa de meu pai : a Africa na filosofia da cultura / Kwame AnthonyAppiah ; traduo V era Ribeiro ; reviso de traduo Fernando Rosa Ribeiro.

    Rio de Janeiro : Contraponto, 1997.304 p.Traduo de : In my father's house : A frica in the philosophy of culture.Inclui bibliografia.ISBN 978-85-85910-16-71. Antropologia. 2. Cultura Filosofia. I. Ttulo.

    CDD 301.2

    ParaGyamfi, Anthony, Per Kodjo, 6miwa, Lamide,Tobi, Mame Yaa, Maggie e Elizabeth

    e em memria de meu paiJoe Appiah1918-1990

    Abusua-dua yentwa

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    Sumrio

    PrefcioAgradecimentos17

    A inveno da frica19Iluses de raa53Pendendo para o nativismo77O mito de um mundo africano111A etnofilosofia e seus crticos127Velhos deuses, novos mundos155O ps-colonial e o ps-moderno193Estados alterados221

    9. Identidades africanas241Eplogo: Na casa de meu pai253Notas269Bibliografia289ndice onomstico299

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    154a casa de meu paisivo. Comeo por dois captulos que refletem sobre modos bem diferentes depensar na vida intelectual africana contempornea: um, no discurso filosficosobre "tradio e modernidade"; e o outro, nas discusses da situao ps-colonial. No ltimo par de captulos, examino, primeiramente, as questesque cercam o nacionalismo e as ligaes com o Estado moderno; e depois,mais especulativamente, esboo as possibilidades de uma identidade pan-afri-cana-repensada." 6V elhos deuses, novos m undos"Bima ya beto ke dya bambuta me bik i sa."O que come mos os ancestrais nos mostraram.

    Glosa: "Reconhecemos o que com estvel porque os ancestraisno-lo mostraram. Sim plesm ente seguimos os ancestrais."Provrbio mbiem

    p ara se haverem com o que significa serem modernos, os intelectuais oci-dentais e africanos tm interesses que devem compartilhar. Pois a natu-reza e o sentido da modernidade so um tema que se repete na imagina-o ocidental moderna. Quer nos romantismos reacionrios ou nas celebraesfuturistas do novo, quer num otimismo confiante nas capacidades aprimo-rativas da cincia moderna ou num anseio saudoso pelo senso tradicional decomunidade, no alienado, no apressado e, a esta altura, pouco conhecido, grande parte do pensamento ocidental sobre a vida intelectual e social ba-seiaum entendimento -do- que ser moderno e nas_ reaes, positivas ounegativas, ao fato da modernidade.Para o intelectual africano, claro, o problema se e, em caso afirmativo,como nossas culturas devem tornar-se modernas. O que para o Ocidente um fait accompli a rigor, poderamos definir a modernidade como a forma-o intelectual e social caracterstica do mundo industrializado oferece maioria dos africanos, na melhor das hipteses, panoramas esperanosos, e napior, perspectivas a temer. Mas, obviamente, o que significa ser moderno umapergunta que africanos e ocidentais podem formular juntos. E, como pretendosugerir, nenhum de ns compreender o que a modernidade enquanto nocompreendermos uns aos outros.Uma vez que sou filsofo e, por conseguinte, intelectualmente perverso, comearei tentando compreender o moderno atravs de sua anttese, o tra-dicional. Quero tentar expor alguns erros naturais de nosso pensamento sobre apolaridade tradicional-moderno e, com isso, esclarecer algumas das mudanasem andamento na frica e os modos pelos quais elas a tornaram e no tor-naram mais parecida com o Ocidente. Quero examinar alguns aspectos dacultura tradicional entendida como significando simplesmente a cultura an-

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    terior aos imprios europeus , tal como manifestada num local da frica, edepois examinar alguns dos modos pelos quais a experincia de colonizao e amaior interao com o Ocidente produziram unia cultura em transio da tra-dicL para a modernidade, uma cultura que, na falta de uma palavra melhor,chamarei de no tradicional.'Proponho, no entanto, comear por um lugar cuja estranheza para a maioriados europeus e norte-americanos e cujo carter natural para muitos africanos uma medida da distncia entre Nairbi e Nova York, ou seja, por aquilo que,com certo desagrado, chamarei de "religio". que um dos marcos da vida tra-dicional a extenso em que as crenas, atividades, hbitos mentais e compor-tamentos em geral so perpassados pelo que os europeus e norte-americanoschamariam de "religio". Na verdade, o debate filosfico sobre o status da reli-gio tradicional tornou-se realmente central na filosofia africana recente justa-mente porque o entendimento da religio tradicional central para as questesconceituais suscitadas pela modernizao; e a urgncia e relevncia dessa ques-to para os problemas cruciais da poltica pblica constituem uma das razespor que se verifica ser mais instigante a discusso filosfica da religio na fricado que na filosofia da religio no Ocidente.

    Se reluto em usar sem ressalvas o termo "religio", porque a religio noOcidente contemporneo, grosso modo, to diferente do que na vida tradi-cional africana, que enunci-la nas categorias ocidentais equivale tanto a susci-tar mal-entendidos quanto a promover o entendimento. Mas os exemplos quequero discutir devero ajudar-me a esclarecer esse aspecto. Comecemos, pois,pela descrio de urna cerimnia tradicional.O cenrio algum lugar na Achanti rural. O momento o presente etno-grfico ou seja, o passado. Ao chegarmos, uma figura masculina, trajandouma saia de capim e amuletos no pescoo, dana ao som de tambores e cnticos.De repente, ele salta num riacho prximo e emerge segurando alguma coisacontra o peito. Colocaisso num tacho de lato e soca-o juntamente com argila(que depois descobrimos provir do rio sagrado Tano) e com folhas ou cascas devrias plantas, um pouco de ouro em p e uma coisa chamada "aggrey bead".'

    Durante a triturao, a figura enuncia palavras que podemos traduzir da se-guinte maneira:Deus, Kwame, Aquele - em -Quem-os-homens-se-apiam-e-no-caem; Deu-sa da Terra, Yaa; Leopardo e todos os animais e plantas da floresta, hoje sexta-feira sagrada: e tu, Ta Kwesi, ns te estamos instalando, ns te estamosempossando para que tenhamos vida, para que no morramos, para que no

    Tambm aggry bead ou aggry bead; trata-se de um tipo de conta de vidro variegada, que se en-contra enterrada no cho em Gana. (N. da T.)

    nos tornemos impotentes. Ao chefe de aldeia desta aldeia, vida; aos homensmoos da aldeia, vida; quelas que do luz, vida; s crianas da aldeia, vida.Espritos das rvores, ns vos invocamos a todos para que entreis aquiagora, e deixeis que tudo o que h em nossa cabea seja posto neste santurio.Quando te invocarmos nas trevas, quando te invocarmos de dia, se te dis-sermos "Faze isto para ns", ser isto o que fars.E so estas as regras que aqui estabelecemos p ara ti, deus nosso: se um reivier de algum lugar, e se vier a ns ou nossos filhos ou nossos netos, e disserque est indo guerra, e se vier dizer-te isso: e se ele for lutar e no obtiver avitria, preciso que no-los digas; e se ele for para ser vitorioso, dize a verda-de tambm.A perorao continua: e o esprito repetidamente solicitado a dizer averdade sobre as origens do mal que adoece os homens. O sacerdote termina

    dizendo:Trouxemos cordeiros e urna galinha, e trouxemos aguardente de palma, queestamos para te oferecer, para que mores nesta aldeia e preserves sua vida(...).Talvez, no futuro, o rei de A chanti possa vir dizer, "Meu filho Fulano estdoente", ou talvez "Um ancio est doente"; ou poder enviar um m ensageiropara pedir que vs com ele; e nesse caso, poders ir, e no pensaremos queests fugindo de ns.Os lbios de todos ns dizem estas coisas juntos.

    Fazem-se ento os sacrifcios dos animais e deixa-se que seu sangue seja vertidono tacho de lato. Durante esse processo, possvel que outro sacerdote entreem transe e entoe o cntico de outro esprito local menor.Essa descrio uma parfrase aproximada da publicada pelo capito R. S.Rattray na dcada de 1920 3 e, com algumas modificaes, seria possvel encon-trar urna cerimnia idntica no empossamento de um esprito um 3bosom num santurio atual.Talvez no haja nada de intrigante no ritual que descrevi. Procurei, delibe-radamente, fazer o relato de uma srie de atos que dificilmente as pessoas defora da cultura acreditariam ser capazes de lograr xito, mas em que certamentetodos podemos pelo menos imaginar acreditar. No entanto, esse ritual faz partede um mundo religioso que tpico das muitas culturas tradicionais cujos mo-dos de pensar afiguraram-se intrigantes etnografia e filosofia ocidentais. possvel comearmos a compreender a razo disso se nos perguntarmos,no em que que esses atores acreditam, mas como foi que eles passaram a teressa crena. A maioria dos intelectuais fora de Achanti julga saber, afinal, queesses espritos no existem. Que, apesar de todos os apelos da orao do sacer-dote, nenhum agente invisvel ir habitar no santurio; ningum responder sperguntas "Que fez esta pessoa adoecer?", "Ser que venceramos, se fssemos

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    158a casa de meu pai Velhos deuses, novos mundos59guerra?", ou "Como devemos curar o ancio?". No entanto, eis a urna culturaem que, ao menos por vrias centenas de anos, as pessoas tm criado santuriosexatamente assim, tm-lhes formulado exatamente essas perguntas, e tm pedi-do spritos que elas crem estar ali que executem exatamente essas tarefas,A esta altura, eras decerto deveriam saber, se so racionais, que isso no vai fun-cionar, no ?Pois bem: o apelo a urna noo de racionalidade, nesta ltima pergunta, nosleva a um territrio caracteristicamente filosfico; e, em parte, pelo que ele

    nos diz sobre a racionalidade, sobre o mbito e a funo prprios da razo, queesses rituais tm uma importncia filosfica. Se insistirmos em perguntar como possvel que essas crenas se mantenham, frente a urna falsidade que patente,ao menos para algum com urna formao de estilo moderno, acabaremos vol-tando questo de saber se realmente compreendemos o que acontece.Convm, entretanto, comearmos por algumas distines. J fiz aquela que aprimeira distino crucial: entre compreender o contedo das crenas suben-tendidas nos atos de uma prtica religiosa, de um lado, e compreender de quemodo essas crenas se estabeleceram na cultura, de outro. Pois, a meu ver, preciso termos em mente ao menos estes trs tipos separados de compreenso:primeiro, compreender o ritual e as crenas que lhe so subjacentes; segundo,compreender as origens histricas do ritual e das crenas; e terceiro, compreen-der o que os sustenta.

    Uma das vantagens de estabelecer essas distines exatamente a espciede distino freqentemente apontada como sendo tpica do palavrrio lgicotrivial que torna a filosofia acadmica to desagradvel para os que no a prati-cam que isso nos permite destacar algumas questes. Assim, antes de maisnada, podemos dizer que, para compreender esses atos ritualsticos, o que ne-cessrio -aquilo que se faz necessrio no entendimento de qualquer ato, ouseja, compreender quais crenas e intenes lhe so subjacentes, a fim de saber oque os atores pensam 'kar fazendo, o que esto tentando fazer. Na verdade, seno pudermos fazer isso, nem sequer saberemos dizer de que ritual se trata.Dizer que o que est acontecendo aqui que essas pessoas esto convidando umesprito a assumir seu lugar num santurio j dizer algo sobre suas crenas esuas intenes. Equivale a dizer, por exemplo, que elas acreditam na existnciade um esprito, Ta Kwesi, e tambm acreditam que pedir a esse esprito parafazer alguma coisa uni modo de lev-lo a faz-la; equivale a dizer que elasquerem que o esprito habite no santurio.

    Talvez isso seja bvio; talvez no reste nenhum behaviorista no mundo, ou,pelo menos, no na pequena parcela dele que poderia ler este livro. Assim, talvezeu no precise dizer que no apenas a execuo de certos 'movimentos cor-porais pelo sacerdote e pelos outros aldees que compe esse ritual. Mas, im-

    portante lembrar que voc e eu poderamos executar esses mesmssimos mo-vimentos para demonstrar a forma do ritual; e que, se ns o fizssemos com essaorientao, no estaramos pedindo a ningum muito menos a Ta Kwesi para fazer o que quer que fosse. Portanto, sabemos que o que est ocorrendo um ato religioso precisamente por acharmos que esses atos achanti especficostm uma certa inteno. O que o torna religioso o que as pessoas esto tentan-do fazer.Qualquer explicao terica desse ritual, portanto, deve comear por procu-rar compreender quais so as crenas e intenes que o instrumentam. Mas, claro, no basta isso para compreender o ritual. Pois certamente h aspectosdele o uso do ouro em p e da conta de vidro na composio do contedo dotacho de lato, por exemplo que talvez continuem precisando de explicao. bem possvel descobrirmos que, embora o sacerdote tenha a inteno de colo-car o ouro em p no tacho, ele s o faz porque isso, como talvez nos dissesse, fazparte do "como os ancestrais invocavam um esprito"; ou seja, talvez ele notenha nenhuma razo especial prpria para utilizar o ouro em p.Que significa dizer que isso ainda requer explicao? O sacerdote faz uniaporo de coisas na execuo do ritual, sem nenhuma razo especial que lheseja prpria. Levanta e abaixa uma vara enquanto dana, e o faz delibera-damente: faz parte de sua inteno, ao danar, erguer e abaixar a vara. No en-tanto, talvez no encontremos nada que explique isso.Penso que o primeiro passo para responder pergunta "Por que o ouro emp requer explicao?" distinguir entre dois tipos de coisas que o sacerdote fazna execuo do ritual. De um lado, h coisas como o acrscimo de ouro em p,que o sacerdote acredita ser uma parte essencial do que est fazendo. Deixar defora o ouro em p seria deixar de fazer algo essencial para que a execuo consi-ga levar o esprito para seu novo santurio. Esses componentes essenciais doritual devem ser contrastados com o que podemos chamar de componentes"acidentais". Talvez o sacerdote enxugue o suor do nariz medida que a danaacelera seu ritmo e, ao ser indagado, nos diga que isso, evidentemente, algo deque o ritual poderia prescindir. Se o erguimento da vara e o enxugamento dosuor forem acidentais na execuo, por isso que no precisaremos explic-lospara compreender o ritual. Assim, parte do motivo pelo qual o ouro em p re-quer uma explicao est em ele ser essencial ao ato ritualstico.Ora, ao dizer que o ouro em p essencial, j estamos fornecendo parte desua explicao. Ele est ali porque, sem ele, acredita-se que o ato seja menoseficaz, ou talvez no tenha nenhuma eficcia. Mas, persiste unia pergunta. Porque acrescent-lo faz diferena? Afinal, provvel que todos ns tenhamos an-cestrais, bisavs, por exemplo, que tinham remdios para o resfriado comumaos quais prestamos pouca ou nenhuma ateno. Por que haveria o sacerdote deachar que vale a pena apegar-se a esse costume ancestral, sobretudo se no ti-

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    160a casa de meu paivesse a menor idia da razo de os ancestrais o considerarem parte essencial dainvocao de um esprito?Nesse ponto, penso eu, muitos antroplogos culturais se disporo a dizerque o ouro em p nos chama a ateno porque obviamente simboliza algo.Podemos inventar nossas prprias verses. Suponhamos, a bem da discusso,que o' que ele simboliza seja a doao de riqueza ao esprito, uma espcie deadoante espiritual para esse contrato que est sendo feito entre a aldeia e o

    esprito. A plausibilidade dessa sugesto no deve desviar-nos do que h deproblemtico nela: pois, se essa a razo da presena do ouro em p, por que osacerdote no sabe disso? A resposta bvia que ele est apenas executando aforma prescrita, e por isso no sabe.`' As pessoas que conceberam o ritual, aspessoas a quem o sacerdote chama ancestrais, sabiam a razo da presena doouro em p. Colocavam-no ali por julgarem que parte de um convite adequa-do a um esprito poderoso era oferecer-lhe uma parcela da prpria riqueza,pois faz-lo fazer o que qualquer um faria ao pedir um favor a uma pessoapoderosa. fato que o dinheiro de nada serve aos espritos a economia espi-ritual movida por outras coisas que no o ouro , mas, ao oferecer esse ouroem p, trata-se o esprito tal como se trataria um ser humano a quem se respei-tasse. Para esses ancestrais, portanto, a oferenda do ouro em p um ato cujaeficcia depende do reconhecimento, pelo esprito, de que isso unia expres-so de respeito.No sei se a verdade tem alguma semelhana com isso; seria difcil desco-brir, simplesmente porque "os ancestrais" j no esto a para lhes perguntar-mos. Mas, observem que essa explicao da presena do ouro em p comosimblico desloca-nos do terreno da compreenso dos atos ritualsticos em sipara o exame de suas origens. Esse recurso s origens, contudo, no o quetorna verdadeiro que o ouro em p funcione simbolicamente. Nosso sacerdotepoderia ter estado cnscio, ele mesmo, de que o ouro em p tem esse funcio-namento simblico. E logo adiante tentarei falar um pouco mais do que issosignifica. Mas, importante notar que tratar um elemento de um ritual comosimblico exige que haja algum que o trate simbolicamente, e que esse al-gum seja o prprio agente ou o originador da forma da ao ritual. Ao cons-

    tatar que o sacerdote no v o ato como simblico, tivemos que buscar algumque o fizesse. Existem verses mais ou menos sofisticadas desse tipo de abor-dagem. Durkheim, por exemplo, parece haver considerado que as prticas reli-giosas podem simbolizar a realidade social porque, embora o agente no saibaconscientemente o que elas simbolizam, talvez tenha um conhecimento in-consciente disso.' Penso que Lvi-Strauss acredita em algo similar. Consideroisso um erro; mas, quer Durkheim tivesse ou no razo, ao menos ele reconhe-ceu que um smbolo sempre smbolo de algum: algo que significa algumacoisa para algum.

    Velhos deuses, novos mundos61Mas, que vem a ser, exatamente, usar o ouro em p como smbolo de respei-to? Estamos to familiarizados com esse tipo de atos simblicos eles ocorremem todas as culturas que no refletimos sobre eles com freqncia. Aqui,mais uma vez, convm estabelecer urna distino. Alguns smbolos, dos quais aspalavras so o paradigma, so puramente convencionais. S podemos usar nos-sas palavras para expressar nossas idias uns aos outros porque existe urna inte-rao complexa de crenas e intenes entre os falantes de uma mesma lngua.Esse complexo pano de fundo permite que nos refiramos aos objetos e, comisso, que usemos palavras para representar simbolicamente esses objetos. Mas,as palavras no so os nicos smbolos puramente convencionais, e falar no onico ato simblico puramente convencional. Ao fazer continncia para umoficial superior, o soldado expressa seu reconhecimento da superioridade dooficial. E somente por existir essa conveno que o ato de fazer continnciatem o sentido que tem.Ora, o ouro em p no um smbolo puramente convencional. possvelus-lo nesse contexto como smbolo de respeito porque, em outros contextos,ofertar ouro em p um sinal de respeito. Afinal, a razo de a oferenda de ouroem p a uma figura poderosa de Achanti ser um sinal de respeito no est emhaver uma conveno nesse sentido. As pessoas do ouro em p aos poderososporque o ouro em p dinheiro, e o dinheiro algo que tem serventia para aspessoas poderosas, tal como as outras. Dar dinheiro a algum quando se precisaque ele ou ela faam alguma coisa para ns procurar influenciar seus atos e,desse modo, reconhecer que essas pessoas tm o poder de fazer algo por ns.Elas sabem que achamos que tm esse poder, porque ambos sabemos que deoutro modo no lhes daramos dinheiro. Se a oferta de ouro em p junto comum pedido ocorre sistematicamente, em contextos em que as pessoas pedemalguma coisa a algum com poderes que elas mesmas no tm, e se, como emAchanti, pedir a algum em posio de poder que faa algo por ns uma de-monstrao de respeito, ento, oferecer ouro em p em conjuno com um pe-dido torna-se um sinal de respeito, num sentido simples: ele algo cuja presen-a evidencia que o doador respeita aquele que o recebe.

    Portanto, no arbitrrio que os ancestrais de minha histria tenham esco-lhido o ouro em p como smbolo de respeito, embora tenham-se dado contade que, ao coloc-lo no tacho, no estavam efetivamente dando ao esprito algoque ele pudesse usar.Muitos atos simblicos ritualsticos tm esse carter. No so signos arbitr-rios, como as palavras ou as continncias; so atos que extraem seu sentido daimportncia no ritualstica de prticas pertinentemente similares. O que ostorna simblicos o reconhecimento, por parte dos agentes, de que esses atos,nos contextos ritualizados, no funcionam da maneira padronizada. O espritovem, no porque lhe tenhamos dado dinheiro, mas por termos feito algo que

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    16 2a casa de meu pai Velhos deuses, novos mundos63demonstra respeito; e dar ouro em p demonstra respeito porque, fora dessescontextos ritualsticos, o oferecimento de ouro em p padronizadamenteacompanhado pelo respeito.Passei algum tempo discutindo o papel desse smbolo nesse ritual porquepareceu a muits que o carter singularizante desses atos religiosos eles seremsimblicos. famoso o comentrio de Clifford Geertz de que a religio "umsistema de smbolos':' Ora, evidentemente, um fato marcante de muitas pr-ticas e crenas religiosas elas terem elementos simblicos: a Eucaristia car-regada de simbolismo, assim como a refeio da Pscoa judaica. Mas quero ar-gumentar que o simbolismo provm da natureza fundamental das crenasreligiosas, e que essas crenas fundamentais no so simblicas em si.Durante a vida inteira, vi e ouvi cerimnias semelhantes a essa por que comecei.Esse apelo ritualstico pblico a espritos invisveis, em ocasies cerimoniais, fazparte de urna forma de vida em que tais apelos costumam ser feitos em particu-lar. Quando um homem abre urna garrafa de gim, ele derrama urna pequenaquantidade no cho, pedindo aos ancestrais que bebam um pouco e protejamsua famlia e suas aes. Esse ato desprovido de cerimnia, sem a agitao doempossamento pblico de um 3bosom num novo santurio, mas habita no mes-mo mundo. Na verdade, tentador dizer que, assim como o empossamentopblico de um esprito assemelha-se ao empossamento pblico de um chefe,a libao particular corno verter um drinque em particular para um parente.O elemento cerimonial no o essencial; o essencial a ontologia dos seres in-visveis. De modo que, no contexto mais amplo da vida achanti,_ parece absurdoafirmar que o que aconteceu em certa ocasio, quando meu pai derramou aci-dentalmente no tapete algumas gotas do gargalo de uma garrafa de scotch re-cm-aberta, tenha implicado outra coisa seno uma crena literal nos ances-trais.. Derramar a bebida pode ter sido simblico, mas no h em Achantinenhuma suposio geral de que os mortos gostem de usque. Mas, para que ogesto de lhes oferecer irrn pouco de uma bebida valiosa tenha sentido, os ances-trais assim reconhecidos simbolicamente tm que existir. verdade, comoKwasi Wiredu expressou essa questo, que a afirmao de "que nossos ancestraisfalecidos continuam a pairar sob alguma forma rarefeita, prontos, vez por ou-tra, a tomar um gole do gim cerimonial, (...) [uma afirmao] que nunca ouviser racionalmente defendida".7 Mas o fato de ela nunca ser racionalmente de-fendida talvez no cause tanta surpresa: afinal, ela no costuma ser racional-mente atacada. (Nem tampouco, como costumo dizer, precisamos supor queesteja em jogo um gole literal.) A afirmao de que existem planetas maiores doque a Terra girando ao redor do Sol, por menores que eles se afigurem ao olhar-mos o cu noturno, no racionalmente defendida, no curso usual das coisas,na Europa ou na Amrica. E no racionalmente defendida, no porque al-

    gum ache que no haveria urna defesa racional, mas por ser hoje tomada cornouma verdade patente. E, na cultura achanti tradicional, a existncia de espritosdesencarnados dos mortos igualmente incontroversa. Voltarei a essa questomais adiante.Se tenho razo, e se (como afirmou Tylor) o compromisso com uma enti-dade desencarnada que define crucialmente as crenas religiosas subjacentes arituais corno o que descrevi, existe, claro, uma importante pergunta a ser res-pondida: por que, em muitos desses rituais, o simbolismo desempenha um pa-pel to importante? A resposta est implcita na descrio que fiz da relaoentre o empossamento de um chefe e o empossamento de um esprito.Pois, como poderia dizer qualquer achanti, o simbolismo um trao funda-mental dessas duas cerimnias. Embora haja um componente religioso no em-possamento de um chefe, como h em qualquer cerimnia pblica em Achanti,isso no faz do empossamento um ato essencialmente religioso. O simbolismo,com efeito, uma caracterstica de todas as grandes ocasies cerimoniais dequalquer cultura; e a presena do simbolismo no cerimonial religioso decorrede sua natureza de cerimonial, e no de sua natureza religiosa. Nos atos religio-sos particulares e menos cerimoniosos de uma cultura tradicional (corno, porexemplo, num apelo aos ancestrais num santurio domstico), ainda existe, claro, um elemento de simbolismo. Mas, importante lembrar aqui que, na cul-tura Achanti, as relaes com os ancestrais v ivos em que um pedido feito emparticular tambm so cerimoniosas. Todos os contatos importantes entre osindivduos, nas culturas tradicionais, so cerimoniosos. Ao relatar uma sessosminirio do lano na primeira parte deste sculo, Rattray descreveu corno,quando o sacerdote que trazia na cabea o santurio "contendo" o esprito en-trou no transe em que falaria em nome deste, os sacerdotes e ancios reunidosdisseram "Nana, ma akye" "Senhor, bom dia" , como teriam feito se umchefe (ou um ancio) houvesse chegado. O formalismo da resposta, de algummodo, menos impressionante para mim do que sua naturalidade o sentimento que ela transmite de que o esprito do Tano simplesmente umser entre outros, tratado com cerimnia por seu status ou seu poder, e no por-que a cena se distinga do cotidiano.E, depois de havermos constatado que o cenrio ritualstico cerimonioso,precisamos apenas da premissa adicional de que toda cerimnia tem elementosde simbolismo para completar um silogismo: o ritual implica o simbolismo. Pes-soalmente, no tenho teorias sobre por que os seres humanos ligam to estreita-mente a cerimnia ao simbolismo. Isso algo que muitos de ns comeamos afazer em nossas brincadeiras infantis e, com certeza, parte to integrante denossa histria natural quanto o , digamos, a linguagem. Mas, que a prevalnciado simbolismo nos rituais religiosos de Achanti decorre da concepo das rela-es entre pessoas e espritos como relaes entre pessoas parece-me, luz desses

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    16 4a casa de meu paifatos, difcil de negar. Caso a caso, pode-se fazer a mesma afirmao sobre a reli-gio na maioria das culturas grafas na frica e em outros locais.Se a nfase da teoria ocidental no carter nitidamente simblico do pensa-mento e das prticas religiosos tradicionais enganadora, vale a pena nos deter-,mos por um momento para examinar por que ela tem sido to difundida. E aresposta reside, penso eu, no carter da religio nas culturas industrializadas emquere d essa teorizao sobre a religio.O cristianismo uma religio que se define pela doutrina; a heresia, o paganis-mo e o atesmo, como resultado, foram em vrias pocas temas centrais da re-flexo crist. Nesse aspecto, claro, o cristianismo no nico; tambm o isla-mismo se define por sua doutrina e, como o cristianismo, por seu Livro. Osevangelizadores islmicos sustentam, vez por outra, que a simples aceitao dedois pontos da doutrina que Deus um e que Maom seu profeta seriasuficiente para constituir a converso, ao passo que os missionrios cristos cos-tumam insistir pelo menos num assentimento simblico a um credo um poucomais complexo. Mas essas diferenas parecem relativamente insignificantes, aocontrastarmos o cristianismo e o islamismo, de um lado, com muitos dos ou-tros sistemas de ritos, prticas e crenas a que chamamos religies. Esse contras-te nunca foi traado com mais nitidez do que numa observao de ChinuaAchebe: "No consigo imaginar os igbos viajando quatro mil milhas para dizera algum que seu culto estava errado!"

    A extraordinria importncia conferida doutrina nas Igrejas crists no um fenmeno moderno; crescendo entre o paganismo romano e o helnico, deum lado, e o judasmo, de outro, e dividida desde os primrdios, com acirra-mento e regularidade, em relao a temas que podem parecer esplendidamenteobscuros, a histria da Igreja , em grande parte, a histria das doutrinas. Mas,embora a doutrina seja efetivamente central para o cristianismo, importantelembrar o que isso significa. "Doutrina", justamente, no significa crenas (pois fcil demonstrar, como faz Keith Thomas em seu maravilhoso Religion and theDecline of M agic [A religio e o declnio da magia*], que nos dois ltimos mi-lnios alterou-se radicalmente o carter das proposies efetivas em que os cris-tos tm depositado sua crena); significa, antes, as frmulas verbais que ex-pressam a crena. E isso tem-se revelado um tanto embaraoso para muitoscristos do mundo, desde a revoluo cientfica.Um conhecido tema da histria da teologia que o cristianismo seguiu,numa certa medida, o epigrama de Oscar Wilde: "As religies morrem quandose provam verdadeiras. A cincia a crnica das religies mortas."' Uma reaopodersa, entre os intelectuais cristos, tem consistido em recuar, em face da" Edio brasileira: So Paulo, Companhia das Letras. (N. da T.)

    Velhos deuses, novos mundos65cincia, para a desmitologizao daquelas doutrinas de cujo lugar central na de-finio de sua tradio religiosa eles no podem escapar. E como penso sermostrado pela obra de Keith Thomas, entre outros acertado dizer que oefeito da desmitologizao tem sido o de tratar como metafricas doutrinas an-tes tomadas na literalidade, ou, voltando a meu tema, trat-las como simblicas.Isso nos levou, se posso caricaturar a histria teolgica recente, a uma situaoem que a afirmao de que "Deus amor" pode ser declarada por gente sria Paul Tillich, por exemplo como significando algo como "O amor extraordi-nariamente importante"; e a uma abordagem da doutrina tradicional da vitriado Reino de Deus como um modo "simblico" de expressar a confiana em que"o amor acabar triunfando". E possvel detectar tendncias desmitologizantessimilares na teologia liberal (ou de algum modo contra-normativa) judaica (elasdecerto so encontrveis em Martin Buber). No meu propsito dizer se esse um desdobramento sadio, embora sem dvida esteja claro para que lado pen-dem minhas simpatias. Mas, mesmo que coisa de que duvido isso sejacompatvel com as principais tradies do cristianismo e do judasmo, tratar ascrenas religiosas das culturas tradicionais como igualmente simblicas fazeruma idia radicalmente equivocada de seu carter.A reformulao intelectual do cristianismo coexiste com uma mudana nocarter da vida leiga crist, pelo menos no que concerne aos intelectuais. Para oscristos cultos da Europa de antes da revoluo cientfica e do crescimento docapitalismo industrial, a crena em seres espirituais santos, anjos, principa-dos e potestades tinha, sob muitos aspectos, exatamente o carter que reivin-dico para a religio achanti tradicional. Atravs de atos praticados em santu-rios, que os ocidentais chamariam de mgicos em Achanti, os fiis buscavam acura para suas doenas, respostas para suas perguntas e orientao para seusatos. medida que se desenvolveram solues tecnolgicas para as doenas euma compreenso cientfica destas, muitas pessoas (e, em especial, muitos inte-lectuais) afastaram-se desse aspecto da religio, embora, corno seria de se espe-rar, ele continuasse a ser uma parcela importante do cristianismo no mundono industrializado e nas partes significativas do mundo industrializadoem que a viso cientfica de mundo ainda est por ser apreendida.

    Mas, no mundo industrial, a vida religiosa dos intelectuais voltou-se mais emais para a vida contemplativa, concebida como uma relao espiritual comDeus. Se a resposta de Deus buscada para muitas perguntas de carter tcnico,essas so as perguntas que continuaram resistentes ao manejo cientfico in-dagaes sobre as relaes do sujeito com outrem, e perguntas que nem mesmoem princpio podiam ser abordadas pela cincia: questes de valor. Por si s,esse um desdobramento muito interessante, mas inseriu uma grande cunhaentre a religio do mundo industrializado e a religio das culturas tradicionais.H uma outra mudana na natureza da religio contemplativa no Ocidente.

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    16 6a casa de meu paiEla est ligada a minha observao anterior de que o simbolismo caracteriza ocerimonioso, e de que nas culturas tradicionais as relaes sociais importantesexigem cerimnia. medida que nossas relaes uns com os outros tornaram-se me,nos cerimoniosas, o mesmo se deu com nossos atos religiosos privados.A orao torno'u-se, para muitos, semelhante a uma conversa ntima. Mas o..mesmo sucede com a tradio achanti. O que acontece que a compreenso daintimidade diferente.Venho abordando basicamente o primeiro grupo de questes que levantei sobreo ritual religioso: as referentes natureza do ritual e s crenas que lhe sosubjacentes. Falei pouco das origens dessas crenas; nas culturas predominante-mente grafas, muitas vezes impossvel responder a essas perguntas, por faltade elementos comprobatrios. No que concerne ao cristianismo e ao judasmo, possvel discutir essas questes porque temos registros dos conclios de Niciae Calcednia, ou porque temos amplas tradies de reflexo judaica letrada. Sequisermos, porm, enfrentar a questo da racionalidade das crenas tradicio-nais, teremos que nos voltar, finalmente, para meu terceiro conjunto de pergun-tas: as que se referem ao que mantm vivas essas crenas que as pessoas de forajulgam to obviamente falsas.

    Ao formular essas perguntas, alguns foram levados, por um caminho dife-rente, a tratar a religio em termos simblicos. O antroplogo britnico JohnBeattie, por exemplo, desenvolveu uma viso "simbolista" das religies tradicio-nais da frica, cujo "esteio central", como diz Robin Horton (um filsofo-an-troplogo que sdito britnico e vive h muito tempo na Nigria), " que opensamento religioso tradicional basicamente diferente do pensamento cien-tfico ocidental e incomensurvel com ele"; assim, os simbolistas evitam "ascomparaes com a cincia e se voltam, em vez disso, para as comparaes como simbolismo e a arte"

    O pensamento simbolista bsico captado concisamente (se bem que comironia) nesta formulaZ5 do filsofo camarons M. Hegba:Urna das abordagens dos fenmenos da magia e da feitiaria seria supor queestamos diante de urna linguagem simblica (...). Um homem que voa peloar, transforma-se num animal ou se torna invisvel segundo sua vontade (...)no pode ser outra coisa seno uma linguagem codificada, cuja decodifi-cao simplesmente temos que descobrir. Ento estaramos garantidos."

    Dito em termos simples, os simbolistas s conseguem tratar os fiis tradicio-nais como seguramente racionais porque negam que as pessoas tradicionalistaspretendam dizer o que dizem. Ora, Robin Horton objetou com acerto que essa colocao deixa completamente inexplicado o fato de os povos tradi-cionais apelarem sistematicamente para os agentes invisveis de suas religies,

    Velhos deuses, novos mundos67tendo em vista explicar os acontecimentos do que chamaramos mundo na-tural?' Horton poderia ter chamado ateno aqui, com proveito, para um fatoque Hegba observa ao passar da caracterizao para a crtica do simbolismo:"a linguagem simblica e esotrica altamente reverenciada em nossa socieda-de"?' peculiarmente insatisfatrio tratar um sistema de proposies cornosimblico, quando aqueles a quem pertencem essas proposies parecem trata-las literalmente e exibir, em outros contextos, uma clara apreenso da noo derepresentao simblica.

    J mencionei Durkheim uma vez; em sua obra encontramos a exposiomais clara da ligao entre a nsia de tratar a religio como simblica e a ques-to de por que essas crenas patentemente falsas no poderiam sobreviver. que Durkheim no admite que as crenas religiosas sejam falsas, pois julgaque as crenas falsas no podem sobreviver. J que, se fossem falsas, elas noteriam sobrevivido, segue-se que devem ser verdadeiras; e, j que no so lite-ralmente verdadeiras, devem s-lo em termos simblicos." Essa argumentaobaseia-se num entendimento equivocado da relao entre a racionalidade dascrenas, sua utilidade e sua verdade; importante dizer por qu.A melhor maneira de conceber a racionalidade como um ideal, tanto no sen-tido de ela ser algo que vale a pena almejar quanto no de ser algo que somosincapazes de realizar na prtica. Ela um ideal que tem uma importante rela-o interna com outro grande ideal cognitivo, a Verdade. Poderamos dizerque, na crena, a racionalidade consiste em ter uma disposio tal a reagir s-provas -e reflexo, que o_suj_eito _altera_suas crenas de modo a tornar maisprovvel que elas sejam verdadeiras. Se isso estiver certo, podemos ver pron-tamente por que a incoerncia na crena um sinal de irracionalidade: queter um par de crenas incoerentes garante que se tem pelo menos uma crenafalsa, j que as crenas incoerentes so precisamente aquelas que no podemser todas verdadeiras. Mas vemos tambm que a coerncia, como ideal, nobasta. Pois algum poderia ter um conjunto perfeitamente coerente de crenassobre o mundo, sendo, porm, quase todas no apenas falsas, mas obviamentefalsas. coerente afirmar, com Descartes num de seus momentos cticos, quetodas as minhas experincias so causadas por um gnio maligno; e, dando aessa fantasia uma roupagem moderna, no h incoerncia em sustentar a fan-tasia paranide de que o mundo "realmente" um cubo que contm apenasmeu crebro, imerso num lquido, uma poro de fios e um cientista maligno.Mas, apesar de coerente, essa crena no racional: todos concordamos, espe-ro, em que reagir s provas sensoriais dessa maneira no aumenta a probabili-dade de que as crenas do sujeito sejam verdadeirasOra, a questo da utilidade, d valor de sobrevivncia de um conjunto decrenas, muito distinta da de sua verdade e sua sensatez, concebidas de

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    16 8a casa de meu pai Velhos deuses, novos mundos69neira. Qualquer um que tenha lido a elegante discusso de Evans-Pritchard so-bre as crenas dos zandes na feitiaria s quais retornarei mais adiante hde lembrar como fcil compreender a idia de que todo um conjunto de cren-as falsas pode, no obstante, fazer parte do que mantm unida uma comunida-de. Mas essa idia no requer muito esforo: desde Freud, todos estamos aptos aentender por que, por exemplo, pode ser mais til o sujeito acreditar que amaalgum do que reconhecer que no o faz.

    Com tal explicao da racionalidade, v-se por que a falsidade aparentemen-te bvia das crenas do sacerdote achanti poderia ser encarada como prova desua irracionalidade. Pois, como poderia ele ter aquirido e mantido essas crenas,caso seguisse a prescrio de sempre procurar modificar as prprias crenas demaneira a tornar mais provvel sua veracidade? A resposta simples. O sacerdo-te adquiriu suas crenas da maneira como todos adquirimos o grosso de nossasprprias crenas: sendo-lhe ditas coisas enquanto ele crescia. Como afirmaEvans-Pritchard sobre o povo zande: eles "nascem numa cultura com padresde crena prontos, que tm o peso da tradio a sustent-los".' 6 O mesmo, claro, se d conosco. De modo geral, na vida do sacerdote acontecem poucascoisas que possam sugerir que elas no so verdadeiras. Na nossa tambm.

    Ora, talvez parea estranho sugerir que aceitar as crenas da prpria cultura eater-se a elas, na ausncia de provas contrrias, possa ser racional, se isso levar adoo de crenas que, do ponto de vista dos intelectuais ocidentais, so desvai-radamente falsas. E isso se aplicar, em especial, se voc encarar a racionalidadecomo uma questo de tentar desenvolver hbitos de aquisio de crenas quetornem provvel que voc reaja s provas e reflexo de modos que tendam aproduzir a verdade. Mas, pensar de outra maneira entender mal a naturezarelativamente deplorvel de nossa situao epistmica no universo. Uma desco-berta fundamental da reflexo filosfica sobre nossa situao como conhecedo-res que no h outro requisito, a no ser a coerncia, que possamos impor deantemo a nossas crenas, de modo a lhes aumentar a probabilidade de seremverdadeiras; e que uml)essoa que parta de um conjunto coerente de crenaspode chegar, atravs de princpios de evidncia racionais, s mais fantsticasinverdades. A sabedoria da modstia epistemolgica , sem dvida, uma das li-es da histria da cincia natural; e, de fato, se h uma grande lio a extrair dofracasso do positivismo como metodologia das cincias, com certeza ela , cornorecentemente argumentou Richard Miller, que no existem regras a priori quenos garantam teorias verdadeiras.' 7 Olhando para trs, o sucesso do que chama-mos "mtodo emprico" parece ter resultado, como a evoluo, da capitalizaonuma srie de acasos fortuitos. Se a teoria do sacerdote errada, devemos enca-rar isso-como sendo basicamente uma questo de azar, e no de ele ter sido cul-pado de haver deixado de observar as regras adequadas de um mtodo a priori.

    Um europeu ou norte-americano moderno tambm pode no perceber quosensatas pareceriam as vises do sacerdote, pois, ao avaliar as crenas religiosasde outras culturas, todos partimos, como natural, das nossas. Mas, exata-mente a ausncia desse ponto de vista alheio alternativo, numa cultura tradi-cional, que torna sensato adotar a viso de mundo "tradicional". A prova deque os espritos existem evidente: os sacerdotes entram em transe, as pessoasmelhoram aps a aplicao de remdios espirituais, e sistematicamente mor-rem pessoas pela ao de espritos inamistosos. A reinterpretao dessas provasem termos de teorias mdico-cientficas ou psicolgicas exige que existam es-sas teorias alternativas, e que as pessoas tenham alguma razo para acreditarnelas: vez aps outra, no entanto, e especialmente na rea da vida mental esocial, a viso tradicional tende a ser confirmada. Dispomos de teorias que ex-plicam parte disso, como a teoria da sugesto e da sugestionabilida de , porexemplo; e, se convencssemos os pensadores tradicionais dessas teorias, pos-svel que eles se tornassem cticos a respeito das teorias sustentadas em suaprpria cultura. Entretanto, no podemos comear por pedir-lhes que presu-mam que suas crenas so falsas, pois eles sempre tm a possibilidade de fazernumerosos movimentos no sentido de uma defesa razovel de suas crenas. esse fato que nos habilita a nos opor tese de que as crenas tradicionais sosimplesmente irracionais.A exposio clssica desse processo de defesa na etnografia do pensamento tra-dicional africano Witchcraft, Oracles and Magic Among the Az ande [Bruxaria,orculos e magia entre os azandel, de Evans-Pritchard. Quase no final do livro,ele diz: "Pode-se indagar por que os azande no percebem a inutilidade de suamagia. Seria fcil redigir um longo texto em resposta a essa pergunta, mas con-tento-me em sugerir, da maneira mais sucinta possvel, diversas razes."'O autor arrola ento 22 dessas razes. Menciona, por exemplo, que, j que"a magia predominantemente empregada contra poderes msticos (...), suaao transcende a experincia" e, por conseguinte, "no fcil contradiz-lapela experincia", 1 9 o que refora uma afirmao feita algumas pginas antes:"No compreenderemos a magia zande (...) se no nos dermos conta de que seuprincipal objetivo combater outros poderes msticos, e no produzir mudan-as favorveis ao homem no mundo objetivo."" Ele diz que as prticas da fei-tiaria, dos orculos e da magia pressupem um sistema coerente de crenasmutuamente corroborativas.

    A morte prova da feitiaria. vingada atravs da magia (...). A acuidade doorculo do veneno determinada pelo orculo do rei, que est acima de q ual-quer suspeita (...). Os resultados supostamente produzidos pela magia ocor-rem, de fato, depois da execuo dos ritos (...). A magia praticada apenaspara produzir eventos que tendem a acontecer de qualquer maneira (...

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    170a casa de meu pai Velhos deuses, novos mundos71raramente solicitada a produzir por si s algum resultado, sendo associada,antes, a uma ao emprica que de fato o produz por exemplo, um prnciped alimentos para atrair seguidores, no confiando apenas na magia."Embora Evans-Pritchard reconhea que os azande observam falhas em sua fei-tiaria, ele tambm mostra como estes dispem de muitos modos de explicaressas falhas: pode ter havido um erro na execuo do feitio; pode haver umfeitio''clesconhecido e contrrio, e assim por diante.O fato de ser possvel fazer exatamente esse tipo de gestos em defesa dascrenas religiosas tradicionais tem levado alguns a concluir que a crena religio-sa tradicional deve ser interpretada como tendo os mesmos objetivos das cren-as da moderna cincia natural, que se resumem no lema "explicao, previso econtrole". Isso porque, quando os procedimentos cientficos falham, os cientis-tas no costumam reagir como certa vez ouvi um fsico eminente reagir auma hora num laboratrio com os fenmenos supostamente parapsicolgicosproduzidos por Uri Geller" dizendo que deyemos "reformular toda a fsicadesde o comeo". Ao contrrio, eles oferecem explicaes sobre como as falhaspoderiam ter ocorrido, coerentemente com a teoria. comum os bioqumicosignorarem os resultados negativos, presumindo que os tubos de ensaio estavamsujos, ou que as amostras estavam contaminadas, ou que, na preparao daamostra, eles deixaram de tomar alguma precauo necessria para prevenir aao das enzimas que sempre so liberadas quando se danifica uma clula. Umzande ctico poderia perfeitamente fazer sobre esses processos o mesmo tipo deobservao feita por Evans-Pritchard sobre a magia azande: "A percepo doerro numa noo mstick numa situao particular, meramente prova sdo de outra noo igualmente mstica."

    Os filsofos da cincia tm nomes para isso: dizem que a teoria "subdeter-minada" pela observao e que a observao est "sobrecarregada pela teoria".E o que queremdizer com subdeterminao um fato assinalado pelo filsofo-fsico francs Pierre Duhem no incio deste sculo: que a aplicao da teoria acasos particulares baseia--"s'e em toda uma multiplicidade de outras crenas, nemtodas as quais podem ser verificadas de uma s vez. Por sobrecarga terica daobservao, de modo correlato, eles pretendem referir-se ao fato de que nossasteorias tanto contribuem para formar nossa experincia quanto do sentido linguagem que usamos para relat-la. A afirmao de Sir Karl Popper de que acincia deve avanar por tentativas de falseamento incorreta, como todos sa-bemos aps a leitura de Thomas Kuhn." Se todas as vezes que uni experimentofracassa ns desistssemos, a teoria cientfica no chegaria a parte alguma.A subdeterminao de nossas teorias por nossa experincia significa que at omais malsucedido experimento nos deixa urna margem de manobra. O negcio no desistir depressa demais;' nem insistir por tempo demasido. Na cincia,como em qualquer outra rea, existem os bebs e existe a gua suja do banho.

    Sugeri que poderamos assemelhar as teorias subjacentes religio tradicio-nal e magia s teorias engendradas nas cincias naturais, porque ambas sosistemas explicativos de crenas que tm em comum o problema da subdeter-minao. Mas h outros caminhos para essa assemelhao. Se quisermos explo-rar a plausibilidade dessa idia, ser til reunirmos mais algumas provas.A ttulo de comparao com a cerimnia pela qual iniciei este captulo, permi-tam-me descrever uma outra, da qual participei h alguns anos em Koumassi.Foi, alis, o casamento de minha irm. A cerimnia legal ocorreu numa igrejametodista, no contexto de um oficio religioso conduzido na linguagem do anti-go livro de oraes ingls. "Amados irmos", comeava ele, "estamos aqui reuni-dos na presena de Deus (...)."Na primeira fila sentavam-se o rei de Achanti, suamulher, a rainha-me e o filho do rei, Nana Akyempemhene uma coleo tograndiosa da aristocracia tradicional achanti quanto se poderia desejar. Depois,voltamos para a residncia particular do rei e ali tivemos uma recepo ao somdos tocadores de tambor da rainha-me, com centenas de membros da famliareal.Contudo, no muito depois de comearmos, o arcebispo catlico de Kou-massi (lembrem-se, isso foi depois de uma cerimnia metodista) fez algumasoraes, o que foi seguido (e lembrem-se, tratava-se de um arcebispo catlico)por libaes vertidas em honra aos ancestrais de minha famlia, feitas por -umdos mais antigos lingistas do rei. As palavras endereadas a esses ancestrais fo-ram enunciadas no mesmo estilo das palavras do sacerdote ouvido por Rattray.O _rei de Achanti anglicano e membro do tribunal ingls; seu filho, na pocaadvogado do Servio Diplomtico de Gana, tem um PhD de Tufts; e os noivos seconheceram na Universidade de Sussex, na Inglaterra (cada qual tendo tambmoutro diploma), e eram, respectivamente, uma mdica sanitarista e um ban-queiro mercantil nigeriano. So, portanto, africanos modernos, no apenas nosentido de estarem vivendo agora, mas tambm no de terem essa credencial es-sencial do homem ou da mulher modernos um ttulo universitrio ao ladodo nome. Dentro de um instante, afirmarei que esses ttulos tm mais do queuma importncia metafrica.Que havemos de depreender de tudo isso? Ou melhor, como ho de entend-lo os europeus e norte-americanos, j que tudo to familiar para mim paraa maioria dos africanos contemporneos , que acho difcil resgatar o senti-mento de contradio entre os elementos dessa sntese sem dvida notvel?Essas cerimnias so o que quero chamar de "no tradicionais": elas so notradicionais por coexistirem com uma certa medida de crena no cristianismoque veio com os colonizadores, por um lado, e com uma certa familiaridadecom a viso das cincias naturais, pot outro. Mas tampouco so "modernas": ossentidos ligados a esses atos no so os da eucaristia puramente simblica da

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    teologia liberal rigorosa. A questo, claro, est em como todos esses elementospodem coexistir, no que que faz dessa mistura conceitual, no uma fonte detenso e mal-estar intelectuais, mas a fonte de uma extraordinria gama de ati-vidade,& culturais.Penso que a chave desse enigma pode ser encontrada se retomarmos a idia aque fomos levados antes: a idia de que a teoria religiosa tradicional, sob certosaspectos, assemelha-se mais cincia moderna do que religio moderna; em

    particular, de que ela compartilha os objetivos da cincia natural moderna, quepodemos resumir no lema "explicao, previso e controle". Foi a elaboraosistemtica da analogia entre a cincia natural e a religio tradicional que tor-nou a obra de Robin Horton to importante na filosofia das religies tradicio-nais africanas; e ser til comear por ele."A afirmao bsica de Horton justamente a que fiz antes: o carter funda-mental desses sistemas religiosos que as prticas decorrem da crena literal, eno simblica, nos poderes de agentes invisveis.

    - Horton argumenta de maneiraconvincente, e a meu ver correta, que os espritose similares funcionam, na expli-cao, previso e controle, exatamente como o fazem outras entidades tericas:eles diferem das da cincia natural por serem pessoas, e no foras e poderes ma-teriais, mas a lgica de seu funcionamento na explicao e na previso a mesma.A viso de Horton, portanto, que as crenas religiosas dos povos tradicio-nais constituem teorias explicativas, e que os atos religiosos tradicionais sotentativas sensatas de realizar objetivos luz dessas crenas; em outras palavras,tentativas de previso e controle do mundo. Nesses aspectos, afirma Horton, acrena e a ao religiosas tradicionais so como a teoria nas cincias naturais eas aes baseadas nela. Como diz Hegba, na tradio africana francfona:Embora sem deixar de reconhecer seus limites nem cercear a marcha para oprogresso, para a compreenso terica [a cincia] e para a libertao, deve-mos dmitir que as explicaes africanas dos fenmenos da magia e da feiti-aria so racionais. Nossas crenas populares decerto so desconcertantes e,s vezes, falsas; mas, no seria um grave erro metodolgico postular a irra-cionalidade no comeo do estudo de uma sociedade?"

    A tese de Horton no que a religio tradicional seja uma espcie de cincia,mas que as teorias desses dois campos so semelhantes nesses aspectos cruciais.A principal diferena no contedo das teorias, afirma ele, que a teoria religiosatradicional enunciada em termos de foras pessoais, enquanto a teoria cient-fica natural enunciada em termos de foras impessoais. Essa afirmao bsicame parece imensamente plausvel.Contudo, na analogia entre a cincia natural e a religio tradicional h tam-bm muita coisa que pode desorientar. Um primeiro aspecto de como essaassemelhao corre o risco de ser enganosa destaca-se ao recordarmos que a

    maioria de ns tem idias bastante vagas sobre os fundamentos tericos das teo-rias mdicas que norteiam nossos mdicos e das teorias fsicas usadas para pro-duzir e consertar nossos rdios. Nisso, claro, somos como o achanti mdio dosculo XIX, que, presumivelmente, tinha uma vaga percepo dos fundamentosa partir dos quais os herboristas e sacerdotes praticavam sua arte. Na aplicao,na utilizao por no-especialistas na vida cotidiana, freqente nossas teoriassobre como funciona o mundo receberem nossa confiana em linhas gerais e demaneira prtica, sem muita articulao e sem nenhum investimento profundonos detalhes. Em boa parte da prtica religiosa africana contempornea (e issoinclui a cerimnia que descrevi), h (em cada comunidade praticante, cada seitaou culto ou comunidade) muito mais consenso sobre as formas apropriadas doritual e da ao litrgica do que sobre o que os justifica; e, nesse aspecto, a pr-tica religiosa na frica difere bem pouco da prtica religiosa no mundo indus-trializado contemporneo. Embora a extenso da crena literal numa entidadeinvisvel possa ser um pouco maior na frica do que nos Estados Unidos (e pro-vavelmente muito maior do que, digamos, na Gr-Bretanha ou na Noruega),tanto numa quanto no outro h um sentido em que a vida religiosa pode conti-nuar, e em que se pode participar dela com pouca curiosidade sobre as crenasliterais dos co-participantes e pouco compromisso terico de nossa parte. Aoinsistir no papel da teoria, aqui, ficamos fadados, por conseguinte, a parecer quenos estamos concentrando em algo que est longe de ser central para aquelescujas prticas religiosas estamos discutindo e que, com isso, distorcemos sua ex-perincia para traar a analogia com a cincia natural. Mas, desde que tenhamosem mente que no se est fazendo nenhuma afirmao seno a de que essasprticas religiosas funcionam segundo o pressuposto de urna certa teoria a deque existem entidades espirituais de vrios tipos > e de que essa teoria permitea explicao e a previso no estilo do que fazem as teorias cientficas, no creioque, com isso, precisemos ser levados a julgar erroneamente a importncia rela-tiva da teoria e da prtica na religio tradicional.Contudo, essa preocupao aproxima-se de urna segunda dificuldade daassemelhao da religio tradicional com a cincia natural, uma dificuldadeapontada por Kwasi Wiredu: aparentemente muito estranho equiparar acrena religiosa tradicional da frica Ocidental com a teoria cientfica ociden-tal moderna, quando seu anlogo bvio seria a crena religiosa tradicional oci-dental." Penso que h de estar evidente, pelo que eu j disse, que me pareceno haver necessidade de competio aqui, pois a funo explicativa das cren-as religiosas na Europa tradicional tambm me parece ser idntica, em sualgica, da teoria cientfica.O que inducente a erro no a assemelhao das lgicas explicativas dasteorias advindas da religio e da cincia, mas a assemelhao da religio tradi-cional com a cincia natural como instituies. Isso enganador, antes de mais

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    174a casa de meu painada, por causa dos tipos de mudanas que delineei na vida religiosa ocidental.Para o ocidental moderno, como mostrei, chamar algo de "religioso" conotarmuita coisa que falta na religio tradicional e no conotar muito do que estpresente. Mas, h uma razo muito mais fundamental por que a equiparao daretigio com a 'cincia enganadora. Ela tem a ver com a organizao social dainvestigao, que totalmente diferente nas culturas tradicionais e modernas.Voltarei a essa questo no fim do captulo.O prprio Horton, claro, est ciente de que as crenas religiosas tradicionaiscertamente diferem das da cincia natural, em pelo menos dois aspectos impor-tantes. Antes de mais nada, como j insisti, ele assinala que as entidades tericasinvocadas so agentes, e no foras materiais. E nos oferece uma explicao depor que isso se d. Horton sugere que essa diferena provm da natureza funda-mental da explicao como reduo do desconhecido ao conhecido. Nas cultu-ras tradicionais, a natureza, a vida natural, indomada, estranha, e fonte deperplexidade e medo. As relaes sociais e as pessoas, ao contrrio, so conheci-das e bem compreendidas. Explicar o comportamento da natureza em termosde entidades , portanto, reduzir as foras desconhecidas do mundo natural scategorias explicativas conhecidas das relaes pessoais.

    No mundo industrializado, por outro lado, a industrializao e a urbaniza-o tornaram as relaes sociais intrigantes e problemticas. Deslocamo-nosentre ambientes sociais o rural e o urbano, o local de trabalho e o lar emque funcionam convenes diferentes; no novo ambiente urbano, fabril e demercado, lidamos com pessoas que s conhecemos atravs de nossos projetosprodutivos comuns. Como resultado, o social relativamente desconhecido. Nacidade, por outro lado, nossas relaes com os objetos so relaes que perma-necem relativamente estveis em todas essas diferentes relaes sociais. Comefeito,. quando os operrios fabris se movem de uma fbrica a outra, as habili-dades que levam consigo so precisamente aquelas que dependem de umafamiliaridade, no corri-outras pessoas, mas com o funcionamento das coisasmateriais. J no natural tentar compreender a natureza atravs das relaessociais; antes, ns a compreendemos atravs de mquinas, atravs da matriacujo funcionamento consideramos comodamente conhecido. sabido que acompreenso dos gases no sculo XIX pautou-se no comportamento de bolasde bilhar em miniatura: que os cientistas oitocentistas da Europa conheciam amesa de bilhar melhor do que conheciam, por exemplo, seus criados. A aliena-o largamente considerada como o estado caracterstico do homem moder-no: pode-se exagerar a nfase nessa colocao, mas impossvel neg-la.

    Nas sociedades industriais complexas e em rpido processo de mudana, ocenrio humano cambiante. A ordem, a regularidade, a previsibilidade, a

    Velhos deuses, novos mundos75simplicidade, tudo isso parece lamentavelmente ausente. no mundo dascoisas inanimadas que essas qualidades so prontamente observadas. E essa(...), sugiro eu, a r azo por que a mente procura de analogias explicativasvolta-se com extrema p resteza para o inanimado. Nas sociedades tradicionaisda frica vemos o inverso dessa situao. O cenrio humano o locus porexcelncia da ordem, da p revisibilidade e da regularidade. No mundo do ina-nimado, essas qualidades so muito menos evidentes (...); ali, a mente pro-cura de analogias explicativas volta-se naturalmente para as pessoas e suasrelaes."

    Nesse ponto, a funo da teoria cientfica, para Horton, seria essencialmente odesenvolvimento de modelos a partir de traos subjacentes unificados, sim-ples, ordeiros e regulares da realidade, a fim de explicar a diversidade, a com-plexidade, a desordem e o aparente desregramento da experincia comum."O argumento dele funciona to bem que difcil no acharmos que h algumacoisa certa ali; de fato, ele explicaria a preferncia pela entidade matria, pri-meira das grandes diferenas que Horton reconhece entre a religio tradicionale a cincia.No entanto, isso no pode estar realmente certo. Todas as culturas num estilomodesto, diria eu, todas as culturas de que tenho conhecimento tm recur-sos conceituais para pelo menos dois tipos fundamentais de explicao. De umlado, todas tm algum tipo de idia do que Aristteles chamava de causao"eficiente": a causalidade do empurra-e-puxa mediante o qual entendemos asinteraes cotidianas dos objetos e foras materiais. De outro, todas tm urnaidia de explicao que tem a ao humana como seu prottipo, a idia que,como o filsofo norte-americano Daniel Dennett caracterizou, subentende a"postura intencional"." Esse tipo de explicao relaciona as aes com as cren-as, desejos, intenes, medos e assim por diante as chamadas "atitudespropositivas" e fundamental (pelas maneiras que sugeri antes) para a psi-cologia popular. Poderamos dizer, analogamente, que a causalidade eficiente central para o que os psiclogos cognitivistas hoje chamam de "fsica ingnua"ou "popular".Esses tipos de explicao esto interligados, claro: quando explico a mortede um elefante falando da necessidade de alimento, da caa, do disparo daarma, esses so elementos da fsica popular e da psicologia popular, subenten-didos em cada etapa dessa narrativa. Dizer que a explicao mecanicista des-conhecida dos povos pr-industriais , evidentemente, uma verdade. A expli-cao mecanicista a explicao em termos de mquinas, que so, claro,exatamente o que as culturas pr-industriais no tm. Mas a explicao meca-nicista no , de modo algum, o nico tipo de explicao no intencional: hmais na fsica popular do que uma viso das mquinas. E a verdade que a

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    176a casa de meu pai Velhos deuses, novos mundos77estabilidade das relaes causais dos objetos no mundo pr-industrial certa-mente muito substantiva: no s as pessoas fazem ferramentas e utenslios,usando os conceitos da causao eficiente, como suas interaes fsicas habi-tuais_cam o mundo ao cavar, caar, andar, danar so to estveis e bemcompreendidas quanto suas relaes de famlia. Mais do que isso, o honro pr-industrial j o honro faber e a feitura de vasos e jias, por exemplo, implicaum conhecimento ntimo das coisas fsicas e uma expectativa de regularidadeem seu comportamento. Os vasos, anis e colares quebram, claro, e muitasvezes o fazem de modo imprevisvel. Mas, nesse aspecto, no so obviamentemenos confiveis que as pessoas, que, afinal, tambm so notoriamente difceisde prever.

    O que precisamos reintroduzir no panorama, aqui, um tipo de explicaoque falta na argumentao de Horton, a saber, a explicao funcionalista, queencontramos em carter central (mas de modo algum exclusivo) no que pode-ramos chamar de "biologia popular". A explicao funcional o tipo de expli-cao que damos quando dizemos que a flor existe para atrair a abelha que apoliniza; que o fgado existe para purificar o sangue; que a chuva cai para irrigaras plantaes.Esse tipo de explicao est ausente da argumentao de Horton, e por umatima razo, a saber: a filosofia positivista da cincia, na qual ele se pauta, pro-curou erradicar a explicao funcionalista ou reduzi-la a outros tipos de expli-cao, em grande parte porque cheirava a uma teleologia do tipo da cau-sao "final" aristotlica, que o positivismo julgou ter-se demonstrado intil

    pelo fracasso do vitalismo na biologia do sculo XIX. E, com certeza, o que maisimpressiona nas explicaes "acientficas" oferecidas pela maioria das culturasafricanas pr-coloniais no apenas o fato de elas recorrerem a uma entidade,mas o de visarem pergunta "por qu?", entendida corno indagando para queserve o evento em questo. Evans-Pritchard, em sua exposio da crena zande,insiste em que os azande no consideram que os "acontecimentos infaustos"ocorram por acaso:" seu-recurso freqente feitiaria na falta de outras ex-plicaes aceitveis para o infortnio demonstra que eles no se dispem aaceitar a existncia do contingente. Mas, rejeitar a possibilidade do contingente, exatamente, insistir em que tudo o que acontece atende a alguma finalidade:uma viso familiar na tradio crist, em formulaes como "E sabemos quetodas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus (...)" (Roma-nos, 8:28), ou na necessidade profunda que as pessoas sentem tanto na Euro-pa e Amrica quanto na frica de respostas para a pergunta "Por que aconte-cem coisas ruins com gente boa?". As crenas da feitiaria zande decorrem deuma supOsio de que o universo acha-se num certo tipo de equilbrio ava-liativo; em suma, o tipo de pressuposto que leva os telogos monotestas a ela-borar teodicias.

    O que o povo zande recusa-se a aceitar, corno deixa claro a exposio deEvans-Pritchard, no que os "acontecimentos infaustos" no tenham explica-o o celeiro desabou porque os cupins devoraram as estacas que o sustenta-vam , mas que eles sejam desprovidos de sentido, que no haja uma razomais profunda pela qual a pessoa sentada sombra do celeiro tenha-se ferido.Nesse sentido, ele compartilha uma atitude que encontramos na teodicia cris-t, de Irineu a Santo Agostinho e a Karl Barth: a atitude de que o cosmo funcio-na de acordo com um projeto. Pois as culturas pr-coloniais africanas, corno ospensadores pr-cientficos e no cientficos de toda parte, inclinam-se a suporque os acontecimentos do mundo tm sentido; eles se preocupam, no com apossibilidade do inexplicado (aquilo que no tem causa eficiente nem pode serexplicado por um agente), mas com a do absurdo (aquilo que no tem nenhu-ma funo, que no serve para nada). E isso diferencia os que aceitam a viso demundo cientfica uma minoria, claro, mesmo no mundo industrializado de quase todos os outros seres humanos ao longo de toda a histria. Pois umtrao caracterstico da viso cientfica de mundo que ela admite que nem tudoo que acontece tem um sentido humano. Penso que, para explicar essa diferenaentre as concepes cientficas e no cientficas, precisamos comear pelo fatode que o mundo, tal como as cincias o concebem, estende-se imensamentealm do horizonte humano, no tempo e no espao.Como indicou Alexandre Koyr no ttulo de seu clebre estudo sobre o nas-cimento da moderna fsica celeste, a revoluo newtoniana seguiu a trilha in-telectual que vai From the Closed W orld to the Infinite Universe [Do mundo fe-chado ao universo infinito*]; e a disputa vitoriana entre a cincia e a religioteve em seu centro um debate sobre a idade da Terra, com a geologia insistindoem que a escala temporal bblica, de alguns milhares de anos decorridos desdea Criao, subestimava radicalmente a idade do planeta. Coprnico levou oscientistas europeus de uma viso geocntrica para uma viso heliocntrica douniverso, e iniciou um processo, continuado por Darwin, que retirou inape-lavelmente a espcie humana do centro das cincias naturais. O reconheci-mento de que o universo no parece ter sido feito para ns a base do carterradicalmente no antropocntrico das teorias cientficas do mundo. Esse no-antropocentrismo faz parte da mudana de opinio que se desenvolveu com ocrescimento do capitalismo, da cincia e do Estado moderno, mudana abor-dada, por exemplo, pela explicao weberiana da modernizao; e ele contri-bui profundamente para o sentimento de um universo desencantado, que osweberianos julgaram ser um trao muito central da modernidade (afirmaoque faz mais sentido como referente vida dos intelectuais profissionais do" Edio brasileira: So Paulo, Forense Universitria/Editora da Universidade de So Paulo.

    (N. da T.)

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    178a casa de meu paique como urna afirmao sobre a cultura em geral). Voltarei a essas questesno captulo 7.Mas em seu trabalho original, como eu disse, Horton fez uma segunda afirma-o-irnportante'em prol da diferena: resumiu-a chamando o mundo cognitivodas lfuras tradicionais de "fechado", e o das culturas modernas, de "aberto"."O que considero ser a diferena fundamental uma diferena muito simples",escreve ele. " que, nas culturas tradicionais, no h uma conscincia desenvol-vida das alternativas ao corpo de princpios tericos aceito, ao passo que, nasculturas de orientao cientfica, essa conscincia altamente desenvolvida."Quando samos das questes relativas ao contedo e lgica da explicao tra-dicional e cientfica e entramos nos contextos sociais em que essas teorias soconstrudas e mobilizadas, a que a explicao de Horton comea a parecermenos satisfatria.

    Devemos comear, entretanto, concordando em que existem claramente im-portantes diferenas entre os contextos sociais-da formao e desenvolvimentoda teoria na frica pr-colonial, de um lado, e na Europa ps-renascentista, deoutro. A cincia moderna teve incio na Europa, justamente quando seus povosestavam comeando a se expor s culturas antes desconhecidas do Oriente, dafrica e das Amricas. Os primeiros trabalhos cientficos em lngua verncula os dilogos de Galileu, por exemplo foram escritos na Itlia, numa pocaem que fazia algum tempo que as cidades mercantis italianas encontravam-seno centro do comrcio entre o Mediterrneo, o Oriente prximo e distante, o Novo Mundo e a frica. Num clima assim, era natural indagar se as certe-zas do-s-antepa-ssados estariam corretas, no confronto com culturas como a Chi-na descrita por Marco Polo, cuja engenhosidade tcnica combinava-se com teo-rias da natureza totalmente desconhecidas.

    Esse questionamento das crenas ocidentais ocorreu no apenas em termos dateoria da natureza, mas tambm recapitulou as discusses gregas sobre os modoscomo as questes de valor parecem variar de um lugar para outro, discussesestas que levaram, muito naturalmente, a um ceticismo moral e cientfico, exata-mente do tipo que encontramos nos primeiros empiristas modernos. E no pare-ce ter sido por coincidncia que essas antigas discusses gregas foram instigadaspor uma conscincia de que existiam vises de mundo alternativas, africanas easiticas uma conscincia encontrvel nos primeiros historiadores, como He-rdoto. (O relato de Herdoto sobre as Guerras Persas comea por uma longadiscusso da variedade de costumes religiosos e sociais encontrados no ImprioPersa.) Em outras palavras, a disponibilidade de teorias alternativas da moral eda natureza que d origem investigao sistemtica da natureza, ao aumento daespeculao e ao desenvolvimento desse elemento crucial que distingue a socie-dade aberta, ou seja, o questionamento organizado da teoria vigente.

    Velhos deuses, novos mundos79Lembremos a resposta dada pelo sacerdote pergunta sobre o ouro em. p."Ns o fazemos porque os ancestrais o faziam." Na sociedade aberta, isso j noserve de razo. Os primeiros cientistas naturais modernos, os filsofos naturaisdo Renascimento, freqentemente frisavam a irracionalidade dos apelos auto-ridade: e, se a erudio moderna sugere que eles superenfatizaram o quanto seuspredecessores tinham sido vtimas de um tradicionalismo tacanho, mesmo as-sim verdade que existe uma diferena nem que seja de grau na medidacomo a modernidade celebra a distncia cognitiva em relao a nossos prede-cessores, enquanto o mundo tradicional celebra a continuidade.Pois bem, a explicao de Horton sobre o sentido em que a viso de mundotradicional fechada tem sido acertadamente questionada. Em boa parteda frica pr-colonial, as complexidades da guerra e do comrcio, da domina-o e do clientelismo, da migrao e da diplomacia, simplesmente no so com-patveis com a imagem de povos desconhecedores de que existe um mundo emoutro lugar. Como assinalou Catherine Coquery-Vidrovitch, urna eminentehistoriadora francesa da frica:

    Na verdade, essas sociedades supostamente estveis raras vezes desfrutaramdo encantador equilbrio que se presume ter sido rompido pelo impacto docolonialismo. A frica Ocidental, por exemp lo, fervilhou de atividade j des-de as ondas de conquista dos fulas no sculo XVIII, e muito antes da criaodas unidades de resistncia influncia europia (...). A bacia congolesa foipalco de convulses sociais ainda mais profundas, ligadas penetrao co-mercial. Nesses casos, a revoluo na produo abalou os prprios alicercesestrutura-polltica. Quanto ao-Sul da frica, -a ~ha- dos mins- e suae xpanso tiveram repercusses que chegaram frica Central. At onde tere-mos de recuar para encontrar a estabilidade tida corno "caracterstica" do p e-rodo pr-colonial: at antes da conquista portuguesa, antes da invasoislmica, antes da expanso dos bantos? Cada um desses grandes momentosde deciso marcou uma reviravolta em tendncias de longo prazo, dentro dasquais, por sua vez, seria possvel identificar toda uma srie de ciclos mais cur-tos, como, por exemp lo, a sucesso dos imprios sudaneses, ou de ciclos ain-da mais curtos, corno os perodos de recesso (1724-1740, 1767-1782, 1795-1811 etc) e a ascenso da economia de comrcio escravagista de Daom. Emsuma, o conceito esttico de sociedade "tradicional" no consegue resistir anlise do historiador."

    Em particular como insistiu o prprio Horton em "Cem anos de mudanana religio kalabari" , os historiadores africanos podem detectar mudanasnas crenas religiosas e outras em diversos locais, muito antes do advento dosmissionrios cristos e dos educadores coloniais. Os iorubanos tiveram conhe-cimento do Isl antes de conhecerem a Inglaterra, e de Daom antes de ouviremfalar da Gr-Bretanha. Mas a religio ioruba tem muitas das caractersticas que

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    180a casa de meu paiHorton se props explicar atravs da referncia, justamente, a um desconheci-mento dessas alternativas.Nas sociedades tradicionais, tambm possvel encontrar pensadores espe-culativos de primeira classe, cuja mentalidade aberta inegvel. Estou pensan-do 'em Ogotemffieli, cuja cosmologia Griaule captou em Dieu d'eau [Deus degua]; e ' Barry Hallen forneceu provas, obtidas de fontes nigerianas, sobre aexistncia, dentro dos modos de pensamento africanos tradicionais, de estilos

    de raciocnio que no so passveis nem das crticas severas de Wiredu nem dasmais brandas de Horton." Para comear, diz Hallen, quando as pessoas ioru-banas respondem pergunta "Por que voc acredita em X?", dizendo que "Isso o que diziam os antepassados", 3 4 da maneira questionada por Wiredu e queHorton tambm considera tpica, elas no esto tentando fornecer uma justifi-cativa ponderada para acreditar em X. Antes, estoentendendo a pergunta como dizendo respeito origem de uma crena oucostume. Esto dando o mesmo tipo de resposta que os ocidentais tenderiama dar se lhes perguntassem como eles passaram a acreditar em barbear osplos do rosto. Entretanto, quando se vai adiante e se pede a um ioruba paraexplicar o que "significa" uma crena, freqente surgir uma resposta maissofisticada."

    Hallen ainda argumenta que, na cultura iorubana, essa resposta mais sofisticadamuitas vezes atende aos requisitos-padro de ser crtica e reflexiva. Hallen tomacomo modelo a caracterizao que Karl Popper 3 6 faz da reflexo crtica sobre atradio, gesto que ainda mais significativo, considerando-se a proveninciapopperiana da dicotomia aberto-fechado. Esta exige:identificar a tradio como tradio;exibir um conhecimento de suas conseqncias; e3. estar ciente de ao menos uma alternativa e, com algum fundamento cr-tico, optar por afirm-la ou rejeit-la.37

    Por esse teste, o babala ioruba o adivinho e curandeiro citado por Hallen criticamente apreciador da tradio em que acredita.Hallen tem razo, portanto, em contestar a estrutura da dicotomia horto-niana original do aberto e do fechado. Por um lado, como afirmei h pouco, hna histria e na sociologia da cincia ps-kuhnianas um bom nmero de provasde que esses desideratapopperianos raramente so atendidos na fsica, cerne dateoria ocidental. Por outro, a nfase original de Horton na natureza "fechada"dos modos de pensamento tradicionais realmente se afigura menos satisfatriaem face da complexa histria das trocas culturais da frica e diante do babalade Hallen, ou na presena da extraordinria sntese metafsica do ancio deDogon, Ogotemmeli." Num livro recente escrito com o filsofo nigeriano

    Velhos deuses, novos mundos81J. O. Sodipoallen insiste na presena, entre os mdicos iorubanos, de teo-rias da feitiaria bem diferentes das de seus conterrneos." Aqui, portanto,ocorre entre os mdicos uma especulao incompatvel com a crena popularcomum; e no h razo para duvidar de que esse aspecto da cultura ioruba con-tempornea seja, nesse sentido, semelhante a muitas culturas pr-coloniais.Mas, ao rejeitar por completo a caracterizao hortoniana do mundo tradi-cional como "fechado", corremos o risco de perder de vista uma coisa importan-te. Pensadores como Ogotemmeli so indivduos indivduos como Tales e osoutros primeiros pr-socrticos da tradio ocidental , e h poucos indcios deque suas opinies tenham ampla circulao ou impacto (na verdade, parece cla-ro que os babalas conhecidos por Hallen e Sodipo no esto especialmente inte-ressados em partilharou difundir suas especulaes). Se o pensamento "tradicio-nal" est mais ciente das alternativas e contm mais momentos de especulaodo que sugeriu a imagem original de Horton, tambm verdade que ele diferedo pensamento dos tericos e da gente comum do mundo industrializado emsuas respostas a essas alternativas e em sua incorporao dessas especulaes.Horton passou recentemente a falar em parte, em resposta crtica deHallen no de os sistemas tradicionais de crena serem fechados, mas, to-mando emprestado um termo de Wole Soyinka, de eles serem "conciliatrios".Ele discute um trabalho feito por alunos de Evans-Pritchard, que no apenasaborda o tipo de corpo esttico de crenas captado na imagem que Evans-Pritchard faz do mundo de pensamento azande, mas tambm frisa a maneiradinmica e como admite Horton "aberta" pela qual eles "concebem expli-caes para elementos inditos da (...) experincia", bem como "sua capacidadede tomar emprestadas, reelaborar e integrar idias alheias no curso da elabora-o dessas explicaes". "Na verdade, foi essa 'abertura' que deu s cosmologiastradicionais uma durabilidade to impressionante, diante das imensas mu-danas que o sculo XX introduziu no cenrio africano." Horton contrasta esseestilo "conciliatrio" com o estilo "antagonstico" da teoria cientfica, que secaracteriza pelo modo como o principal estmulo mudana de crenas no "a experincia indita, mas uma teoria rival"."E me parece que essa mudana da terminologia popperiana do "aberto" e do"fechado" permite a Horton captar uma coisa importante sobre a diferena en-tre a religio tradicional e a cincia, uma coisa que tem a ver, no com as estrat-gias cognitivas individuais, mas com as sociais. Se quisermos compreender aimportncia da organizao social na diferenciao entre a religio tradicional ea cincia natural, no poderemos fazer nada melhor do que comear, dentre asrespostas de Evans-Pritchard questo de por que os azande no percebem afalsidade de suas crenas mgicas, por aquelas que mencionam fatos sociais so-bre a organizao das crenas.

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    182a casa de meu pai Velhos deuses, novos mundos83Evans-Pritchard escreveu:O ceticismo, longe de ser sufocado, reconhecido e at inculcado. S queapenas a respeito de certos medicamentos e certos curandeiros. Em contras-te; ele tende a apoiar outros medicamentos e outros curandeiros.Cada homem e cada grupo de parentesco age sem conhecimento dasaes dos outros. As pessoas no partilham suas experincias ritualsticas.Elas no tm uma inclinao experimental.'" (...) No sendo de ten-dncia experimentalista, no verificam a eficcia de seus medicamentos.E, acrescentou Evans-Pritchard, "as crenas zande geralmente tm uma formu-lao vaga. Uma crena, para ser facilmente contrariada pela experincia, (...)tem que ser claramente compartilhada e intelectualmente desenvolvida."42Como quer que efetivamente sejam as prticas dos cientistas imperfeitos,no se supe que nenhuma dessas coisas se aplique cincia natural. Em nossaimagem oficial das cincias, o ceticismo incentivado at no que diz respeito squestes de fundamento: na verdade, supe-se-que os melhores estudantes se-ro orientados para isso. Os pesquisadores cientficos concebem a si mesmoscomo urna comunidade que atravessa fronteiras polticas to divisrias quantoa (extinta e no lamentada) cortina de ferro da Guerra Fria; e os resultados, as`experincias", so compartilhados. A comunidade cientfica tem uma inclina-o experimentalista; e, claro, a teoria cientfica formulada com a maior pre-ciso possvel, a fim de que esses experimentos possam ser realizados de manei-ra controlada.

    Essa, evidentemente, apenas a viso oficial. Trs dcadas de trabalho na his-tia e na sociologia da cincia, desd-e o Iconoclasta '1 lie Structure of ScientificRev olutions [A estrutura das revolues cientficas*] de Thomas Kuhn, deixaram-nos uma imagem da cincia como algo muito mais confuso e obscuro; em sn-tese, corno uma coisa mais humana. No entanto, embora esse trabalho tenhatido o efeito de rever (fica-se inclinado a dizer "macular") nossa imagem dasinstituies de pesquisa,. cientfica, ele no revisou o reconhecimento funda-mental de que a produo do conhecimento cientfico organiza-se em torno deposies tericas rivais, e de que a demanda de publicao, para consolidar osucesso dos laboratrios e dos cientistas individuais, expe cada teoria concor-rente aos comentrios de ambiciosos contra-tericos de outros laboratrios,com outras posies. O que aprendemos, no entanto (embora devesse ter sidobvio desde sempre), que h srios limites impostos gama de posies aserem sustentadas. Em 1981, por exemplo, quando foi publicada A N ew Sc i en ceof L i f e [Uma nova cincia da vida], de Rupert Sheldrake, um correspondente darevista -Nature sugeriu que seria til queim-la; e isso era incompatvel com a" Edio brasileira: So Paulo, Perspectiva. (N. da T.)

    ideologia oficial, porque Sheldrake, um ex-pesquisador da Royal Society queestudou filosofia da cincia, havia elaborado uma proposta que, apesar de pro-vocadora, fora deliberadamente enunciada em termos que a tornavam sujeita auma verificao experimental potencial. Mesmo assim, ela deixou muitos bi-logos (e fsicos) ultrajados e, se no tivesse havido um desafio da revista NewScientist para que se projetassem experimentos, sua proposta como a maio-ria das que so encaradas, de um modo ou de outro, como obra de um "mana-co" provavelmente teria sido simplesmente ignorada por seus pares profis-sionais. (H uma certa concluso a extrair do fato de que o exemplar do livro deSheldrake listado no catlogo da Universidade Duke parece estar na bibliotecada Faculdade de Teologia!) O desenvolvimento da cincia no urna rea deentrada franca, com todos os participantes incentivando uns aos outros com aexclamao: "Que vena a melhor teoria!" Mas a cincia crucialmente antago-nstica: e as normas de publicao e de reprodutibilidade dos resultados, aindaque contem apenas com uma adeso imperfeita, tm a inteno explcita de ex-por as teorias e as afirmaes experimentais ao ataque dos pares e, com isso,possibilitar a competio do aventureiro "jovem turco".*Mais importante do que o contraste imensamente supersimplificado entreuma cincia experimental ctica e um modo de pensamento tradicional,"dogm-tico" e no experimental, a diferena das imagens do conhecimento representa-das pelas diferenas da organizao social da investigao nas sociedades mo-dernas, em contraste com as "tradicionais". Os cientistas, como o resto de ns,aferram-se ,a teorias por mais tempo do que lhes lcito, suprimem, inconscienteou semiconscientemente, provas que no sabem manejar, e mentem um pouco;podemos ter certeza de que, nas sociedades pr-coloniais, houve pessoas isoladasque duvidavam e se atinham sua prpria opinio, resistindo ao dogma local.Mas, o interessante nos modos de teorizao modernos que eles se organizamem torno de uma imagem de mudana constante: esperamos por novas teorias,recompensamos e incentivamos sua pesquisa, e acreditamos que as melhores teo-rias de hoje sero revistas a ponto de se tornarem irreconhecveis, se a empreitadada cincia sobreviver. Meus ancestrais de Achanti nunca organizaram uma ativi-dade especializada que se baseasse nessa idia. Eles sabiam que algumas pessoastm maior conhecimento do que outras e que h coisas por descobrir. Mas nopareciam julgar necessrio investir um esforo social na elaborao de novas teo-rias sobre como funciona o mundo, no para alguma finalidade prtica (o queeles faziam constantemente), mas em si e por si, como costumamos dizer.

    * Expresso de origem inglesa. Refere-se originalmente aos jovens oficiais participantes do movi-mento poltico-militar que, na dcada de 1920, levou formao da Turquia moderna. usadano sentido de caracterizar jovens ousados 'que decidem enfrentar os mais velhos e mais pres-tigiados. (N. da T.)

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    18 4a casa de nieu pai Velhos deuses, novos mundos85As diferenas entre a teoria religiosa tradicional e as teorias das cinciasresidem na organizao social da investigao como um trabalho sistemtico.E, penso eu, so as diferenas na organizao social que respondem tanto peladiferena que sentimos no carter da teoria cientfica natural e da teoria religiosatradicional els so produto de diferentes tipos de processos sociais quantopela espetacular expanso do campo da previso e controle exitosos, uma expan-so que caracteriza a cincia natural, mas que se acha notavelmente ausente dassocieddes tradicionais. A experimentao, a publicao e a reproduo de resul-tados, o desenvolvimento sistemtico de teorias alternativas em termos exatos,todos esses ideais, por mais imperfeitamente que se realizem na prtica cientfi-ca, s so inteligveis numa empreitada social e organizada de conhecimento.

    Mas, o que pode ter instigado essa abordagem radicalmente diferente do co-nhecimento? Por que os praticantes da religio tradicional, inclusive os sacer-dotes, que so profissionais, nunca desenvolveram os mtodos "antagonsticos"organizados nas cincias? H, sem dvida, muitas fontes histricas. Algumassugestes conhecidas nos ocorrem de imediato:A mobilidade social leva ao individualismo poltico, e de um tipo que rarona poltica tradicional; o individualismo poltico tambm permite que a autori-dade cognitiva se desloque do sacerdote e do rei para o plebeu; e a mobilidadesocial uma caracterstica das sociedades industrializadas.Ou ento: nas sociedades tradicionais, conciliar vises tericas conflitantesfaz parte do processo geral de acomodao necessrio queles que esto ligadosuns aos outros como vizinhos, pela vida afora. Lembro-me de haver discutido,certa vez, diferenas de estilo cultural entre Gana e os Estados Unidos com umconterrneo gans e um norte-americano. O estudante norte-americano per-guntou o que nos havia parecido ser a diferena cultural mais importante entreGana e os Estados Unidos, ao chegarmos a este ltimo pas pela primeira vez."Vocs so muito agressivos", disse meu amigo gans; "em Gana, no considera-ramos isso muito boas maneiras." Obviamente, o que ele havia notado no foraa agressividade, mas simplesmente um estilo de conversao diferente. EmGana, mas no nos Estados Unidos, indelicado discordar, discutir ou refutar.E essa abordagem conciliatria da conversa faz parte da mesma gama de atitu-des que leva s conciliaes tericas.Poderamos pensar em outras diferenas no cenrio social, econmico e eco-lgico que, juntas, contribuiriam para explicar essa diferena de abordagem dateoria; no prximo captulo, direi algo sobre a importncia do crescimento daeconomia de mercado para essa questo. Mas, parece-me haver outra diferenafundamental entre a cultura tradicional da frica Ocidental e a cultura domundo industrializado, e ela desempenha um papel fundamental na explicaode por que o estilo antagonstico nunca se firmou na frica Ocidental. Essa di-ferena consiste em que tais culturas eram predominantemente iletradas.

    Como assinalou Jack Goody em seu influente livro The Domestication of theSavage Mind [A domesticao da mente selvagem], a alfabetizao tem conse-qncias importantes, dentre elas o fato de permitir um tipo de coerncia que acultura oral no exige nem pode exigir. Basta escrever uma frase para que, emprincpio, ela exista para sempre; e isso significa que, quando se escreve outrafrase incoerente com ela, pode-se ser flagrado em erro. Esse fato se acha na raizda possibilidade do estilo antagonstico. Quantas vezes vimos Perry Ma