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O Código de Honra- Como Ocorrem as Revoluções Morais- Kwame Anthony Appiah

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Seria uma espécie de impiedade, e quase uma calúnia à natureza humana, crer queexistealgumapro issãoouatividadeestabelecidaerespeitávelemqueohomemnãopossa continuar a agir comhonestidade e honra; e, analogamente, semdúvida nãoexistenenhumaquenãopossavezporoutraapresentartentaçõesemcontrário.

SamuelTaylorColeridge,BiographiaLiteraria,1817

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Prefácio

Estelivrocomeçoucomumaquestãosimples:oquepodemosaprendersobre amoral examinando revoluçõesmorais? Fiz essa pergunta porquehistoriadores e ilósofos têm descoberto muito sobre a ciência com oestudo cuidadoso das revoluções cientí icas. Thomas Kuhn e PaulFeyerabend,porexemplo,chegaramaconclusõesfascinantesexaminandoa Revolução Cientí ica do séculoxvii—quenos deuGalileu, Copérnico eNewton — e a revolução mais recente que nos trouxe as assombrosasteoriasdafísicaquântica.

Semdúvida,odesenvolvimentodosabercientí icogerouumaexplosãotecnológicamaciça.Masoespíritoquemoveaciêncianãoétransformaromundo, e sim entendê-lo. A moral, por outro lado — como insistiuImmanuel Kant —, é, em última análise, prática: moralmente, importa oque pensamos e sentimos, mas a moral, em sua essência, está no quefazemos.Portanto,comoumarevoluçãoéumagrandemudançaempoucotempo,umarevoluçãomoral temde incluirumarápida transformaçãonocomportamento moral, e não só nos sentimentosmorais. Ainda assim, aoinal da revolução moral, como ao inal de uma revolução cientí ica, ascoisasparecemnovas.Olhandoparatrás,mesmoqueapenasumageração,aspessoasexclamam:“Oqueestávamospensando?Como izemos issoportantosanos?”.

Então comecei a examinar várias revoluçõesmorais, vendo o que elaspoderiam ensinar. Quase de imediato percebi que os casos avulsos queestava olhando— o im do duelo, o abandono da prática de amarrar ospés,otérminodaescravidãoatlântica—tinhamalgunstraçosinesperadosem comum. Um deles era que as objeções contra todas essas práticastinham sido claramente explicitadas e eram bem conhecidasmuito antesde serem abolidas. Os argumentos já estavam lá, e em termos que, em

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outras culturas ou outras épocas, ainda podemos reconhecer e entender.Aoquemeparece, independentementedoquetenhaacontecidoparaqueessas práticas imorais cessassem, não foi porque as pessoas se sentiramvencidas por novos argumentos morais. O duelo sempre foi mortífero eirracional;aamarraçãodospéssemprefoidolorosamentedeformadora;aescravidãosemprefoiumataqueàhumanidadedoescravo.

Foi uma surpresa sobre o que não aconteceu. A segunda — e, paramim, muito mais surpreendente — observação foi o queaconteceu: emtodas essas transições, algo a que naturalmente se chamava de “honra”teve um papel central. Isso levou à pesquisa cujos resultados estãoreunidosneste livro.Nãoadmira,claro,queoduelo tivesserelaçãocomahonra,nemqueo imdosduelos trouxessenovas ideias sobreela.Masoquerealmenteadmira,ameuver,équeasideiassobreahonranacionalea honra de trabalhadores muito distantes nas fazendas do Novo Mundoaparecessemcomtantodestaqueaotérminodoenfaixamentodospésedaescravidãomoderna,respectivamente.

Percebi que essas questões também estavam imediatamente ligadas atemas referentes ao papel de nossas identidades sociais — homens emulheres, homossexuais e heterossexuais, americanos e ganenses,cristãos, muçulmanos e judeus —, moldando nossos sentimentos eescolhas. Num livro anterior, já examinei algumas dasmaneiras como asidenti icações com a família, o grupo étnico, a religião e a nação podemcriar vínculos mútuos de orgulho e vergonha. Assim, talvez eu estivesseespecialmente preparado para enxergar as ligações entre honra eidentidadequeestãonocernedasrevoluçõesmoraisabordadasaseguir.

Essa me parece uma conexão muito digna de nota. A identidade ligaessasrevoluçõesmoraisaumaspectodanossapsicologiahumanaqueosilósofosmoraisdelínguainglesanegligenciarampormuitotempo,emboravenharecebendomaisatençãona iloso iamoralepolítica recente:nossaprofundaeconstantepreocupaçãocomaposiçãosocialeorespeito,nossanecessidadehumanadaquiloqueGeorgWilhelmFriedrichHegel chamoudeAnerkennung—reconhecimento.Nós, sereshumanos,precisamosqueos outros respondam apropriadamente ao que somos e ao que fazemos.Precisamos que os outros nos reconheçam como seres conscientes epercebam que nós também os reconhecemos assim. Quando você avista

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outra pessoa na rua e seus olhos se encontram num mútuoreconhecimento, ambos estão expressando uma necessidade humanafundamental e ambos estão respondendo — instantaneamente, semesforço— àquela necessidade que cada um identi ica no outro. O trechomais famoso deHegel sobre a luta pelo reconhecimento aparece quandoele analisa a relação entre o senhor e o escravo na Fenomenologia doespírito.Imaginoqueelenãosesurpreenderiaqueumaparceladaenergiadosmovimentosabolicionistasprocedessedabuscadereconhecimento.

Assim, minha pesquisa me levou a um ponto um tanto inesperado:agora quero reivindicar um lugar central para a honra em nossasre lexões sobre o que é viver umaboa vida humana. Aristóteles pensavaqueamelhorvidaéaquelanaqualsealcançaalgoaqueelechamavadeeudaimonia, e deu ao estudo daeudaimonia onomede “ética”.Pensoqueestelivroéumacontribuiçãoàéticanosentidoaristotélico,queéosentidoemquepretendousarapalavra.

Eudaimonia tem sido enganosamente traduzido como “felicidade”,mascapta-se melhor o signi icado pretendido por Aristóteles de inindoeudaimonia como “ lorescer”. E eu explicaria lorescer como “viver bem”,desdequenãosepensequeaúnicacoisanecessáriaparaviverbeméserbomcomseussemelhantes.Osvaloresquenosguiamparadecidiroquedevemos aos outros formam um subconjunto dos diversos valores queguiam nossas vidas, e considero razoável denominar esse conjuntoespecí ico de valores como valor moral. Neste sentido, o duelo, oenfaixamento dos pés e a escravidão são, obviamente, questões morais.(Nega-se aos escravos, às mulheres de pés amarrados e aos duelistasmortosaquiloquelhescabe.)

Ainda neste sentido, a moral é, evidentemente, uma dimensãoimportantedaética:fazeroquedevoaosoutrosfazpartedoviverbem,eumdostraçoscaracterísticosdosúltimosséculoséoreconhecimentocadavezmaiordasobrigaçõesdecadaumdenósemrelaçãoàsoutraspessoas.Mas uma vida boa, além de ser moralmente boa, envolve muitas outrascoisas; e a iloso ia vive na tentação constante de reduzir a grandemultiplicidadedas coisas quepermitemumaboa vida humana.Uma vidaboa geralmente inclui relações com a família e os amigos, regidas não sópelo que devemos aos outros, mas também pelo que lhes damos

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espontaneamente por amor. Nossas vidas, namaioria dos casos, tambémsetornammelhorescomaatividadesocial.Participamosdeumaigrejaoude um templo; jogamos ou assistimos a jogos juntos; envolvemo-nos napolítica local e nacional. E nos bene iciamos também do contato comalgumasdasinúmerascoisasvaliosasnaexperiênciahumana,entreelasamúsica, a literatura,o cinemaeasartesvisuais, alémdaparticipaçãonostiposdeprojetosqueescolhemosparanós,comoaprenderacozinharbem,cultivar um jardim, estudar a história de nossas famílias. Existemmuitasespéciesdebemhumano.

Uma das formas de começar a entender por que a honra temimportância para a ética é reconhecer as relações entre a honra e orespeito,jáqueorespeitoeorespeitoprópriotambémsãobenshumanosnitidamente fundamentais; somam-se àeudaimonia e nos ajudam a viverbem.

Passeiumbomtempodeminhavidaacadêmicatentandofazercomquemeuscolegasde iloso iareconhecessemaimportânciateóricaepráticadecoisasaquetalvezdessempoucaatenção:raçaeetnia,sexoesexualidade,nacionalidadeereligião—en im,todasessasricasidentidadessociaiscomas quais compomos nossas vidas. A honra, por sua vez, é outro tópicoessencial pouco estudado pela iloso ia moral moderna. E é essencialporque, tal como nossas identidades sociais, ela cria uma conexão entrenossas vidas. A atenção à honra, assim como à importância de nossasidentidades sociais, também pode nos ajudar a tratar os outros comodevemos e a viver melhor nossa própria vida. Antigamente os ilósofossabiamdisso—veja,porexemplo,Montesquieu,AdamSmithou,ainda,opróprio Aristóteles. Mas, se o “respeito” e o “respeito próprio” estão emaltana iloso iacontemporânea,oconceitode“honra”—relacionadomasdistinto — parece bastante esquecido. É hora, acredito, de devolver ahonraàfilosofia.

Os episódios históricos apresentados neste livro ilustram — e, destemodo, permitem que exploremos—diversas características da forma deatuação da honra no tempo e no espaço. Cada uma delas nos possibilitaacrescentar elementos ao quadro. Numa jornada da Inglaterra à China edepois voltandoaomundoatlântico, podemos captar as váriasdimensõesdahonracommaisprofundidade.Nãosão trêshistórias locaisseparadas,

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mas iosdeumamesmahistóriahumana,quediz respeitoàspessoasemCingapura,MumbaienoRiodeJaneirotantoquantoàspessoasqueestãoemLosAngeles,naCidadedoCaboouemBerlim.Etenhocertezadequeemtodosesses lugares,adespeitodasvariações locaissobreostemasdahonra,encontraríamosepisódiosquenosensinariamasmesmaslições.

No entanto,meu objetivo não é apenas entender outros povos, outrostempos e outros lugares, mas também iluminar nossa vida hoje. Maisespeci icamente,querousaras liçõesquepodemos tirardopassadoparalevantar um dos problemas mais espinhosos que a honra apresenta aomundocontemporâneo:oassassinatodemeninasemulheresemnomedahonra.QuandoformosaoPaquistão,nocapítulo4,estaremosprontosparaentender e enfrentar um dos lados sombrios da honra; e, tal como noscasoshistóricos,asliçõesqueaprendemosnumlugarseaplicamaoutros.Concentro-me no Paquistão, mas desde já é importante deixar claro queessepaísnãoé,nemdelonge,oúnicoondehojeocorremassassinatosporhonra.

O crime de honra não é a única forma como a honra é utilizada naatualidade, emeu objetivo no último capítulo é indicar de quemaneira acompreensão da honra pode nos ajudar a lidar com outros problemascontemporâneos. “O que eles estavam pensando?”, perguntamos sobrenossos antepassados; mas sabemos que, daqui a um século, nossosdescendentes perguntarão amesma coisa a nosso respeito. Quem sabe oque lhes parecerá mais estranho? Os Estados Unidos têm 1% de suapopulação encarcerada e submetem muitos milhares de prisioneiros aanosdecon inamentonumasolitária.NaArábiaSaudita,asmulheresnãopodemdirigir.Existempaísesondehojeahomossexualidadeépunidacomprisão perpétua ou condenação à morte. E há também a realidade docon inamentona pecuária e na avicultura industrial, emque centenas demilhões de mamíferos e bilhões de aves têm uma existência curta emiserável.Ou,ainda,aextremapobreza,toleradadentroeforadomundodesenvolvido.Umdia,aspessoasvãosepegarpensandoquenãosóumaantigapráticaeraerradaeanovaécerta,mastambémquehaviaalgodevergonhosonosvelhosusos.Duranteatransição,muitosmodi icarãoseushábitos porque sentem vergonha da antiga maneira de fazer as coisas.Assim, talvez não seja demais esperar que, se encontrarmos já o lugar

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adequado da honra, podemos melhorar o mundo. Este livro pretendeexplicarahonraparanosajudarareconhecersua importânciaconstanteparacadaumdenós.

Quando eu era menino, o cantor irlandês Val Doonican fazia sucesso

comamúsica“Walktall”,naqualelecontavaoquesuamãefalavaquandoele“nãopassavadojoelhodela”.Eladiziaqueo ilhodeviaacreditaremsimesmo e fazer a coisa certa, e ainda o ensinava a “olhar omundo diretonosolhos”.Mesmojápassandodaalturadojoelhodosoutros,eutambémlembro como essa advertência materna me marcou (muito embora opersonagem da canção estivesse na cela de uma prisão, onde tinha idoparar por não ter seguido o conselho da mãe). Val Doonican tinha umabela voz e a música era ótima, mas aquilo icou comigo por mais dequarenta anos certamenteporque expressava com simplicidadeum idealde honra. A psicologia da honra tem uma ligação profunda com aautocon iança e comolhar omundonos olhos. AmãedeVal também lheadvertia que mantivesse “a cabeça erguida”; e, quando as pessoascapacitadas com senso de honra lembramquemerecem respeito, andamliteralmente com a cabeça erguida. Podemos ver o respeito próprio quetêm,eelaspodemsenti-loestufandoopeitoeendireitandoascostas.

A humilhação, por outro lado, encurva a coluna, abaixa os olhos. Emaxânti-twi,línguadomeupai,quandoalguémfazalgodesonroso,dizemos:“Seurostocaiu”.De fato,para fazer caradevergonhaapessoaabaixaosolhos. Se temos uma palavra para honra em twi, essa palavra éanimuonyam, que contém a raiznim, que signi ica “rosto”. Todos sabemqueoschineses falamem“ icarsemcara”;em inglês, francêsealemão,apessoa pode icar sem cara, mas pode também salvar a cara. ExtremoOriente, Europa Ocidental, África Ocidental: três zonas muito diferentes.Issosugerequeossereshumanospodemteressaspropensõesbásicasemtodoomundo.

Oquevocêfazdeliberadamentecomseurosto—seprefereescondê-loou ostentá-lo — não é a única coisa que importa. Coramosinvoluntariamente de vergonha; lágrimas vêm aos nossos olhos com umsentimentointenso,especialmentenocasodeemoçõesmorais,taiscomoa

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indignaçãoeoorgulho.Ésobretudopelorostoquevemosoqueosoutrosestão sentindo, e assimapreocupaçãodahonra como rosto talvezpossasugerirqueahonramobilizanossossentimentosapenasquandoestamosna presença de outrem. Mas é claro que não é assim. Você pode sentirvergonhamesmoestandosozinho.

No séculoxvii, René Descartes escreveu que era “obrigado a admitirque enrubesço de vergonha em pensar que elogiei esse autor nopassado”.1 Podemos imaginá-lo sentado no escritório, re letindo sobreaqueleelogioepercebendoquetinhademonstradopéssimodiscernimento— o tipo de discernimento equivocado que signi ica que ele nãomerecemais um respeito intelectual irrestrito. O sangue lhe sobe ao rosto. Zelarpela honra é querer ser digno de respeito. Ao perceber que fez algumacoisaqueotornaindigno,vocêsentevergonha,mesmoqueninguémestejaolhando.

No inaldolivro,játereiapresentadooquepodemoschamarde“teoriadahonra”.Mascreioqueamelhormaneiradechegarláéexaminarcomoahonra opera em seus elementos centrais, vendo-a em ação na vida dosindivíduos e das comunidades. No começo do último capítulo, reunireitodos os elementos da teoria que teremos descoberto juntos. É o lugarcerto,penso,paraapresentara íntegradaproposição,poisas teoriasnãosão de grande valia sem os argumentos que lhes dão sustentação; eenquanto você não souber por que faço determinadas a irmações, nãopoderáentendê-lasrealmentebem,nemconcluirseestoucertoouerrado.

Agora sei que hoje em dia muitos não gostam de falar em “honra” eacham que estaríamos melhor sem ela. (É o tipo de coisa que a genteaprende depois de passar alguns anos respondendo à pergunta “O quevocê anda fazendo?” com “Escrevendo um livro sobre honra”.) Mas, sejavocê contra ou a favor da honra, tenho certeza de que reconhecesentimentos como a vergonhadeDescartes e o orgulho deValDoonican.Um fato central entre os seres humanos é que nossas sociedades criamcódigosquesefundamnessespadrõesdecomportamentoesentimento.Ocernedapsicologiadahonra—mostrarereceberrespeito— jáestáemtodos os seres humanos normais, pormais esclarecidos e avançados quesejam.Essaéumadasrazõespelasquaispensoqueprecisamoslevá-laemconta.Ahonra sebaseiaem tendências fundamentaisdapsicologia social

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humana, e certamente émelhor entendernossanatureza e lidar comelado que declarar que preferiríamos ser diferentes — ou, pior, fazer deconta que não temos natureza nenhuma. Podemos achar que acabamoscomahonra,masahonranãoacabouconosco.

KwameAnthonyAppiahPrinceton,NewJersey

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1.Morreoduelo

…aigualdadeéindispensável.RegraxivdeTheIrishpracticeofduellingandthepointof

honour[Apráticairlandesadodueloeopontodehonra]

umrecontrodesairoso

Em 21 de março de 1829, um pouco antes das 8h, o duque de

Wellington, primeiro-ministro da Inglaterra, chegou a cavalo numaencruzilhada ao sul do Tâmisa, cerca de oitocentos metros adiante daponteBattersea.Poucodepois,tambémacavalo,juntou-seaeleseucolegadegabineteeministrodaGuerra,sirHenryHardinge,epassadomaisumbreveintervalochegounumacarruagemomédicododuque.

Depois de se cumprimentarem, o médico passou ao lado de umapequena casa rural e, escondendoduaspistolas no sobretudo, foi até umgrande campo aberto, chamado Battersea Fields, onde ocultou as armasatrás de uma moita. Battersea Fields era um local bastante conhecidoaonde os cavalheiros iam se encontrar para duelar, e qualquer um quetivessevistoessasucessãodechegadassaberiaoqueestavasepassando.PraticamentetodososhabitantesdeLondresteriamreconhecidooduque,cujo rosto, com o grande nariz romano e a testa alta, era famoso desdesuasprimeirasvitórias sobreosexércitosnapoleônicosnaEspanha,vinteanos antes. Assim, qualquer espectador icaria curioso para ver quemseriaopróximoachegar.

A inal, tendoaparecidoumcavalheiro comassistente emédico, eradesepreverquesurgisseumadversáriocomseurespectivoassistente.Equeo duque empertigado, epítome da honra, modelo de serviços ao rei e ao

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país,estivessesepreparandoparaumduelonaturalmentefariaqualquerumseperguntarquemteriadesafiadosuahonra.

A pergunta logo foi respondida quando aos três juntou-se o conde deWinchilsea e seu assistente, o condedeFalmouth.OnomedebatismodelordeWinchilseaeraGeorgeWilliamFinch-Hatton.(SeunetoDenysFinch-Hatton era aquele aristocrata inglês bonitão que foi interpretado porRobertRedfordno ilmeEntredoisamores.)Finch-Hattoneramuitomenosfamosodoqueoduque,emesmoessapoucanotoriedaderesultavadeseuativismo,noanoanteriorounosdoisanosanteriores,contraomovimentodesuspenderalgumasproibiçõeslegaisquepesavamsobreoscatólicosnaInglaterra (que, de uma ou de outramaneira, vinhamdesde a Reforma).Orador eloquente, ele discorria dentro e fora do Parlamento sobre anecessidadedeprotegeraféeastradiçõesdeseusantepassados.Eraumaliderança entre aqueles ingleses que continuavam a acreditarardorosamentequeeraimpossívelserlealàInglaterrae,aomesmotempo,ao papa emRoma.Winchilsea era alto, tinha cabelos escuros e um ísicorobusto. Estava no inal dos trinta anos e era vinte e poucos anos maisnovo do que o duque. Deve ter parecido imponente quando chegou acavalocomFalmouth,que,comoele,tambémeraex-oficialdoExército.

O duque de Wellington manteve-se à distância enquanto os doisassistentes,FalmoutheHardinge,travavamumdiálogoacalorado.Entãoomédico carregou as pistolas que havia escondido atrás da moita — atarefa,arigor,caberiaaHardinge,maseletinhaperdidoamãoesquerdanasguerrasnapoleônicas—,enquantolordeFalmouthcarregavaumadasduas pistolas que levara consigo. Hardinge escolheu um lugar para oduque, deu doze passos e instruiu lorde Winchilsea a tomar posição.Wellington levantou objeções ao primeiro local. “Droga”, ele disse. “Não oponhatãopertodavala.Seeuoatingir,elevaicairdentrodela.”1

Por im, de inida a posição de cada um, Hardinge deu uma pistola aoduque, e Falmouth, por suavez, entregouaoutra aWinchilsea.Hardingerecuoualgunspassose,depoisdemaisalgumasformalidades,falou irme:“Cavalheiros, estãoprontos?Fogo”.Oduqueergueuapistolae, apósumabreve pausa (provavelmente porque o conde não tinha feito nenhumpreparativo),atirou.Winchilsea icouileso.Então,bemdevagar,levantouapistolaparaoaltoedisparounoar.

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Mais tarde, o médico de Wellington apresentou a seguinte versão daconversaqueseseguiuentreosdoisassistentes:

Oduque continuou imóvel emseu lugar,mas lordeFalmouthe lordeWinchilseadirigiram-seimediatamente a sir Henry Hardinge, e lorde Falmouth lhe disse: “Lorde Winchilsea, tendorecebidoodisparododuque,encontra-seemcircunstânciasdiferentesdaquelasemqueestavaanteriormente,eagorasesenteemliberdadeparadaraoduqueareparaçãoqueeledeseja”.

Falmouth seguia a convençãodeque todosos comunicadosdeviam se

dar entre os assistentes, e sir Henry, como assistente do duque, tinha aobrigação de responder. Assim, depois de alguns segundos de tensão,Hardinge disse: “O duque espera um amplo pedido de desculpas e umaadmissãoplenaecompletadeseuerroaopublicaraacusaçãoquefoifeitacontraele”.AoquelordeFalmouthrespondeu:“Peçodesculpasnosentidomais amploou totaldapalavra”, e então tiroudobolsoumpapelnoqualestava escrito aquiloquedisse serumaadmissãode lordeWinchilseadequeestavaerrado.2

Depois demais uma discussão acalorada e de uma correção propostapelo médico, todas as partes concordaram com uma versão levementemodificadadopedidodedesculpasqueFalmouthhaviapreparado.

Oduqueseaproximouefezumavêniaaosdoiscondes,eFalmouth,quehavia mostrado evidente relutância em participar dos procedimentos,declarou que sempre achara que Winchilsea estava totalmente errado.Hardinge então deixou claro que ele achava que, se Falmouth realmentepensava assim, não deveria ter aceitado o papel de assistente deWinchilsea. Quando Falmouth tentou se explicarmais uma vez, agora aoduque, Wellington o interrompeu dizendo: “Meu senhor Falmouth, nãotenhonadacomtaisassuntos”.Entãoroçoudoisdedosnaabadochapéue,antes de voltar à sua montaria, despediu-se: “Bom dia, meu senhorWinchilsea;bomdia,meusenhorFalmouth”.

Aoexaminaresseinfameepisódioeasreaçõesaele,podemosentenderaculturadahonraemtransformaçãonaInglaterranaprimeirametadedoséculoxix. Amortedoduelona Inglaterra—odesaparecimentodeumaprática que havia de inido a vida dos cavalheiros por cerca de trezentosanos—éaprimeirarevoluçãomoralqueeugostariadeinvestigaraqui.E

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o recontro de Wellington e Winchilsea em Battersea Fields nos mostraalgumasdaspressõesquelevaramaisso.

desafiosconstitucionais

OdueloderivoudaoposiçãoferozdeWinchilseaaumprojetodeleique

Wellington defendia na Câmara dos Lordes: a Lei da Liberação Católica,que permitiria aos católicos ter assento no Parlamento britânico pelaprimeira vez depois de mais de 150 anos. Um ano antes, em junho de1828, Daniel O’Connell, o patriota irlandês fundador da AssociaçãoCatólica, que tinha como inalidade melhorar a situação dos católicos naIrlanda, foraeleitoparaoParlamento.O’Connell e suaplataformapolíticatinhamenormepopularidadena Irlanda,comodemonstraramaseleições,e, em Londres, ele seria o porta-voz de tais posições no Legislativo.Mas,pelofatodesercatólico,elenãopodiaterassentonaCâmaradosComuns—amenosqueprestasse juramentodeque“a invocaçãoouadoraçãodaVirgemMariaoudequalqueroutroSanto,eoSacri íciodaMissa,comosãoagora usados na Igreja de Roma, são supersticiosos e idólatras”.Obviamente,nenhumcatólicoqueseprezassefariaumjuramentodesses;e é claro que era exatamente por isso que se exigia o juramento. EssaexclusãodoParlamentore letiaasváriasoutrasexclusõesqueatingiamosirlandeses católicos em seu próprio país. Os ânimos na Irlanda estavamesquentadosaesserespeito,eemalgunslugaresfalava-seemguerracivil.

Comoamaioriadostóris—incluindosirRobertPeel,queencaminhavaoprojetodeleinaCâmaradosComuns—,Wellingtonhaviasidocontrárioà emancipação católica, e nenhum dos dois tinha mudado de posiçãocasualmente. O duque, que nascera na Irlanda e, quando jovem político,foraministro para a Irlanda, estava em posição especialmente adequadaparaavaliar adelicadezada situaçãonaquela ilha inquieta.Passaraa serfavorável à emancipação católica porque, como observou num discursoduranteasegundaleituradoprojetonaCâmaradosLordes—quemuitosconsideraramumdosmelhoresdiscursosdesuacarreiraparlamentar—,a Irlandapareciaestar “àbeiradaguerra civil”.Eoprimeiro-ministrodorei acrescentou, aos aplausos daquela augusta câmara: “Devo dizer o

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seguinte:seeupuderevitar,aqualquercustoqueseja,mesmoapenasummês de guerra civil no país a que sou ligado, sacri ico minha vida paratal”.3

MasGeorgeWilliamFinch-Hatton,décimocondedeWinchilsea,gostavade imaginar o pior e, à medida que se aproximava a aprovação inal doprojetode lei, ele frequentemente comentavaqueoduquedeWellingtonestava conspirandoumataqueà constituiçãoprotestante.Num folhetodefevereiro de 1829, Winchilsea tinha conclamado seus “ irmãosprotestantes! [...] a se apresentar energicamente em Defesa de nossaReligião e Constituição Protestante”. Como o “grande corpo de seusSenadoresdegeneradosestápreparadoparasacri icaraoaltardaTraiçãoe da Rebelião aquela Constituição pela qual nossos Ancestrais tãonobremente lutaram e morreram”, ele convocava seus compatriotas afazerumapetiçãoaoreieaoParlamento.Subscrevendo-semodestamentecomo“humildeedevotadocriado”deseus irmãosprotestantes,assinouofolheto—demaneirapoucohumilde—como“WinchilseaeNottingham”,poiscalhavasertambémoquintocondedeNottingham.

Numa carta ao jornalStandard, publicada em 16 demarço domesmoano, cerca de uma semana antes da aprovação do projeto, WinchilsealançouumataquemaisespecíficoaoduquedeWellington.Elealegouqueoprimeiro-ministrodoreitinhafeitoumamanobraescusaaooferecerapoioinanceiro para a criação do King’s College de Londres como instituiçãoanglicanapara contrabalançara recente criação laicadaUniversidadedeLondres. O envolvimento do duque nesse projeto ostensivamenteprotestante era um “subterfúgio”, disse Winchilsea, que lhe permitiria,“sob o disfarce de uma demonstração exterior de zelo pela religiãoprotestante[...] levarà frenteseusdesígnios insidiososparaaviolaçãodenossas liberdadesea introduçãodopapismoem todososdepartamentosdoEstado”.4

Ninguém duvidava do forte apego de Winchilsea à Igreja Anglicana.Segundo Charles Greville — que foi escrevente do Conselho Privado, ocorpoquereuniatodososprincipaisconselheirospolíticosdomonarca,de1821a1859—,Winchilseaera“umpardoreinosemimportânciapessoal,masdefensorinflexíveldaIgrejaedoEstado”.5Aindaassim,acusaroheróidas guerras contra Napoleão, o “Salvador da Europa” e o vencedor de

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Waterloo, de dissimular sua verdadeira fé e trair a Constituiçãocertamenteera ir longedemais—comodiriamoscavalheirosnosclubeslondrinosporondecirculavaaacusação.

Ferido pela acusação pública deWinchilsea,Wellington insistiu que oconde se retratasse—coisaque ele se recusou a fazer apósuma rápidatroca de bilhetes. E assim, em20 demarço de 1829, o duque enviou-lheumamensagemdesdenhosana qual perguntava: “Terá oMinistro doReide se submeter aos insultos de qualquer cavalheiro que pense seradequado lhe atribuir motivos ignominiosos ou criminosos para suaconduta como indivíduo?”. E ele mesmo respondeu imediatamente: “Nãotenho dúvidas sobre a decisão que deverei tomar em relação a esteassunto.VossaSenhoriaéoúnicoresponsávelpelasconsequências”.Entãoinsistiu queWinchilsea lhe desse “a satisfação que um cavalheiro tem odireitodeexigirequeumcavalheironuncase recusaadar”. 6Namanhãseguinte, o duque e o conde se encontraram com seus assistentes emBatterseaFields.

Poucas semanas depois, a Lei da Liberação Católica recebeu aaprovaçãorégiadeJorgeive,comela,aforçadelei.Correuoboatodequeo rei anticatólico chorou ao assiná-la, obrigado a fazê-lo sob a ameaça derenúnciadeWellington.

oqueeleestavapensando?

Essas foram as circunstâncias que deram origem ao desa io de

Wellington. Mas agora pense sobre isso. O duque não era um partidárioentusiasta do duelo. Na verdade, ao contrário de muitos o iciais de suaépoca e apesar de sua carreira militar extremamente ilustre, ele nuncatinhadueladoejamaisvoltouaduelar.Quandoeracomandantedecamponas guerrasnapoleônicas, parecia acreditarque ahonramilitarbritânicasairiadiminuídaseoduelo fossetotalmenteproibidonoExército.Masem1843,catorzeanosdepoisdaqueleinfameduelo,quandoWellingtonaindaera comandante em chefe, os artigos de guerra sofreram alterações,instituindo penalidades severas para o duelo em todos os setores dasForçasArmadas,apóspressõesdemuitas igurasimportantes,inclusivedo

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querido esposo da rainha Vitória, o príncipe Albert. Em idade maisavançada,oduquefoimembrodestacadodaAssociaçãoContraoDuelo.

E mais: o duelo era ilegal. Como escrevera sirWilliam Blackstone emCommentaires on the laws of England [Comentários sobre as leis daInglaterra], nos anos 1760, o direito consuetudinário inglês “estabeleceulegitimamente o crime e a punição por homicídio” aos duelistas e seusassistentes, que “jogam com suas próprias vidas e as de seussemelhantes”.7 O direito canônico e a doutrina moral cristã também seopunhamaoduelo.

Haviaaindaimplicaçõespolíticas.Seoduquetivessemorrido,opaíseorei perderiam um primeiro-ministro em plena crise constitucional, numepisódioilegalquesereferiaexatamenteàsquestõesqueestavamemjogonaquelacrise.Poucascoisasseriammaisdesestabilizadorasnumcampojáinstável.Poroutrolado,seoduquetivessematadoWinchilsea,eleteriadeser julgado por homicídio perante a Câmara dos Lordes. (Tal como lordeCardigan,queseria julgadoem1841por feriremdueloumcertocapitãoTuckett — caso em que suas senhorias o absolveram.8) No mínimo, eleteria de renunciar ao Ministério, como haviam feito dois outros políticosanglo-irlandeses, Canning e Castlereagh, ministros respectivamente dasRelações Exteriores e da Guerra, vinte anos antes, depois de duelar. Emambososcasos,édeseduvidarqueaCâmaradosLordesaprovasseaLeidaLiberaçãoCatólica.

Casohouvessejulgamento,oslordesenfrentariamumadi ícilescolha.ARevoluçãoFrancesae a execuçãodeLuís xvi eMariaAntonietaem1793tinham hasteado a bandeira do republicanismo na Europa. O ClubeJacobino—organizaçãoradicalqueliderouaRevolução—difundiunovasideias sobre liberdade e igualdade em toda a França, conquistandorapidamente adeptos na Inglaterra. Na virada para o século xix, osgovernos britânicos tomaram medidas sistemáticas para enfrentar aameaçadojacobinismo,temendoumaondadehostilidadenãosócontraamonarquia, mas também contra a aristocracia e todos os privilégioshereditários.

Depois que Wellington derrotou Napoleão em Waterloo, houve umperíododegrandedesemprego,exacerbadopelaschamadasLeisdoMilho,quepretendiamimpediraentradadecerealbaratonomercado.Essasleis

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protegiam os interesses econômicos dos plantadores de trigo e outroscereaisnoReinoUnido,masaumentavamo custodaalimentaçãoparaospobres. A lagrante insensibilidade das classes dirigentes diante dosofrimentodosnecessitadosdeumaiorforçaàsreivindicaçõesradicais.Em1819,maisde50milhomensemulheressereuniramemSt.Peter’sField,em Manchester, pressionando pela reforma parlamentar. Quando nãoobedeceram à ordem de um magistrado para dissolver a manifestação,membros daquela classe militar representada porWellington investiramcontraopovonasruas,matandodozehomensetrêsmulheres,meiadúziadeles feridosa sabreantesde serempisoteadosaté amorte.Omassacrerecebeu o nome de “Peterloo”, numa referência nada sutil ao morticínioocorridoduranteamaiorvitóriadeWellington.

Assim,em1829,quandoaLeidaLiberaçãoCatólicaestavaemdebate,havia muita gente no Parlamento e no país lutando por reformas maissubstanciais e enfrentando a resistência de um Parlamento pouquíssimorepresentativo,dominadoporumaaristocracianãoeleita.Nãoeraumbommomentopara as autoridades semostrarem lenientes perante uma sériatransgressão da paz cometida por um aristocrata, enquanto elasmesmasdemonstravamumadeterminaçãotãoviolentaaolidarcomasclassesmaisbaixas. E, na improvável hipótesedeoduquenão serperdoadopor seuspares, estes forçariam a impopular tarefa ao rei, visto que a execuçãoefetivadeWellingtonestavaforadecogitação.

Em suma, o duelo era contrário às tendências pessoais deWellington,aodireitocivil,àdoutrinacristãe,comodeviaparecer,àprudênciapolítica.Então, o que o primeiro-ministro de um rei que também era o chefe daIgrejada Inglaterraestava fazendo láemBattersea,às8hdaquela frescamanhãdeprimavera?Oque,diabos,eleestavapensando?Poisbem,comolhediriaqualquerumdopequenogrupodecuriososalipresentes,ele—ArthurWellesley,cavaleirodeBath,barãodeWellingtoneDouro,viscondeWellingtondeTalaveraedeWellington,condedeWellington,marquêsdeWellington e Douro e duque de Wellington (para des iar sua bateriacompletadetítulos)—estavadefendendosuahonradecavalheiro.

asformasderespeito

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Segundooscódigosqueregiamsuasociedadeesuaclasse,Wellington

tinhaodireito, como cavalheiro, de ser tratado comrespeitopelosoutroscavalheiros,prerrogativa lagrantementevioladapelaacusaçãopúblicadeWinchilsea.Portanto,nocernedahonraencontra-seestaideiasimples:terhonrasignificaterdireitoaorespeito.

Mas o que queremos dizer com respeito? Recentemente, o ilósofoStephen Darwall fez uma distinção entre duas maneirasfundamentalmentediversasdeseterrespeitoporalguém.Umadelas,queele denomina “respeito por avaliação”, signi ica julgar uma pessoa demaneirapositivasegundoumcritério.Sair-sebememcomparaçãocomumpadrãosigni icaessencialmentefazermelhordoqueamaioriadasoutraspessoas.ÉnestesentidoquerespeitamosRafaelNadalporsuadestrezanotênisouMerylStreepporsuaatuação.(Tambémusareiapalavra“estima”paraesserespeito.)Wellingtondi icilmenteseriaindiferenteaessetipoderespeito. Como soldado, tinha atendido aos mais altos critérios derealização militar. A honra que lhe coube em decorrência disso eracompetitiva: teve-apor fazermelhordoqueosoutros.Recebeuamaioriadeseusváriostítulosporrespeitoataisproezas.

Mas há outro tipo de respeito, o “respeito por reconhecimento”, quesignifica(emtermosabstratos)trataraspessoasdandoumpesoadequadoaalgumfatoreferenteaelas.Quandorespeitamospessoasdepoder—umjuiznotribunal,porexemplo,ouumpolicialquandoestamosdirigindo—,nós as tratamos com circunspecção porque têm a capacidade de nosobrigar a fazer determinadas coisas. Nosso respeitoreconhece o fatodaquele poder. Mas também podemos respeitar uma pessoa sensívelfalando-lhe com brandura, ou, no caso de uma pessoa incapacitada,ajudando-a quando pede auxílio. Em outras palavras, para respeitar aspessoas nesse sentido não é necessário considerá-las em posiçãoespecialmenteelevada.

Como existem inúmeros tipos de fatos referentes às pessoas— fatosque podemos reconhecer e aos quais podemos reagir—, o respeito porreconhecimentopode terumagrandevariedadede tonsemocionaiseviracompanhado de atitudes positivas ou negativas. Quando o imperadorromano Calígula disseOderint dum metuant [Que odeiem, desde que

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temam], estava manifestando seu prazer depravado em obter certaespécie de respeito; mas não era a espécie de respeito positivo queacompanhaahonra.

Desse modo, a espécie de respeito por reconhecimento que éimportante para a honra não se resume a dar o peso adequado a algumfato referente a alguém. Isso também requer — sobretudo comoentendemoshoje—umaatitudepositiva especí ica.De fato, pensoque aatitude pertinente é exatamente aquela que mostramos quando temos apessoa em alta estima. Por isso, a partir de agora, quando eu falar emrespeito por reconhecimento, re iro-me ao tipo que envolve umaconsideraçãopositivapelapessoaemvirtudedofatoreconhecido.Emboratambém encontremos essa consideração na estima, é importante, comoveremos, diferenciar as bases dos julgamentos associados a espécies derespeito.

Estes dois tipos de respeito— o respeito por estima e o respeito porreconhecimentopositivo— correspondema dois tipos de honra. Existe ahonracompetitiva,quevemporgraus;mashátambémoquepoderíamoschamarde“honraentreospares”,queregeasrelaçõesentreiguais.(Estaé uma distinção conceitual; não estou dizendo que esses dois tipos dehonraestejamsemprecompartimentadosnousocorrente.)Ahonraentreosparesnãoégradual:ouvocêtemounãotem.

Henriquev da Inglaterra—opríncipeHal de Shakespeare—nasceuparaahonra,devidoàsualinhagemreal,massentiaespecialorgulhopelahonra competitiva que conquistou com suas proezas militares, como nabatalha de Agincourt, na qual seus exércitos derrotaram as forçasreunidasdoreifrancês(“poiscomosouumsoldado,/Nomequeemmeuspensamentosmefazmelhor”,elediznoato iii, cenaiii).Umreiguerreirodo séculoxv não só governava o reino, mas também liderava seusexércitos. A honra real por nascimento era complementada pela honramarcialqueeleconquistaraporsimesmo.

Sãofrequentesasevocaçõesdoidealmarcialnaliteraturadecavalaria.Um exemplo disso são as histórias da Távola Redonda do rei Artur, queeram itens obrigatórios na educação dos meninos das elites inglesas atéanos bem avançados do séculoxx. EmMorte d’Arthur , primeira versão

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literáriadessasnarrativas—quesirThomasMalorycomeçouaescreverprovavelmentenosanos1450,quandoestavapresonaTorredeLondres,onde também estava encarcerado Henriquevi, ilho e herdeiro deHenriquev —, sir Tristram diz que combateu “por amor a meu tio, reiMarcos,poramoràterradaCornualhaeparaaumentarminhahonra”. 9E,de fato, na falamais famosa da peça de Shakespeare, Henriquev diz, nocomeçodabatalhadeAgincourt:

...seforumpecadocobiçarahonraSouamaispecadoraalmaexistente.(atoiv,cenaiii)

No entanto, a honra competitiva, daquela espécie que sir Tristram, o

príncipe Hal e o duque deWellington conquistaram em batalha, não é aforma de honra que o duelo se prestava a defender. Wellington tratouWinchilsea como cavalheiro ao desa iá-lo para um duelo. Com isso, eledemonstrou respeito por reconhecimento: tratou Winchilsea de umamaneiraquedava(pelospadrõesdesuasociedade)odevidopesopositivoao fato de que o conde era um cavalheiro. Em troca,Wellington, mesmoclaramentehabilitadoa receberumgranderespeitoporavaliação, jáqueera o comandantemilitar demaior êxito e um dosmaiores estadistas daépoca,exigiadeWinchilseaapenasorespeitoporreconhecimentodevidoaqualquercavalheiro.Eraorespeitoentreiguais.

Ahonraentreospareséalgoqueaspessoasdaposiçãocertatêm,casocumpramoscódigos,ounãotêm,casonãooscumpram.EorespeitomútuoqueoscavalheirosdeviammostrarnaInglaterradoséculo xviiiecomeçodo séculoxix era exatamente esse respeito entre iguais, fundado não naestima, mas no reconhecimento. Uma pessoa devia a um cavalheiro amesmacortesiaquedeviaatodososoutros.Sevocêfossedaposiçãosocialcorreta,orespeitoquelhecabiacomocavalheiro,suahonracavalheiresca,era igual, quer você fosse um magní ico herói militar, como o duque deWellington,ouummerosenhorrural.

Éimportanteentenderque,emboraahonrasejaumtítulodedireitoaorespeito — e a vergonha surge quando você perde esse título —, umapessoa de honra se preocupa em primeiro lugar não em ser respeitada,

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mas em serdigna de respeito.Alguémquesóquer ser respeitadonãoseimporta se está realmente vivendo de acordo como código; quer apenasq u epensem que vive conforme o código. Estará administrando suareputação, e não mantendo sua honra. Para ser honrado, você precisaentender o código e estarligado a ele — essas são as condições que oantropólogoFrankHendersonStewartusaparade iniro sensodehonra.10Para a pessoa honrada, o que importa é a honra em si, e não suasrecompensas. Você sente vergonha quando não atende aos critérios docódigo de honra; e se sente envergonhado — lembre-se do caso deDescartes—mesmoqueninguémmaissaibaquevocêfalhou.

Avergonhaéosentimentoapropriadoaocomportamentodesonrosodapessoa. (Devidoaessaconexãoentrehonraevergonha,umamaneiradese referir àqueles que são especialmente desonrados é dizer que sãodesavergonhados.) Se vocêquebra os códigos, a resposta apropriadadosoutros é, em primeiro lugar, deixar de respeitá-lo, e, em seguida, tratá-loativamente comdesrespeito.O sentimentoque temos em relação àquelesquefazemalgovergonhosoéodesprezo,etereiocasiãodeusarnestelivroo verbo levemente antiquado “desprezar”, que signi ica aomesmo tempoconsideraretratarcomdesprezo,assimcomooverbo“honrar”signi icaaumsótempoconsideraretratarcomrespeito.

Jáoquevocêdevesentirquandoéhonrado(ouagehonradamente)éumpoucomaiscomplicado.Oorgulhoéocontráriodavergonha,eporissovocêpoderiaacharqueéareaçãocorretaaocomportamentohonradodealguém. Mas o orgulho parece mais cabível quando você faz algoextraordinário. Assim, uma pessoa honrada geralmente vai pensar queaquilo que ela fez era apenas o que tinha de ser feito. Se você forrealmentehonrado, é bemcapazde acharqueviverde acordo comseuscritérios não é motivo de orgulho maior do que respirar. A honra podeconsistiremtomarocódigocomoacoisamaisnaturaldomundo.

Assim, uma di iculdade em relação ao orgulho é que amodéstia podefazerpartedeumcódigodehonra.Nocapítulo2, tratareideoutra razãoquetorna,pelomenosnomundocristão,arelaçãodahonracomoorgulhomais complicada do que com a vergonha: a saber, uma tradição dehostilidade moral ao orgulho (ou à vaidade, como dizemos quando odesaprovamos), que remonta aos estoicos.11 Henriquev identi ica

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claramente o problema depois de receber notícias sobre amagnitude desuavitóriaemAgincourt:“Eproclame-seamorteaquemdenossahoste/Sevangloriarou tomaraDeuso louvor/QueapenasaElepertence” (atoiv,cenaviii).

Masoutrassociedades—aGréciaantiga,nopassadoremoto,ouentreosaxântis,ondeeucresci,atéhoje—pensavamqueoorgulhoeaexibiçãoacompanhavamnaturalmenteahonra.12Existeumprovérbionalínguadomeupaiquediz:“Ahonradapessoaécomoumovo;seelanãoasegurarbem, cai e quebra”. Uma forma de garantir que você está mantendocorretamente sua honra talvez seja lembrar aos outros de que vocêconhece seu valor.Na Ilíada,Aquilesemnadadiminui suahonraaodizercom todas as palavras: “Enão olhas paramimenão vês como sou alto ebelo?Homemnobreémeupaiedeusaéamãequemegerou”.13

NomundodeWellington,porém,essaespéciedeostentação teria sidoindigna de um cavalheiro. Você mostrava seu valor em ação, e nãoentoando loasa simesmo.Paraele, a reaçãoemocional corretaàprópriahonranãoeraoorgulho,masosimplesrespeitopróprio.

A irmei que a pessoa honrada se preocupa com a honra, e nãomeramente com as recompensas sociais de ser considerada honrada. Éverdadequeemoções comoa vergonha (eoorgulho) ganhammais forçaquando outras pessoas estão olhando — principalmente aquelas cujorespeitomaismeimporta.Noentanto,ahonraexigequeeumeconformeaocritérioporeleemsi,enãopelareputaçãoesuasrecompensas.Equemquerareputaçãoemsiestátomandoumatalhodesonroso.

Estaéumadasrazõespelasquaisahonestidadeétãoessencialparaahonra. (Honestus em latim pode signi icar tanto “honesto” quanto“honrado”.) Uma das principais causas dos duelos era a acusação dementira. As recompensas de uma boa reputação são consideráveis e,portanto,as tentaçõesdeganhá-lassemmerecê-las tambémosão.Talvezsejapor issoqueaspenalidadesparaaperdadorespeito—entreelasodesprezoeoeventualostracismo—tendemaserrigorosas.

Assim, é muito ilustrativo que Wellington tenha sido acusado porWinchilseadedesonestidade,tentandodesviaraatençãodopúblicodeseuapoio aos católicospormeiodeuma contribuição inanceira a uma causaprotestante.SeeledefatoestivessefazendooqueWinchilseaalegou, isso

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seria vergonhoso. O código exigia que, feita uma alegação dessas, vocêlimpasse seu nome; tinha de demonstrar que isso não era verdade. E aprimeiramaneiradedemonstrar issoerapedirereceberumaretrataçãopública. Se o pedido fosse recusado, o mesmo código exigia que vocêdesa iasseo acusadorparaumduelo; issomostraria, entre outras coisas,que você preferia arriscar a vida a ser considerado culpado de algodesonroso.

Oduelomostraumamálgamalevementecanhestrodapreocupaçãoemreceber respeito e da preocupação em ser dignodele.O quedá início aodueloéumaespéciedemenosprezo,umamostradedesrespeito.Mas, sevocê é digno de respeito, por que o mero fato de alguém desrespeitá-loteria alguma importância?Não deveria ter valor apenas se o desrespeitofosse justi icado (o que certamente não era o caso de Winchilsea)? Aresposta, nomundodeWellington, eraqueo códigodo cavalheiro insisteque,paraserdignoderespeito,vocêtemdeestardispostoareagirataismenosprezos.Umhomemdehonradeve estarprontoparadefender suahonra— arriscar a vida para garantir que receba o respeito que lhe édevido.Ambos,WellingtoneWinchilsea,pensavamque,aoduelar,estavamdefendendosuahonra.

mundosdahonra

Ser respeitado, evidentemente, é ser respeitado por alguém. Devido à

ligação conceitual entre honra e ser respeitado, sempre podemosperguntardequemseesperarespeito.Normalmente,nãoéorespeitodaspessoas em geral, e sim o respeito de um grupo social particular, quechamarei de “mundo da honra”: um grupo de pessoas que aceita osmesmos códigos. O personagem Henriquev de Shakespeare, como seumodelo histórico, não se importamuito com as opiniões dos camponeses:deles espera obediência, e sem dúvida eles o têm em alta estima. Mastambém espera que o respeitem e que o tratem com respeito. Por outrolado, não se incomoda se os estrangeiros— os sarracenos distantes, porexemplo—não o respeitam, uma vez que eles não entendemos códigosqueregemsuavida.

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Dizerqueaspessoastêmhonraédizerquetêmdireitoaorespeitodeacordocomoscódigosdeseumundodahonra.Maséenganadordizerquealguém temhonra sevocênãoaceitaesses códigos.Nesse caso, émelhordizerqueapessoaerahonradaemdeterminadomundodahonra.Sevocêe eu partilhamos os códigos, não precisaremos relativizar dessamaneira.No mesmo mundo da honra, dizer “nós o honramos” e “ele tem honra”possuiomesmoefeitoprático.

AoavaliaromundodahonradeWellingtonesuasnormas,vemosque,dos dez primeiros-ministros anteriores a ele, três — lorde Shelburne,WilliamPitt,oJovem,eCanning—travaramduelos,alémdeCharlesFoxeocondedeBath,quequaseforamprimeiros-ministros;e,porfim,Peel,quesucedeu ao duque no cargo, também se mostrara disposto a aceitardesafios.14 No episódio mais conhecido, Canning foi a campo em 1809contraoviscondeCastlereagh,quandoerammembrosdomesmogoverno.Embora ambos tenham renunciado por causa do episódio, prosseguiramna carreira política com distinção ainda maior: Castlereagh iniciou umadécada de serviços como ministro das Relações Exteriores em 1809,conduzindo as alianças britânicas que derrotaram Napoleão, e Canning,por sua vez, sucedeu-o noministério e chegou a primeiro-ministro, cargoqueocupouporalgunsmesesem1827.

Ninguém sofreu nenhuma penalidade pela participação no casoWellington-Winchilsea. Pelo visto, Winchilsea e Falmouth não estavamdestinadosàgrandeza,demodoquetodasas indicaçõesquetemossobreeles são de que provavelmente não houve nenhum processo. Todavia,Wellington continuou como primeiro-ministro e Hardinge tornou-se vice-rei da Índia, voltando à Inglaterra em 1852 para suceder o duque nocomando supremo das Forças Armadas britânicas, cargo que ocupariaduranteaGuerradaCrimeia,poucosanosmaistarde.

O duelo também exercia atração entre as elites políticas da novarepública americana, cuja cultura tinha raízes britânicas. Um quarto deséculo antes, em julho de 1804, dois dos políticos mais importantes dosprimórdios da república americana, Alexander Hamilton e Aaron Burr,travaram um duelo fatal— isto é, fatal para Hamilton— nas colinas deWeehauken, em New Jersey. Hamilton foi um dos autores dos Papéisfederalistas (1788), que continuam a de inir o signi icado da Constituição

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americana;foitambémministrodaFazenda.Nesseperíodo,Burreravice-presidentedosEstadosUnidos. E amorteprematuradeHamilton—nãotinha nem 50 anos — foi um dos grandes escândalos da época. Mas,mesmoacusadodehomicídioemNewJerseyeNovaYork,Burrnunca foiefetivamente julgadoeconcluiuseumandatonavice-presidência,emboramuitagentedesaprovassetotalmenteoqueelehaviafeito.

A ausência de consequências legais para a ação de Burr — que eracrime tanto em New Jersey quanto na Inglaterra — não surpreenderianinguém na Inglaterra. No século anterior à data em que Wellington eWinchilsea se enfrentaram em Battersea Fields, era essencialmenteinaudito que um cavalheiro britânico obediente às regras de honra fosseprocessado e condenadopormatar um adversário emduelo.15 O padrãovigente, caso um dos dois morresse, era que o outro escapasse para oestrangeiroeaguardasseparaversehaveriaalgumprocesso.Senãofosseacusado, você poderia voltar calmamente para o país e retomar suasatividades. Se fosse processado e tivesse se comportado da maneiraapropriada,vocêexporiaosfatosaumjúricompostodeseuspares,ojuizmuitoprovavelmenteseriacompreensivoe,mesmoquenãoofosse,muitoprovavelmente os jurados o absolveriam. Na improvável hipótese de sercondenado e sentenciado à morte, muito possivelmente você acabariaconseguindooperdãoporterrelaçõesnacorte.Odueloeraumamaneiradesairimpunedeumhomicídio.

E não porque as autoridades fossem melindrosas em executarsentenças capitais. Num ano normal do séculoxviii, havia cerca de cemexecuçõesnaInglaterraenoPaísdeGales;nametadedoséculo,somenteem Tyburn, o local das execuções públicas em Londres, eram mais detrinta por ano. E a execução de cavalheiros, até mesmo de membros daCâmaradosLordes,nãoeraapenasumapossibilidadelegal:em1760,umparlamentar da Câmara dos Lordes, o conde Ferrers, foi enforcado porhomicídio em Tyburn. Mas a razão pela qual os duelistas não eramcondenadoseraporqueanormajurídicao icialentravaemcon litocomoconsensosocialentreaelitebritânica.

Na verdade, desde o tempo da juventude de Wellington, houve comquase toda certeza um aumento na frequência dos duelos — em parteporquehouveumlongoperíododeguerrasnaviradadoséculo xix.Cerca

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de 500 mil britânicos tinham servido na Guerra Anglo-Francesa entre aexecução de Luísxvi e a batalha deWaterloo.16 Os o iciais voltaram docontinenteimbuídosdaculturadehonradosmilitares.

atransformaçãodoscódigos

O andamento do duelo deWellington re letia convenções nascidas no

começodoséculoxvinaItáliaecodi icadasemdocumentoscomoocódigodo duelo irlandês, “estabelecido nas Sessões de Verão de Clonmel em1777,pelos cavalheiros representantesdeTipperary,Galway,Mayo,SligoeRoscommon,eprescritoparaadoçãogeralemtodaaIrlanda”—tambémconhecidocomoos“26mandamentos”.17OdesafiodeWellington,entregueporseuassistente,sirHenryHardinge,veteranodascampanhasmilitaresem Portugal e na Espanha que haviam convertido Wellington em heróinacional, seguindo as regras,mencionava apenas o pedido de satisfaçõesdeumcavalheiro,oqueerasu icienteparaserentendido.Hardingehaviaprovidenciado uma carruagem para levar o médico de Wellington, o dr.JohnRobertHume,massemlhedizerqualomotivodachamada.(Tratava-sedeumaconvenção;vistoqueodueloera ilegal,seele fosseavisadodomotivo, poderia icar sujeito a processo como cúmplice, caso as coisasdessem errado.) Assim, chegando ao campo, o bom doutor icou atônito,como disse mais tarde à duquesa de Wellington, ao ver seu pacientepreparando-separaatirarelevarumtiro.Wellington,rindo,disseaHume:“Bem, ouso dizer que você não esperaria que fosse eu quem queria suapresençaaqui”.Eomédicorespondeu:“Defato,meusenhor,certamenteéaúltimapessoaqueeuesperariaveraqui”.18

Há algumas divergências na interpretação dos fatos depois queHardinge deu o sinal: “Cavalheiros, estão prontos? Fogo”. Wellingtondisparouprimeiro, comovimos, e, segundoalgumasversões, errouo alvodepropósito.Masseriadi ícilsabersefezumesforçosinceroparaatingiroconde,umavezqueaspistolasdeduelonãoerammuitocon iáveise,dequalquermaneira,emboraoduquefosseumgrandegeneral,nãoera,pelovisto,muitobomdepontaria.

Acorrespondênciadasdamasinglesasdaépocatrazinúmeroscasosde

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acidentesdecaçaocorridoscomSuaExcelência,emtomdesurpreendentesimpatia. Lady Palmerston escreveu deMiddleton, residência do conde edacondessadeJersey,em16dejaneirode1823:“Oduquenãotevesorteem Wherstead; atingiu o rosto de lorde Granville com nove tiros.Felizmente não acertou seus olhos, mas aquilo lhe causou muita dor”. 19(Você poderia pensar que quem não teve sorte foi lorde Granville.) EFrances,ladyShelley,contaqueWellington,depoisdeferirumcachorroeatingirasperneirasdeumguarda-caças,encerrouocapítulodeacidentesdodiadisparandonumavelhaquetinhacometidoaimprudênciadelavarroupa perto de uma janela aberta. “Fui ferida, milady”, gritou a velha.“Minhaboamulher”,respondeuladyShelley,“estedeveriaseromomentodemaior orgulho de sua vida. Você teve a distinção de ser atingida pelograndeduquedeWellington!”20

MasnãohádivergênciassobreoqueaconteceudepoisqueWellingtondisparou. Como vimos, Winchilsea apontou a pistola para o ar, acima dacabeça,edisparouumtiroqueninguémpensariaquemiravaoprimeiro-ministro.Essapráticaera conhecidacomo deloping [desistência].Eraumaindicaçãodequeelenãoqueriaprosseguircomoduelo.

Essa questão da desistência era controvertida. A regra xiii do códigoirlandês era muito clara: “Atirar em falso ou disparar no ar não éadmissívelem nenhum caso”. E a seguir explicava a razão com igualclareza: “O desa iante não pode ter desa iado sem receber ofensa; e odesa iado,secometeuofensa,deveterseretratadoantesdeviracampo:abrincadeira de criança é desonrosa de ambos os lados, e por isso éproibida”.21MasaquioscavalheirosdaIrlandaexageravam.Erabastanteclaro o sentido da desistência. A presença de um cavalheiro num dueloindicava a disposição de morrer defendendo sua honra, e issodemonstravaqueeleatendiaaumdoscritériosparaserhonrado.Mas,searriscar a vidapodiamostrarquevocê se importava comahonra,matarrealmente em defesa da honra mostrava apenas que você era um bomatirador, ou, pelo menos, um atirador com sorte. Um homem que secolocava em risco, mas sem nenhum esforço para se defender,demonstravasuacoragemdemaneiraaindamaisclara.

De fato, na noite anterior ao duelo, Winchilsea havia escrito a seuassistente,lordeFalmouth,dizendoqueiadesistir.Naverdade,eraapenas

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com essa condição que lorde Falmouth se dispunha a participar, pois ele(como quase todos os outros) era da opinião de que Winchilsea deviadesculpas ao duque. Winchilsea escreveu: “Depois do primeiro tiro,oferecerei a expressão de arrependimento que então estarei pronto afazer”. E, embora admitisse na mesma mensagem que não devia terpublicado o texto,Winchilsea insistiu que não poderia ter se desculpadonos termos propostos por sir Henry Hardinge, pois isso “poderia mesujeitaraimputaçõesquemetornariamavidatotalmenteindigna”.22

Quais eram essas “imputações”? A referência aHardinge é uma pista.Na medida em que Hardinge havia escrito a Winchilsea em nome deWellington, era evidente que ele tinha sido convocado como potencialassistente. Dado isso,poderiam pensar que Winchilsea estaria sedesculpando apenas para evitar o duelo. Depois, lorde Falmouthapresentou outra explicação ao dr. Hume. Disse que Winchilsea “nãopoderia se retratar da ofensa de maneira su icientemente adequada,compatível com seu caráter comohomemde honra, sem antes receber odisparo do duque”. 23 Segundo essa explicação, Winchilsea sentiu que,mesmoestandoerrado,aretrataçãoseriadesonrosa,masobrigaroduqueatravarduelo,pôr-senamiradodisparo,desistireentãoseretratarnãoseriaumadesonra.Emtermosmaissimples:tendoacusadoindevidamenteWellington, o conde pensou que devia oferecer ao primeiro-ministro aoportunidadedeatirarnele.

Se era de fato isso o queWinchilsea estava pensando, alguns de seuscontemporâneosacharamqueelenãosecomportouplenamente commeilfaut. John Cam Hobhouse, amigo de lorde Byron e membro radical doParlamento,escreveuemsuasmemórias:

Creioquenãoseconsideroujustoqueapessoaacusadaterminasseodueloantesdeseexporadois disparos; e na segunda-feira seguinte a este episódio, quando o Orador e eu estávamosconversandosobreissoemsuabiblioteca,eleobservouquelordeWinchilseanãotinhaodireitodedispararnoar,masdeveriaterrecebidoosegundotirododuque[...].Ofatofoiquenenhumdosladosganhoumuitocréditocomatransação.24

Esse duelo é fascinante, entre outras coisas, porque nem mesmo

Winchilsea e Falmouth tinham umamesma versão coerente sobre o queestavamfazendo,eoutraspessoasdeseucírculonãoconcordavamcomo

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que os dois julgavam ser ou não apropriado. O código não estava maisfuncionandocomodeveria.

objeçõestradicionais

Dada a grande ambivalência da sociedade britânica em relação aos

duelos, vale a pena re letir sobre as razões que levaram a lei e a moralcristã convencional a se opor a essa prática. Uma das fontes do dueloeuropeu moderno era o chamado “julgamento por combate”, no qual osintegrantesdaclassemilitardirigente—cavalheirosdoníveldeescudeiropara cima— podiam resolver disputas legais por meio da passagem dearmas,desdequelhesfosse“concedidoocampo”poralgumsenhorfeudalsu icientemente importante — o duque de Burgundy, digamos, ou ummonarca.

Desde cedo os papas se declararam contrários ao julgamento porcombate:emmeadosdoséculoix,opapaNicolauiescreveuumacartaaoimperadorCarlos, o Calvo, condenando tal prática;25 o Concílio deTrentosedeuaotrabalhodefulminaremsuasessão inal,em1563, jáno imdaReforma, “o costume detestável de duelar, introduzido por arti ício dodemônio para que, pela morte sangrenta do corpo, possa consumar aperdição da alma”. 26 O pressuposto do julgamento por combate era queDeusconcederiaavitóriaaocavaleirocujacausafossejusta.

FoiaestaformadecombatequeaIgrejaseopôsinicialmente.Umadasobjeçõeseraumaquestãodemoralbíblica.EmLucas(4,9-12),Satã levouCristoa“umpináculodotemplo”emJerusalém“edisseaele:SeésoFilhodeDeus,atira-tedaquiparabaixo”.

Poisestáescrito:Eledaráordemaseusanjosparaqueteguardem[...]EJesuslherespondeu:Estádito,nãotentarásoSenhor,teuDeus.

Cristo está citando uma passagem do Deuteronômio (6,16) que se

refere a um episódio em que os antigos israelitas quiseram forçar Deus,ameaçandoapedrejarMoisés casoelenãoconseguissequeoSenhor lheslevasseáguanodeserto.Aqui, tentarDeusémaisoumenoscomoquerer

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forçarDeus.Nojulgamentoporcombate,osenhorfeudaleoscombatentesaosquaiseleconcediaocampotambémestavamtentandoDeus.

A objeçãomais evidente, porém, era a violação do sextomandamento(paraquemécatólicoouluterano,oquinto):nãomatarás.Numdueloporumponto de honra, você se dispõe deliberadamente amatar umhomemqueoofendeuoufoiofendidoporvocê.Dopontodevistacristão,nenhumdoscasosérazãosuficienteparatiraravidadeumapessoa.

Essas objeções ao julgamento por combate se estenderam ao duelomoderno. O problema racional, no fundo, era que um duelo se referia auma ofensa de A contra a honra de B, mas — supondo-se a nãointervençãodivina—odesfechonãodependia,demaneiraalguma,dofatodeAouBestarcertoouerrado.Esseproblema icavaespecialmenteclaroquando a ofensa era acusar alguémdementir. Touchstone, o palhaço deComogostais,deShakespeare(escritoporvoltade1600),aoarremedaracomplicação que é um duelo, elabora as várias fases de uma briga entreele e “certo cortesão”, que começa quando o palhaço critica a barba dohomem, mas só chega a um duelo efetivo sete etapas depois, quando ocortesão inalmenteacusaopalhaçodeestarmentindo(atov,cenaiv).Noentanto, um duelo não estabelece a verdade: estar disposto a reagir à“mentira deslavada” lançando um desa io apenas mostra que você estádeterminado a sustentar sua palavra com a espada, seja verdade oumentiraoquevocêfalou.

Um duelo podia demonstrar se você era valente ou temerário osu icientepara combater, refutando assimum tipo especí icode insulto aumcavalheiro—asaber,queeleeraumcovarde.Masofatodematarousermortopeloadversárionãodemonstravaquevocêeramaiscorajosodoque ele.Matar outro ser humano, ofensa contra a leimoral, e sermorto,ofensa contra a autopreservação racional: os dois riscos eram efeitoscolateraisdoprocesso.Eaquestãoeraseoobjetivoostensivododuelo,adefesadahonra,valeriaessepreço.

Desdeocomeçohouvequemduvidasse.FrancisBacon,escrevendosuaCharge touching duels [Acusação referente aos duelos] (1614), mais deduzentos anos antes queWellington desa iasseWinchilsea, lastimava: “Éumefeitoinfelizquehomensjovens,cheiosdefuturoeesperança—ou,talcomo dizem,aurora ilii , ilhos da aurora — [...] sejam desperdiçados e

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destruídos demaneira tão vã; mas é de se deplorar muito mais quandotantosanguebomenobreéderramadoportaistolices”.27

Depoisqueoduelopassoudojulgamentoporcombate,quesópoderiasedarcomapermissãodorei,paraumaaçãoprivadaeilegal,reivindicadacomo direito da nobreza, surgiu mais um problema: tornou-se crime delesa-majestade. Assim, entre os grandes inimigos do duelo estavamhomens como Francis Bacon e o cardeal Richelieu, contemporâneo maisjovem e francês do ilósofo, que se empenhavam em ampliar o poder doEstado, em parte subordinando a nobreza, com suas pretensõesindependentesdehonra,aoalcancecadavezmaisgeraldamonarquia.

O cardeal, que era o principal ministro de Luís xiii, havia mandadoexecutar o conde de Bouteville em 1627, num famoso episódio, quandoeste ignorou os novos decretos reais que reforçavam as leis existentescontra o duelo. (Visto que o conde já tinha travadomais de vinte duelosantes disso, não é de admirar que icasse surpreso com essa novainsistêncianaletradeumaleiantiga.)Luísxiii,queeraumentusiastadosideais de cavalaria, só tinha concordado com muita relutância com oesforço de fazer valer a velha proibição legal dos duelos depois queRichelieuopersuadiudequeocustoemsanguenobrederramadoeraaltodemais. (Durante o reinado de seu pai,mais de 8mil pessoasmorreramemduelo.)LordeHerbertdeCherbury,oembaixadorbritâniconacortedeLuísxiii, escreveu em suaAutobiografia que, entre “os francesesdaquelaépoca”, não havia “quase nenhum homem digno de se olhar que nãotivessematadoalguémemduelo”.28EohistoriadorememorialistafrancêsAmelotdeHoussayedisseque“aconversahabitualdaspessoasquandoseencontravam de manhã era: ‘Sabe quem duelou ontem?’; e depois dojantar:‘Sabequemduelouhojedemanhã?’”.29

Do ponto de vista do Estado moderno, que se desenvolvia com essaprática, o duelo era, como bem disse Francis Bacon, uma “ofensa depresunção”.

[Oduelo]éumaafrontaexpressaà lei,comoseexistissemduasleis:umadelaséumaespéciede lei-fantasma, e a outra, uma lei da reputação, como dizem, de modo que São Paulo &Westminster,opúlpitoeostribunaisdejustiçatêmdecederlugaràlei[...]dasmesascomunsede tais veneráveis assembleias; os anuários religiosos e os códigos civis têm de ceder lugar a

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algunspanfletosfranceseseitalianos[...].30

Na época em que Bacon escrevia, “as brigas privadas entre grandes

homens”31tinhamsemultiplicadodeumamaneirainquietantenacortedeJaimei,oque levouoreiaemitirumdecretopunindonãosóo “combatesingular”nopaísounoexterior,mastambémodesa ioadueloe,nocasodosassistentes,ocomunicadodamensagem,bemcomoacessãodocampo.Já fazia um ano que Bacon era procurador-geral quando publicou suaCharge touchingduels , onde incluiupartede suaargumentaçãonumcasoqueapresentaraaoTribunaldaCâmaraEstrelada.

No caso que Bacon escolheu para apresentar a posição do rei, haviaduas acusações: “uma contra William Priest, cavalheiro, por escrever eenviarumacartadedesa iocomumavaretaqueseriaocomprimentodaarma; e a outra contraRichardWright, escudeiro, por levar e entregar aditacartaeavaretaàpartedesa iada”.Osdoispreenchiamos requisitosmínimos para um duelo: eram cavalheiros. Bacon reconheceu perante osjuízes que “preferiria ter encontrado pessoas mais importantes comoobjeto para vossa censura”. 32 De todo modo, o assunto era urgente eapareceraestecaso.Alémdisso,“àsvezesnãoéimpróprionogovernoqueaclassemaisaltasejaadmoestadaporumexemplodaclassemaisbaixa,equeocãosejacastigadoantesdo leão”.Nocomeçodoséculoxvii,oduelojáéumainstituiçãoequalizadora,eéBacon,falandocontraele,queinsistenasdistinçõesdeníveisentreoscavalheiros.

odebatedoiluminismo

Hoje, para nós, o argumento mais óbvio para admitir o duelo

provavelmenteseriaquese tratada livreaçãodeparticipantesdemútuoacordo.Atéondesei,aprimeirapessoaquesugereissoéWilliamHazlitt,ogrande ensaísta e crítico inglês. Escrevendo provavelmente um ou doisanosantesdoduelodeWellington,eleopinavaqueoatodeduelardeviaserpermitidoporlei,pois—usandoumaformulaçãomoderna—tratava-sedeumaação consensual entre adultos.33Mas, na virada do séculoxix,revogar a legislação contra a má conduta só porque atingia apenas

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voluntárioseraumaideiaradicaldemais.A melhor defesa do duelo disponível no quadro intelectual da época

segue emparalelo à teoria utilitarista da punição. Como escreveu JeremyBentham,ograndefilósoforeformadorutilitarista,em1823:“Todapuniçãoé em si um mal”.34 Assim, à primeira vista, pode parecer que, quandopunimos as pessoas, estamos apenas somando um novomal ao mal queelas já izeram. Mas, como prossegue Bentham, um mundo com ainstituição da pena, propriamente anunciada e ministrada, é um mundolivre de outrosmales dos quais não escaparíamos sem ela. Desde que omal da punição seja menor do que os males que ela evita, podemosdefendê-laracionalmente.

Agoravejamosoduelo.Umasociedadeondeaspessoasse tratamcomrespeito, onde as reputações não são manchadas por mentiras— onde,resumindo,oscavalheiroscuidamdesuascondutas—,épreferívelaoutraem que isso não ocorre. A instituição do duelo fornece um incentivobastante convincente para que os cavalheiros cuidem de suas condutas.Mas o duelo é diferente da punição num aspecto importante. Você podedefender a punição como elemento de dissuasão porque é uma práticautilizadaporinstituiçõespúblicasparaobemgeral.Emcontraste,paraqueoduelo,queéumapráticaprivada,funcioneosduelistastêmdeacreditarquetalatoatendeauma inalidadeprópria,umavezqueincentivaroutraspessoasaseremhonradasnãoéalgoquemotivariaaspessoasaarriscaravida. Por que eu haveria de entrar em combate mortal com você paramanter a boa educação dos outros? O senso de honra dá aos homensapenas razões privadas para duelar. Dentro da instituição do duelo, arazãopara fazer e aceitar umdesa io é evidente: senão agir assim, vocêperderá o direito ao respeito de seus semelhantes. Ademais, justi icar oduelocomodissuasordadescortesiaéadotarumaperspectivaexternaaomundodahonra.

Umargumentobastanteparecidocomessefoimuitoutilizadonoséculoxviii, mas geralmente por pessoas que consideravam a prática do dueloimoral,irracionalouambos.EmHistoryoftheReignoftheEmperorCharlesV [História do reinado do imperador Carlosv], o clérigo e historiadorescocês dr. William Robertson, reitor da Universidade de Edimburgo,escreveu que a prática não era “justi icada por nenhum princípio da

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razão”,eprosseguia:é preciso admitir que devemos atribuir a esse costume absurdo, em algum grau, aextraordináriagentilezaeafabilidadedasmaneirasmodernaseaquelaatençãorespeitosadeum homem a outro que atualmente tornam os intercursos sociais da vida muito maisagradáveisedecentesdoqueentreasnaçõesmaiscivilizadasdaAntiguidade.35

Esse lugar-comum do Iluminismo — que o duelo é irracional e não

cristão, mas ao menos aprimora as maneiras — irritou visivelmente oprincipal ilósofodoIluminismoescocês,DavidHume.Em1742,eleincluiuumadiscussãododueloemseuensaio “Sobreosurgimentoeavançodasarteseciências”,a imderefutaroargumentodequeainstituiçãoeraútil“paraorefinamentodoscostumes”.

Hume é severo na crítica: “a conversa entre os camponeses maisrústicos geralmente não vem acompanhada da rudeza que é capaz deocasionarosduelos”, elediz.Eobjetaque, ao fazerumadistinçãoentreohomem de honra e o homem de virtude — ao reconhecer um sistemanormativodehonradistintodamoralidade—,ocódigodehonrapermiteque “devassos” e “esbanjadores” mantenham seu lugar numa sociedadequedeveriarepudiá-los.36

Nomesmoano,FrancisHutcheson—paido Iluminismoescocês, comose convencionou dizer — condena o duelo em seu manualPhilosophiaeMoralisInstitutioCompendiaria[Umabreveintroduçãoà iloso iamoral].Odueloéuma resposta cruel emexcessoamentirase calúnias: “amorteéuma punição severa demais para palavras de opróbrio”. E, de qualquerforma,“afortunadocombateécegaecaprichosa”.37

De fato, em vista da incon iabilidade das pistolas de duelo do séculoxviii, dispararàdistâncianormaldedozeaquinzemetros signi icava,namaioriadoscasos,deixaroresultadoentregueaoacaso. JosephHamilton,em seu conhecidoDuelling handbook [Manual do duelo], publicado logoapós o duelo deWellington, cita “um célebre escritor” que apontou esseaspectocomumaanalogiaconvincente:

Se, tendo capturado um homem que assassinou minha esposa, eu o levasse diante de umtribunal e pedisse justiça, o que haveríamos de pensar de um juiz que ordenasse que ocriminosoeeutirássemosnasortequaldenósdoisdeviairparaaforca?38

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AdamSmith,emLecturesonJurisprudence[Aulasdejurisprudência],de

1762, argumenta que os duelos persistem porque a lei não é su icienteparaprotegeroshomensdasafrontasàhonraquelevamaosdesa ios:elesugerequeissoéumafalhadalei.

Assim como a injúria causada tinha a intenção de expor e ridicularizar a pessoa, a puniçãoadequadaseria ridicularizar igualmenteapessoaque injuriouaoutra,expondo-aàvergonhanopelourinho,comprisãooumulta,arbitradadeacordocomascircunstânciasdaafronta.39

Aqui,Smith insistenumpontoqueHutchesonhaviaabordado:cabeao

governogarantirquealeiforneçaremédiosu icienteparaosdanospelosquais os cavalheiros pedem satisfação. Se os “governantes civis” nãoatendem a isso, dizHutcheson, a “maior parte da culpa” pelo duelo recaisobreeles.TalcomoHume,Smithnãoseempenhamuitoema irmarqueoduelo é ruim em si mesmo. Isso ica, eu diria, para um manual deintroduçãoàfilosofia.

William Godwin, o analista ilosó ico do séculoxviii, num apêndicesobreoduelodeEnquiryConcerningPoliticalJustice [Investigaçãosobreajustiça política], de 1793, não se concentra em mostrar se a prática éirracional e errada— issoele também tomapor líquidoe certo—, e simem provar que é preciso mais coragem para resistir ao desa io do quepara aceitá-lo. “Qual dessas duas ações é o teste mais verdadeiro dacoragem”, ele pergunta, “engajar-se numa prática que nosso julgamentodesaprovaporquenãopodemosnossubmeteràsconsequênciasdeseguiresse julgamento ou fazer o que acreditamos ser correto e de bom gradoenfrentar todas as consequências que podem acompanhar a prática davirtude?”.40 Aqui, com efeito, ele revestiu um argumento contra o duelocomalinguagemdahonra.Mesmoodr.Johnson,quedi icilmentepodeserconsideradoumfervorosoadeptodoIluminismo,admitiuaJamesBoswell,numa das discussões sobre o duelo que mantiveram nas Hébridas, que“reconhecia sinceramente que não sabia explicar” a “racionalidade” doduelo.41QuandoVoltaire,numapartedoDicionáriofilosófico,observouqueo duelo é “proibido pela razão, pela religião e por todas as leis”, estavaexpressandoumaposiçãoquetinhaconsensointelectual.42

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Masentenderemoserroneamenteesseconsensosenãoenxergarmosoquantoessescavalheiros tambémsentiamaatraçãodahonra.Em HistoryofEngland[HistóriadaInglaterra],Humedizqueoduelo“derramoumuitodomelhorsanguedacristandadepormaisdedoisséculos”,mas tambémconcede que as máximas “absurdas” por trás do duelo são “generosas”(istoé,nobres),eassinalaque,“adespeitodorigordaleiedaautoridadeda razão, é tão grande a força predominante do costume que elas estãolonge de ser totalmente desaprovadas”. 43 Smith acredita que o duelo éuma reação a uma afronta genuína. Hutcheson não nega que há coisasimportantes em jogo no duelo; apenas insiste que o duelo não é umamaneirarazoáveldeatenderaelas.

Nãohámuitosindíciosdequeosargumentosdelestenhamtidograndeaceitação entre os cavalheiros. James Boswell — além de biógrafo deJohnson, era também cavalheiro escocês de posição (nono senhor deAuchinleck)—pensouemaceitarváriosdesa ios,emborativesseobrigadoJohnson a reconhecer que eram irracionais; e seu ilho, sir AlexanderBoswell, foi uma das últimas vítimas do duelo na Escócia, morrendo emmarçode1822,depoisdeduelaremAuchtertool,emFife.

MasBoswellpaicaptoumuitobemocon litoentreodevercristãoeasleisdahonranumadasfascinantesnotasderodapéquesemultiplicamemsuaVidadeJohnson:

Deve-seconfessarque,pelasnoçõesdominantesdehonra,umcavalheiroqueédesa iadosevêreduzido a uma alternativa terrível. Tem-se um exemplo notável disso numa cláusula dotestamento do inado coronel Thomas, dasGuardas, escrito na noite anterior à suamorte emduelo, em 3 de setembro de 1783: “Em primeiro lugar, entrego minha alma a Deus Todo-Poderoso,naesperançadeSuamisericórdiaeperdãopelopassoirreligiosoquemevejoagora(em obediência aos costumes injusti icáveis deste mundo perverso) na necessidade detomar”.44

Se argumentos morais e racionais irrefutáveis não conseguiram

enfraquecer a instituição, o que aconteceu? Os desdobramentos do casoWellington-Winchilseasãosugestivos.

osdesdobramentos

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DepoisqueWinchilseadisparouaarmanoareassimsatisfezseusenso

de decoro um tanto excêntrico, sua manifestação escrita de contrição,redigidaantesdoduelo, foi apresentadaaWellingtonpor intermédiodosassistentes. A resposta de Wellington foi: “Não é su iciente. Não é umpedidodedesculpas”.Hardinge insistiuque teriamdeprosseguir comosdisparos, a menos que o documento fosse reti icado, deixando claro queWinchilseaseretratava.Foinestemomentoqueodr.Humefezasugestãomagni icamente útil de inserir as palavras “pedido de desculpas”.Winchilsea e Falmouth concordaram. O dr. Hume conferiu o documentorevisto, que incluía a promessa de Winchilsea de publicar o texto deretratação no Standard, nas mesmas páginas em que havia publicado aacusaçãoquederaorigemaodesafiodeWellington.

O acontecimento, como era de esperar, logo tomou conta de todas asconversas de Londres. Muitos se disseram chocados com o fato de oprimeiro-ministro ter participado de um duelo. OTimes declarou que odueloforatotalmentedesnecessário.OMorningHeraldobservoudeformasentenciosa: “Nãoadmiraqueamultidãovioleas leisquandoospróprioslegisladores, os grandes, os poderosos e os famosos desa iam-nasabertamente”.45 Outros, porém, icaram surpresos com a participação dogrande herói não porque fosse ilegal, mas porque ele icou parecendo...poisbem, ridículo.Umcartunistaanônimopublicouumachargedoscincohomens, com Winchilsea dançando em cima de uma petição anticatólicaenquantooduquelhearrancacomumtiroapontadacasaca.EmbaixodeWellingtonaparecemosversos:

OD-que,quandonasbatalhaseracomandante,Nãosedignavaacederanenhuminimigoaspirante;Iráagora,sendodignificadopelosfavoresreais,Submeter-seaoinsultodeum—?—não,jamais!

Embaixo de Winchilsea lemos: “As doutrinas fundamentais do

cristianismo subvertidas”.46 No fundo, Falmouth estende um papel aHardinge,ondeestáescritoapenas“Desculpas”.Oefeitogeralérealmentecômico.

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“King’s Colledge [sic] to wit — a practical essay”, de autor anônimo (talvez Thomas Howell Jones ).Publicado por S. W. Fores, 41 Piccadilly, 1829. British Cartoon Archive, Universidade de Kent,<www.cartoons.ac.uk> (a atribuição a Jones está no site do King’s College London:<http://www.kcl.ac.uk/depsta/iss/archives/wellington/duel17.htm>).

Comentários de jornais e charges como esta tiveram importância

fundamental para transformar a reação ao duelo. O surgimento daimprensapopularedeumaclasse trabalhadoraalfabetizadadeixoucadavez mais claro— e, aumentando os sentimentos democráticos, cada vezmaisinaceitável—queoscavalheirosestavamvivendoforadalei.Quandoo duelo era uma prática aristocrática conhecida basicamente apenasdentro da classe de seus praticantes, não havia espaço para que asatitudes dos plebeus modi icassem esse mundo da honra. A imprensamoderna reuniu todosos cidadãosbritânicosnumaúnica comunidadedeinformaçãoeavaliação.47

Apesardessa levezombaria,Wellingtonclaramente levouamelhornoepisódio.Hardinge icara indignado emBattersea Fields coma recusa de

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Winchilseaemsedesculpar, jáqueeraevidentequeeleestavaerrado.Eessafoiaessênciadoprotestoqueeleleulogoapósosduelistastomaremposição. Em conversas com Falmouth antes e depois do duelo, Hardingefrisou a impropriedade, a seu ver, de impor ao duque a necessidade detrocar tiros. Com seu empenho frenético em dar ciência a Hardinge e aWellington—eatémesmoaodr.Hume—desuasrazõesparaaceitarsero assistente de Winchilsea, lorde Falmouth mostrava saber que elesjulgavamsuaparticipaçãoindigna.

O discurso de Hardinge antes do duelo é um exercício brilhante decondescendência. Depois de insistir queWinchilsea e Falmouth eram osúnicos responsáveis pelo fato de a disputa ter chegado àquele pontoextremo, disse-lhes que seriam os únicos responsáveis pelasconsequências.Eterminoudizendo:“Seagoranãoexpressominhaopiniãoa vossas senhorias nosmesmos termos de repulsa que utilizei durante oandamento do assunto, é porque desejo imitar a moderação de lordeWellington”.(Naturalmente,dizerquenãoestáquali icandoderepulsivoocomportamento de alguém é apenas umamaneira indireta de expressarrepulsa.Comoescreveumaistardeodr.Hume,Winchilsearesmungouemrespostaalgoarespeitoda“linguagemumtantoforte”.)QuandoFalmouthtentou mais uma vez justi icar a insistência de Winchilsea no duelo,Hardinge o aparteou de forma ainda mais desdenhosa: “De fato, meusenhor Falmouth, não invejo seus sentimentos”. Quase podemos ouvi-loconterumrisinhodeescárnio.

Nanarrativadodr.Hume,aagitaçãocadavezmaiordeFalmouthcriaumcontrastecomasólidacorreçãodeHardinge.No inal,Falmouthtalveztenhachegadoa icar com lágrimasnosolhos—omédiconão temmuitacerteza disso. A posição de Hardinge é direta: como homem de honra, oduquejulgouquenãoteveoutraescolhasenãolançarodesa io,masoqueoobrigouaissofoialgodesprezível.

O outro sentimento — a indignação com a recusa de Winchilsea emevitaroduelocomumpedidodedesculpas—foiamplamentepartilhado.Charles Greville sintetizou a reação (pelo menos em seus altos círculos)sem rodeios: “Nada pode se igualar à perplexidade provocada por esteacontecimento. Cada um, claro, vê o fato por uma luz diferente. TodosculpamlordeWinchilsea,mas icamdivididosentreseoduquedeveriater

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duelado ou não”. Talvez a contribuição mais marcante de Greville tenhasidochamarWinchilseade“louco”.48

Mas alguma coisa tinha mudado. Uma geração antes, não haverianenhuma dúvida de que Wellington estava fazendo o que devia fazer.PoucaspassagensdoquefoiescritonaépocamostramcommaisclarezaatensãoentreaculturadahonraeonovomundoqueestavanascendodoqueaavaliaçãopessoalemuitofrancadeCharlesGreville—escrita,devonotar, para ser publicada somente após suamorte— sobre a decisãodeWellingtonemdesafiarWinchilseaparaumduelo.

Pensoqueoduquenãodeveria tê-lodesa iado; foimuito imaturo,eeleestáemumaposiçãodemasiadoaltae suavidaé tãopublicacuraquedeveria ter tratadoaeleeà suacartacomodesprezoquemereciam;foiumgrandeerrodejulgamento,certamentevenal,poiséimpossívelnão admirar o espírito elevado que desdenhou se proteger por trás das imunidades de seugrandecarátereposição,easimplicidade,quasehumildade,queofezdescerprontamenteaonível de lordeWinchilsea, quando poderia, sem se sujeitar a qualquer imputação aviltante àsuahonra,teradotadoumtomdesuperioridadealtivaetratá-locomoindignodeatenção.Noentanto,foiabaixodesuadignidade;rebaixou-o,efoiumtantoridículo.49

Greville defende a ideologia do duelo? Ao arriscar a própria vida, o

duque ignoravaoperigo evidentepara o interessepúblico.Odesa io, dizGreville, era “imaturo”, “ridículo”; mas o erro de cometê-lo, ressalta, foi“venal”. No mundo da honra, fazer-se ridículo, agir ignorando suadignidade, é um pecado mortal. O que mais evidencia a defecção deGreville, abandonando a velha cultura do duelo, é o fato de ignorar oprincípio de que, em campo, todos os cavalheiros são iguais. A regraxxxviii do código queWilliam Hamilton apresentava noManual do duelopreviamentemencionadoéinequívoca:“Aspartes[...],pelopróprioatodese encontrar, izeram um reconhecimento da igualdade”. E, ainda que ocódigo fosse novidade—mais uma tentativa do começo do séculoxix deatenuar os extremos do duelo —, esse elemento era inteiramentetradicional. Seexistiamníveis sociaismesmoentreos cavalheiros—cadamembro da Câmara dos Lordes tinha assento seguindo uma ordem deprecedência —, um aspecto importante, como já frisei, era que todospertenciamaummesmoestratosocial.Presumivelmente,éporissoqueospares se chamam pares. No mundo da honra, a igualdade entre os

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cavalheirosexibidanodueloexpressavaasuperioridadedelesemrelaçãoàplebe.Negue-seissoetodoosistemacomeçaaseesfacelar.

AdúvidadeGrevillesobreseWellingtondeviaterpedidosatisfaçõesaWinchilsea indicava certa tensãono códigode conduta cavalheiresca. Porum lado, havia uma insistência claramente hierárquica sobre ainferioridade das “ordens mais baixas”; por outro lado, havia umigualitarismoentreosníveisdos cavalheiros.QuandoGrevilledissequeoconde não era do nível do duque— implicando que o duque estaria “serebaixando”ao tratá-locomo igual—independentementedequal fosseosigni icado de “nível” para Greville, ele estava apelando para um critérioinadequado.E,de fato,aorejeitaro idealdeumaformade igualdadequeligava o maior grão-duque ao mais simples escudeiro rural, ele estavarejeitandoesseúnico traçoprogressistado códigomoribundo.Na culturado duelo, qualquer cavalheiro— e ninguém negaria queWinchilsea eraumcavalheiro—eradignodeatenção.Greville julgou imaturoorecontrodeWellingtonsegundoumcritérioquenãoahonracavalheirescaquepormuitotempofundamentouaprática.

Cabedizerqueo rei Jorgenãodemonstrou tal ambivalência.Manteve-se numa longa tradição europeia de tolerância monárquica diante daspropensões da nobreza em desconsiderar leis tidas como expressão davontade do soberano. Ao meio-dia, Wellington estava em Windsor paraapresentar à corte o que havia acontecido. Greville nos conta que o reiicou“extremamentesatisfeitocomocasoWinchilsea”. 50Deacordocomoeditor daLiterary Gazette , Sua Majestade supôs que, em vista dasuscetibilidadedeWellington,“sendoumsoldado[...]ocursoseguidoforainevitável”.51 Os cavalheiros militares, como sabia o rei, ocupavam umlugar decisivo no mundo da honra. E talvez por isso a opinião de muitagente do povo também parece ter sido favorável a Wellington. Como aduquesa de Wellington disse a seu ilho, enquanto antes “a plebe [...]abusavadeseupai,agoraoaplaudianovamente”.52

Com quase toda a certeza, era exatamente isso que seumarido tinhaplanejado. Na atmosfera acalorada do debate constitucional, com odescontentamento fervendo na Inglaterra e na Irlanda, a conversão deWellingtonàcausacatólicahavia incomodadomuitosdeseusconcidadãosconservadores. Muitas calúnias tinham sido espalhadas a seu respeito.

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Wellington foi esperto em escolher o conde excêntrico e sua absurdaalegação como símbolo de seus detratores. Escrevendo ao duque deBuckingham ummês após o duelo, comentou— ameio caminho entre aadmissãoeaostentação—que,quandoa“cartafuriosa”deWinchilseafoipublicada,“percebiimediatamenteavantagemqueelamedava”.

Para ambos, Wellington e Winchilsea, o duelo era uma tentativa deganhar a opinião pública, embora previsivelmente houvesse muito maiscoisa em jogo para o duque. Ele disse que tentava angariar para si asimpatiapúblicaemfacedasinsinuaçõesedosboatosdeseusadversáriospolíticos.E,aseuver,obtiveraplenoêxito.Winchilseatinhafeitoseujogo:fizeraumaalegaçãoabsurda,recusara-seofensivamentearetirá-laeentãoobrigara o duque a arriscar a vida. Em tudo isso, o primeiro-ministroprocuroudaraaparênciadequefazia,comosempre,apenasoqueexigiao dever. “A atmosfera de calúnia em que eu vivia desde algum tempo sedissipou [...]. Fico satisfeito que os interesses públicos no momentoexigissemqueeufizesseoquefiz”,eleconcluiu.53

TalvezaversãodeWellington,seatomarmosaopédaletra,representeadefecçãomaisescandalosadetodas.Oquepareciaumarelutantedefesadahonrapessoaléremodeladonessacartaemfriostermosinstrumentais—comoumaquestãodecálculoeatémesmomanipulaçãopolítica.Amaispura encarnação do código de honra teria sido posta ao serviço de inspolíticoscomuns.

oquematouoduelo?

Como foi que o duelo propriamente dito acabou caindo em desgraça?

De quemaneira um conjunto de normas se enfraqueceu a ponto de umaristocrata como Charles Cavendish Fulke Greville ver o ato do duquecomoalgo“imaturo”?Jávimosalgunselementos—comoosurgimentodoEstado administrativo e sua preocupação com uma legalidade ordenada;umaimprensapopularqueconverteuumainstituiçãorestritaaumgrupoem espetáculo para uma alegre plateia de espectadores externos; oenfraquecimento do princípio cavalheiresco da igualdade entre ossuperiores.Masesseselementospoderiamsersintomasdeumamudança

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maior?Uma sugestão convincente—apresentadanaobradeV.G.Kiernan, o

principalhistoriadordodueloeuropeu—équeaclassequetinhaoduelocomo norma perdeu sua posição central na vida pública britânica. Aaristocraciadirigente forasuplantadanocomeçodoséculoxix, segundoofamoso argumento de Marx, por uma nova classe— isto é, por homenscomoPeel, cujas famílias tinham feito fortunano “comércio”, comodiziamos aristocratas em tom depreciativo. Desenvolviam-se novas burocraciasestatais, com novos instrumentos, como a estatística, dirigidas por umfuncionalismopúblicocadavezmaioremaisprofissionalizado.

Os homens de negócios acreditam em ser empresários e icientes; osburocratassabidamentepreferemascoisasemordem.Muitosintegrantesdessas novas classes eram favoráveis à reforma parlamentar. Elesqueriamanularosdireitos tradicionaisdanobreza fundiáriadedistribuiros assentos na Câmara dos Comuns, acabar com a compra de votos eampliar o sufrágio. A Lei da Liberação Católica era apenas um entre osmuitos avanços e recuos nessa batalha. Embora permitisse o ingresso decatólicos no Parlamento, o projeto de lei quintuplicava o valor dopatrimônio exigido para votar para os assentos dos condados na Irlanda,passando de quarenta xelins (como tinha sido na Inglaterra por quasequatrocentosanos)paradez libras, contribuindoassimparaaumentaraspressões pela reforma eleitoral que culminariam nos distúrbios quelevaramàaprovaçãodaLeidaGrandeReforma,apenastrêsanosdepois,em1832.

A tensão entre honra e legalidade deve ter parecido especialmenteintensa a Wellington, pois ele era não só um soldado pro issional, mastambémumadministradorpúblicocomlongafolhadeserviços,evinhadeumafamíliadeadministradorespúblicos.Seuirmãomaisvelho,omarquêsWellesley,eraumdosprincipaisservidorespúblicosdaépoca.Haviasidogovernador-geral da Índia, embaixador na Espanha durante as GuerrasPeninsulareseministrodasRelaçõesExteriores.William,seuoutroirmão,segundo ilhodocondedeMornington,tambémtinhasidoministroparaaIrlanda, emais tarde foi odiretordaCasadaMoeda sob lordeLiverpool,somando-se aos irmãos na Câmara dos Lordes em 1821, como lordeMaryborough,ondeocaçuladafamília,Henry,quetinhasidoembaixador

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naFrança,ingressouem1828,comolordeCowley.Opróprioduque—alémdesuaextraordináriacarreiramilitar—tinha

sido embaixador na França, primeiro plenipotenciário no Congresso deViena e membro do Conselho Privado desde 1807, bem como, é claro,ministro-geralparaaIrlanda.ElehaviaingressadonoParlamentoirlandêsaos 21 anos de idade. Como aristocratas com ligações militares, osWellesley podiam ser favoráveis ao duelo; como servidores públicos,tinhamasmesmasrazõesdeBaconeRichelieuparaseoporàprática.

Quando o duelo moderno mal acabava de nascer, Francis Bacon jápreviuomecanismodesuaextinçãoemseudiscursofeitoparaacorteemChargetouchingduels:

Penso, meus senhores, que os homens de nascimento e qualidade abandonarão a práticaquando ela começar [...] a descer a barbeiros, cirurgiões e açougueiros, e tais pessoas de vilofício.54

Um duelo era uma questão de honra. Dependia da existência de uma

classe poderosa, cujos membros podiam a irmar sua posição exercendoimpunemente uma prática contrária à lei — algo que outros nãoconseguiriam. Mais um sinal do declínio da posição dessa classe foi, nasprimeiras décadas do séculoxix, o aumento na frequência dos duelosentrehomensquese tinhamalgumtítuloeraemvirtudedeexercerumapro issão liberal ou ter feito fortuna no comércio. No momento em que“pessoas de vil o ício” tinham a possibilidade de travar duelo, estavaesgotadasuacapacidadedetrazerdistinção.

Quandoodueloestáemascensão,a caminhodeseuapogeunoséculoxviii,Baconfazumprognóstico.Paraumdiagnósticodopassado,vejamosRichardCobden,ograndeparlamentarliberal,numdiscursoemRochdaleem 1859, lembrando quando o duelo era um “modo de enfrentar certogênerodeinsulto”.CobdendizaoseleitoresdeRochdale:

Bem, eu lembroquealgunsauxiliaresde lojasde armarinhosmeteramna cabeçade sairumdomingo de manhã [...] e começaram a travar duelos; quando os auxiliares de lojas dearmarinhos decidiramduelar, a coisa icoumuito infame aos olhos das classes superiores. [...]Agora, nãohaverianada tão ridículoquantoumnobreou cavalheiropensar em se vingardeuminsultoduelando.55

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Para Cobden, a previsão de Bacon havia se con irmado, mesmo que

tardiamente: a adoção do duelo por “homens humildes” levara aoabandono da prática entre a aristocracia. E seu tomde zombaria nos fazlembrar que, numa época cada vez mais democrática, o duelo era umsímbolo pouco amado do privilégio aristocrático. Oscar Wilde comentounuma passagem famosa que enquanto a guerra fosse considerada cruelsempre teria seu fascínio. E concluía: “Quando for considerada vulgar,deixaráde serpopular”.Pode-sedizer algomuito semelhanteemrelaçãoaoduelo;epoderíamosacrescentarquefoisuavulgarizaçãocrescentequeinalmente deu evidência à sua crueldade. Enquanto a instituição erameramente condenada como loucura ou maldade, podia prosperar;somentequandofoidesprezadaéqueveioafraquejar.

Trêsanosdepoisdeseuduelo,nos“DiasdeMaio”—7a15demaiode1832—,WellingtonnãoconseguiuformarumgabineteparaGuilherme iv,o novo rei. A resistência do duque à reforma eleitoral — ou melhor, aresistência demuitos conservadores como ele na Câmara dos Lordes—levara a Inglaterra à iminência de uma revolução. Quando as revoltas seespalharam pelo reino, o idoso aristocrata teve de presenciar asconcessõesdaLeidaGrandeReforma,quemarcaramosprimeirospassosrumo ao im da supremacia da Câmara dos Lordes e ao começo daascensãodeumaCâmaradosComuns,agoramaisrepresentativadanovaclasse média mercantil e das pro issões liberais. Como escreveu JohnStuart Mill em 1840, “o governo da Inglaterra está passandoprogressivamente do governo de uma minoria para o governo nãoexatamente damaioria, mas de uma relativamaioria; do regime de umaaristocraciacominfusãopopularparaoregimedaclassemédia”.56

Muitosdessesnovoshomenscompartilhavamasconvicçõesevangélicasde William Wilberforce, que havia lutado por décadas não só emcampanhas abolicionistas e pela moralização pública — inclusive emcampanha contra os duelos —, mas também pela reforma parlamentar.Wellington e muitos de seus pares foram persuadidos a não se opor aoprojetodeleidevidoàameaçadorei—sobapressãoinsistentedocondeGreyeseugabinete—deelegernovosparesparavencê-losemnúmero.E, quando o novo Parlamento se reuniu, Sua Alteza teria observado que

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“nunca tinha visto em sua vida tantos chapéus de chocante mau gosto”.Essaspalavrasderabugentoesnobismo,talcomooduelocomWinchilsea,re letem a distância entre seus sentimentos e o espírito dos tempos.Escrevendo em 1865, ao inal de uma longa vida, John Cam Hobhouse,amigodeByron,comentouarespeitodadecisãodeWellington:“Édi ícilaestaaltura,tantosanosapósamudançadaopiniãopúblicaedoscostumesem relação ao duelo, apresentar um julgamento imparcial daqueleepisódio”. Mas ele prosseguiu, como que narrando os hábitos de umacultura estrangeira: “O duelo, tal como a luta de cães contra touros, opugilismo, a rinhade galos e outraspráticas bárbaras, tinha suas regras,quenãopodiamsertransgredidassemacarretarcensura”.57

osúltimosduelos

Asmudanças apresentadas acima ocorreramna Inglaterra. Emoutros

lugares — Estados Unidos, Rússia, Alemanha, Espanha —, o dueloterminoudemaneirasdiferentes,comoseriadeesperar,tendoemvistaavariedade de contextos sociais e políticos nessas diversas sociedades. Ahonra não desapareceu com o duelo, evidentemente, nem nas IlhasBritânicas nem em qualquer outro lugar. Mas, depois de séculos detentativas, os burocratas, cujas reclamações ouvimos na Charge touchingduelsdeBacon,conseguiramoquequeriam.Talveznadamostremelhoramudança de signi icado da palavra “cavalheiro” do que a declaração docardealNewman, a quemnãopareceu absurdodizer, em1852, que “umcavalheiroé,quasepordefinição,aquelequenuncainfligedor”.58Seesteéocavalheiro,nadaseriamenoscavalheirescodoqueoduelo.

Emmeadosdoséculoxix,nãosepodiamaisdefenderahonranasIlhasBritânicas com o duelo. James Kelly, autor de uma história do dueloirlandês,citaumcertocapitãoSmithquefoiatingidoemortoem1833,emFermoy,“apósuma‘discussãofuriosa’sobreosméritosrelativosdeváriosregimentos”;maistarde,aindanadécadade1830,lordeLondonderryeolorde prefeito de Dublin e seus respectivos adversários saíram ilesos docampodeduelo.59Depoisdeles,cessamosregistros.

OúltimocavalheiroaserprocessadoporduelonaEscócia foiacampo

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emagostode1826.Eraumduelistarelutante,umnegociantedetecidosdeKirkcaldy (um comerciante, insistiria Wellington), e o adversário que oobrigou ao desa io era seu banqueiro, um ex-o icial militar. O banqueiromorreu;oempresáriofoiabsolvido.60

E provavelmente a última vez em que um cavalheiro disparou contraoutro no campo de honra na Inglaterra foi em 1852, quando GeorgeSmythe(amigodeDisraeli,equelheserviudemodeloparaopersonagemConingsby) e um certo coronel Romilly, ambos membros do ParlamentopelaCantuária,resolveramumadisputaeleitoralnoduelogeralmentetidocomo derradeiro na Inglaterra. 61 Kiernan conta que foi “um episódioapropriadamente burlesco, com os dois homens e seus assistentes tendode dividir a carruagem de aluguel em Weybridge”. De fato, há algo decômico na imagemde dois cavalheiros e seus assistentes saindo do trempara dividir um táxi até um campo onde planejavam trocar tiros. Assimobservou um contemporâneo: “O incidente foi tratado num artigoespirituosonoTimes,enofundofoitãoridículoquecontribuiumaisdoqueamoralparamataroduelo. Solventurrisutabulae”.62Ocasofoiabsolvidocomrisadas.

Entre os últimos duelos na Inglaterra, meu favorito foi o que ocorreuentre sir William Gregory, marido de lady Gregory, a famosa iguraliterária irlandesa, e outromembrodoTurf Club, que forama campo emOsterley Park em 1851, numa disputa bastante complicada por causa doacobertamento da propriedade de um cavalo. Muito tempo depois, sirWilliamescreveumrelato,dizendonoprefácioquedesejaexplicarao ilhoporquefezalgo“tãotolo,tãoerradoetãocontrárioàopiniãopública”. 63Adescrição do duelo — que foi adiado por alguns dias, a im de que eletivessetempodereceberseusprêmiosnumacorridadecavalos—hádeparecer involuntariamente cômica a um leitor contemporâneo. A certaaltura,oassistentedeGregory, sirRobertPeel, ilhodoprimeiro-ministrofalecidopoucotempoantes, indagaemvozaltaseamorteéapenalidadeadequadaparaamentiraarespeitodeumcavalo.Logoanteseleobserva:“Claro,[...]seescaparmosàforca,teremosdemorarnoexteriorpelorestodavida”;eGregorycontaqueentão “discutimosnossa futuraresidência”.Nossaesperançaéqueo ilhodesirWilliam,RobertGregory(cujamortena Primeira Guerra Mundial foi o tema de Yeats em “An Irish Airman

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Foresees His Death” [“Um piloto irlandês prevê sua morte”]), tenha sesentidorealmenteedificadocomessanarrativa.

Quando perguntam a Guy Crouchback emOf icers and Gentlemen[O iciais e cavalheiros], o romance de Evelyn Waugh sobre a SegundaGuerra Mundial, o que ele faria se fosse desa iado para um duelo, suaresposta é lacônica: “Riria”. 64 O processo terminou assim,mas os risos jáhaviam começado quando o grande duque de Wellington foi objeto dezombaria por ter desa iado aquele “louco”, o conde de Winchilsea eNottingham.

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2.Alibertaçãodospéschineses

Nãohánadaquenostornemaisridículosdoqueatarospés.KangYouwei1

ummemorandoaotrono

Em 1898, um intelectual chinês chamado Kang Youwei enviou um

memorandoaoPalácioImperialemBeijingsobreoenfaixamentodospés.Não havia nada de incomum nisso. Fazia séculos que o império eragovernado por letrados cultos, selecionados em exames extremamenteseveros e concorridos, e eram os magistrados — os mandarins — queocupavam os governos locais nos condados chineses. Os melhorescolocados nesse sistema de exames sucessivos— conhecidos comojinshi— eram chamados a Beijing para trabalhar no governo ou (se fossemexcepcionalmentebem)naAcademiaHanlin,ondeestudavamosclássicosconfucianos e aplicavam seus ensinamentos aos problemas do momento.Osletradossecomunicavamcomosimperadoresatravésdememorandoscomo o de Kang (convencionalmente chamados de “memoriais”), escritosnumaeleganteprosaclássica,quepercorriamlentamenteaburocraciaatéchegar ao alto. Se um memorial fosse considerado su icientementeimportante, poderia de fato chegar ao palácio, em sua forma original ouremodeladoempropostasqueoimperador inalmenteemitiriatalcomoosdecretosqueregiamosistemaimperial.

Kang era ummembro destacado de um grupo de literatos do inal doséculoxix que, embora mergulhados nos antigos clássicos confucianos,estavam convencidos de que a China precisava se modernizar. Aocontráriodosconservadoresquecomandavamaburocracianacional,eles

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acreditavam que, para levar o país aos novos tempos, havia muito aaprendercomoOcidente.Kang,pessoalmente,eradefensordamonarquiaQing,mastambémjulgavaqueelaprecisavademudançasconstitucionais.

Por trás da complexa formalidade do sistema imperial daquela época,havia um fato crucial evidente: no centro do labirinto estava Cixi, aimperatriz-mãe. Ela era, segundo todos os critérios, uma mulherextraordinária. Tinha chegado à Cidade Proibida, o enclave imperial nocoraçãodeBeijing, no verãode1852, comdezesseis anosde idade, paraserumadasváriasconcubinasdonovoimperador.Faziamaisdeduzentosanosqueumadinastiaestrangeira(daManchúria)governavaaChina,eonovo imperador Xianfeng era o oitavo governante Qing. Seu antecessormorreradoisanosantese,passadoodevidoperíododeluto,omonarcade21anosdeviacomeçaraformarsuacoleçãodeconcubinas.

Naquele ano, foram escolhidas sessenta jovens manchus entre osmilharesdenomesapresentadosdetodasaspartesdoimpério,apartirdelistas inspecionadas por funcionários locais e encaminhadas à capital.Essaslistastraziamarelaçãodosantepassadosdecadajovem,umaanáliseastrológicabaseadanadatadonascimentoeumadescriçãodocaráter,daeducaçãoedaaparênciafísicadelas.

Cabia à viúva do inado imperador (a imperatriz-mãe da época)examinar e classi icar as novas concubinas. Ao que parece, ela não icouespecialmente impressionadacoma jovem,vistoqueCixi foi colocadanosníveismaisbaixosda relaçãode concubinas.Apenas trêsanosdepois elafoi chamada à alcova imperial, para cumprir pela primeira vez a funçãoquelhecabiajuntoaoimperadorXianfeng.

Aocontráriodaimperatriz-mãe,oimperadorpelovistogostoudamoçaquasedeimediato,eapartirdalielainiciouumacarreirameteórica,tantoeminfluênciaquantoemposição.Em1856,deuaoimperadorseuprimeiroeúnico ilho; umanodepois, quandoa criança completouoprimeiro anodevida,elarecebeuposiçãoimperiallogoabaixodaimperatrizCi’an.

Quando omaridomorreu em1861, seu ilho, o novo imperador, tinhaapenas cinco anos. E assim o império ingressou num período em que opoder icou o icialmente dividido entre Cixi e a imperatriz-mãe Ci’an, deum lado, e um grupo de regentes do sexomasculino, de outro. (As duasmulheres eram conhecidas como Imperatriz-Mãe do Leste e Imperatriz-

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MãedoOeste,porqueviviamnessesquadrantesdaCidadeProibida.)Nas complexas lutas políticas que se seguiram, Cixi, com percepção

aguda do poder e capacidade magistral de fazer alianças, gradualmenteirmou sua superioridade.Depois damorte prematura do ilho, vítimadevaríola, ela colocou no trono o sobrinho de quatro anos, como imperadorGuangxu. Há certa ironia no nome, poisguangxu signi ica “sucessãogloriosa”, e o novo imperador era da mesma geração do anterior, o queconstituía uma quebra da tradição manchu. De fato, o principalfundamentodapretensãodomeninoaotronoparecetersidooapoioqueseupaideuaCixinasintrigasdacorte.

Cixi era bonita, carismática, inteligente e divertida; sir Robert Hart,irlandêsquefoiinspetor-geraldaalfândegachinesade1863a1911,disseque ela falava “numa vozmuito feminina e agradável”. 2 Elamesma dissemais tardeque foimuito invejadana juventude, “porqueera consideradaumabelamulhernaquela época”. 3Nosbrilhantes trajesde sedaamarelaimperial, com detalhes bordados em preto, vermelho, verde e azul, erauma igura impressionante, apesar de ter (como a rainha Vitória, quegovernavaaqueleoutroimpérioqueadesa iavadooutroladodomundo)apenas1,5mdealtura.

Desdeamortedomaridoatésuamortequasemeioséculodepois,Cixigovernou— à exceção de cem dias, aproximadamente— “por trás dascortinas”,comodizaexpressãochinesa.Emtodomomentohaviapríncipesmanchus no palácio, commáxima in luência sobre ela e a nação. Quandomudavamosrumosdogoverno,eraporqueelahaviatransferidoseuapoiode um grupo para outro. Enquanto a China aprendia a lidar com ainterferênciacrescentedepotênciasexternas,essamulherpequenina feztudo o que pôde para sobreviver a qualquer contestação de suaautoridadedentrodopaís;mas sua avaliaçãodomundo exterior não eratãosegura.

Em 1889, o imperador Guangxu— em cujo nome Cixi governava —completoudezoitoanosdeidadeecomeçouagovernarpessoalmente,pelomenos em termos o iciais. (Até mesmo isso foi um re lexo do poder daimperatriz:pelatradição,eledeviaterselivradodaregênciaaosdezesseisanos.)Mas a imperatriz-mãeaindaestavapróximadopoder.Emabril de1895,aChinasofreuumaderrotanavaldoJapãoefoiobrigadaaassinaro

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humilhante Tratado de Shimonoseki. Foi o ano emqueKang, commuitosoutros jovens estudiosos brilhantes, chegou a Beijing, com 37 anos deidade, para prestar os exames jinshi. Mas, antes mesmo de fazê-los, elerompeuoprotocoloeescreveuummemorialao trono,umapetiçãode10mil palavras assinada por centenas de outros titulados em examesprovinciais—os juren—que,comoele,estavamreunidosparaprestarojinshi(queeraoexamemaisrigoroso).

Os signatários insistiam que o trono devia resistir ao Japão epropunhamreformassociais,políticaseeconômicasdegrandemagnitude.Suas ambições para o país tinham sido frustradas pormuitos anos pelosintegrantesmaisantigosegraduadosdaburocracia.Emborao imperadorparecesse ter consciência da necessidade de profundas mudanças, nãotinha poder ou independência su iciente diante da imperatriz-mãe— oudos aristocratas manchus apoiados por ela — para prevalecer sobre osfuncionáriosquesupostamentedeveriamaconselhá-lo.

Então, por um período de aproximadamente cem dias, entre 11 dejunho e 21 de setembro de 1898, o imperador começou a dar início areformas realmente autênticas, em boa medida inspiradas em outrosmemoriais de Kang Youwei.4 Nos Cem Dias, a imperatriz-mãe icouobservandoenquantoo imperadoremitiacercadequarentadecretos.Eleaboliu o famoso “ensaio de oito pernas”— a forma em prosa altamenterepetitiva do sistema tradicional de exames, estabelecida desde longadata;5procurouabriroensinoàciênciaocidentaleaoestudodocomércio,engenharia emineraçãomoderna; propôs a reformado arcaico processoorçamentário e o fortalecimento da Marinha; dispensou funcionáriosgraduados recalcitrantes; e, como disse um ingênuo admirador seu, ummissionáriobritânicoquemoravaemBeijingnaquelaépoca,tentou“abolircargosinúteisemBeijingenasprovíncias”.6

OimperadorchegouaencontrarKang—meropequenofuncionárionaCâmara de Comércio —, o que era quase sem precedentes. Sentindo-seencorajado, Kang enviou uma enxurrada de escritos para o palácio nosCemDias,encaminhadossobaautoridadedeváriosaltosfuncionárioseàsvezes, ao que parece, por canais secretos o iciosos. (A amizade de Kangcom Weng Tonghe, preceptor do imperador Guangxu, foi um fatorimportante.)7

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Em meio a esses eventos épicos, Kang encontrou tempo paraargumentar em seu memorial sobre o enfaixamento dos pés que erafundamental para a reforma da China alterar a posição das mulheres. 8Para ele, esta era uma questão da maior importância. Kang resumiu empoucas páginas o argumento de que o trono deveria começar proibindoqueseatassemospésdasmulheres.

Seumemorialfazumacomparaçãoentreoschineseseosestrangeiros,sendodesfavorávelaosprimeiros.Dizia: “Olhooseuropeuseamericanos,tão fortes e vigorosos porque suasmães não amarramos pés, e por issotêm ilhos fortes. Agora que precisamos concorrer com outras nações, éperigoso transmitir uma progênie fraca”. 9 Mas um tópico central de seuargumento se referia aos danos que o enfaixamento dos pés causava aorenomenacionaldaChina. “Todosospaíses têmrelações internacionaisecomparammutuamentesuas instituiçõespolíticas”, ele iniciava, “de formaque, se um comete omais leve erro, os outros o ridicularizame o tratamcomsuperioridade.”Eprosseguia:

Nãoémaisaqueletempoquandoestávamosunidossobummesmogovernoeisoladosdetodoo mundo. Agora a China é estreita e muito povoada, tem viciados em ópio e ruas cheias demendigos. Os estrangeiros tiram fotogra ias e riem de nós por isso; criticam-nos por sermosbárbaros. Não há nada que nos torne mais ridículos do que atar os pés. Eu, vosso humildecriado,sinto-meprofundamenteenvergonhado.10

Transcorreriam mais quatro anos antes que Cixi inalmente lançasse

umdecreto determinando o im do enfaixamento dos pés. Nesse ínterim,muita coisa havia acontecido,mas, como veremos, omemorandodeKangnão teve nenhum papel na decisão. Embora o texto tenha falhado, seuargumento—oenfaixamentodospéseraumamanchanobrasãonacional— funcionou. Isso porque sua preocupação com a honra nacional erapartilhada por muitos integrantes das classes cultas, que de iniram atransformaçãodaChinadeimpérioemEstadomoderno.

Osletrados,cujosantepassadoshaviammoldadoomundoimperialpormaisde2milanos, tiverampapel fundamentalnadissoluçãodetradiçõesimemoriais, tal como haviam tido em suamanutenção. Quero examinar oprocesso que levou Kang e seus colegas à convicção de que a honra daChina exigia que se pusesse um im a essa antiga tradição. A

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transformaçãosocialaquederaminício,equepôs imaumapráticaquemoldara a vidada elite chinesapor cercadeummilênio, é a segundademinhasrevoluçõesmorais.

honraeidentidade

Começamos nosso exame da honra pelo duelo, no qual o que está em

jogo é a honra individual. Normalmente o cavalheiro ia a campo paradefender sua própria honra. Mas os cavalheiros também lançavamdesa ios para defender a honra de damas: mães, irmãs, ilhas, amantes,esposas e às vezes (nos primórdios) damas ligadas a seus suseranos.Empenhavamsuahonraparadefender adadama; impugnavamahonrado cavalheiro que desa iam por ter envergonhado uma dama e assimtransgredido o código de honra;mantinham a honra dela desgraçando afonte de sua vergonha. Em decorrência disso, o sistema de honra podiaexigirumaação, aindaquevocênão tivesse feitonadaeninguém tivessefeito nada a você. Assim, mesmo nesta forma simples, a honra não émeramentepessoal.

De fato, a honra está associada intimamente e de muitas maneirasàqueles aspectos da identidade que derivam do pertencimento a grupossociais. Como vimos no capítulo anterior, você trava o duelo por honrapessoalenquanto cavalheiro. Apenas cavalheiros podem lançar desa ios;apenascavalheirospodemaceitá-los.E,emgeral,otítulodeumcavalheiroaorespeitodeoutroscavalheiros(edamas)estáemconformidadecomumcódigoque faz exigênciasmuitoespecí icas.Ao transgrediro código, vocêperderá o direito de ser respeitado. As identidades coletivas moldam ahonra individual, porque o respeito e o desprezo por indivíduos sãomoldadospelasmaneirasqueosjulgamos,enquantopertencentesaváriostipossociais.

Assim, uma das maneiras em que a identidade tem importância équandoeladeterminaoqueoscódigosdehonraexigemdevocê.(Algumasvezes, chamarei depráticas da honra as coisas que a honra exige oupermite a você.) Os exemplos mais evidentes estão relacionados com osexo. Ser homem ou mulher desempenha frequentemente um papel

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fundamentalnadeterminaçãodaquiloqueoscódigosdehonralheexigem,equalocomportamentodesuapartequeexige(ouperde)respeito.Commuita frequência, a classe social também é importante. Na Inglaterrasetecentista, os códigos exigiam que os homens das classes superioresrespondessemaosdesa iosdeoutroscavalheirosparaumduelo.NaChinaoitocentista, os códigos exigiam que as mulheres das classes superioresamarrassem os pés. Em cada um desses códigos, o comportamentoesperadodependiadaposiçãosocialedosexo;easidentidadesdosoutrosmoldavamcomovocêdeveriatratá-los.Umhomemhonradocasava-secomuma mulher de pés amarrados; uma mulher de pés amarrados não secasaria com um homem sem honra. Um cavalheiro aceitava de outroscavalheiros o desa io para um duelo, mas não de homens das “classesinferiores”—e tampoucodemulheres.Apenalidadepara todosos casosdetransgressãodessescódigoseraaperdadahonra,oquesigni ica,comovimos,aperdadodireitoaorespeito.

Quando um sistema de honra se baseia na estima (e não apenas noreconhecimento), a distribuição da estima é comparativa. Isso é bastanteevidentequandoocritérioqueregeaestimaéumafaçanhamilitar,comona cultura pro issional da honra de Wellington. Mas os julgamentos porestima, qualquer que seja o critério, quase sempre acarretam acomparação com aquilo que os ilósofos Geoffrey Brennan e Philip Pettitchamamde “grupo de referência”. 11 Suponha-se que eu estime você porserumaenfermeirabondosa.Ograudebondadequemereceestimanumaenfermeira pode ser menor do que a bondade altruísta de um parentequerido e maior do que a bondade de um bom samaritano comum. Aavaliação de quão bem você se sai, segundo o critério apropriado a seugrupo,dependerádasexpectativasnormaisemrelaçãoaocomportamentoqueosmembrosdessegrupodevemadotar.

Sua identidade social não apenasdeterminaos códigos aosquais vocêdeveseadaptar,mastambémestabelececomquemvocêestáconcorrendopela honra. Com efeito, a honra opera para recompensar aquelesespecialmente estimáveis entre os participantes daquele grupo socialespecí ico. Ela recompensa os que fazem mais do que devem, e assimoferece incentivos para que a pessoa vá “além e acima do chamado dodever”.

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Masháoutramaneiraigualmenteimportante—etotalmentediferente—emquea identidadetemrelevânciaparaahonra:podemos partilharahonraouadesonradaqueles comquempartilhamosuma identidade.EmShakespeare, quando Henriquev — no cerco da cidade portuária deHar leur em 1415 — pede a seus seguidores que bradem “Deus ajudeHenrique, a Inglaterra e são Jorge”, eles sabemque o líder leva a camponãosósuahonrapessoal,mastambémahonradeseupaís.

Avante,ómaisnobresdosingleses...Nãodesonreisvossasmães;provaiagoraQuesoisfilhosdaquelesaquechamaispais.(atoiii,cenai)

AssimfalaHenrique,lembrando-lhesdeque,comoele,têmsuahonrae

ahonradopaísaseuscuidados.Osinglesesplebeusnospostosdebatalha,soldados camponeses que não eram nobres, poderiam compartilhar ahonra participando no assalto à cidade forti icada de Har leur comosoldados. Na batalha de Agincourt, que ocorreu cerca de dois mesesdepois,oreideixaexplícito:

Nóspoucos,nósospoucosfelizardos,nósgrupodeirmãos.PoisquemhojederramarseusanguecomigoSerámeuirmão;pormaisvilqueseja,Estediaenobrecerásuacondição.(atoiv,cenaiii)

Combater com Henrique em Agincourt “enobrece” sua “condição”,

transforma-onumcavalheiro;dá-lheumanovaidentidadesocial.(Ofatodeserumaevidentehipérboleempregadapeloreinãodiminuiosentimentoda coisa.) Como sua honra se liga a você com uma identidade socialespecí ica,precisamossaberquetipodepessoavocêéantesdeverquaisasformasdehonraqueestãoaseualcance.

Emtermossimples,podemosganhareperderhonracomosêxitoseosfracassosdaquelescomquempartilhamosumaidentidade.Quandoopovoda Inglaterra recebe a notícia da vitória em Agincourt, pode se orgulharpela honra da Inglaterra; quando os franceses recebem a notícia de sua

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derrota, saberão e sentirão a vergonha de seu país. O orgulho que sintoquandoossoldadosdemeupaísdefendemcivis inocentescontrahomensque tentam massacrá-los numa terra distante vem a mim porquecompartilho a honra de minha nação. Como veremos, há experiênciasanálogasparamuitostiposdegrupos—religiões,classessociaisefamíliassãoosquesedestacam.(MuitosautomóveisaquinosEstadosUnidosusamum adesivo que diz: “Pai orgulhoso de um estudante de honra”.) KangYouwei foi motivado— e também queriamotivar outras pessoas— porumaquestãoqueopovochinêscompartilhavaemnomedahonradeseupaís.Assim,nestecapítulo,examinareiumasegundarevoluçãonahistóriamoraldenossaespécie.Destavez,porém,amudançafoimoldadanãoporalteraçõesnapaisagemdahonraindividual,esimportransformaçõesnasideiassobreahonradeumpovo.

osprimórdiosdolótusdourado

As origens exatas da amarração dos pés estão envoltas em

controvérsias.ExistemtradiçõesqueassociamseusiníciosaoreiepoetaLiYu,oúltimogovernanteTangdosul,queresistiuaodomínioSongatéoano975.(Seissoestivercorreto,aamarraçãodospéscomeçoucercade1500anos depois da morte de Confúcio.) Howard Levy, autor de uma dasprimeiras histórias modernas do enfaixamento dos pés, registra umareferência na obra de um comentador do século xii a um texto, agoraperdido, que descrevia “a concubina favorita do palácio” de Li Yu, umamulherconhecidacomo“DonzelaAdorável”,

queeraumabeldadede cinturaesguiaedançarina talentosa.Elemandouconstruirparaelaumlótusemourode1,80mdealtura.[...]ADonzelaAdorávelrecebeuordensdeatarseuspéscomsedabrancaparaqueasextremidadesparecessemaspontasdo crescenteda lua.Entãoeladançounocentrodolótus,rodopiandocomoumanuvemasubir.12

Quaisquerquesejamosméritoshistóricosdorelato,ospésamarrados

damulherchinesapassaramaserconhecidoscomolíriooulótusdourado.O enfaixamento dos pés começou como símbolo de posição elevada

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numa sociedade extremamente hierarquizada. No inal do século xiii,escreve Levy, “as famílias que ostentavam linhagem aristocráticacomeçaramasesentir compelidasaamarrarospésdesuasmeninas [...]como sinal visível de distinção social”. A distinção era possível porque asmulheresdaelite—aristocratasnacorteoudamasnasprovíncias—nãoprecisavam trabalhar na lavoura como as camponesas, nem fazer longascaminhadasatéomercado.Naverdade,ospésamarrados impediamquese afastassem de casa, garantindo assim— como colocou um tratado doséculoxiv (numargumentoque seria retomado inúmeras vezes ao longodosséculos)—acastidadedelas.13

O lótusdouradoestá ligadodesdeo inícioàhonra feminina.E, comoahonraeraumdospré-requisitosessenciaisparaumcasamentorespeitável—queeraumarranjoentreasfamílias,enãoumaescolhadosindivíduos—, as mulheres chinesas que esperavam desposar homens com algumaposição social precisavam ter os pés amarrados. Assim, os homenscomeçaramapreferirmulheresdepéspequenos;eessapráticadolorosatornava-sesuportávelparaasmulheres—sejaquandosofriamnaprópriacarne, seja quando presenciavam a dor das ilhas, sobrinhas e netas—pela convicção de que seus pezinhos minúsculos eram simplesmentelindos.

Édi ícilcompartilhardessaconvicçãoquandovocêolhaasimagensdospésnus, libertadosdas amarras, que se tornaramum itemconstantenascampanhasposteriorescontraessaprática.Mascabelembrarquenãoeraissooqueamaioriadaspessoasvia,pois,umavezamarrados,ospésdasmulheres icavam quase sempre calçados com elegantes sapatinhosbordadosecoloridos.

De fato, um dos atributos de uma chinesa de boa família era ahabilidadedefazerebordarseusprópriossapatos,emcoresapropriadasparaasfestas,paraolutoeparaocotidiano,etambémparausarànoite.Costurar uma coleção de sapatos para levar para a casa domarido faziaparte da preparação do enxoval de casamento; e uma sogra julgaria anora,emparte,pelaqualidadedossapatosquetrazia.Oshomenssóviamos pés nus das esposas no recesso privado. Como disse certa vez a sra.Archibald Little, umadas grandes defensoras do imde tal prática e quereencontraremos mais adiante: “Todo chinês, quando acaricia os pés da

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noiva, gosta de imaginar que eles são como aparecem — minúsculos,acetinadoselindamentebordados”.14

Uma mulher só via seus lótus dourados quando retirava as longasfaixasparatrocá-las;aolavarospés,polvilhá-loscomtalco,reamarrá-losecolocar seus sapatinhos vermelhos de dormir antes de se recolher—oucalçando as elegantes confecções para uso diurno que os outrosvislumbrariamsobseustrajes.Masnãodevemossuporquemesmoospésdescalços fossem objeto de repugnância. Longe disso. Hámuitas fotos davirada do séculoxx commulheresmostrando orgulhosamente seus lótusdourados; e a admiração por essesminúsculos pés quebrados, reveladosemprivado sem suas faixas, é um tema constante nos textos chineses aolongodosséculos.

ocostumesedifunde

Antesqueosmanchustomassemoimpério,afamíliaimperialera,claro,

chinesa;eumimperadorchinês,noápicedesuasociedade,tinhamilharesdemulheres reservadasexclusivamentepara seuuso.ACidadeProibida,ondemoravaoimperador, icavafechadaànoite,excetoparaoimperador,seus eunucos, suas esposas e suas concubinas. O cientista político GerryMackie apontou uma razão pela qual, nessas circunstâncias, a amarraçãodospésteriasefirmadoesedifundido.

O imperador, cercado por todas essas mulheres, preocupava-se emgarantirquefossemseusos ilhosqueelasdessemàluz.Poroutrolado,asesposaseconcubinas—cujamaioriaprovavelmentenãogerarianenhumilho— teriam motivos “para procurar uma inseminação clandestina dehomens mais disponíveis” do que o imperador. Haveria assim uma lutaconstante entre o imperador, com seu interesse em garantir a idelidadedelas,eessasmulheres,queteriamrazõesparafugiraseucontrole.Ofatode que todos os homens que trabalhavam no interior do palácio eramcastradoseraumre lexodessasituação.Masoutrore lexoera tambémofato de que osmovimentos dasmulheres eram limitados pela amarraçãodospés.

AgrandepercepçãodeMackieéque,umavezimplantadoessesistema,

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suainfluênciasedifundiriaparaalémdopalácio.O estrato logo abaixo, concorrendo para fornecer esposas e concubinas ao ápice, imitará eexageraráapráticadecontroleda idelidade,paraobteracessoeconômico,socialereprodutivoao palácio. O vazio de mulheres no primeiro estrato abaixo será preenchido por mulheresascendendodosegundoestratoabaixo,queporsuavezadotarãoaconvençãodecontroledafidelidadeeassimpordiante,emtodososestratosatéoúltimo.15

Eassim,duranteadinastiamongolYuan(1271-1368),aamarraçãodos

pés difundiu-se para o sul, pelo menos entre a elite. Ela ganhoupopularidadeentreasclassessuperioresdadinastiaMing,comomostraogranderomanceeróticodadinastiaMing, JinPingMei,conhecidoeminglêscomoTheGoldenLotus[Olótusdourado]ouThePlumintheGoldenVase [Aameixa no vaso dourado], que apareceu no inal do séculoxvi. Quando opróspero mercador Hsi-men está em busca de uma nova esposa, acasamenteiraqueestáarranjandoomatrimônioencontra

umaoportunidadedeerguer ligeiramenteasaiadadama,mostrandoseusbelospés,com7,5cmdecomprimentoenãomaislargosdoqueumpolegar,bempontiagudosecomodorsoalto.Estavam revestidos por calçados escarlates, bordados em io de ouro como desenho de umanuvem,comsaltosaltosdesedabranca.Hsi-menosobservoucomgrandesatisfação.16

Osmanchus,quederrubaramadinastiaMingem1644einstaurarama

última dinastia imperial — Qing (1644-1912) —, tinham uma visão nãomuitoclaraarespeitodapráticadeatarospésetentaramdetemposemtempos,comgrausvariadosdeentusiasmo,erradicaroslótusdourados.

Seus primeiros decretos abolindo o enfaixamento dos pés foramemitidos logo após a tomada do poder. Mas, longe de diminuir sob odomínio manchu, a prática difundiu-se ainda mais entre a populaçãochinesa.Atémesmoalgumasaristocratasmanchusignoraramaproscriçãoo icialdaprática, eosdecretos foramrevogadosdepoisde semostraremine icientes. Existem registros de amarração dos pés no século xix entrealgumasminoriasqueviviamnoimpério,taiscomoosjudeusemHunanoualgunsmuçulmanospertodaprovínciadeGansu.Emsuamaioria,mongóise tibetanosseabstiveram,bemcomooshakkasdosuldaChina.Demodogeral, apráticaeramuitomenosusualentreospobres, sobretudonosul,

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em áreas de agricultura intensiva, onde as mulheres trabalhavam nosarrozais.MasexistemrelatosindicandoqueatémesmoalgumasmendigaseaguadeirastinhampésamarradosnaáreaurbanadeHunan,bemcomoemváriasáreasruraisnonorte.17

Então, no inal do séculoxix, as chinesas, em especial aquelas dasclasses superiores, amarravam os pés das ilhas fazia quase mil anos,emboraapráticatambémtivessesidoperiodicamentebanidapordecretoimperial durante mais de duzentos anos. As mulheres com pés normaiseram ridicularizadas; as mulheres com pés pequenos, sobretudo com osminúsculos lótus dourados, commenos de 7,5 cm de comprimento, eramelogiadas e valorizadas, e seus pés eram objeto de atenção erótica. Osromances e manuais eróticos chineses falavam de homens que seexcitavampeloandararrastadodamulherdepésamarradosouardiamaoafagar os pés desenfaixados. Descrevem posições sexuais em que oshomens podiam acariciar os pés desenfaixados das amantes. Haviaconcursospúblicosdepésminúsculos,emqueaplateia,apreciando,podiacomentareavaliaros“tamanhosdiminutoseasformasproporcionais”doslótusdouradosenvoltosemseda.18

adordoenfaixamento

Atavam-se os pés dasmeninas, algumas desde os três ou quatro anos

de idade. Se a intenção era obter o menor lótus dourado possível, aamarração era extremamente dolorosa. Esmagava os quatro artelhosmenoressobasoladopéeencurvavaapartedetrásdoastrágaloparaasola,obrigandoosossosdopéaformarumarcomuitomaiscavadodoquequalquer ocorrência natural e criando uma espécie de fenda.Frequentemente era preciso limpar o sangue e o pus dos pés atados; devezemquandoasatadurasapodreciameosartelhossedesprendiam.Como tempo— depois demeses e anos— a dor diminuía, presumivelmenteporque os nervos tinham sofrido dano permanente. De todo modo, asmulheres com pés atados tinham grande di iculdade de andar. Médicosmissionários do inal do séculoxix—que, semdúvida, tinham interessesum tanto etnocêntricos — registraram casos em que o enfaixamento

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provocouulcerações,gangrenas,perdadeumoudosdoispéseatémorte,nocasomaisgrave.19

É claro que raramente se atingia o tamanho ideal do lótus de 7,5 cm,sobretudo fora das classes superiores. As camponesas e trabalhadorasbraçaisgeralmentepassavamporuma formamaisbrandadeamarração,quepodiacomeçarquandoameninajátinhamaisidade,eoprocessoeramenos doloroso e deformador. O marido de uma mulher idosa de pésamarrados insistiaqueospésmenosdeformadosdedozecentímetrosdealgumas trabalhadoras comuns não constituíam obstáculo para caminharoucarregarcargaspesadas.Umpéde7,5cm,poroutrolado,nãopermitiaque a pessoa percorresse longas distâncias. Asmulheres com o lótus de7,5 cm muitas vezes eram transportadas em cadeiras de seda e seapoiavam nas criadas ao caminhar. Mas a maioria das mulheres de pésatadosnãoprecisavadessaassistência.20

Comoas faixas eramusadasdia enoite, ospés amarrados tinhamumodorcaracterístico—quealgunsachavamextremamentedesagradáveleoutros,sexualmenteexcitante.Oentusiastasetecentistadospésatadosqueusavapseudônimoeseapresentavacomoo“DoutordoLótusPerfumado”escreveu uma monogra ia chamadaA Golden Garden Miscellany [Umamiscelânea do jardim dourado], que consistia em comentários avulsossobreaamarraçãodepés,entreosquaisestavaestapérola:

Insuportável:calosdoídos;sentirocheirohorrívelquandoafaixaéremovidaderepente.21

Nãohádúvida,portanto,quetodosentendiamqueaamarraçãodospés

não só limitava os movimentos e contribuía para manter as mulheressubmetidasàssuasfamíliaseaoshomens,mastambémeraextremamentedolorosa.

Tão logo a prática teve início, alguns letrados se opuseram a ela.Durante a dinastia Song (960-1279), consta que um escritor teria dito:“Criançascommenosdequatrooucincoanosdeidade,puraseinocentes,são obrigadas a sofrer dor ilimitada”. E mesmo aqueles que eramfavoráveis à prática reconheciam que ela causava dor às meninas. EisoutrasduasmáximasdoDoutordoLótusPerfumado:

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Levedesprazer:amãequeamaasfilhas,masaindanãoamarrouseuspés.Insuportáveldeouvir:osgritosdeumameninaquandoseuspéssãoatadospelaprimeiravez.22

Comonocasododuelo,oquepôs imàamarraçãodospésnãopodeter

sido a descoberta de argumentos contrários a ela. Os argumentos sãoevidenteseeramamplamenteconhecidosdesdeosprimeirosdiasdolótusdourado.

osúltimosdiasdoimpério

Paraentendero imdoenfaixamentodospésnaviradadoséculoxx,é

precisosituaressamudançanocontextodasmúltiplastransformaçõesqueocorreramna China na segundametade do séculoxix, quando a dinastiaQing entrou em decadência de initiva. Essa dinastia era manchu, e teveinícioquandoobemorganizadoEstadodaManchúria,criadonocomeçodoséculoxvii pelo cã Nurhaci, inalmente alcançou seu antigo objetivo deconquistaroImpériodoMeio.Depoisderestauraraordem—dominandoos bandidos que haviam infestado o norte e derrotando o rebelde LiZicheng,quehaviasaqueadoBeijing—,osmanchusestenderamocontroleportodooimpério.

Mesmo tendo conquistado o império, eles mantiveram a estrutura dogoverno chinês: em particular, conservaram o sistema dos exames dofuncionalismo público que criava e sustentava a classe dos letradosespecializados nos clássicos confucianos.23 O imperador Qianlong, quegovernou a Chinade1736 a 1799, encarregoumais de 350 estudiosos equase4milcopistas,trabalhandode1773a1798paracatalogaraculturaliterária chinesa nos 2,3 milhões de páginas doSiku quanshu, “o livrocompleto dos quatro repositórios imperiais” (embora também tenhadeterminado a eliminação de muitos milhares de volumes identi icadosduranteesseempreendimento,osquaisconsiderouobjetáveisemaspectosvariados). Uma das principais nomeações da corte foi o preceptor doimperador manchu, cuja tarefa, entre outras coisas, era orientar oimperadoremseuestudodastradiçõesfilosóficaschinesas.

Os letrados mais bem-sucedidos eram os que passavam nos exames,

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ganhandotítulos,honraparasuas famílias, isençãodotrabalhobraçaleodireito de usar roupas especí icas.24 Ao longo dos séculos, os letradosaposentados,aovoltarparaoslocaisdeorigem,criaramumanobrezalocalque se difundira por todo o império.25 Essa pequena nobreza via oconhecimentodosclássicos,ahabilidadeparaescreverensaiosepoemasea perícia na caligra ia e na pintura como atributos dos homens de suaclasse.Seaespadadefiniaocavalheiroinglêsdoséculoxviii,aqui,durantemilênios, o ideal da nobreza havia sido a pena— oumelhor, o pincel decaligra ia.No séculoxviii,ocavalheiro inglêsmoravanocampoduranteamaiorpartedavidaeserviaaoreisobretudoemtempodeguerra;oidealde um cavalheiro chinês era morar na cidade e servir ao imperador nogoverno,fosseemsualocalidadeounacapitaldaprovínciaoudoimpério.

AsociedadeQingtornou-secadavezmaisconservadoraepuritanaemtermos culturais. Em parte, isso era uma resposta à convicção de que ocolapsodadinastiaMinghaviasidooresultadodeumadecadênciamoralgeneralizada, decorrente de não se seguirem estritamente as noçõesconfucianas do dever. A adesão crescente a ideais confucianos traçadoscom rigor mostrava-se de várias maneiras. Numa escalada ao longo doséculoxviii e até anos bem adiantados do séculoxix, por exemplo, asviúvas das classes superiores deixavam de se casar novamente. Aconstrução de arcos memoriais a viúvas iéis “ icou tão descontrolada”,comodizahistoriadoraPatriciaEbrey, “queem1827ogovernodecretouque só era permitido construir arcos coletivos, e que em 1843 apenasviúvas que chegavam ao extremo de se suicidar poderiam ser honradascomarcos”.26

Esse conservadorismo somou-se ao fortalecimento do governo centralparaproduzirumasociedadequeeraestáveletecnologicamenteavançadapor critérios globais, mas extremamente hierarquizada e autoritária. Eenquanto os três imperadores Qing, de 1662 a 1795, expandiram oimpério e asseguraram o controle do Estado, o mundo ao redor delescomeçavaaseaproximar.Durantemuitosséculos,oschinesesmantiveramcomércio como Japão e os principais impériosmarítimosdaEuropa—oportuguês,oholandêseobritânico.Masconsideravamessesestrangeirosnitidamente inferiores. Em 1793, o imperador Qianlong, aceitando aideologia de seus súditos chineses Han, respondeu a uma iniciativa

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diplomáticadaInglaterracomose fossesimplesmentemaisumtributodeumadasváriasnaçõesdesegundonívelrendendo-lheadmiração:

Ó Rei, vives além dos con ins de muitos mares; porém, impelido por teu humilde desejo departilharosbene íciosdenossacivilização,enviasteumamissãotrazendorespeitosamenteteumemorial.[...]Paramostrartuadevoção,tambémenviasteoferendasdaproduçãodeteupaís.

Emborativesseabenevolênciadeaceitaras“oferendas”de Jorge iii, o

imperadorsentiunecessidadederessaltarquefoiapenasporreconhecero espírito com que tinham sido feitas: “Como teu embaixador pode verpessoalmente, possuímos todas as coisas. Não dou valor a objetosestranhos ou engenhosos, e não tenho uso para as manufaturas de teupaís”.27Inventadoounão,omal-entendidoécômico.

Meioséculodepois,a Inglaterra,comsuasnovastecnologiasmarítimasemilitares, estava emposiçãode ameaçar aChinanuma capital dooutroladodomundo;eosEstadosUnidosusavamnovosvaporesarmadosparafazer treinamentos no Pací ico. Em 1854, o almirante Perry obrigou osjaponeses a encerrar mais de dois séculos de isolamento deliberado.Algumasdécadasdepois,comaRestauraçãoMeiji,opróprioJapãoeraumagrandepotênciaeconômicaemilitar.Aindustrializaçãomudavaomundo,ea recusa da China em acompanhar asmudanças debilitou cada vezmaissuaposiçãorelativa.

AprimeiravezemqueaChinarealmentesedeucontadosproblemasqueosestrangeirospoderiamtrazerfoicomaprimeiraGuerradoÓpio,navirada dos anos 1840. Os interesses comerciais britânicos tinhamdesenvolvido uma lucrativa produção de ópio na Índia para vendê-la àChina. No inal do séculoxviii, a Companhia Inglesa das ÍndiasOrientais,que fabricava a droga em Bengala, havia aumentado maciçamente ofornecimentoàChina,contraosdesejosdoimperador,criandoumsistemaelaborado de contrabando; os ingleses precisavam de alguma coisa paraoferecer aos chineses em pagamento pelo chá que estavam convertendoem estimulante favorito da Inglaterra. Em 1839, os dirigentes Qingdecidiram que o ópio era demasiado prejudicial não só ao povo, mastambém ao tesouro, visto que centenas de toneladas de prata estavamsaindoanualmentenocomérciodeópio,parapermitirqueprosseguissem.

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Oimperadorenviouumaltofuncionárioexperiente,chamadoLinZexu,aoporto deGuangzhou, a única cidade onde os europeus tinhampermissãode morar e negociar, para insistir, depois de décadas de fracasso, noencerramentodasimportaçõesdeópio.

Emmaio de 1839, o superintendente-geral do Comércio Charles Elliotfoi obrigado a entregar os estoques ingleses de ópio para seremdestruídos. Dois meses depois, numa arruaça, marinheiros inglesesdestruíramumtemploemataramumchinêsnacostadopaís,emKowloon.Quando as autoridades chinesas pediram que os marinheiros fossementreguespara julgamento,Elliotnegou.Oschinesesentão insistiramqueos ingleses concordassem não só em encerrar o comércio de ópio, mastambém em reconhecer a autoridade dos tribunais chineses. Ao invés deacatar tais demandas, o superintendente-geral Elliot ordenou que osingleses deixassem Guangzhou e interrompessem todo e qualquercomérciocomoschineses.

Noverãode1840,umagrande lotilhainglesasaiudeCingapuracomoobjetivo de restabelecer pela força das armas o comércio britânico naChinanostermosanteriores.Alémdequatrocanhoneirasmovidasavapor,havia mais de outros quarenta navios, transportando cerca de 4 milmarinheiros ingleses e indianos. Lin não se impressionou com a chegadadeles em junho, quando ancoraram no porto de Macau. Ele informou aoimperador que pareciam estar comercializando ópio e não pareciaprovável que pudessem causar muitos problemas. “É apenas isso queestãofazendoe,comosabeisVossaMajestade,nãohárealmentenadaquepossamfazer.”28

Não podia estarmais redondamente enganado. Depois de dois anos eváriasbatalhasnavais,osbritânicostomaramXangaiecercaramNanquim.Os chineses se renderam. No Tratado de Nanquim, os chineses foramobrigados a aceitar termos humilhantes. Tiveram de pagar enormesindenizações em prata, abrir cinco “portos de tratado”, reduzir as tarifascomerciais, cederHongKong e concordarque todosos súditosbritânicosnaChinaseriamregidospelaleibritânica.TambémgarantiamàInglaterra“o estatuto de nação mais favorecida”, o que signi icava que qualquerconcessãoobtidaporoutraspotênciastambémseriaoutorgadaaela.

Nasdécadas seguintes, os europeus izeram imposições aindamaiores

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nostermoscomerciais,forçandoaaberturadeoutrosportosearetomadadocomérciodeópio.Conseguiramtaisobjetivosinstaurandoasupremaciamilitar em terra e no mar. E, em 1846, numa iniciativa que teriaconsequências consideráveis para a questão dos pés atados, o governofrancêsinsistiuquefossepermitidaaentradademissionárioscristãosemtodooterritóriochinês.29

NasdécadaspunitivosdoTratadodeNanquimeasérieaparentementeinterminável de concessões feitas sob a força das armas nas décadasseguintes — até o Tratado de Shimonoseki que prenderia a atenção deKangYouweieseuscolegasmaisdemeioséculodepois—enfraquecerama autoridade dos imperadores manchus. As coisas pioraram ainda maiscom uma série de revoltas internas, culminando na Rebelião de Taiping(1850-4), liderada por Hong Xiuquan, um hakka de uma família deagricultoresdeGuangdong,quetinha instruçãosu icienteparaprestarosexames imperiais— embora não para ser aprovado. (Os hakkas são umgrupoétnicomeridionaldoschineseshan.)

Hongtinhaentradoemcontatocomocristianismoe,depoisdeterumavisão de um branco de meia-idade, declarou ser o irmão mais novo deJesusCristo.Proclamouseureinonaterra,comcapitalemNanquim,edeu-lheonomedeTaiPingTianGuo—“ReinoCelestialdaGrandePaz”—,queé de onde tiramos o nome em inglês para a revolta. Mas as autoridadeschinesas referiam-se aos taipings como os “Bandidos de CabelosCompridos”,poiselesusavamocabeloàantigamaneirachinesa,enãoemrabicho,comoosmanchushaviamimpostoaoschineseshan.

Hongfoidoutrinadonocristianismoporummissionário,aprendendoasorações e os hinos, e adotando um regime especialmente puritano deaversãoaoálcool, aoópioe àprostituição, insistindono imdas tradiçõeschinesas, inclusive dos santuários e templos ancestrais (que consideravaidólatras) e, para voltar ao nosso tema, do enfaixamento dos pés. Àoposiçãoaessastradiçõeschinesas,Hongsomavaumvirulentosentimentoantimanchu. Quando as forças taipings tomaram Nanquim em 1853,mataram todos os manchus, homens, mulheres e crianças, que haviamcapturado,infligindomuitasmortesdebrutalidadehorripilante.

A hostilidade de Hong aos pés atados antecipava as campanhasposteriores dasmissões cristãsmais ortodoxas da Europa e dos Estados

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Unidos.Podeserqueeleestivessesimplesmenteexpressandoatradicionalhostilidade hakka à prática.30 Como os rebeldes taipings adotavam umavisão de igualdade entre homens emulheres— o que não era um temadominantenaevangelizaçãocristã—, icadi ícilsaberatéquepontoHongachava que sua posição contrária aos pés atados era uma questão demoral cristã. Como mencionei anteriormente, a ideia de que oenfaixamento dos pés ajudava amanter asmulheres “em seu lugar” eracomumnaChinaséculosantesde1850.

Sem dúvida, Hong era tão desvairadamente herético — em suasprimeiras visões, Jesus lhe apareceu ordenando que destruísse osdemônios — que os cristãos europeus, que agora estavam solidamenteestabelecidosnascidadescosteiras,comoXangai,nãooconsideravamumaliado.QuandoosrebeldestaipingsseacercaramdeXangainocomeçodosanos1860,foramvigorosamenterepelidospelasforçaseuropeias.Por im,um letrado confuciano de Hunan, chamado Zeng Guofan — que, comomuitos chineses han, estava horrorizado com as apostasias de Hong emrelaçãoaoconfucionismo—,organizouumnovoexército,commaisde100milsoldados,paraderrotarosrebeldes.QuandoZengderrotouostaipings,Hong já havia morrido, mas muitos outros tinham se apercebido dasfraquezas que a revolta taiping pusera àmostra. Zeng teve de continuaravançandocomseuexércitoparaderrotaroutras insurreiçõesemoutroslugares.

Preocupados com as perdas para os estrangeiros e abalados pelasameaças dos revoltosos ao governo, alguns concluíram que deviamaprender com o resto do mundo. Formaram um “Movimento deAutofortalecimento”,lideradopor igurasdacortecomoopríncipemanchuYixin.Essapolítica foiempreendidaemnívelprovincialporhomenscomoZengGuofaneseusestudantes.Depoisdederrotararevoltataiping,Zengfoi recompensado com um cargo de maior autoridade.31 Em 1864, seucolegamaisjovemLiHongzhangescreveuaBeijingexplicandoqueaChinaenfrentava “amaior crisedesdesuauni icaçãosoboprimeiro imperadorem 221 a.C.”. 32 A proposta de Li era que a China começasse a adotar atecnologiaocidentaletreinasseseuprópriopovoparadesenvolvê-laeusá-la. O governo autorizou o surgimento de jornais, criou uma escola detradutores,construiuestaleirosefábricas,minasdecarvãoecotoni ícios,e

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encomendou navios e armamentos modernos. Construiu as primeirasferroviasetelégrafos,eabriuembaixadaschinesasnasprincipaiscapitaisdomundo,deTóquioaWashington.

Chineses de ambos os sexos começaram a estudar no Japão, e atémesmo na Europa e nos Estados Unidos.Mas a imperatriz-mãe nunca sealinhou totalmente com os defensores dessas mudanças; pelo contrário,jogou-oscontraostradicionalistasconfucianos.Osargumentosdosgruposmodernizadores eram refutados pormuitos letrados que não se sentiammobilizados pelo lema do autofortalecimento; julgavam que signi icariaadotar o tipo de modernização ocidentalizante que os japoneses haviamadotado.ComoumalegiãodeBartlebys,preferiamnãofazê-lo.

Assim, eles não só antipatizavam com osmodernizadores locais, comotambémconsideravamoscristãosestrangeirosumaameaçaàsuaposiçãoenquantovoz intelectualdacivilizaçãochinesa.Aoposiçãosistemáticadosmissionáriosprotestantes—sobretudodasmulheres—àpráticadeatarospéseraumdosváriospontosdeatrito.

areaçãodosletrados

Antes disso, já havia cristãos na China: Matteo Ricci (que chegou em

1582)eseuscompanheirosjesuítas.Masadecisãodeaceitá-lostinhasidoda China. Vestiam-se à chinesa e se moravam em Beijing era sob acondiçãodenuncavoltaràterradeorigem.Foiapenasnasegundametadedo séculoxix que a catequese cristã teve pela primeira vez autorizaçãoquase irrestrita.Missões católicaseprotestantesdaEuropaedaAméricado Norte construíam igrejas e escolas e convertiam alguns chineses —especialmente entre os pobres, como sempre aconteceu na história dasmissões cristãs. Diferentemente dos católicos, os protestantes enviavammissionários de ambos os sexos, e as missionárias, caminhando comsegurança em seus pés de tamanho natural, tomaram como vocaçãoespecíficaeducareelevarasmulheres.

Uma geração atrás, uma estudante de pós-graduação da Columbia,Virginia Chau, mostrou que já havia agitação entre os letrados contra oenfaixamentodospésantesda chegadados cristãos.Chau identi icouum

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poeta Ming do séculoxvii que se deleitava com os artelhos grandes ecarnudosdasmulheresmanchus.No inaldoséculoxviii,opoetaeartistaYuan Mei, que admirava a poesia feminina e aceitava mulheres comoalunas,escreveunumacartaaumamigoquemanifestaraodesejode teruma concubina com pés de lótus que, ao seguir o gosto de Li Yu (cujaconcubinaDonzelaAdorável, comovocêháde lembrar,eraa fontemíticada ideia do lótus dourado), ele copiava ummodelo inadequado, “o últimorei de um reino conquistado”. 33 O poeta Qian Yong, seu contemporâneomais jovem, comentou (no espírito do classicismo confuciano que levouàqueles inúmeros memoriais das viúvas) que os clássicos nãomencionavam o enfaixamento dos pés, e argumentou que existia umacorrelação histórica entre a difusão da prática e o enfraquecimento dosreinos. E, numa linha de raciocínio que Francis Bacon seria capaz dereconhecer, ele prosseguia argumentando que, visto que a prática deamarrar os pés tinha sido adotada pelas classes inferiores, a nobrezadeveriaevitá-la.34

Chau também menciona Li Ruzhen, cujo romanceFlores no espelho(publicado em 1828, mas provavelmente iniciado cerca de vinte anosantes) é uma espécie deViagensdeGulliver da China. Limanifestava suasolidariedadeàsmulheresemgeralnumasátirasobreoReinodaMulher,emquedescreveemtomcompassivoossofrimentosdomercadorLin,que,escolhido para ser concubino da “Rei” mulher, é submetido às dores eindignidades de atar os pés. Após dias de sofrimento, o mercador Linarrancaseus“sapatosbordadosefaixasdeseda”.Eentãodiz:“Vaidizerateu ‘Rei’ para me condenar imediatamente à morte ou deixar meus péslivres”.35

Mas, apesar desses primeiros críticos, a resistência organizada só seinicia depois das interferências dos missionários. Nos anos 1860,começaramafuncionarescolasfemininascristãsemmuitaspartesdopaís.EmHangzhou,nodeltadorioYangtze,amissãodaIgrejaabriuumaescolaparameninasem1867, exigindo “desdeoprincípio”, comoescrevea sra.ArchibaldLittle,“queospésdasmeninasnãofossemenfaixadosequeelasnãofossemobrigadasasecasar”.Damesmaforma,quandoosmetodistasabriram uma escola feminina emBeijing, exigiram que todas asmeninastivessemospésdesenfaixados.36

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Em 1874, o reverendo John Macgowan, da Sociedade MissionáriaLondrina, que estava em campanha por aproximadamente quinze anoscontra a amarração dos pés, convocou, com sua esposa, uma reunião demulheres cristãs emXiamen (então conhecida em inglês comoAmoy), nacosta de Zhangzhou, na província de Fuji. “No inal da reunião, novemulheres ‘assinaram’ocompromissodeerradicarapráticapagãemseuslaresealhures,traçandoumacruzemseusnomesescritosporumpastorchinês.”37 Outras mulheres, em sua maioria trabalhadoras, tambémacabaramporsecomprometeranãoatarospésdasfilhasepassaramelasmesmas pelo processo geralmente doloroso de soltar os próprios pés. 38Masoprogressoeralento.Durantedécadas,ocasalMacgowanprosseguiuno trabalho de recrutar pessoas para sua “Sociedade para Abandonar oEnfaixamentodosPés”,ecoandoonomedassociedades“ParaAbandonaroFumodeÓpio”,queseanteciparamemmaisdeumséculoaotrabalhodecombateaovíciodosAlcoólicosAnônimos.39EssafoiaprimeirasociedadecontraoenfaixamentodospésnaChina.

Apartirdosanos1880,omovimentoencontrouapoioentreumnúmerocadavezmaiordejovenschinesesdeambosossexos,quetinhamvoltadode seus estudos no exterior. Entre eles havia moças da nobreza e dasclasses mercantis abastadas, que tinham sido enviadas ao Japão eretornaramdispostasaeducar ísicaementalmenteumanovageraçãodechinesasparaummundomaisemancipado.Foramasprimeirasfeministaschinesas, empenhadas na igualdade das mulheres. Nas escolas quefundaram, a educação ísica — esportes e exercícios — era o elementocentral do currículo. O pressuposto, naturalmente, era que os pés nãopodiamestaratados.40

Os missionários, por seu lado, empenhavam-se cada vez mais emalcançar os letrados. Criaram jornais e revistas, entre os quais Wanguogongbao[ARevistadosTempos],fundadaem1868peloreverendoYoungJohn Allen, da Missão Episcopal Metodista do Sul, dos Estados Unidos, eeditadaporeleatésuamorteem1907.Essarevistapermitiaoacessodosletrados—emchinêsclássico—a ideiaseacontecimentos foradaChina,podendo ver novas opçõesde lidar coma crise que enfrentavamem suasociedade. Igualmente importante foi a obra do reverendo TimothyRichard, da SociedadeMissionáriaBatista, que a partir de 1890publicou

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durante algum tempo o periódicoShi bao [Os Tempos Orientais] emTianjin,aconvitedofamosoletradoLiHongzhang.41

Richard entendiamelhor que amaioria dosmissionários protestantesque a chave para a China estava com os letrados. Vestia-se como eles;gastava tempo, energia e dinheiro demais escrevendo, traduzindo epublicandotextoscristãos—catecismos,sermões,oNovoTestamento—ese instruindo com o estudo dos textos que constituíam o núcleo dapreparação para os exames nacionais. Horrorizado com a fome quepresenciouemShandongeShanxinosanos1870epela incapacidadedoregime manchu e seus agentes mandarins nas províncias em atender àcrise,Richard chegouà conclusãodequeomaisnecessárioparaaChinaseriaoconhecimentodaciênciamoderna,aqual,juntocomocristianismo,era um dos maiores frutos da civilização ocidental. “Ao re letir sobre acivilizaçãoocidental”,eleescreveu,

percebi que sua vantagem sobre a civilização chinesa devia-se ao fato de que ela procuravadescobrir as operações de Deus na Natureza e aplicar as leis da Natureza a serviço dahumanidade [...]. Convenci-me de que, se pudesse lecionar aos funcionários e eruditos einteressá-losnessesmilagresdaciência,conseguirialhesapontarmaneirasdeutilizarasforçasdeDeusnaNaturezaembene íciodeseusconterrâneos.Dessaforma,eupoderiain luenciá-losa construir ferrovias, abrir minas, evitar a recorrência da fome e salvar as pessoas de suaopressivapobreza.42

Foiaessecristianismomodernizador,comseuconceitodeumaciência

e uma tecnologia a serviço das necessidades humanas, que os letradosresponderam. Kang Youwei— o jinshi que escreveuomemorial contra aamarração dos pés que citamos no começo— declarou certa vez: “Devominha conversão à reforma e meu conhecimento da reformaprincipalmente aos escritos de dois missionários, o reverendo TimothyRichard [...] e o reverendo dr. Allen”. 43 Mas — sejamos claros — foi àreformaqueeleseconverteu,enãoaocristianismo.

Defato,aúnicaáreanaqualosmissionários izerampoucosavançosfoina tarefa de realmente criar novos cristãos. “Em 1894”, escrevem JohnKing Fairchild e Merel Goldman, “o trabalho missionário protestantesustentava mais de 1300 missionários, sobretudo ingleses, americanos ecanadenses, emantinha cerca de quinhentos postos— todos com igreja,

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moradias,capelas,geralmenteumapequenaescolae,àsvezes,umhospitalou dispensário— em umamédia de 350 vilas e cidades”. E, no entanto,naquelepaíscommaisde400milhõesdehabitantes,nãohavianem60milcristãosconvertidos.44Aboa-novadosmissionários,paramuitoschinesesinteressados,eraamodernidadeocidental,enãoasalvaçãoemCristo.

Semdúvida, as revistase jornaisocidentalizantespermitiramamuitosletrados,comoKang,umavisãomaiscosmopolita,e foientreseus leitoresquesedesenvolveuumsegundotipodesociedadecontraoenfaixamentodos pés. Kang escreveu em sua autobiogra ia que foi aWanguo gongbaoqueoapresentouàsideiasocidentais,apartirde1883,equeissoolevoua começar a pensar na amarração dos pés.45 Ele disse que tinha icadoperturbado com os sofrimentos de suas irmãs ao atarem os pés delas.Quando chegou omomento, ele não permitiu que atassem os pés de suafilha.AfamíliainsistiuqueKangmudassedeideia.Emvezdisso,elecriouaAssociaçãodosPésDesamarrados—BuGuozuHui—emGuangzhou,em1894, com outros letrados que tinham viajado à América e que, tal comoKang, não queriam ter os pés de suas ilhas amarrados. Mais tarde eletransferiu a base de operações para Xangai, onde a sociedade alcançoumais de 10mil membros.46 E então, em 1898, ele fez o apelo escrito aoimperadorporondecomeçamos:apetiçãoparaquese terminassecomoenfaixamentodospésdeumavezportodas.

Macgowanrepresentavaoprogramamissionário;Kangrepresentavaosnovosletradosreformadores.Nodesdobramento inaldomovimentopelospésnormais,houvemaisumavozimportante:adasmulheresexpatriadasda elite, asprósperas esposasdos funcionários e empresáriosdosportoscomerciais da costa. Na década de 1890, Macgowan encontrou a sra.ArchibaldLittleemXangai.Inspiradaporele,elareuniuaeliteexpatriadaem Xangai, convidou Macgowan para discursar e fundou uma novasociedade nacional contra o enfaixamento dos pés, aTianzu Hui, que elatraduziu por “Sociedade dos Pés Naturais”. (O reverendo Macgowanpreferia traduzirTianzu Hui por “Sociedade dos Pés Celestiais”,certamente frisando o signi icado religioso de abandonar tradições nãocristãs.)47 TimothyRichard ajudou redigindo e publicando seus pan letoscontraapráticadaamarraçãodospés.

A sra. Little havia chegado à China em 1887, depois de se casar com

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ArchibaldLittle,uminglêsqueforaparaoOrientequasetrintaanosantese, na época do casamento, era um empresário de sucesso, sediado emChongqing, em Sichuan. Ela já possuía uma carreira de sucesso com onome de solteira, Alicia Bewicke, escrevendo romances satíricos sobre avidasocialfútildosricoseosdisparatesdomercadomatrimonial.48Assim,ela tinha levado uma vida de jovem independente e, com o apoio domarido,empreendeuumacampanhaativacontraaamarraçãodospésemtodaaChina.

Talvez pelo fato de não ser missionária, a sra. Little percebeu que aassociaçãoentreocristianismoeaoposiçãoaoenfaixamentodospésnumasociedade esmagadoramente confuciana era uma séria desvantagem. Emsuas viagens pelo país, ela se dirigia também aos letrados e, em 1900,conseguiu converter à causa o então governador-geral de Guangzhou, LiHongzhang.

Mas outros letrados importantes chegaram por suas próprias vias àmesmaconclusão.Em1897,ZhangZhidong,governador-geraldeHunaneHubei,publicouumensaioapoiandoa campanhacontraaamarraçãodospésquesetornouumadasarmasmaispoderosasnoarsenaldaSociedadedosPésNaturais.49Numadasreuniõesdasra.LittleemWuhan,capitaldeHubei,ondeeladecorouosalãocom“cartazesenormes”noestiloliterário“inimitável” de Zhang, “ummandarimmilitar apenas se dignou a estudaresse cartaz, sem condescender visivelmente a ouvir qualquer deminhaspalavras de sabedoria, mas no inal ele se inscreveu como membro denossa sociedade”.50 A direção doTianzu Hui passou para mãos chinesasquando a sra. Little, com o marido doente, voltou para a Inglaterra em1907.51 Logo depois a sociedade desapareceu — não por ter perdidoapoio, e simporque seus argumentosprevaleceram,pelomenos entre asclassessuperiores.

Ao lidar com os problemas que afetavam sua sociedade no inal doséculoxix, os intelectuais modernizadores da China, bem como seusadversários, eram guiados por uma profunda lealdade à nação e às suastradiçõesintelectuaismaisprofundas.Muitosmodernizadoresinsistiamnadistinção entreti (substância) eyong (aplicação): eles defendiam, comodiziam, o “saber chinês para os princípios fundamentais, e o saberocidental para as aplicações práticas”. 52 Ao atacar a amarração dos pés,

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elesfrisavamqueeraumapráticadesconhecidanostemposdeConfúcio,eque, na verdade, havia surgido muito mais de mil anos após sua morte.Mas alguns também a irmavam que os argumentos e publicações dosmissionários e doTianzu Hui tinham exercido grande impacto em suasideias—enãopouco—aomostrarograndedesrespeitoqueaamarraçãodospéshaviaacarretadoparaaChinaeacivilizaçãochinesa.

mundosdahonra

Eu disse antes que a honra habita o mundo da honra: um grupo de

pessoas que reconhece osmesmos códigos, e cujo respeito se deseja ter.Maséimportanteentenderqueummundodahonranãoprecisaselimitarà própria sociedade do indivíduo. Henriquev certamente acreditavamerecerorespeitodepríncipesestrangeiros.Omundodahonraconsisteem pessoas que entendem e reconhecem o código de honra, ainda que,comooscamponesesingleses,essecódigonãolhesexijamuito(oumesmonada). Omundo da honra dos intelectuais chineses no começo do séculoxixnãoincluíapessoasdeoutroslugares;masomemorialdeKangmostraque,no inaldoséculo,pelomenosalgunsdelesseviamcomopartedeummundo maior de nações, empenhadas na avaliação mútua de suassociedades. Agora o mundo da honra deles incluía os japoneses, oseuropeus e os americanos, cujas avaliações críticas enfraqueciam apretensãodaChinaaorespeito.

Nomundodahonra,algumaspessoassãode inidascomoseusparesdehonra,porqueoscódigosfazemasmesmasexigênciasavocêeaelas.ParaopríncipeHal,noqueserefereàsuahonramilitar, seusparesdehonrasão cavalheiros — não apenas cavalheiros ingleses, mas todos oscavalheiros.Asdamasinglesassãoosparesdehonradasdamasemgeral,mesmo que sejam regidas por regrasmuito diferentes. Como as pessoasnão reconhecem necessariamente que um código de honra é produto deumasociedadeparticularedeumespaçoparticular,podemseenganaretomar como par de honra alguém que não o é. E o mundo da honraconsiste emmais coisas do que seus pares de honra: muitos códigos dehonra, comovimos, fazemexigências àsmulheres que são diferentes das

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feitas aos homens (como é o caso frequente da castidade), mas os doissexos pertencem aomundo da honra desses códigos. Uma dasmaneirascomoosmissionáriosconseguiramter in luência foienfatizandoqueviamos letrados como parte de seu própriomundo da honra. Pessoas como oreverendo Richard, que respeitava tão visivelmente muitas coisas daherançaconfucianaequesevestiapessoalmentecomoumletradochinês,incentivavamaideiadequeocidentaisechinesespodiamnãosórecorreraosmesmoscritérios,mastambémserparesdehonra.

aguerradosboxersesuasconsequências

Aqueles cem dias de reforma em 1898 em que Kang teve uma

extraordinária in luência terminaram com amesma brusquidão com quehaviam começado. As mudanças radicais propostas pelo imperadordesagradaram à burocracia no palácio e na capital. Os velhos examestinham criado suas carreiras; a nova ciência era exatamente o queignoravam; não queriam ser abolidos. Os conservadores esperaram atéconseguir o apoio da imperatriz-mãe, e então deram praticamente umgolpe.KangtevesorteefugiuparaoJapão;outrosseislíderesreformistas,inclusive o irmão dele, foram executados. A imperatriz-mãe voltou aocentro do poder, comandando por trás das cortinas mesmo quando oimperadorestavaàvista.53 Assim, era ela amandante quando se iniciou,no longo e abafado verão de 1900, o último grande levante da dinastiaQing:aGuerradosBoxers.54

Osboxers (comovierama ser conhecidosnoOcidenteosmembrosdaSociedadedosPunhosVirtuosos eHarmoniosos) acreditavamquemuitosdos problemas que a ligiam sua sociedade resultavam da presençaindevida de estrangeiros no país. A presença estrangeira interferia noluxonaturaldaenergia;perturbavaaharmoniaentreoambientehumanoeanatureza—ofengshui—comsuasferroviasetelégrafos;incomodavaos ancestrais. Os boxers aparentemente contavam com o apoio de umafacção no palácio: os manchus conservadores Chapéus de Ferro, queachavam que poderiam usar o movimento para livrar de initivamente opaís da in luência perniciosa dos estrangeiros.Mas outra facção, sediada

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noZongliYamen,queeraencarregadadasrelaçõesexteriores,pareceterreconhecido que seria extremamente imprudente provocar o Japão e aspotências europeias. A facção que conheciamelhor os estrangeiros tinharazão. Quando as nações ocidentais enviaram forças para restabelecer aordem em Beijing, facilmente derrotaram os defensores chineses esaquearamopalácioeacidade.

Li Hongzhang — o mesmo do Movimento de Autofortaleci-mento —negociouumacordo.Os termosdo tratado foram tãopunitivos quanto osoutros impostos na longa sucessão de derrotas nas guerras com oOcidente.MasCixipermaneceu.AdinastiaQingpassariamaisumadécadacambaleando.55

Em 1902, a imperatriz-mãe emitiu pessoalmente um decreto contra aamarração dos pés, concentrando-se no argumento de que a prática nãoera saudável. A imperatriz recomendava aos “nobres e notáveis deascendência chinesa” que “exortem irmemente suas famílias e todos osqueseencontramsobsuain luênciaaseabsterdaquipordiantedaquelaprática daninha e assim venham a abolir gradualmente o costume parasempre”. Ela tinha evitado “cuidadosamente as palavras ‘nós proibimos’”,prosseguia, “para que funcionários desonestos e [...] subalternos nãopossam ter nenhuma justi icativa para intimidar e oprimir seus súditoschineses”.56 Isso di icilmente seria um chamado retumbante à abolição,mas já era um início; e re letia a pressão sobre o trono dos estrangeirosqueagoraestavamaindamaissolidamenteencravadosemseusdomínios.Em 14 de novembro de 1908, o imperador morreu; menos de um diadepois, morria a imperatriz-mãe. O último imperador ainda não tinhacompletado três anos de idade; aos sete anos, em fevereiro de 1912,abdicoudotronoimperial.

Quando a dinastia chegou ao im, a nova república — liderada pormodernizadores, muitos deles educados no Ocidente ou no Japão — seexpressou em termos mais vigorosos. Em março de 1911, Sun Yatsendeterminou a proibição da amarração dos pés como costume cruel edestrutivo.57 Era um dos muitos símbolos do velho mundo imperial —como o rabicho—que a nova ordem republicana substituiria. À exceçãoda efêmera presidência conservadora de Yuan Shikai, que tentoureinstituir o confucionismo como iloso ia nacional, os dirigentes

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posteriores — tanto os comunistas quanto os nacionalistas — erammodernizadores que se opunham à amarração dos pés, defendiam aigualdadedasmulhereseas incentivavama fazeresportesedesenvolvero ísico.58Mas aChinaqueherdaram já tinhaperdido a féna amarraçãodospés.

olugardahonra

Comovimos, as associações contra a amarraçãodospés tinham raízes

entreosmissionárioscristãoseaeliteempresarialocidental,mastambémentre aqueles letrados que, como Kang, consideravam necessário certograu de ocidentalização para que a China tivesse seu lugar no mundomoderno. O foco da preocupação dos letrados era, em primeiro lugar, obemdaChina.Seo imdaamarraçãodospésfossebomparaasmulheres,melhor ainda, sem dúvida. Nesse sentido, seus escritos têm um veionacionalista. Alguns de seus argumentos eram instrumentais: insistiam,por exemplo, que a destruição causada pelas invasões militaresestrangeiras tornava-se ainda pior porque muitas mulheres eramliteralmente incapazes de fugir; e argumentavam que o vigor ísico delas— que, se estivessem com os pés livres, poderiam praticar esportes —permitiria gerar ilhos mais saudáveis. Mas também insistiamsistematicamente que era preciso terminar com a amarração dos pésporqueconstituíaumafontedevergonhanacional.Emseumemorial,comovimos,estefoiopontocentraldoargumentodeKang.

Na verdade, como nota Virginia Chau, o memorial começa a irmandoque é “uma vergonha para a China ter um costume tão bárbaro, que aconverte em alvo de escárnio aos olhos dos estrangeiros”, e termina comessaconclusão:

Considerando a lei do país, é uma penalidade totalmente injusti icável; considerando apreservação da harmonia na família, prejudica o amor dos pais pelos ilhos; considerando ofortalecimento do Exército, lega gerações e gerações de descendentes fracos; e, inalmente,considerando a beleza e os costumes, torna-se objeto de ridículo para os estrangeiros. É,portanto,intolerável.59

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Kang começa e termina com a honra da nação — ou melhor, com avergonhadopaís. SeuprotegidoLiangQichao, tambémumdosprincipaisintelectuais chineses do começo do séculoxx, escreveuem1896: “Pareceque esse costume ridículo loresceu geração após geração contra aproibiçãoimperialesetornoualvodeescárniodosestrangeiros”.60

Apreocupação coma honra nacional persistiu em anos adiantados doséculoxx, quando já faziamuito tempoque a prática entrara emdeclínioacentuado. Um autor dos anos 1930 perguntava se não seria melhorpermitir que a prática se extinguisse gradualmente (com os pobresseguindo o exemplo dos ricos, como tinham feito quando se instaurou aprática): “Por que interferir e perturbar a paz? Se dizemos que aamarraçãodeve ser erradicadaporqueos estrangeirosnos ridicularizamporcausadela,devemosadmitirquetambémnosridicularizamporoutrasrazões”. A amarração dos pés acompanhava os chineses ao redor domundo.Levycontaahistóriadeumachinesaquevivianas ruasdeParisemmeados dos anos 1930 cobrando paramostrar às pessoas seus lótusdourados. E diz: “Chineses que estavam em Paris icaram indignados eprotestaram no Consulado que o comportamento dela era uma afronta àhonra nacional”. O estudioso japonês Gotõ Asaro, escrevendo em 1939,resumiu a situação: as medidas contra a amarração dos pés visavam“salvara‘caranacional’daChina”.61

açãoconjunta

Hoje em dia,muita gente há de considerar natural que as pessoas se

sintammotivadas pela preocupação com a honra de seu país, e assim ahistóriaqueestoucontandonestecapítulovailheparecerbastantefácildeentender.Mas, se você pensar bem, há algo levemente estranho na ideiade fundo. No caso do indivíduo, podemos ver como a honra faz sentido.Todos nós queremos ser dignos de respeito. O respeito por mérito temvalor intrínseco,egeralmentere leteumaavaliaçãodecomovocêestásesaindode acordo com seus próprios critérios. (A inal, são os critérios emcomumqueunemomundodahonra.)Assim,no caso individual, ahonraque os outros lhe prestam permite que você suponha estar vivendo de

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acordo com seus próprios ideais. Mas por que omeu valor há de estarvinculadoaovalordascoisas feitasemnomedeminhanação?É fatoqueas pessoas têm estima por nós quando pertencemos a grupos sociaisestimáveis e nos desrespeitam quando pertencemos a grupos nãorespeitáveis.Mas não devíamos lhes perguntar por quê?Quando alguémage bem em nome de meu país, é di ícil ver como eu — como pessoadistinta de meu conterrâneo digno de louvor — posso ter merecidorespeito.

Uma resposta a esse enigma seria negar que o que sentimos quandonossa naçãomerece desrespeito seja, de fato, uma verdadeira vergonha.Talvez o que sentimos seja mais parecido com o que acontece quandoalguém que nos é caro é lagrado fazendo algo indigno; não sentimosvergonhapornós,sentimosvergonhaporele,porassimdizer.Edamesmamaneira como podemos nos assustar quando vemos um amigo cortar odedoenquantoestápicandocebolas,podemosenrubescerporelequandoagedemaneiradesonrosa.

Essa forma de compaixão — no sentido etimológico estrito de sentircom o outro — certamente explica algumas ocasiões em que temossentimentos que, a rigor, não são justi icados; não da maneiraconvencional,emtodocaso.Masnãoéumaexplicaçãoplausívelnocasodoorgulhoedavergonhanacionais,porquegeralmentenãoháumapessoaàqual possamos reagir com esse tipo de compaixão. Qual é o indivíduo decuja vergonha eu partilho vicariamente quando o Congresso aprova umaresoluçãotola?Nãoseiquaisosrepresentantesquevotarama favor,masposso saber que o meu, com quem eu provavelmente posso simpatizar,votou contra. Mas, mesmo quando há alguém com quem podemos nosidenti icar—quandosentimosvergonhaporumaatrocidadecometidaporintegrantes de nossas Forças Armadas, por exemplo —, podemosdiferenciarumruborcompassivopeloshomensque izeramaquilodeumsentimentodevergonhanacional;aindamaisporque,seelesnos traíram,talveznãosintamosabsolutamentenenhumacompaixãoporesseshomens.

Penso que há umamaneiramelhor de entender a honra nacional. Elacomeçacomumaobservaçãoelementar:muitosgruposaquepertencemosfazem coisas coletivamente. Às vezes, por exemplo, e não só emdemocracias, fazsentidodizerqueanaçãoage.Quandoumpaísentraem

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guerra, impõe um embargo comercial, envia ajuda humanitária ou apoiaumaresoluçãonoConselhodeSegurança,éalgoqueseuscidadãosfazemnãoindividualmente,masemconjunto.Aaçãoéfeitaemnomedeles,masmuitas vezes é uma ação em sentidosmais profundos. Os indivíduos queagem em nome da nação são formados por uma cultura que criaramjuntos, sob o comando de um governo eleito por seus cidadãos; estãorespondendoavalorestransmitidosesustentadosporumasociedadecivilqueécompostadoscidadãosdaquelanação.Quandofazsentidofalardosobjetivosdenossopaísedarepresentaçãodomundoqueorientaabuscadesses objetivos, também faz sentido falar das ações da nação como algoquenós,opovo,fazemosjuntos.

Podemos falar em termos literais oumetafóricos em ações de agentescoletivos? De que tipos de agentes coletivos faria sentido falar dessamaneira? Esses são temas de caloroso debate na iloso ia recente, e nãopretendotomarpartidonessadiscussão.Queroapenas frisarqueéassimquefalamos, e, na ausência de argumentos persuasivos em contrário,semprenosrestaoargumentodohábito.

Mas,naverdade,temosumargumentomelhor.NorecenteromancedeJ. M. CoetzeeDiário de um ano ruim, em um dos ensaios o protagonistacomenta sua reação a uma notícia naNew Yorker de que o governoamericanoaprovouatorturaerevogouosdispositivosemcontrário:

Demóstenes: enquanto o escravo teme apenas a dor, o que o homem livre mais teme é avergonha.SeaceitamoscomoverdadeirooquedizaNewYorker,aquestãoparaosamericanosenquanto indivíduos passa a ser uma questão moral: diante dessa vergonha à qual estousujeito,comomecomporto?Comopreservominhahonra?

Há aqui uma lembrança de por que pode valer a pena preservar o

sentimento de honra nacional. Tal como a honra individual, o sentimentodehonranacionalpodenosmotivaraverse,juntos,podemosfazeroqueécerto.Emboraaquestãosejamoral,oqueempenhacadaamericanonãoéapenas amoral,mas também a honra. Tanto no duelo deWellington, emque a questão era a honestidade, quanto na campanha de Kang Youwei,em que o problema era o sofrimento das meninas e das jovens, o quegerouasmotivaçõesfoiahonra.OnarradordeCoetzeefrisacorretamenteo fato de que, nesse sentimento coletivo, podemos ter tão pouca escolha

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quantotemosaozelarpornossaestimaindividual.Ele re lete sobre sua reação a uma comovente execução da Quinta

sinfoniadeSibelius:a“emoçãogrande,plena”queocompositorqueriaqueosouvintessentissem.

Como teria sido, pensei, ser um inlandês sentado na plateia na primeira apresentação dasinfonia em Helsinque, há quase um século, e sentir essa onda tomar conta da gente? Aresposta: eu sentiria orgulho, orgulho porqueumdenós conseguiu juntar esses sons, orgulhoporquedonada, nós, sereshumanos somos capazesde fazeruma coisadessas. Compare issocomasensaçãodenós,nossopovo, termosfeitoGuantánamo.Acriaçãomusicalemumamão,amáquinade in ligirdorehumilhaçãonaoutra:omelhoreopiordequesãocapazesossereshumanos.62

O mundo da honra, formado por pessoas que sentem orgulho ou

vergonhapeloquesuanaçãoouseuscompatriotasfazem,constituitodoomundo humano. Para ter esses sentimentos, você precisa possuir aquiloque a Declaração de Independência americana, numa das elegantesformulaçõesde Jefferson, chamade “umrespeitodecorosopelasopiniõesda humanidade”. A preocupação de Kang Youwei pela reputação de seupovoexigiaqueelepensassenosestrangeiroscomopessoascujorespeitotinhaimportância.Elenãosentiaodesprezopelosbárbarosqueportantotempotinhasidoaatitudebásicadesuaculturaemrelaçãoaomundoalémdas fronteiras chinesas (por exemplo, a atitude, você há de lembrar, doimperadorQianlongnarespostaàEmbaixadadeJorge iii).Essapercepçãodever seupaís comoatornummundomaiordeoutrasnações éumdosfundamentospsicológicoscentraisdonacionalismomoderno.63Eéporissoqueahonradanaçãopodesermobilizadaparamotivarseuscidadãos.

Em parte, o que nos motiva a fazer o que nosso país precisa quefaçamos é um orgulho pelo país que se baseia em nossa noção de que“nós” izemosgrandescoisas.Ouseja,dependedosensodetermosdireitoàestimanacional:quedefatosomosumanaçãohonrada.ErnestRenan—grandehistoriadorenacionalistafrancês—captouesseespíritoem1882,emseuindispensávelensaio“Oqueéumanação?”,aoescrever:

Anação,comooindivíduo,éaculminaçãodeumlongopassadodeesforços,sacri ícioseatosdedevoção.O cultodos ancestrais é omais legítimode todos: elesnos izeramoque somos.Um

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passadoheroico,grandeshomens,glória(re iro-meàverdadeiraglória):esteéocapitalsocialnoqualsefundaaideianacional.64

Àsvezescritica-seopatriotismocomouma formade idolatria.E, como

ele supõe a crença em sua nação, de fato tem alguns elementos dapsicologiadacrençareligiosa.Noentanto,édi ícilacreditaremseupaís,anão ser que você tenha em alta estima pelo menos algumas de suasrealizações. O patriotismo não exige que você acredite que sua nação émelhor,emuitomenosamelhorentretodas.Maselefuncionabem,penso,quandovocêacreditaqueháalgoprópriodesuahistórianacionalquelhefaça sentir especial orgulho, como Kang se orgulhava das tradiçõesconfucianaschinesas.

agrandelibertação

A rapidez com que a amarração dos pés desapareceu foi espantosa.

GerryMackie, depois de rever as estatísticas disponíveis, concluiu que “aamarração dos pés começou a desaparecer na China entre a Guerra dosBoxers de1900 e a revoluçãode1911 entre as camadas superiores dascidades maiores. Embora houvesse variações locais no início dainterrupção, os dados disponíveis mostram que, quando a amarraçãoacabou, acabou rapidamente”. A amarração dos pés se manteve esparsaaqui e ali até anos bem adiantados do séculoxx; mas, na maioria doslugares,essapráticamilenardesapareceubasicamentenodecursodeumageração.Mackie a irma que, “de acordo comos dados de um sociólogo, apopulação de Tinghsien, uma área rural conservadora duzentosquilômetrosaosuldeBeijing,passoude99%depésamarradosem1889para94%em1899,eparazeroem1919”.65

Oque, inalmente, levouapráticaàextinção?Numasociedadeemquequase todos os casamentos eram arranjados, havia uma excelente razãopara não deixar de amarrar os pés das ilhas até que tivessempretendentes prontos para casar. O aspecto genial da estratégia dassociedades contra a amarração dos pés foi atender exatamente a estadi iculdade: ela criou ao mesmo tempo solteiras de pés desenfaixados e

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homensquepodiamdesposá-las.Oduplocompromissodassociedades—impedirque se amarrassemospésdas ilhas e impedirque se casassemos ilhos com mulheres de pés amarrados— fez exatamente o que eranecessário.E,enfocandoocontrasteentreaChinaeoutrospaíses,tambémdeixou claro que era possível criar sociedades — como o Japão, mastambémcomoasmissõescristãs—emqueasmulhereseram iéis,mesmosemasfaixas.

O mecanismo que tornara a amarração dos pés atraente para osintegrantes das classes mais baixas consistia no fato de que ela erapraticada entre as classes mais altas. Em virtude disso, depois que umnúmero su iciente de letrados passou a querer esposas não enfaixadas,houveuminevitávelmovimentoemcascataparadeixardeamarrarospés,invertendo assim a tendência de enfaixá-los que, tempos antes, haviadifundido a prática. Em termos simples: como a amarração dos pés estáinseridanumsistemadeposiçõessociais,oabandonodaelite lheretiraopoderdeatração.Éummecanismoquereproduz inversamenteocasododuelo na Inglaterra, onde foi sua adoção por plebeus que diminuiu suacapacidadedeassegurarahonradoscavalheiros.

Mas, para que se iniciasse esse desenlace, foi preciso persuadir umnúmerosu icientedeintegrantesdaelite—dosletradosedesuasfamílias— a abandonar a prática. Aqui, foi fundamental o papel desempenhadopelosestrangeirosepeloschineseseducadosno JapãoenoOcidentequeseopunhamà amarraçãodospés.Ao chamar a atençãoparao contrasteentreaChinaeomundodoavançoindustrial,numaépocaemquealgunsletrados tinham perdido a con iança na capacidade de suas tradições dedefendê-los contra os estrangeiros modernizadores, eles conseguiramconvencer outros letrados que precisavam promover reformas. Umelementocentral—comopodemosouviremsuasprópriaspalavras—foiaquestãodahonradesuanação.

Para muitos letrados, essa reforma necessária tinha um alto preço. Oautor anônimo da “Crônica secreta do interesse do lótus”— ensaio queabordacomfranquezaoapeloeróticodospésamarrados—observava:“Aamarraçãodospésdenossopaístornou-seumtipodepráticaretrógradana história mundial. Em nenhum lugar a mulher foi con inada maisseveramente do que por meio dessa prática. Deveria ser naturalmente

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aniquilada e se tornar um fenômeno desconhecido”.Mas prosseguia comcertamelancolia: “Nãome importeiemusarminhaenergiaparaescrevereste ensaio, para mostrar algo das utilidades do lótus e seus mistériossagrados,quesobreviveramporummilênio”.66

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3.Ofimdaescravidãoatlântica

A cruzada incessante, discreta e inglória da Inglaterra contra a escravidãoprovavelmente pode ser vista como uma das três ou quatro páginas plenamentevirtuosasnahistóriadasnações.

WilliamLecky,TheNaturalHistoryofMorals1

ahonradasnações

A era da exploração europeia, cujo marco foi o “descobrimento” do

NovoMundoporColombo, teveduasgrandesconsequênciashumanasnoOcidente. Uma foi o povoamento europeu das Américas e a consequentedestruição das sociedades ameríndias; a outra foi a transferência dastradiçõesmediterrâneasdaescravidãoagrícolaparaas ilhaseavastidãocontinentalnoladoocidentaldoAtlântico.Odesenvolvimentodasfazendasexigia grandes contingentes de mão de obra nos trópicos, algo que osnativos da região não estavam dispostos a ceder. Acostumados aoecossistemaeconhecedoresdesuageogra ia,paraeleserarelativamentefácil escapar ao controle dos colonos europeus. Além disso, grandesnúmeros de índios morreram pela exposição a doenças que haviam sedesenvolvidonoVelhoMundodepoisqueseusancestraistinhamchegadoàsAméricas—doençascontraasquais tinhampouca imunidadenatural.Paraqueosistemadas fazendassedesenvolvesse,serianecessáriaoutrafontedemãodeobra.

Enquantoisso,oscontatoseuropeuscomaÁfricaaumentavame,comonaquela época muitas sociedades africanas estavam se esfacelando porguerras internas, já havia uma grande quantidade de cativos. Com odecorrerdosséculos,tendosecriadoumademandaporescravosnoNovoMundo, várias sociedades da África Ocidental desenvolveram uma

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economia baseada na captura e comercialização de escravos, vendendomilhõesdepessoasaospostosnegreiroseuropeusdacostaafro-ocidental.Na virada do séculoxix, a escravização de povos não europeus era umelemento central da economia atlântica, ligando a Europa, a África e asAméricas. Ela estava indissociavelmente entrelaçada com a economiainterna de muitas sociedades e era crucial no comércio mundial. Poucasrevoluções morais foram mais importantes do que a que pôs im àescravização sistemática de africanos e afrodescendentes no mundoatlântico.

Aaboliçãodaescravatura foiumempreendimentoextraordinário,cujasigni icaçãofoiavaliadaporpensadoresdetodoomundo.Defato,mesmonosdebatessobreaamarraçãodospésnaChina,letradosprogressistasàsvezes faziam analogias entre sua luta e o movimento abolicionista noOcidente.

Osparalelos,ameuver,nãosãoóbvios.Éverdadequeoabolicionismoe o movimento antiamarração eram campanhas morais de grandeenvergaduracontratradiçõesdelongaduração.Masaescravidãoconsistiana subordinaçãodeuma raça a outra e acarretava a sujeição sistemáticadosnegrosàdesonra,aopassoqueaamarraçãodospés,emboratodasasvítimas fossem mulheres, era praticada dentro do grupo chinês han econstituíaumsinaldeposiçãoelevada,enãodegradada.Semdúvida,ofatode ser uma prática restrita às mulheres re letia a sujeição feminina aoshomens. Mesmo assim, a inferioridade das mulheres não signi icava quefossemdesonradas.Naverdade,muitasvezessãoasmulheresqueportama honra das famílias — questão a que voltarei no próximo capítulo —,mesmoqueofaçamdemaneiradiferentedoshomens.

Existemaisumcontraste evidente: os escravos, obviamente, não eramfavoráveisàescravidão,aopassoqueasmulheresgeralmentesuportavame difundiam a amarração dos pés. Mas há também uma clara ligaçãohistórica entre escravidão e enfaixamento dos pés. Seus adversários, nasrespectivas culturas, viam as duas práticas como ameaças à honra dasnaçõesqueasautorizavam.

Como veremos, o tema da honra nacional é inevitável na bibliogra iasobre a abolição. Mas veremos também que havia outros veios, maissubterrâneos,nosdebatessobreo imdaescravidãoatlântica,associando

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ahonraaoutrostiposdeidentidade.

ahonrabritânicaeotráficodeescravos

O Parlamento do Reino Unido aboliu o trá ico de escravos no Império

britânico em 1807, decretou o im da escravidão colonial em 1833 eabandonou o sistema de aprendizagem dos negros, que se seguiu àescravidãonasÍndiasOcidentaisem1838, libertandoassim,ao inal,maisde750milescravos.Depoisdessesfatos,duranteumséculoamaioriadoshistoriadores britânicos — na verdade, a maioria dos britânicos quepensavam sobre o assunto — tomou esses acontecimentos como umavitória da ilantropia sobre o interesse próprio. Então, em 1944, EricWilliams (quemais tarde seriaoprimeirode todososprimeiro-ministrosdeTrinidadeTobago)sustentouemCapitalismoeescravidão quetodosospassosnoprocessodeaboliçãore letiamosinteresseseconômicosdaGrã-Bretanha. Era uma obra na grande tradição caribenha dos Calibãs daresistência.A tesedeWilliamseraqueo inaldo trá iconegreiro foiumamedidadolivre-comércioequeaaboliçãosóocorreuquandooaçúcardasÍndias Ocidentais produzido com mão de obra escrava deixou de serlucrativo. Quanto aos abolicionistas, seu humanitarismo era seletivo:ignoravamos sofrimentos dos escravos fora do império e dosmineiros eagricultores dentro dele. A retórica moral do abolicionismo, em certosentido, erauma capa—queWinchilseapoderia chamarde “cortina”—paraosverdadeirosinteresseseconômicosemjogo. 2Aabolição,emsuma,nãotinhanadaavercomfilantropia.

A tese de Williams se enquadra numa visão da política como buscaracional dos interesses próprios de indivíduos, classes ou nações. Eleendossavaum“realismo”políticocéticoemrelaçãoaoquedenominava“oplanomoraloupolíticoelevado”. 3Eagrandecharadadaaboliçãopodeserresumidanumaobservaçãosimples:Williamsestavaerrado.Longedesermovida por interesses econômicos britânicos, a abolição realmente foicontra eles; e isso era claramente entendido por seus defensores. Talvezseja excessivo concordar com a famosa declaração de William Lecky deque “a cruzada incessante, discreta e inglória da Inglaterra contra a

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escravidão pode ser vista como uma das três ou quatro páginasplenamente virtuosas na história das nações”. Mas com certeza não foiresultadodasoperaçõesdo“interessepróprio,estreitamenteconcebido”.

O Reino Unido era um grande império comercialmarítimo que estavaenriquecendonocomérciomundial—eagoraháprovasconvincentesdequeaquelasdecisõescontrariavamseus interesses.Naépocadaabolição,ofornecimentodeescravosdaÁfricaOcidentalestavanoaugeeospreçoscaíam.4 Emboramuitos defendessem— no espírito de Adam Smith— asuperioridade econômica da mão de obra livre, as experiências comescravos libertos em Serra Leoa, no começo do séculoxix, di icilmentecomprovavam essa ideia. Enquanto a Inglaterra estava passando pelasváriasetapasdaabolição,osprodutosdamãodeobraescravaadquiriamimportânciacadavezmaiornaeconomiamundialetinhamumpapelcadavezmaiscentralnaproduçãoenoconsumodosbritânicos.

SegundoSeymourDrescher,umdosgrandeshistoriadoresdaabolição,nãosónãohavianenhumarazãoeconômicaparaabandonaraescravidãopelo lado da oferta, como também não havia evidentemente nenhumarazão pelo lado da demanda. Com a exceção de uma breve queda emdecorrênciadaRevoluçãoFrancesaedaRevoluçãoAmericana,aproduçãoaçucareira—quasetodacommãodeobraescrava—aumentouaolongodetodooperíododesdeosanos1780(quando,comoveremos,começanaInglaterra o primeiro grande movimento contra a escravidão) até 1840,quando a abolição tinha praticamente se consumado no império.5 Entre1787 e 1838, como Drescher também assinala, a proporção do algodãoproduzido com trabalho escravo para a lorescente indústria algodoeirainglesapassoude70%paraquase90%.Naqueleperíodo,nenhumdessesdois produtos tinha outra fonte de produção, com trabalho livre, quepudessesubstituí-los.

WilliamMcNeill,pioneiroemestudoshistóricosmundiais,sugeriucertavez que o crescimento da população britânica na virada do séculoxixtornou desnecessária a mão de obra escrava, e que isso explicaria osurgimento dos sentimentos antiescravocratas. As provas, porém, nãocorroboram essa avaliação. Se o excedente populacional britânico seincumbissedo trabalho, seriade esperarqueos índicesde emigraçãodaInglaterra fossem mais baixos durante a escravidão e mais altos após a

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abolição.Maso inversoéverdadeiro.ComodizDrescher,“oabolicionismobritânico ‘deslanchou’ exatamente quando o índice de emigração atingiuseu pico debaixa em trezentos anos”. 6 Em suma,Disraeli nãodeixavadeter razão ao sintetizar desdenhosamente as campanhas abolicionistas naInglaterra:“Omovimentodasclassesmédiaspelaaboliçãodaescravaturaeravirtuoso,masnãoerasábio”.7

OfamosolouvordeLeckyàvirtudebritânicaemTheNaturalHistoryofMorals, com que iniciei este capítulo, vem precedido por uma passagemmenosconhecida:

Éméritodaraçaanglo-saxã,maisdoque todasasoutras, terproduzidohomensdoestofodeumWashingtonouumHampden;homens,defato,poucociososdaglória,masmuitociososdahonra; [homens] que izeram da supremamajestade da retidãomoral o princípio diretor desuas vidas, e que demonstraram nas mais di íceis circunstâncias que nenhuma tentação daambiçãoenenhumtumultodapaixãopoderiamfazê-lossedesviarummilímetrodocursoqueacreditavamserseudever.8

Existem muitas razões para não aceitar essa formulação, ainda mais

porque pressupõe algo que agora estamos em condição de negar, isto é,queser“ciosodahonra”ésinalderetidãomoral.Comovimosnahistóriado duelo, a honra e a moral são sistemas separados: podem andar emparalelo, como teria sido o caso aqui; mas vimos também que podemfacilmente seguir em direções opostas. Mesmo assim, a insistência deLeckydeque a honra foi importante emmuitos aspectos para a aboliçãobritânicaé,comotentareimostrar,umapercepçãofundamental.

amoralnãobasta

Para entender omovimento abolicionista, em primeiro lugar devemos

notar que ele requeriamais do que a convicção de que a escravidão eramoralmente errada. O que precisamos explicar aqui, como no caso daamarraçãodospés,éporque,navidapolíticadanação,aspessoasvierama agir com essa convicção (já que os sentimentos antiescravocratasestavam amplamente difundidos muito antes que o movimentoabolicionistarealmentedeslanchasse).

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O espírito do inal do séculoxviii ia contra a escravidão por muitasrazões,acomeçarpelasobjeçõesespeci icamentecristãs.Osquacres,queacreditavamque todososhomenseram iguais aosolhosdeDeusporquetodos eram igualmente capazes de receber Sua luz, opuseram-se àescravização desde o começo. George Fox pregou contra ela ao visitar aAméricadoNorteem1671,eem1775aSociedadedosAmigos fundouaprimeira sociedade antiescravocrata do mundo, na Filadél ia, cujopresidente honorário a partir de 1787 foi Benjamin Franklin. Maissigni icativo,pelomenosemtermosnuméricos,foiorevivalismoevangélicodentro do anglicanismo, que gerou tanto o metodismo das “classesinferiores”,inspiradopelapregaçãodeJohneCharlesWesleyapartirdosanos1740,quantooespíritoreformadordaseitaClapham,deper ilcultoeabastado,apartirdosanos1790.

Mas a escravidão também ofendia os espíritos mais laicos doIluminismo, cuja oposição encontra-se sintetizada no verbete sobre otrá ico de escravos naEnciclopédia (1751-77)deDiderot eD’Alembert, aprimeira enciclopédiamoderna.Diziaoverbete: “Se tal espéciede trá icopode ser justi icada por algum princípio moral, não há crime, por maisatrozqueseja,quenãosepossalegitimar”. 9ErasmusDarwininterrompeuseuraciocínioemTheLovesofthePlants [Osamoresdasplantas ],de1789— uma improvável tentativa iluminista de difundir o conhecimentocientíficoatravésdapoesia—,apostrofandocontraaescravidão:

MesmoagoranasmatasdaÁfricacomgritosespectraisAferozescravidãoavançaedesatrelaoscãesinfernais;

...Ouvi,óSenados!ouviestaverdadesublime,“Quemaceitaaopressãocompartilhaocrime”10

Darwincertamentenãoeraumevangélico. (Naverdade,em Zoonomia,

eleescreviaapropósitodo“medodoInferno”:“Muitospregadoresteatraisentre os metodistas conseguem inspirar esse terror e vivemconfortavelmente às custas da tolice de seus ouvintes”.)11 Mas osentimento do último verso de Darwin repercutia em corações cristãos.Fossem calvinistas procurando provas de que eram eleitos porpredestinação divina ou arminianos preocupados em perder a graça de

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Deus, os protestantes ingleses no inal do séculoxviii temiam asconsequênciasdecompartilharqualquercrime.12

Emmeados do séculoxviii, portanto, entre religiosos e antirreligiosos,entendia-se amplamente que a escravidão era errada. E assim, tal comoocorrecomodueloeoenfaixamentodospés,oquegalvanizaomovimentocontraaescravidãonãoéoargumentomoral:este jáestápresentemuitoantesqueseinicieomovimento.

Foram os quacres, em petição pela abolição ao Parlamento em 1783,que começaram a organizar esses sentimentos sob a forma de ummovimento. Mas aqui também há algo que requer explicação. Nos anos1770,osquacres—mesmoinsistindoquetinhamcomomarcadedistinçãonãopossuirnemtra icarescravos—nãofaziamcampanhapúblicacontraa escravidão, embora, como vimos, já a repudiassem de longa data. Essefatonãosurpreendemuito.Osquacreseramumaseitapequena.Em1660,no inaldaRevoluçãoPuritana,elespodemterchegadoa60mil iéis,masos números decaíram signi icativamente depois disso, e em 1800 aSociedade dos Amigos contava talvez com cerca de 20 mil membros.13Muitos deles eram prósperos, e para sua segurança e sobrevivênciadependiam da tolerância numa sociedade que (como lembramos nocapítulo 1) jurava lealdade às doutrinas da Igreja da Inglaterra comocondiçãoparaocuparcargospúblicos.Mesmoassim,nadécadade1780osquacrestomaramainiciativadedivulgarpublicamenteosmalesdotrá iconegreiro.14

Essa passagem do abolicionismo como marca distintiva de umacomunidade para o abolicionismo como campanha nacional foi umaconsequência da dinâmica interna do movimento quacre. Tiveram deproceder assim sob pressão dos quacres americanos, liderados porAnthony Benezet, da Assembleia da Filadél ia; tinhamde proceder assimsequisessemmanterunidaaseitainternacional,easolidariedade(manteraunião)eraumdeseusprincipaisvaloresepreocupações.Prosseguiramcom o abolicionismo quando descobriram, com certa surpresa, que apetição ao Parlamento teve acolhida favorável, em parte porque nuncaninguém tinha enviado uma petição antiescravista ao Parlamento, e ospolíticos podiam usar aquela oportunidade para mostrar seuhumanitarismo louvando os quacres, enquanto continuavam a não fazer

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nada para impedir o trá ico negreiro. Até aqui, a honra não estava emquestão.

Os quacres de Londres publicaram The Case of Our Fellow-Creatures,the Oppressed Africans [O caso de nossos semelhantes, os africanosoprimidos] em 1784. Não obtendo resposta legislativa do Parlamento,organizaram a primeira grande campanha antiescravista noReinoUnido,espalhando artigos contra a escravidão na imprensa britânica. 15 Mas, noinal,oquerealmentetevee icáciafoiacampanhanacionaldepetiçõesaoParlamento,lideradapelaSociedadeparaEfetivaraAboliçãodoTrá icodeEscravos, sob a inspirada direção de Thomas Clarkson, Granville Sharp eWilliamWilberforce(todoselesanglicanosevangélicos).16

A sociedade organizou reuniões em todo o país para angariarassinaturas para as petições, as quais se tornaram eventos competitivos.Nas cidades com recente prosperidade devido à industrialização, nosMidlands e no norte da Inglaterra (Birmingham, Stoke-on-Trent,Manchester), a campanha permitia que novos magnatas, como JosiahWedgwood, mostrassem orgulho por suas novas posições cívicas.Wedgwood, que era amigo próximo de Erasmus Darwin (sua ilhaSusannah se casou com o ilho de Erasmus, Robert), fez grande fortunadesenvolvendo a primeira indústria cerâmica britânica, com uma fábricaem Burslem, Staffordshire. Foi ele que fez e pôs em circulação o famosomedalhão antiescravista de um africano ajoelhado sob a inscrição: “Nãosou homem e irmão?”. (E foi sua grande fortuna que deu a seu neto,CharlesDarwin,aliberdadedeseguirsuavocaçãodenaturalista.)

Mas, se estes eram os líderes, o movimento tinha uma quantidadeenormedeseguidoresentreas“classesintermediárias”.(No inalde1787,na primeira petição antiescravista emmassa, a cidade deManchester—comumapopulaçãodeapenas50milhabitantes,contandoascrianças—obteve quase 11 mil assinaturas.17) Pode-se ter uma ideia do êxito domovimentonofatodeque,nocomeçodosanos1790,entre300mile400milpessoasparticiparamdosboicotesaoaçúcarfabricadoporescravos—instigadosporargumentoscomoosdeWilliamFox, em1791,noDiscursoaopovodoReinoUnido,sobreautilidadedeseabsterdousodoaçúcaredorumdaÍndiaOcidental.18

Nasúltimasdécadasdoséculoxviii,aliteraturainglesacelebravaoque

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HenryMackenzie,notítulodeseuromancede1771,chamavadeTheManof Feeling [O homem de sentimento]. A famosa apóstrofe contra aescravidão, sugerida pelo episódio com o estorninho na gaiola emASentimental Journey [Uma viagem sentimental], de Laurence Sterne(1768),étípicadonovopostuladodequehomensemulheresdeveriamsecomover — às vezes até às lágrimas — com o sofrimento, inclusive eespecialmente com o sofrimento do escravo.19 “Olhando para o alto”,escreveSterne,

vi [...] um estorninho preso numa pequena gaiola. “Não posso sair, não posso sair”, disse oestorninho[...]“Receio,pobrecriatura!”,eudisse,“quenãopossovê-loemliberdade.”—“Não”,disseoestorninho,“nãopossosair,nãopossosair.”Confesso que nunca meus sentimentos foram tão ternamente despertados; nem lembro

nenhumincidenteemminhavidaemqueotemperamentodisperso,paraoqualminharazãopareciaalgoirrisório,serecompusessetãoprontamente.“Disfarça-te como quiseres, porém, Escravidão!”, eu disse, “ainda és amarga dose; e se em

todosostemposmilharesforamobrigadosabeberdeti,nemporissoésmenosamarga.”20

Ao acrescentar seu nome às dezenas de milhares de assinaturas nas

petições que davam entrada em Westminster, você se mostraria umapessoade“sentimentosternamentedespertados”,ummodelodevirtude.Epoderia, nas palavras inais de “O lamento do negro” deWilliam Cowper(escritoprovavelmenteem1788),

ProvarquetemsentimentoshumanosAntesdeorgulhosamentequestionarosnossos!21

liberdade:reinounidoversusamérica

Mas você também podia se ver defendendo a honra britânica. Na

polêmica transatlântica que levou à Declaração de Independência, ospartidáriosda Inglaterrausavammuitooargumentodequeaescravidãoera estranha à lei britânica. A Inglaterra era o país com a retórica do“inglês livredenascença”;adecisãode lordeMans ieldnocasoSomersetde 1772 (a despeito do que isso signi icasse como questão de técnica

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jurídica)foitomadaporamigoseinimigosdaescravidãonosentidodequeum escravo que pisasse em solo britânico tornava-se imediatamente umhomem livre. Os partidários do lado britânico argumentavam que osamericanos,sendoproprietáriosdeescravos,eramindignosda liberdade.Aqueles“quenãotêmescrúpulosemreteroutrosemescravidãotêmumapretensão muito parcial e injusta às proteções das leis da liberdade”,escreveu o abolicionista Granville Sharp em 1769 (e era alguém querealmenteapoiavaaindependênciaamericanadodomíniobritânico).22

Esseargumentosefezouvirnascolôniasporumasimplesrazão:comooreverendoMorganGodwinhavia frisadoanosantes, “os fazendeiros têmumaambição extraordinária de serem bem vistos”. Em 1786, HenryLaurens,oprincipal importadordeescravosdaCarolinadoSul,reagiuaocomparar os protestos ingleses “a um homem piedoso, externamentepiedoso,queproíbede fornicarsobseuteto,masquemantémumadúziadeamantesfora”.23

A dinâmica era clara, como aponta o historiador Christopher LeslieBrown em seu estudo magistral,Moral Capital: Foundations of BritishAbolition [Capital moral: fundações da abolição britânica]. As acusaçõesbritânicas contra a hipocrisia americana a respeito da escravidãofatalmentegeraramacusaçõesamericanascontraahipocrisiabritânicaemrelaçãoàmesmaescravidão.Osamericanospodiamserdonosdeescravos,mas os britânicos eram tra icantes de escravos. “Da mesma forma”,escreve Brown, “as denúncias britânicas contra o uso de escravos noCaribe retornavam à Inglaterra na forma de questionamentos sobre asinjustiças diárias no país”.24 Foi assim que começou a retórica doantiescravismobritânicocomomovimentopolíticoorganizado.

A premissa tácita de todos esses argumentos era evidente. Como dizBrown: “A conduta dos indivíduos, das comunidades e até mesmo dasnaçõesfrenteàservidãohumanapodiafornecerumcritériolegítimoparaavaliar sua política. E apenas os que renunciavam à escravidão de bensmóveispoderiamlegitimamentefazercampanhapelaliberdadepolítica”. 25Granville Sharp insistiunesseponto: a escravidão e o trá icode escravoseram,comoutrospecadosdoimpério,fontesde“desgraçaindelével”;eram“um empreendimentonacional, que pode ocasionar a imputação de umaculpanacional”.26 Assim como se defende a honra pessoal contra outras

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pessoas, defende-se a honra nacional contra outras nações. FrederickDouglass,ograndeabolicionistaafro-americano,pegouocernedaquestãonuma carta a Horace Greeley em 1845, explicando por que achavaimportantefazercampanhanaInglaterrapelaaboliçãonosEstadosUnidos—oque,aliás,eleestavafazendo.“AescravidãoexistenosEstadosUnidosporque é respeitável, e é respeitável nos Estados Unidos porque não édesrespeitávelforadosEstadosUnidoscomodeveriaser.”27

Honrabritânica,vergonhacolonial;ahonradeLiverpooleManchester;a honra das novas classes médias empoderadas: todas elas ajudaram amobilizaraspessoasqueforamalémdoclichêmoraldequeaescravidãoeraummal e formaramummovimentopara obrigar o Parlamento a darum im ao trá ico de escravos. Na verdade, se não fossem a RevoluçãoFrancesa e o surgimento correlato de um radicalismo jacobino naInglaterra,oParlamentopoderia terabolidoanteso trá iconegreiro.Masumgovernoansiosoemmanteraautoridadedasclassesdominantestinhacautela em não fazer grandes avanços numa direção radical. 28 Assim, foiapenas em 1807 que um governo britânico, em guerra com uma Françanovamente imperialista sob Napoleão, proibiu o trá ico britânico deescravos.

ahonradewilberforce

Ahonranacional ressurgiucomo temana segunda fasedomovimento

abolicionista britânico, quando, depois de uma interrupção por cerca dequinze anos após a abolição do trá ico de escravos, se inicia o ataqueorganizadoàescravidãoemsi.WilliamWilberforcecomeçavaseuApelo àreligião, justiçaehumanidadedoshabitantesdo Impériobritânicoem favordos escravos negros nas Índias Ocidentais , de 1823, com as seguintespalavras:

AtodososhabitantesdoImpériobritânicoquevalorizamofavordeDeusousãosensíveisaosinteresses ou à honra de seu país, a todos os que têm algum respeito pela justiça ou algumsentimentodehumanidade,dirijo-mepessoalmente.29

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OapelodeWilberforceàhonrabritânicapoderiaparecermero loreioretórico. Ele o introduz depois do dever a Deus e ao interesse nacional,embora os três venham antes das considerações morais da justiça e dahumanidade. Mas, para Wilberforce e seus amigos evangélicos (o grupoqueeraconhecido,comevidente ironia,comoosSantosdeClapham),nãohavia espaçopara ahonra independenteda religião edamoral.No idealdeles, a vergonha derivava apenas das transgressões do dever cristão(quecoincidiacomamoral)eahonraconsistiaemaderiraele.

Considerandoquetodosconcordariamqueahonradeviasesubordinaràmoral, poderia parecer que os Santos de Clapham tinham abandonadototalmenteosistemadehonra.MasWilberforcetinhaumarespostaparaapergunta sobre as relações entre moral e honra. Em 1797, já lançadonumacarreirapúblicadedicadaàpromoçãodavirtudeeàeliminaçãodovício,eledeclarouqueasEscriturasensinamoscristãosatercuidadocom“odesejodeestimahumana,distinçãoehonra”.Porém,quando“aestimaterrena e a honra [...] nos são concedidas sem terem sido solicitadas porações intrinsecamenteboas,devemosaceitá-las comosendo,por intençãoda Providência, [...] um conforto presente e uma recompensa pelavirtude”.30

É esta a mesma honra que impulsionava o cavalheiro inglês padrão?Bem,aconsideraçãodeoutraspessoassópodeserum“confortopresente”euma “recompensa” senosderprazer; e esseprazeremserestimadoéumaparteessencialdaexperiênciasubjetivadahonra.ApreocupaçãodeWilberforce é que nosso interesse pela consideração dos outros in lame“nosso egoísmo e orgulho natural”. Mas, se reconhecermos como somosindignos aos olhos do Senhor, seremos levados a uma “humildadeautêntica”. Mesmo quando nossas ações são justamente admiradas,devemos reconhecer que, na verdade, a glória cabe a Ele.31 A meu ver,porém, não estámuito claro como o conforto que obtemos com a estimados outros se concilia com o reconhecimento de que toda honra se deverealmenteaDeus.

SãoTomásdeAquino,numtratamentoclássicodamatéria,apresentaraum atalhomaravilhosamente apropriado: “A honra se deve à excelência.Masaexcelênciadeumhomemé julgadaacimade tudopor suavirtude.[...]Portanto,propriamentefalando,ahonraserefereàmesmacoisaquea

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virtude” (Suma teológica, 2a, 2ae, 145, 2). No mundo dos pecadores,porém, a honra tem um traço incontrolável: não se submete mais aodomíniodavirtude.Éporissoquetantosautoresreligiosospreocupavam-seemsabercomochegaraumacordocomela.

Quando a virtude e a honra entravam em con lito, Wilberforce, queicou horrorizado quando seu amigoWilliam Pitt pegou suas pistolas deduelo, sabia qual delas seguir. Mas, sob a mesma perspectiva cristã, ahonracoletivapoderiaresultaremforçamoral,poisocritériopeloqualsedefendia a nação em nome da honra era a retidão cristã. Mesmo que apreocupação com a honra pessoal fosse um interesse próprio, segundoWilberforce,aatençãoàhonranacionalpodianos levarparaalémdenósmesmos.Quandovocêconcebesuahonracomoahonradeuminglês, issopode levá-lo ao patriotismo, ao heroísmo e ao sacri ício por uma causamaior.

Assim, os Santos de Clapham podiam participar das estruturas dahonra, ainda que nessa forma altamente moralizada. A estima no séculoxviii, como vimos, muito amiúde pressupunha algum tipo de hierarquiasocial;mascomWilberforcevemosqueocritériopressupostopelaestimapode ser moral. Mais do que isso, um grupomoralmente engajado podecriarseuprópriomundodahonra.Wilberforceeseusamigosevangélicosfalavam de seus superiores aristocráticos mais liberais em termos quesugeriam quão fácil era para os devotos fora das ileiras da nobrezamostrar condescendência em relação a seus pretensos superiores. Semdúvida, Eric Williams também pensava nisso ao endossar a opinião doscríticosdeWilberforce:há“certaafetaçãonohomem,emsuavida,emsuareligião”.32

apelosàsclassesmaishumildes

Valeressaltarque,noantiescravismobritânico,haviamuitomaiscoisas

em jogo do que a honra nacional. O dever cristão e o conceito de seremtodos os homens irmãos, ilhos do Deus de Abraão, também eram temascentrais.Oprimeiro êxito concretodomovimento em1807, como imdotrá ico britânico de escravos, devia-se em certa medida à insistência

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constante de Wilberforce de que o apoio da Inglaterra à escravidãoprejudicava sua pretensão de ser um país cristão. O mesmo apelo —ampliado, talvez, pela difusão do espírito evangélico — encontra-se nosanos 1820, quando a campanha passou do trá ico de escravos para aescravidãocolonialemsi.

A terceira dasCartas sobre a necessidade de uma pronta extinção daescravidão colonial britânica, dirigidas principalmente às classes maisinfluentes, de 1826, sustentava que era dever cristão abster-se de usarprodutos da escravidão (retomando um argumento que levara aquelascentenasdemilharesdepessoasaboicotaro açúcarnaprimeira fasedaoposiçãoao trá iconegreirono começodos anos1790): “Paranos eximirdocrimedeencorajareperpetuaraescravidãoecompensaranegligênciapassada, devemos não só nos abster de qualquer consumo de seusprodutos, mas também nos dedicar com o máximo de nossas forças aengajar outras pessoas nessa mesma resolução”. 33 E o autor anônimoprossegue com os argumentos—de uma espécie que é familiar àquelesque lembram os debates sobre as sanções à África do Sul — de que oboicote ao açúcar das Índias Ocidentais realmente contribuiria para pôrim à escravidão, ao invés de simplesmente empobrecer os fazendeiros elevá-losatratarseusescravoscomdesumanidadeaindamaior.

Porém, na quinta dessas cartas “às classes mais in luentes”, o autorpropõealgoquepareceumanovaestratégia.Acartaéintitulada“Sobreaimportância das associações para a inalidade de obter a cooperação dasclassesmaishumildes”.O textocomentaosresultadosdesolicitaroapoiodosoperáriosnumacidadeindustrialedospobresdazonarural:“Acausada emancipação foi advogada no Senado pelos sábios, pelos eloquentes,pelos nobres. Agora ela é advogada na o icina e na choupana, pormulheres e crianças”. E, escreve o autor, as perspectivas de umacampanhanacional,baseadanaexperiênciaadquiridaatéomomento,sãoextremamente alvissareiras: “O resultado das visitas pessoais, sobretudoentreasclassespobresetrabalhadoras,temsidoquemaisdenoveemdezfamíliasadotaramentusiasticamentearesoluçãodeseabsterinteiramentedo consumo de açúcar das Índias Ocidentais”. Numa carta posterior, eleinsiste—a frasevememmaiúsculas—que “aescravidãonãodurariaumanoseasclassesmédiasexpressassemimediatamenteumaopinião

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decidida contra ela”. Aqui, entretanto, o autor comenta que inúmerosintegrantes das classes médias e altas têm consciência dos horrores daescravidão e mesmo assim não fazem nada. Inversamente, ele diz, “ainformação às classes mais humildes sobre o tema em questão não étrabalho perdido, ao contrário de grande parte do que se dedica a seussuperioresemculturaeposição”.34

Esses são os argumentos de um polemista. Esse quadro detrabalhadores solidários e engajados di icilmente é completo.Mas parecerealmente ter havido um signi icativo ativismo antiescravista entre as“classes mais humildes” inglesas no período entre o inal do trá iconegreiroeaaboliçãodaescravaturacolonial,umquartodeséculodepois.Eaperguntaé:porquê?

umanovaclassetrabalhadora

Podemos começar lembrando alguns elementos da história que o

grande historiador britânico E. P. Thompson narrou em A formação daclasse operária inglesa. As discussões sobre o sufrágio, que formavam opano de fundo no dueloWellington-Winchilsea, ocorreram num clima deintensa rivalidade entre a aristocracia, as classesmédias e os pobres. Osiníciosdomovimentosindical,inspiradopelojacobinismodo inaldoséculoxviii,tinhamgeradocomoreaçãoasLeisdeAssociaçãode1799e1800.Oobjetivo dessas leis era proibir as uniões operárias, e seu efeito levoumuitas organizações radicais das classes médias e trabalhadoras para aclandestinidade.QuandoasLeisdeAssociaçãoforamrevogadasem1824,quase de imediato os sindicatos agora legítimos organizaram greves quealarmaram os tóris sob lorde Liverpool e seus amigos do setorempresarial. Assim, o segundo quartel do séculoxix começa com aaprovaçãodeumanovaLeideAssociaçãoem1825.

No começo dos anos 1790, artesãos e operários somaram-se a algunsoutros radicais para formar as chamadas “Sociedades Correspondentes”nas vilas e cidades da Inglaterra. Seguindo os moldes dos Comitês deCorrespondência da Revolução Americana — que registravam edistribuíam as decisões de vários grupos para companheiros de ideias

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semelhantes—,elasforamfundamentaisparapropagaranecessidadedetransformação política. Começando com a Sociedade Correspondente deLondres em 1792, elas davam prioridade à reforma parlamentar e àampliação do direito de voto, e estiveram entre as primeiras vítimas dasLeis de Associação iniciais. Nas agitações que levaram à Lei da GrandeReformade1832,seussucessoresconseguiramreunirmultidõesenormesnacampanhapelamudança.

Em 1830, a União Política de Birmingham atraiu cerca de 15 milpessoasparaaassembleiadefundação;em1832enasemanadetumultosentre9e15demaio,quandopareciaqueaInglaterraestavanaiminênciade uma revolução, as organizações pró-reforma conseguiram atrairmultidõesnafaixade200milpessoas.Comícioscomoessessesomavamàspressões que levaram a essas primeiras reformas parlamentares, e oParlamento se acostumou com a nova ideia de que devia responder aosjulgamentos da nação— e não os direcionar. Era um precedente que osconservadores não consideraram muito prudente. Como mais tardeescreveria Disraeli, a respeito de todo o processo da abolição, “umaaristocraciaesclarecida,quesecolocouàfrentedeummovimentoquenãoseoriginoudela,deveriatercorrigido,enãosancionado,oserrosvirtuososde uma comunidade bem-intencionada, mas de mentalidade estreita”. Acomunidade bem-intencionada em que Disraeli estava pensando, comodisseele,eramas“classesmédias”.35

Mas a Lei da Grande Reforma, que recebeu o assentimento real emjunhode1832,foiumadecepçãosignificativaparaosqueesperavamverodireito de voto estendido aos trabalhadores; na verdade, como as novasquali icações censitárias excluíam todos os que não possuíssem ouarrendassem terras no valor mínimo de dez libras, deste ponto de vistanão houve nenhuma reforma. Em parte, a Grande Reforma de inia aidentidade dos trabalhadores pela negativa— como a condição daquelesquenão foramalcançados por ela.Nos anos subsequentes, a insatisfaçãoaumentou, e os trabalhadores ingleses e seus defensores organizaram-seem grupos como o Clube do Sufrágio Universal, que começou “numaAssembleia Geral do Comitê Central das Uniões Radicais Metropolitanas,realizada no Escritório do Verdadeiro Sol na sexta-feira, 10 de junho de1836,comafinalidadedefundarumClubedoTrabalhador”.

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Os objetivos da associação sugeriam que o orgulho efetivo pelaidentidadeoperáriaaindaestavase formando;masela tambémmostravaque era possível dirigir-se ao trabalhador propriamente dito e aosinteressescomunsdostrabalhadores.

Os objetivos: elevar o caráter moral, intelectual e político das classes trabalhadoras;proporcionar-lhesmaisoportunidadesparacontatosmútuosamistosos;formarumacordomaissubstancial entre elas e os homens de cultura e integridademoral e política que desejem sealinhar numa causa comum com seus irmãos menos prósperos, para colocar a felicidade aoalcancede todos;atenuarepor imvencera rispidezdaaristocraciaedasclassesmédiasemrelação à parcela trabalhadora do povo; provar a todos os seus inimigos a capacidade dasclasses trabalhadorasde conduzir seusprópriosassuntos; [...] e, inalmente, estabelecerplenaigualdade na elaboração e administração das leis, como a única garantia para assegurar àindustriosidade e ao mérito real sua justa recompensa, e resguardar a paz e a fartura, afelicidadeeasegurançauniversal.36

OClubedoSufrágioUniversalnãoduroumuitotempo—talvezporque

otesoureirofosseoexcêntricoradicalirlandêsFeargusO’Connor,quenãoera um trabalhador, mas um proprietário rural protestante de CountyCork,queperderaseuassentonoParlamentoem1835pornãoatenderàsexigências censitárias para a representação. Mais tarde, no mesmo ano,O’Connor ingressou na Associação dos Trabalhadores de Londres, cujolíder William Lovett era um dos seis operários que se juntaram a seismembros do Parlamento para lançar a Carta do Povo em 1838. Os seisprincípiosdacarta,cujoselementosvieramaserchamadosde“cartismo”,foram fundamentais para dar forma às lutas políticas pela reformanacionalnadécadaseguinte.Por im,omovimentocartista,agoralideradoporO’Connornumacondiçãomentalcadavezmais instável (em1852, foiinternadonummanicômiodepoisdeumtumultonaCâmaradosComuns),desmoronouapóssuaúltimareuniãopública,que teveocomparecimentodedezenasdemilharesdeadeptos,emKennington,em1848.Enquantooespírito da revolução se espalhava pela Europa na primavera e no verãodaqueleano,aInglaterracontinuavacalma.

Grandepartedahistoriogra iamaisantigaenfocaahostilidadeentreosdefensores do operariado e os abolicionistas: este con lito encontra seusímbolo nos escritos de William Cobbett, a que logo retornarei. Mas

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podemos encontrar entre os integrantes dessas associações detrabalhadores vários defensores ativos da abolição. 37 Na época domovimento cartista, observaThompson, já havia surgido uma consciênciaoperária. “Transpor o limiar de 1832para1833”, ele escreveno inal desuagrandiosaAformaçãodaclasseoperáriainglesa, “éentrarnummundoem que a presença operária pode ser sentida em todos os condados daInglaterraenamaioriadossetoresdavida.”Eleprossegue:

Anova consciência de classe dos trabalhadores pode ser vista por dois aspectos.De um lado,havia uma consciência da identidade de interesses entre trabalhadores das mais variadaspro issões e níveis de realização, que [...] se expressou numa escala inédita no movimentosindical geral de 1830-4. [...] De outro lado, havia uma consciência da identidade daqueleinteresse da classe trabalhadora, ou “classes produtivas”, em contraposição aos interesses deoutrasclasses.38

Quer formassemounão—eemquesentido—umamesmaclasse,os

trabalhadores erammuitas vezes xenófobos e, como as classesmédias ealtas britânicas, podiam ser francamente racistas em relação aos negros.Mesmoassim,muitoseramcontraaescravidão.Eeramcontra,penso,pelamais simples razão: nada expressava commais clareza a ideia de que otrabalhoeradesonrosodoquea escravidãonegranas fazendasdoNovoMundo. E o trabalho era o que os de inia. A escravidão associava oafastamento da terra natal à desonra dos escravos com o trabalho quecumpriam nasplantations e nas manufaturas escravistas do NovoMundo.39 O signi icado inequívoco da escravidão era que o trabalhomanualdeviaserequiparadoaosofrimentoeàdesonra.Erapor issoquese podia falar nos sofrimentos de quem não estava literalmenteescravizado.

O periódicoWeeklyPoliticalRegister ,deWilliamCobbett, foiduranteastrês primeiras décadas do séculoxix a leituraobrigatóriados radicaisdetodasasclassesedosartesãosalfabetizadosqueestãonocernedahistóriad eA formação da classe operária inglesa de Thompson; muitoscompanheiros menos letrados pediam que eles lessem em voz alta osemanário nas associações de trabalhadores. Cobbett tinha ido para osEstados Unidos, onde se refugiou por dois anos, temendo ser preso porsedição, em1817, e antesdisso, durante sua juventude, já havia passado

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algum tempo no país; ele comparava sistematicamente a situação dospobres da Inglaterra rural à situação dos escravos negros nas Américas,muitasvezesemdetrimentodosprimeiros.NopovoadodeBurghclereemHampshire, na manhã do domingo de 6 de novembro de 1825 — citoapenasumentre inúmerosexemplos—,quandoachuvalhedera“tempopara olhar os jornais”, um artigo sobre os problemas dos negociantes dealgodão em Nova York motivou-lhe a seguinte observação: “Os escravosquecultivamecolhemoalgodãosãobemalimentados.Nãosofrem.Osquesofrem são os que iam, tecem e tingem os tecidos”. 40 Eeles estavam naInglaterra.

Cobbett argumentava frequentemente que as elites abolicionistastinham dado pouquíssima atenção ao sofrimento dos diaristas ruraisbrancos no país, enquanto se faziam líricos sobre os sofrimentos dosnegrosnoestrangeiro—e,nãoraro,usavaumalinguagemracistaaofalardos escravos negros. Às vésperas da abolição do trá ico de escravos, ele“fulminou os liberais daEdinburgh Review por defenderem a abolição dotrá iconegreiro”em1805, lembrando-lhes“asprisões,osespancamentos,os açoitamentos, as torturas, os enforcamentos, os assassinatos numarremedo de zombaria da lei que são in ligidos ao escravo branco emcertas partes da Europa”;41 e, em 1806, ele prometeu: “Enquantobrandiremessaquestão, comtodaa suahipocrisia,peloalíviode500milnegros,eulembrareiaeleso1,2milhãodemiseráveisnaInglaterraeemGales”.42 Sua reação ao ressurgimento da campanha de Wilberforce —que começou com o pan leto de 1823 citado acima — foi se dirigirdiretamenteaoemancipacionista:

Wilberforce,Tenho-oaquidiantedemimnumpan letohipócrita.[...]Assim,nomomento,vouusá-loapenas[...] para lhe perguntar: que propriedade, que sentido, que sinceridade pode haver em suaapresentaçãodessacoisanoestadoatualdestepaís?43

A intenção de Cobbett em reiterar incessantemente a ideia de que os

verdadeirosescravos,osverdadeirossofredoreseramospobres ingleses,pode tersido introduzirumacunhaentreos interessesdosescravoseosinteresses dos trabalhadores ingleses; mas o efeito foi atrair a atençãotambém para a opressão que compartilhavam. No inal do percurso,

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quando foi eleitopara oParlamento reformado em1832, Cobbett—queganhou sua vaga por Oldham concorrendo contra um fazendeiro dasÍndiasOcidentais—tambémparticipoudacampanhaabolicionista.

democraciaehonra

AcarreiradeCobbettcomojornalistaradicalencaixa-senumpontoque

apresenteianteriormente,apropósitododuelo,sobreopapeldaimprensaemmoldar as reaçõesdos trabalhadores ao comportamentoaristocrático.Ao chamar a atenção para o desprezo pelos plebeus, implícito em suaexclusão não só dos duelos, mas também das outras prerrogativas doscavalheiros, a imprensa expôs os códigos de honra cavalheirescos a umquestionamento democrático. É surpreendente que os códigos de honratendamaatribuir,namelhordashipóteses,umpapeldesegundoplanoàsmulheres; que favoreçam os poderosos e sejam avaros nas virtudes queatribuemàspessoascomuns.Naeramaisdemocráticaquesurgiaquandonasceuooperariadoinglês,aspessoasinevitavelmenteperguntariamseahonraseriacoerentecomagrandedescobertamoderna,istoé,aigualdadedeessência,aosolhosdamoral,entretodosossereshumanos.

Muitos ilósofosargumentamrecentementeque,nasdiscussõessobreaigualdade, sempre é bom perguntar em primeiro lugar: “Igualdade dequê?”.Essasugestãotemmuitoméritoemtermos ilosó icos,mascreioquenão é umbomponto de partida histórico. Quando a igualdade se tornou,comaliberdadeeafraternidade,umdostrêsgrandeslemasdaRevoluçãoFrancesa, não foi porque as pessoas tivessem uma clara ideia de qualigualdade queriam.O que elas sabiam semmargemde dúvida era o quenão queriam: que as pessoas fossemmaltratadas só porque não tinhamnascido na nobreza, que a plebe fosse olhada como inferior. O ideal daigualdade nos tempos modernos, em suma, começa com a noção de queexistem certas coisas quenão são uma base adequada para tratar aspessoas com desigualdade, e só gradualmente é que esse ideal passa aidenti icar algumas coisas que de fatosão. Adiscriminação, no sentidodefazer distinções sobre amaneira de tratar as pessoas combase em suasidentidades sociais, começou a precisar de justi icativa. Assim, por

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exemplo, depois das revoluções na França e nos Estados Unidos, aspessoascomeçaramaquestionara ideiadequeaposiçãosocialdeberçoeraumabaseapropriadaparaadiscriminação;e,noúltimoséculo,araçae o sexo também passaram a ser vistos como bases ilegítimas para adiscriminação.

Enquanto essas ideias sobre o que não é uma base adequada para adiscriminação se desenvolviam, surgiam outras sobre o que é uma baseadequada.Umadelas—aideiadameritocracia—équeasoportunidadesde emprego deveriam ser oferecidas não com base na posição ou dasrelaçõessociais,esimpelotalento.Masoemprego,emboraevidentementefundamental, é apenas um dos contextos em que surgem as questões daigualdade. Ela também tem importância em outras áreas de nossa vidacomum, como nas instituições do Estado, nos tribunais, nas burocraciasadministrativas,nosdebatespúblicos.

Quanto aoque a igualdade requerpositivamente, podemos consideraruma ideia que nasce, ela também, nas revoluções democráticas, masalcança signi icação mundial com a Declaração Universal dos DireitosHumanos, em1948. Essa ideia é essencial para o que devemos pensar arespeito da honra em nossa época. É o que agora chamamos de“dignidade”.

A Declaração Universal começa, na primeira frase de seu preâmbulo,frisando que “o reconhecimento da dignidade intrínseca [...] de todos osmembrosdafamíliahumana”é“ofundamentodaliberdade,dajustiçaedapaznomundo”.44Paraamaioriadospensadoresanterioresàsrevoluçõesdemocráticas, a ideia de uma dignidade intrínseca às pessoas pareceriaabsurda.Umaediçãododicionáriododr. Johnson,publicadanaépocadoduelodeWellington,de ine“dignidade”como“nívelelevado;grandezademodos; aspecto elevado”.45 Nenhum deles pode ser intrínseco a todos,vistoquesãocoisasquealgunstêmporqueoutrosnãotêm.“Nívelelevado”éalgoquevocêpodeterapenassehouveroutrosemnívelinferioraoseu.Como comentou Edmund Burke em 1790, respondendo ao “ loreiooratório” de um político revolucionário francês que dizia que “todas asprofissõessãohonradas”:

Aoa irmarquealgumacoisa éhonrada, supomosumadistinçãoemseu favor.Apro issãode

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umcabeleireirooudeumartesãoque fazvelasdesebonãopodeserumaquestãodehonraparaninguém—semcomentarumasériedeoutrosempregosservis.46

Paracaptaraideiageral,vocênãoprecisasaberquequemfazvelasde

sebousa gordura animal.O ponto fundamental deBurke é omesmoqueThomasHobbesjáhaviaapresentadodemaneiramaissucintamuitosanosantes: “Os homens estão em disputa contínua por honra e dignidade”. 47Para pensadores como Hobbes e Burke, a dignidade, como a honra, eraalgointrinsecamentehierárquico.

Assim,sejaoqueforadignidadeemnossopresente—nessestemposmais democráticos —, há de ser algo diferente do que era no passado.Aquela íntima ligação entre honra e dignidade, que ica evidente naacoplagem de Hobbes, sugere uma pista para pensar sobre o queaconteceuàdignidade,asaber,suaconexãocomorespeito.

Uma formade entender o que aconteceu com a palavra “dignidade” édizer que ela passou a se referir ao direito ao respeito que as pessoaspossuem simplesmente em virtude de sua humanidade. Eis aqui algunsfatos sobre as pessoas a que damos o devido peso ao reconhecer adignidade humana: que os homens têm a capacidade de criar vidas comsigni icação;quepodemossofrer,amar,criar;queprecisamosdealimento,abrigo e reconhecimento alheio. Esses fatos, que podemos chamar defundamentos da dignidade, tornam apropriado responder às pessoas demaneira que respeitem essas necessidades e capacidades humanasfundamentais.48Lembre-sedadistinçãodeStephenDarwallentrerespeitopor reconhecimento e respeito por avaliação. Durante grande parte dotempodiscutimosasformasderespeito—quetenhochamadode“estima”— que derivam da avaliação positiva. A dignidade, em seu sentidomoderno,passouaserumdireitoaorespeitoporreconhecimento,emquesimplesmente damos o devido peso a esses fatos essenciais sobre aspessoas.

Algumaspessoaspensamqueapenasasformashierárquicasdodireitoaorespeitodeveriamteronomede“honra”.Háumarazãoparaisso,alémdainsistênciadeumdefensorferrenhodahierarquiasocialcomoEdmundBurke: muitas das formas mais perceptíveis de honra, da Ilíada aoPashtunwali, são realmente hierárquicas. A questão aqui, porém, não é

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apenas de ordem terminológica: penso que seria de grande proveitopensar sobre os códigos hierárquicos e não hierárquicos que garantem,ambos,odireitoaorespeito.Estelivroéadefesadessepontodevista.

O que é democrático em nossa cultura atual, portanto, é que agorapressupomos que todos os seres humanos normais, e não apenas osespecialmente elevados, têm direito ao respeito. Mas prestar a todos orespeitopor reconhecimentoéplenamentecompatível comprestarmaiorrespeitoporavaliaçãoaunsdoqueaoutros,poissãoformasdiferentesderespeito.Apartirdeagora,reservareiotermo dignidadeparaumaespéciede honra, a saber, o direito ao respeito por reconhecimento. Assimpodemos dizer: honrar especialmente alguns é compatível com oreconhecimento da dignidade de todos os demais. Essa dignidade nãorequer as formas comparativas de avaliação, que acompanham formasmais competitivas de honra. Não é algo que vocêganha ouconquista, e areaçãoadequadaàsuadignidadenãoéoorgulho,esimorespeitopróprio.A inal, se sua humanidade lhe dá direito ao respeito, então ela lhe dá odireitoatéderespeitarasimesmo!

Existem diferenças importantes entre a dignidade, entendida destamaneira, e outras formas de honra, mas todas têm algo importante emcomum. Se você não agir de maneira compatível com sua dignidade, aspessoasdeixarãoderespeitá-lo,ecomrazão.Vocênãoprecisaganharsuadignidade humana; não precisa fazer nada de especial para obtê-la.Mas,se não viver à altura de sua humanidade, você pode perdê-la. Nesteaspecto, é como a honra real do príncipeHal, que ele não fez nada paraganhar, excetonascer,masquepoderiaperder senãovivessede acordocomos critériosqueelaacarretava.E sevocêperde suadignidade, comonocasodahonra,oquevocêvaisentirévergonha.

O fato de a honra comparativa ser conceitualmente distinta dadignidadenãogarantequeelanãocoloquenenhumaameaçaàdignidade.Mas se você estava preocupado se uma cultura da estima não deixariaespaço para o respeito por aqueles que não izeram nada de especial, oconceitode“dignidade”ofereceumarespostamoderna.Oqueseseguedocompromisso comadignidadehumana, ameuver, é quedevemos evitarcriarmundosdahonraecódigosdehonraqueconcedamumaposiçãotãodestacada aos bem-sucedidos a ponto de constituir implicitamente um

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desrespeitoparaosoutros.Numa sociedade que negava respeito aos trabalhadores, reivindicar

dignidade para eles era uma proposição radical. Conforme sedesenvolveram os argumentos em favor da dignidade igual dostrabalhadores,asmulherestambémcomeçaramareivindicaredepoisaseorganizar para conquistar um lugar de maior respeito na vida pública.Nesses dois movimentos — pela igualdade política dos trabalhadores edepois de todas asmulheres—, o objetivo não era a honra comparativa,que dependia de realizações especiais, e sim a dignidade, baseada emfundamentos que as mulheres e os trabalhadores poderiam argumentarcorretamente que compartilhavam com os cavalheiros. E, para tê-la,operários e mulheres participaram de campanhas públicas altamentevisíveiseorganizadas.

adignidadedotrabalho

Aolembraraenergiadosabolicionistas,éimportanterecordaraescala

extraordinária de sua mobilização. O abolicionismo foi de longe o temamaisativodepetiçõesaogovernonomeioséculoentreasprimeirassalvasdeaplausoscontraotrá icodeescravoseaLeidaAbolição.Em1829,notaSeymourDrescher,ospeticionistasinglesesderamdecincoaumcontraaliberação católica; em1833, as assinaturas deramde 75 a um a favor daabolição imediata.49 Talvez a maneira mais impressionante de re letirsobreosnúmeroséapontar—comofazDrescher—queprovavelmentemaisde20%doshomensinglesescommaisdequinzeanosassinaramaspetições antiescravistas de 1833. Para alcançar essa proporção deassinaturasdapopulaçãomasculinanessafaixaetárianosEstadosUnidosem2010,vocêteriadepersuadirmaisde23milhõesdepessoas,issosemosrecursosdainternet!

Umapartedovigordacampanhaantiescravistaeraarodadacontínuade conferências e reuniões, em vilas e cidades, organizadas pelosabolicionistas. O historiador britânico James Walvin descreveu inúmerasreuniões superlotadas nas Ilhas Britânicas, quando a campanha pela LeidaAboliçãoatingiuoclímax.

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Emmaiode1830,aAssembleiaGeraldaSociedadeContraaEscravidãoatraiuapresençade2milpessoas,alémdeoutras1500quenãoconseguiramentrar.Algomuitoparecidoserepetiaemtodososlugaresondesereuniamassociedadesantiescravistas—atéemlugaresdistantescomo Cork. Em Leeds, anunciou-se que 6 mil pessoas lotaram ocolored cloth hall local.

QuandofoiconvocadaumareuniãosemelhanteemEdimburgo,nodiadeAno-Novode1831,[ojornal]The Scotsman considerou que foi “uma das maiores e mais respeitáveis reuniões járealizadasnaquelacidadeintelectual”.

Nas cidades pequenas, com sonoros nomes ingleses — Woburn,

NewportPagnell,Baldock,Hitchin—,ossalõestambémtransbordavamdegente.50Emseurelatóriode1831,oComitêdaAgência,queadministravaa campanha, informou que tinha indicado cinco conferencistas “parapreparar o caminho para umamanifestação geral do sentimento público,quando chegar a hora, disseminando amplamente informações precisassobreanaturezaeoefeitodaescravidãocolonial”. 51 As informações quedisseminavam deviam ser precisas, e também extensas: as reuniõespodiam durar seis ou sete horas, e, embora os dignitários locais tambémusassemapalavra,ooradordaAgênciachegavaaconsumirtrêsdelas.

Foram essas campanhas que levaram os britânicos a apresentar 1,5milhãodeassinaturasnaúltimasessãoparlamentarantesdaaboliçãoem1833. Você não obteria esses números sem apelar a todas as classes.Homens e mulheres, de qualquer classe, tinham algum argumento dehonraqueos levavaatéamesadepetição,dispostosaassiná-la.Estavampreparados para atestar perante os vizinhos e perante seus líderesparlamentares que os ingleses livres de nascença estavam unidos narepulsa à escravidão e, agindo assim, podiam reivindicar sua parcela nahonra da nação. Ao participar desses grandes rituais públicos dos anos1830, os trabalhadores podiam reivindicar seu direito ao respeitoenquanto trabalhadores, da mesma forma como os industriais dosMidlandsedonortehaviamprocuradorespeitabilidadeparasuascidades(eparasuaclasse)nomovimentocontraotrá icodeescravosnageraçãoanterior.Anovaclasseoperáriatinhainteresseseconômicos,semdúvida,epodemos discutir se esses interesses coincidiam ou não com os dosescravos; mas os trabalhadores precisavam, como todos nós, viver comumaimagemdesimesmosquelhespermitisseterrespeitopróprio.

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Assim,ahonraestápresentepelomenosde trêsmaneirasnaaboliçãobritânica. Primeiro, a honra nacional desempenhou umpapel central nosdebates sobre a abolição. Segundo, a honra das cidades em recenteindustrializaçãonosMidlandsenonortedaInglaterralevouseuscidadãos— tanto das classes altas quanto dasmédias— a disputar a corrida noenvio mais rápido ou mais numeroso de petições ao Parlamento. Essasminhas a irmações, creio, contariam com o endosso da maioria dosestudiosos de tais questões. Mas, a essas explicações mais amplamenteaceitas,queroacrescentaraideiadequeaparticipaçãodostrabalhadoresbritânicosesteveligadaaumnovoinvestimentosimbólicoemsuaprópriadignidade.

Tal como entendia Hegel, a consciência humana é voltada para simesma,mas ela também supõeumdiálogo coma consciência dos outros.Àsvezes,aosefalaremhonra,oqueimportaénãosóorespeitoaooutro,mas também o respeito próprio de quem busca a honra. A preocupaçãocomadignidadedotrabalhoentreasclassestrabalhadorastinhaavernãosócomamaneiracomoeramvistaspelosoutros,mastambémcomoqueelas mesmas pensavam a seu respeito. Para muitos deles, a escravidãodoía—nãosóporque,enquantobritânicos,importavam-secomahonradanação; não apenas como uma questão de consciência cristã; e não,inalmente, porque concorressem com os escravos (de fato, nãoconcorriam). A escravidão doía porque eles, assim como os escravos,trabalhavameproduziamcomosuordorosto.

Duasdécadasdepoisdaaboliçãobritânica,o consensoestabelecidonoReino Unido sobre a ilegalidade e o mal da escravidão teve enormesconsequênciaspráticas.NaInglaterra,noiníciodaGuerraCivilamericana,houveumaenormesolidariedadeentreaaristocraciaconservadorapelosfazendeiros do Sul dos Estados Unidos, com os quais ela se identi icava.Como disse oMorning Star de Londres em 12 de maio de 1862, “umaaristocracia de sangue reconhece o parentesco com uma aristocracia decor”.52 A despeito disso, a Inglaterra não interveio em favor dosConfederados. Do contrário, como o ministério de lorde Palmerstonrealmentechegouaconsiderar,odesfechodaGuerraCivilpoderiatersidomuito diferente. Mas, visto que a Proclamação de Emancipação de 1863permitiuqueosdefensoresdoNorteconcebessemaguerrasimplesmente

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como luta contra a escravidão, a opinião das classes trabalhadoras e dasclasses médias se interpôs nos planos de intervenção das classessuperiores.53 A aristocracia fundiária não era mais a classe dominante.ConformeoImpériobritânicoseexpandiaduranteoséculoxix,aaboliçãodasformasdeescravidãoautóctonesdaÁfricaedaÁsiapassavaaserumdosobjetivosdapolíticaimperial.

Em17deagostode1846,natavernaCrownandAnchor,nocentrodeLondres, Frederick Douglass e William Lloyd Garrison, os principaisabolicionistasdaépoca(oprimeiro,negro;osegundo,branco),uniram-seaWilliamLovetteHenryVincent,respectivamenteo fundadoreoprincipalorador da Associação Cartista dos Trabalhadores de Londres, paraanunciar uma nova Liga Contra a Escravidão. A liga foi uma tentativa decriar uma base britânica para a ala garrisoniana mais radical doabolicionismo americano e desapareceumenos de um ano depois.54 Masnaquela noite de agosto, quando Garrison e Douglass apresentavam osdiscursos veementesque lhesderam famaparaumaplateia embevecida,houve um breve instante em que poderíamos imaginar uma aliançainternacionalentreostrabalhadoresbritânicoseos3milhõesdeescravosamericanos, lutando juntos pela dignidade do trabalho. Numa sala ondeBoswelleJohnsontinhamesvaziadoseuscopos,afervorosaassembleiadeabstinentesouviuquandoVincent—aquemsirHenryMolesworthhaviase referido como “o Demóstenes do novo movimento” — encerrou areuniãodeseishorasdeduraçãocomumdiscursosobreacausaconjuntadosescravosedostrabalhadoresbritânicos.UmdosbiógrafosdeDouglasscomentamelancolicamenteofracassodaLigaContraaEscravidãoemcriarum movimento internacional dos trabalhadores como “uma das grandesoportunidadesperdidasdavidadeDouglass”.55

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4.Guerrascontramulheres

Queespéciedehonraéatirarnumamulherdesarmada?AsmaJahangir1

seduzidaeabandonada

Na comédiaSedottaeabbandonata [Seduzidaeabandonada],de1964,

ilmedePietroGermiambientadonumvilarejodaSicília, a jovemAgneseAscalone,dequinzeanosdeidade,é“seduzidaeabandonada”porPeppinoCalifano, noivo de sua irmã.2 Quando o paidon Vincenzo descobre, correaté a casa dos Califano, esperando convencê-los de que a família precisaalterarlevementeseusplanos:emvezdesecasarcomairmãmaisvelha,Peppino deve se casar com a mais nova. Por im, o pai do rapaz,signorCalifano,dásuapalavra.EleentendequedonVincenzoprecisadefenderahonra da família.Mas Peppino não quer, e foge (com a bênção dos pais)paraseescondercomumdeseusprimos.

No tumultoquesesegue,o irmãodeAgneseéenviadoparaatiraremPeppino, mas ele erra e é preso. O juiz o denuncia por tentativa dehomicídio, enquantoPeppinoé acusadopor corrupçãodemenor.Aúnicamaneira de evitar a prisãodos dois rapazes é o casamentodePeppino eAgnese.Ocostumelocalofereceumasoluçãosimples:eleealgunsamigostêmdeencenarumraptodeAgnesequese tornedeconhecimentogeral.Assim, a seduçãoprivada, quenãopode serpublicamente reconhecida, ésubstituída pelo pretexto público para o matrimônio. Todos pressupõemqueacomunidade,depoisdorapto,concordaráqueosdoisjovenstêmdesecasarparapreservarahonradeAgneseedesuafamília.

Devezemquandovemosno ilmeo chefedepolíciaPolenza,da Itália

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continental,exasperadocomasidasevindasdosAscaloneedosCalifanoereclamandodomundo loucodahonra siciliana. (Numacenanadelegacia,eleolhaummapadaItália,cobreailhadaSicíliacomasmãosemurmura:“Melhor,muitomelhor”, imaginando como a Itália ganharia como sumiçodaquela excrescência incômoda.) Quando o plano do rapto chega-lhe aosouvidos, Polenza sabe o que fazer: ele escapa com o jovem policial comquemdivide suas responsabilidades emmanter a lei, saindoda vila paraevitartodaaquelaconfusão.

Numa tarde encalorada, eles estão deitados à sombra de uma oliveirano tórrido sol siciliano e o delegado tenta explicar o que se passa a seujovem assistente Bisigato (interpretado por um ator bem loiro, pararessaltarquenãoésiciliano).

polenza:Hojeeleestáraptandoagarota.Oquevocêfaria?

bisigato:Euoprenderianahora.

polenza:Ótimo.Assimele se casa comela amanhã e sai totalmente livre, e você faz papel de

tolo. Ponha isso na sua cabeça. O casamento apaga tudo: sequestro, estupro, corrupção demenores.Estánoartigo544.Ocasamentopassaumaesponjanahistória.Melhordoqueumaanistia.Nãosabia?Aquiosmeninosaprendemissonocatecismo.bisigato:Eporquenãosecasarcomela,simplesmente?

polenza:Elenãoquer.

bisigato:Entãoporqueraptá-la?

polenza:Assim,eleéobrigadoacasar.Todosestãonisso.

bisigato:Excetoele?

polenza:Não,eletambémestánisso.

bisigato:Comtodoorespeito,senhor,nãoentendo.

polenza: Nem pode entender, Bisigato. É uma questão de honra. É sempre uma questão de

honra.

Sedottaeabbandonataéum ilmecômicosobreumassuntomuitosério.

AobsessãodedonVincenzocomobomnomedosAscalonepressupõeumdos conceitos de honra mais comuns por todo o mundo: em inúmerassociedades,seuma jovemfazsexoantesdocasamento,nãosósuahonra,masahonradetodaafamíliaficamanchada.

Nãoéapenasumaquestãode sentimentos,doorgulhoedavergonha,dosAscalone.SedonVincenzonãoresolveroproblemadeumaformaque

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recupere a honra da família, as outras ilhas e o ilho não conseguirãocasamentosrespeitáveis;elemesmoseráobjetodezombariaesuaesposaserá objeto de piedade. Ele não poderá andar de cabeça erguida em suacomunidade.Perderáorespeitodetodososseuspares.Emseumundo,háapenasumasaída:o sedutorprecisadesposar sua ilhamaisnova (edonVincenzoprecisaencontraroutromaridoparaa ilhamaisvelha).QuandoPeppinotentaescaparaessedestino,omesmocódigoentãoexigequeumdoshomensdafamíliaAscaloneomate.

O nível de violência paterna na família Ascalone pode surpreenderalguns espectadores contemporâneos.Don Vincenzo bate nas ilhas e noilho; grita com a esposa. Emais: ela não tenta impedir que ele bata nosilhos, e estes parecem tomar como natural que o pai mantenha aautoridade com a fúria das palavras e a brutalidade dos punhos. Amasculinidade neste mundo é de inida pela capacidade de violência.Mesmo o irmão levemente efeminado de Agnese, embora relutante, éobrigadoairatrásdePeppinocomumaespingarda.

Insistindo no óbvio: o código que rege a vida dedon Vincenzo fazexigências muito diversas a homens e mulheres. O duplo padrão dessesistema é muito bem apresentado numa cena à mesa de jantar dosCalifano,naqualPeppinosuplicaaospaisquenãooobriguemacasarcomajovemqueestágrávidadele.

peppino: Responda-me isso. Com toda honestidade, você teria se casado com mamãe se ela

tivessefeitooqueAgnesefezcomigo?pai:Oqueissotemavercomoassunto?

mãe:Vocêtentoumeagarrar.

pai:Edaí?Ohomemtemodireitodepedireamulhertemaobrigaçãoderecusar.

peppino:Exatamente.Agnesenãorecusou,recusou?[...]Nãovoumecasarcomaquelaputa.

pai:DeiminhapalavraadonVincenzo!

mãe:Vocênãorespondeuàperguntadele.Seeutivessecedido,vocêteriasecasadocomigo?

pai:Claroquenão!

O código supõe que qualquer homem é sempre livre para procurar

sexocommulheres comasquaisnãoestá casado, equeamulher tem “aobrigação de recusar”. É por isso que, se o homem consegue, a desonra

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cabe à mulher: apenas ela transgrediu as regras. Peppino deseja a belaAgnese.Elequerdesesperadamente terrelaçõessexuaiscomela.Mas,seelaconcordaemfazersexoforadocasamento,éuma“puta”.Portanto,elenãopodedesposá-la,mesmoqueelasótenhatidorelaçõescomeleeestejagrávidadeumfilhoseu.

Naqueles tempos, o artigo 544 do código penal italiano, citado pelodelegado, reconheciaumtipodecasamento,omatrimonioriparatore , que“reparava”omalresultantedoestupro,mesmodeumamenor.Éumaideiaantiga,quevocêpodeencontrarnoDeuteronômio(22,28-9):

Seumhomemencontraumavirgemsolteira, toma-aedeitacomela,esãodescobertos,então[...]elaserásuaesposa;comoeleahumilhou,nãopoderáabandoná-lanuncamais.

E omatrimonio riparatore não era apenas um expediente para ser

usadonoenredodos ilmes.NodiaseguinteaoNatalde1965(umpoucomaisdeumanoapósolançamentodeSedottaeabbandonata),umajovemchamada Franca Viola, que tinha apenas dezessete anos, foi raptada eviolentadaporumpequenovigaristachamadoFilippoMelodia,novilarejosicilianodeAlcamo.Oatacantecontoucomaajudadeumadúziadeamigosseus. Antes disso, ela já tinha repelido várias vezes seus avanços. Mas,como osignorPolenzadisse,Melodia tinhaaprendido “nocatecismo”que,apósteremrelações,elareconheceriaqueaúnicaformadesalvarahonrada família seria casando-se com ele. Depois de casados, o artigo 544 oprotegeriadequalquerconsequênciajudicialdoestupro.

FilippoMelodiadescobriuquetinhasubestimadoFrancaViola.Eladisseà família que não se casaria com ele e, com o apoio do pai, insistiu emprestar queixa por estupro. Sua família sofreu ostracismo e enfrentouexatamente o tipo de perda de respeito que é o preço de se afastar doscódigos de honra. Por ter contestado o código, o pai dela também sofreuameaçasdemorte, eosvinhedose celeirosda família foram incendiados.Mesmoassim,oprocessoteveandamento,eFilippoMelodiaesetedeseuscomparsas foram presos. Três anos depois, Franca Viola casou-se comGiuseppe Ruisi, seu namorado de infância, o homem com quem tinha secomprometidodesdeoscatorzeanos.Nacerimôniadecasamento,eletevedeirarmadoparaprotegeraambos.3

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Asrepercussõesdocaso foram inequívocas: a imprensanacional fezacoberturadacerimônia;opresidentedaItáliaenviou-lhesumpresentedecasamento;opapaPaulovirecebeu-osemaudiência.4Ojovemcasalviveuem outra cidade nos primeiros anos do casamento, mas no começo dadécada de 1970 voltou a Alcamo. Nos anos seguintes, ela se manteveafastadados holofotes, levandouma vida normal;mas em2006declarounumaentrevistaque,diantedeumadecisãoimportante,seuconselhoera:“Sempresigaseucoração”.5

Franca Viola foi violentada aos dezessete anos. Tinha quase o dobrodessaidadequandofinalmenteoartigo544foirevogado,em1981.

famíliasassassinas

Em outras partes do mundo (bem como em outros tempos), a

penalidadepeladesonraqueacompanhaaperdadavirgindade femininaantesdocasamentoémuitomaissevera.No ilme,AgneseaceitaodestinoaqueFrancaViolaescapou:éobrigadaa secasarcomumhomemqueatratoucomdesprezo.Emmuitasépocaselugares,porém,pararestaurarahonra da família seria preciso matar não só o sedutor, mas também aprópria moça. Na verdade, na Sicília e em muitas outras sociedadesmediterrâneas, cristãsemuçulmanas,era—eemalguns lugaresaindaé—oqueocódigoexige.Emcertascomunidades,umajovemperdeahonrae recebe a pena de morte, mesmo que, como Franca Viola, tenha sidoestuprada.

Ora, o código que rege esses crimes de honra guarda elementoscertamente identi icáveis pelamaioria das pessoas nomundo.Mesmo noOcidente industrializado, nosEstadosUnidos enaEuropa, háumenormetrabalho em persuadir homens e mulheres no sentido de que o estupronãodevesertratadocomofontedevergonhaparaavítima.Nãoéqueasmulheres violentadas acreditem, lá no fundo, que estavam “pedindoaquilo”;pelocontrário,avergonhatemavercomaimpotênciadeserumavítima. Não é a culpa — a ideia de ter feito algo errado — que asatormenta,masalembrançadahumilhação.Eessahumilhação—ofatodeo estuprador ter humilhado sua vítima, como diz o Deuteronômio —

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permite que ela perca o respeito de todos aqueles que sabem que foiviolentada, pormais irracional que isso seja. De fato, a humilhação podecorroer(repetindo,semqualquerboarazão)seurespeitoporsimesma.

Em sentido mais geral, a noção de que você demonstra suainferioridadeporquenãoconseguiuresistiràimposição ísicadeoutremémuitodifundida,enãoapenasemrelaçãoaoataquesexual.Dentrodessesistemadeatitudesesentimentosencontram-seostraçosda ideiadequeas mulheres que foram violentadas, bem como os homens que foramderrotadosnumataque,perderamsuahonra.Afraqueza—mesmodiantedainiquidade—éfontedevergonha.

Nos Estados Unidos, também é verdade até hoje que muitos pais eparentessepreocupammaiscomasaventurassexuaisdas ilhassolteirasdoquecomasdos ilhos. Justi ica-sedizendoqueamoça temmaiscoisasem jogo— a gravidezmuda sua vida de umamaneira que não acontececomumrapaz.Masdescon ioqueoquemuitagenterealmentepensaéomesmoquepensavamPeppinoeseupai:“Ohomemtemodireitodepedire a mulher tem a obrigação de recusar”. O autocontrole não é viril, e aresistênciaéapropriadamentefeminina.

Entretanto, quaisquer que sejam nossos sentimentos e nossas ideiassobreosexo foradocasamento,emgeralnãoconseguimosconceberquealguém pense que a reação correta a uma ilha solteira que quer terrelaçõessexuaisouauma ilhacasadaquecometaadultériosejamatá-la;tampouco conseguimos entender que alguém mate uma ilha ou irmã,solteiraoucasada,quetenhasidoestuprada.

No entanto, segundo uma estimativa num relatório dasNaçõesUnidasem2000,5milmulheressãoanualmentemortasporparentesexatamenteporessesmotivos.6Essasexecuçõessãochamadasde“mortesporhonra”,pois seus perpetradores entendem-nas como formas de restabelecer ahonra da família, a qual foi perdida devido à atividade sexualextraconjugal, voluntária ou involuntária, de uma das mulheres dessafamília. Em 2003, no Paquistão, segundo um conselheiro do primeiro-ministrodopaís,1261mulheres forammortasdessamaneira. (Existeumconsensogeraldequeosnúmeroso iciaisocultamaverdadeiraextensãodadevastação.)7

Atéaqui, examinamos revoluções já indas.Neste capítulo, tratareidos

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tempos presentes e de uma prática de honra que precisa de urgentemudança.Paraentenderumhomicídioporquestãodehonra,ouqualquermundodahonra,precisamostentarentenderseuscódigos.Emboraexistaum padrão geral nas mortes por honra em diferentes culturas, é nasespeci icidades de um tempo e um espaço determinados que poderemosvermelhoroqueestáemquestão.Mas,comoveremos, tambémpodemosaprender algo com as histórias que já examinamos. Aqui, portanto,pretendo colocar nosso novo entendimento da honra a serviço de umaproposta para podermos avançar contra os assassinos por honra. Adespeitodoquedizaquela cínicamáxima francesa,toutcomprendre nemsempreétoutpardonner.

vidaemortedesamiasarwar

Em 1989, Ghulam Sarwar Khan Mohmand, um dos empresários mais

bem-sucedidosdePeshawar,capitaldaProvínciadaFronteiraNoroestedoPaquistão,deuumagrande festapelocasamentodesua ilhaSamia.Maisde mil convidados compareceram à comemoração, entre eles trêssecretários de Estado, um governador nomeado pelo governo federal egrandepartedaeliteempresarialdacidade.Onoivo,ImranSaleh,era ilhoda irmã de sua esposa. Era uma família pachto próspera e moderna.Sultana,aesposadeGhulamSarwarMohmand,eramédica,assimcomoosobrinho Imran.SamiaSarwar,mais tarde,estudoudireito, e sua irmã foiestudarmedicina.Em1998, opróprio Sarwar seria eleitonoprimeirodeseus doismandatos comopresidente da Câmarada Indústria e ComércioSarhaddePeshawar.8

Apesar desses inícios auspiciosos, o casamento não foi feliz. SamiaSarwar disse depois a seu advogado que o marido era extremamenteviolento, e os pais dela acabaram aceitando que o deixasse e voltasse amorar com eles em 1995, quando estava grávida do segundo ilho. O dr.Salehtelefonoualgumtempodepoisparadizerquenãoaqueriadevolta.Elanuncamaisoviu.Masseuspaisforamin lexíveis,eumdivórcioestavafora de cogitação. Segundo Samia, eles lhe disseram: “Aqui você pode tertudo o que quiser, menos o divórcio”. 9 A razão era simples: um divórcio

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abalaria aghairat, ahonrada família.10ComonaSicília, as consequênciaspráticas da perda da honra no norte do Paquistão incluíam a di iculdadeemarranjar casamentopara sua irmã e suasprimas, alémdeproblemassociaisparaospais,tiosetias.

Emalgummomentonosanosseguintes—comomaridoforadajogadafaziamuitotempo—,SamiaSarwar,aoqueparece,apaixonou-seporoutrohomem.Elaestudavadireitoecertamentesabiaquetinhaodireitolegaldepedirdivórciodeummaridoqueprimeirohaviaabusadodelaedepoisaabandonara. Em março de 1999, quando seus pais estavam em Meca,fazendoohadji, ela fugiuparaLahore. Foi aoúnico refúgioprivadode lápara mulheres desamparadas, Dastak, e combinou com a advogadapaquistanesadedireitoshumanosHinaJilaniquedesseinícioaoprocessodedivórciocontraomarido.

Nassemanasseguintes,osSarwaconvencerama ilhaeaadvogadadeque inalmente estavam dispostos a aceitar o divórcio, mostrando osdocumentos necessários a um importante político da oposição, quetransmitiuaboanotícia.Eassim,em6deabrilde1999,elaconcordouemencontrar amãe— Samia falou que preferia não tratar com o pai—noescritório da advogada. A mãe supostamente iria sozinha, mas chegouapoiando-senobraçodeumhomemfortedebarba.SegundoHinaJilani,asra.Sarwardissequeeraomotoristaequeprecisavadoamparodele,poisnãoconseguiacaminharsozinha.11

Depois que os dois entraram no escritório, apesar das objeções daadvogada, o motorista Habibur Rehman puxou uma arma e atirou nacabeça de Samia Sarwar.No pânico que se seguiu, o próprio Rehman foialvejado emortoporum segurança, e o tio de Samia, Yunus Sarwar, queestava esperando lá fora, sequestrou uma das assistentes paralegais doescritório, e saiu com ela e a mãe de Samia num táxi. A assistente dissedepois que a sra. Sarwar estava “calma e serena durante a saída,afastando-se da ilha assassinada como se a mulher mergulhada noprópriosanguefosseumaestranha”.12Infelizmente,noPaquistãoémelhornãodarouvidosaoconselhodeFrancaViolade“seguirseucoração”.

Todos os protagonistas desse drama erampaquistaneses importantes.Hina Jilani, um dos principais nomes entre os advogados de direitoshumanosnoPaquistão,divideseuescritóriodeadvocaciacomairmãAsma

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Jahangir, diretora da Comissão de Direitos Humanos do Paquistão erelatora especial da Comissão das Nações Unidas de Direitos HumanossobreExecuçõesExtrajudiciais,SumáriasouArbitrárias.(Constaqueadra.Jahangir teve de adiar uma viagem para uma reunião em Genebra paraajudar a encaminhar as consequências desse homicídio extrajudicial emseupróprio escritório.)O intermediárioque tinha examinadoos supostosdocumentosdodivórcioelevouasra.SarwaraconcordarcomoencontroeraAitzazAhsan, advogado ilustre e ex-ministroda Justiça, quena épocaeraolíderdaoposiçãonoSenado.

ComoSamiaSarwarexerciaseudireitolegaldepedirodivórcioquandofoi assassinada na frente de testemunhas, e como o homicídio, claro, éilegal no Paquistão, você esperaria uma condenação unânime. BenazirBhutto e vários líderes políticos progressistas do Paquistão realmente semanifestaramcontraoocorrido;nodiaseguinte,houveprotestospúblicosde organizações de direitos humanos em várias das principais cidadespaquistanesas.13 Mas, quando um integrante do Senado do Paquistãoapresentouumamoçãopara condenar a família, não teve a resposta queesperava.

Osenadoremquestão—IqbalHaider,advogadoeativistadosdireitoshumanosdoprogressistaPartidodoPovodoPaquistão—foicriticadoporseus colegas parlamentares da Província da Fronteira Noroeste,principalmentepormembrosdoPartidoNacionalAwami(pna),cujaforçapolítica deriva das áreas pachto do Paquistão, cuja capital é Peshawar,ondemoravamosSarwar.Eradeseesperarumadefesadastradiçõesdospachtosdahonradaqueladireção,salvopelofatodequeo pnanadatinhade tradicionalista: estava no extremo laico do espectro político doPaquistão, e sempre izeraoposição sistemática aoTalibãnaProvínciadaFronteira Noroeste. O senador Ajmal Khattak, que na época era opresidente do partido, é um importante intelectual e poeta pachto.Costumavater famade iguraprogressista, tendoapoiadorevolucionáriosde esquerda como Fidel Castro e Che Guevara. 14 Mesmo assim, Khattakdiscorreu sobre os ideais de honra pachtos aos colegas e defendeu asmortes por honra.15 Apenas quatro senadores apoiaram a moção, entreeles Aitzaz Ahsan, o senador que fora levado ao caso quando concordouemserointermediárioentreSamiaSarwaresuafamília.16

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Em Peshawar, houve indignação com a interferência de estrangeirosnosassuntosdeumafamílialocal:ahonrapachtotinhasidoafrontadapelaintromissãodeestranhos.Acâmaradecomérciocujopresidenteeraopaide Samia lançou um ataque aHina Jilani e Asma Jahangir, insistindo quefossem punidas pela “lei tribal e islâmica” por “enganar mulheres noPaquistãoecontribuirparaaimagemnegativadopaísnoexterior”.Várioschefes religiosos na Província da Fronteira Noroeste lançaram fatwasdeclarandoque as duasmulheres eram in iéis. 17Ninguém foi condenadopelo assassinato de Samia Sarwar, e seu pai continua a ser uma iguraimportanteemPeshawar.Emnovembrode2009,oministériodoComérciopaquistanês o nomeou para um comitê de conselheiros para um novoacordocomercialcomoAfeganistão.18

omododospachtos

Mais de 40 milhões de pachtos vivem no Paquistão e no Afeganistão,

concentrando-sebasicamentenasregiõesdefronteira.Elesseconsideramdescendentes de um mesmo ancestral e sua organização tribalcorresponde ao que os antropólogos chamam de sistema de “linhagemsegmentária”,emqueaspessoasagememsolidariedadecomosparentesmais próximos contra os primos mais distantes, segundo a fórmulaexpressa no provérbio beduíno: “Eu contra meus irmãos; eu e meusirmãos contra meus primos; eu, meus irmãos e meus primos contra omundo”. Quanto mais remoto o ancestral comum, maior o grupo,naturalmente; e o sistema de parentesco pachto possui muitos níveis deescalasquesãoimportantesnavidaprática.

Os quatro grupos tribais principais provêm, segundo a tradição, dosdescendentes diretos de Qais Abdur Rashid, o homem que todos ospachtostomamcomoantepassado.Aoqueconsta,Qais foicontemporâneode Maomé, tendo ido a Meca e trazido o islamismo ao Afeganistão. Asvárias subdivisões imediatas desses quatro grupos normalmenteapresentam uma genealogia hipotética que remonta a um dosdescendentesdeQaisnasprimeirasgerações.Nabasedahierarquia icaomenornúcleofamiliar,consistindonohomemeseusdescendentesdosexo

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masculino,suasesposas,seusfilhosenetos.Na área rural, os pachtos vivem tradicionalmente da agricultura em

pequenos vilarejos de poucos habitantes, que muitas vezes pertencem aalgumaspoucasfamílias.Nocampoenacidade,elesseguemumcódigodevidachamadoPashtunwali,ou “omododospachtos”.Comomuitosoutroscódigos tribais, ele dá grande ênfase a manter a honra com lealdade àfamília, coragem na batalha, hospitalidade aos visitantes, retaliação dosinsultos, vingançadasofensas contra apessoaoumembrosda família outribo.19 O bomnome do indivíduo e o bomnome de sua família ou tribo,num vocabulário rico de termos para a honra, alguns tomados do árabe,ocupamocernedoPashtunwali.

Essas ideias, que se desenvolveram numa cultural tribal rural, sãotransferidas para a vida urbana contemporânea. Depois de três décadasdeguerrasnoAfeganistão—começandocoma invasão soviéticano inalde1979econtinuandocomaguerralideradapelosEstadosUnidoscontrao Talibã—, muitos pachtos no Paquistão guardam uma forte identidadecomospachtosdooutroladodafronteira.Eapresençadeestrangeiros—militares e civis—, na evidente intenção de remodelar a vida da região,gerou uma reação nacionalista plenamente previsível. Insiste-semuito naameaça que representa a pressão estrangeira para o Pashtunwali. NoPaquistão, considera-se que essa ameaça também está presente nasatividadesdos gruposdosdireitoshumanos, que fazemcampanhaspelosdireitos dasmulheres e se opõem a práticas como o crime de honra. Emdecorrência disso, tem-se uma situação emque as críticas ao assassinatode Samia Sarwar,mesmopor ativistas paquistaneses como sua advogadaHina Jilani, geram uma torrente de reclamações contra a interferênciaocidental, em cujo cerne está a insistência de que os ocidentais sãobayghairat,ouseja,carentesdesensodehonra.20

SamiaSarwarerapachto,masseuassassinatopodiateracontecidoemqualquer lugar do Paquistão. Entre os falantes de urdu, sindi e panjabi,bemcomonasoutrasminoriasdopaís,existemtradiçõessemelhantes.NalínguadeSind,aprovínciaondeseencontraKarachi,acapital inanceiraemaior cidade do Paquistão, o termokaro signi ica literalmente “homempreto”, e seu feminino é kari. Essas palavras designam pessoas quemantêm relações sexuais fora do casamento. Assim, karo-kari é um dos

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nomes mais comuns para se referir às mortes por honra, que, como eudisse, ocorrem em todo o país, embora o equivalente empachto seja tor-tora.21

Aqui estamos diante de um paradoxo conhecido. O Paquistão é umarepública islâmica, criadacomopaísparaosmuçulmanosda Índiadepoisdos con litos comunais anteriores à independência indiana. E existe umconsenso quase geral entre os intérpretes quali icados do islã de que ocrimedehonraécontrárioaoislamismo.Comoodueloemseuapogeu,quecontrariava a lei e a religiãona Inglaterra cristã, amorte por questão dehonra no Paquistão não só é ilegal, como também contraria as tradiçõesreligiosas o iciais de um país que tem um credo estabelecido.Evidentemente,oislamismo,comooutrasreligiõesmundiais,adotoutraçosparticulares nas várias sociedades em que se implantou. No espírito deseusseguidores,oPashtunwaliéplenamentecompatívelcomoislamismo;na verdade, tende-se a pensar que o próprio islã é um dos caminhospachtos,poiscreemqueseuprimeiroancestral trouxea fédeMeca.Mas,comoeudisse,existeumconsensonomundoislâmicodequenemoCorãonem a suna (os costumes do Profeta) e tampouco o hadith (asinterpretaçõesabalizadasdasunaquefornecemfontesadicionaisparaosensinamentos)aprovamoassassinatodemulheresporhomensdentrodaprópriafamília.

Nãohádúvidasdeque isso éplenamente entendidonoPaquistão, emparticular. Nos verões de 2001 e 2002, Amir H. Jafri, estudantepaquistanês de pós-graduação que fazia uma tese sobre comunicações,realizouumasériedeentrevistaseminglêseurduparasituaramortedeSamia Sarwar e a reação a ela em seu contexto culturalmais amplo. Elerelata uma conversa fascinante com um mulá chamado Abad numamesquitaemIslamabad.Emprimeiro lugar,essemestrereligiosocercadopelosdiscípulosadmiteque, aovermulheresquenãoestejam totalmentecobertaspelovéu, “tenhovontadedecortá-lasempedacinhosoucasá-lascom alguém”. Quando Jafri, desconcertado, pergunta se isso estaria deacordo com o islamismo, o mulá enrubesce e ica em silêncio por uminstante.Entãoolhaosdiscípulosaoredoremurmura:“Oislãnãopermite,masàsvezesvocêprecisadaroexemplo”.

Essa entrevista foi a única ocasião em dois verões de pesquisa no

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Paquistãoemqueodr. Jafriconseguiuencontrarumestudiosodealgumaseitaislâmicaque“aprovavaabertamente”algocomoamorteporquestãodehonra.22 A realidade foi bem sintetizada por um taxista pachto, numaconversa sobre a educação feminina com uma passageira instruída: “Eudisse: ‘Babaji, no islã, mulheres e homens precisam receber educação, éobrigatório para eles’. Ele respondeu: ‘Sim, mas quem se importa com oislãquandosetratadaghairat?’”.23

O assassinato de Samia Sarwar não foi o icialmente aprovado pornenhuma autoridade externa à família. Mas na Província da FronteiraNoroeste as mortes por honra costumam resultar das decisões tomadaspelasjirgas,ostribunaistradicionaisquetêmamplaautoridadepráticanasáreastribais,ondeosdecretosdogovernopaquistanêsmalvigoram.Cercade duas semanas antes do assassinato de Samia Sarwar, uma jovem dedezesseisanoscomde iciênciamental chamadaLal JamillaMandokhel foiexecutada depois de um “julgamento” na jirga de sua aldeia. Tinha sidoviolentadaváriasvezes,duranteduasnoites seguidas,porumhomemdeumpovoadovizinho.Quandoelavoltouàaldeia,osanciõesdacomunidadedecidiramque ela havia trazidodesonrapara seupovo. Ela foi arrastadaparaforadecasaeexecutadaatiros,enquantoamultidãoassistia. 24Sejaou não compatível com o islamismo, em muitos lugares a morte porquestãodehonrafazpartedomododospachtos.

asleisdopaquistão

O sistema jurídico moderno do Paquistão teve início como herança

colonial.MuhammadAli Jinnah, fundadordoPaquistão,eraadvogadocomformaçãobritânicaeprovavelmenteerafavorávelaumaconstituiçãolaica.MasJinnahmorreu logodepoisquea InglaterrareconheceuapartilhadaÍndia em 1947, concedendo independência à Índia e ao Paquistão.Inicialmente, o Paquistão consistia em duas partes geogra icamenteisoladas, uma a oeste e outra em Bengala, bem distante a leste, muitodiferente em termos culturais. Levou quase uma década até que aAssembleia Constituinte, que na prática funcionou como o parlamento doPaquistão naquele período, chegasse a uma constituição, e quando isso

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ocorreu, em 1956, era a constituição de uma república islâmica. Nasdécadas seguintes, durante uma sucessão de golpes de Estado e umaguerraemqueasduasmetadesdoPaquistãose transformaramnosdoisEstadosindependentesdoPaquistão(aoeste)edeBangladesh(aleste),alei fundamental do Paquistão sempre foi o icialmente islâmica. AConstituição atual, rati icada em 1973, retoma o preâmbulo dasconstituições anteriores, a irmando que a lei fundamental do país visa a“estabelecerumaordem”naqual:

os muçulmanos poderão organizar suas vidas nas esferas individuais e coletivas emconformidade com os ensinamentos e as exigências do islã, conforme expostos no CorãoSagradoenasuna.25

AConstituiçãotambémcriavaumTribunalFederalCharia,compostode

juristas estudiosos muçulmanos tradicionais, os ulemás, e por juízesregularesdoSupremoTribunal,compoderesparareveramplasáreasdalegislaçãoerevogá-lasquando“repugnaremaoislã”.

Em1979,odirigentemilitardoPaquistão,ogeneralZia-ul-Haq,levouaquestão adiante, lançando os chamadosDecretosHudood, como parte deumapolíticadeaumentara islamização.Entreoutrascoisas, asnovas leisvisavam a compatibilizar as práticas paquistanesas com a concepção dogeneral sobre a charia, especialmente em relação à zina, sexo fora docasamento. Um dos efeitos foi implementar dispositivos da charia quereduziam signi icativamente as proteções jurídicas às mulheres. Porexemplo,umamulherque izesseumadenúnciadeestuproagorateriadeapresentar quatro homens adultos como testemunhas do ato. Se não oizesse, o acusado deveria ser inocentado. Mas, na medida em que amulher,aodenunciaroestupro,admitiratertidorelaçõessexuaisforadocasamento,agoraestavasujeita,porsuaprópriadenúncia,àspenalidadesd azina: isso signi icava que podia ser condenada a cem chicotadas ouapedrejadaatéamorteporadultério.

É importante frisar que, nos poucos casos em que os tribunaisinferioresaprovaramsentençasnessascircunstâncias,oSupremoTribunalCharia as reviu e anulou.MasnãohámuitasdúvidasdequeosDecretosHudoodtornaramasdenúnciasdeestupromuitomaisarriscadasparaas

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mulheresdoPaquistão.O sucessor do general Zia, o presidente Ghulam Ishaq Khan, foi além

com a implementação de um conceito do direito islâmico da charia,promulgando o Decreto sobre Qisas [retaliação] eDiyat [indenização],substituindo grandes partes do código penal que o Paquistão tinhaherdado do direito consuetudinário inglês. Com essas mudanças, ohomicídioeoutraslesõescorporaismenosgravespassaramasertratadoscomocrimescontraapessoaesuafamília,enãocontraoEstado.Comessedecreto, as vítimas ou os herdeiros teriamdireito a pedir qisas, e assimoofensor icaria sujeito a um dano equivalente ao sofrido pela vítima.Portanto, no caso de homicídio, os herdeiros da vítima poderiam pedir amortedoofensor.

Ora,asuraAlMa’idadoCorão,deondederivaessapartedacharia,diznoversículo45:

Destaformaordenamosaeles:“Vidaporvida,olhoporolho,narizpornariz,orelhapororelha,dentepordente,elesõesiguaisporiguais”.Mas,sealguémabrandaaretaliaçãoporcaridade,éumatodereparaçãoasimesmo.

Eassimodecretopermitequeavítimaouosherdeirosrecorramaqisas

e aceitem uma indenização por meio da chamadadiyat. O processo peloqualavítimaouosherdeirosnegociamumacordosechama“composição”.

Nemtodosconcordamqueessaéamaneiracorretade implementaracharia. A Comissão Nacional do Estatuto das Mulheres do Paquistão, emparticular,sustentaqueainterpretaçãoadequadadatradiçãodáodireitoà pena daqisas não só à vítima ou aos seus herdeiros, mas também aoEstado. Se estivessem certos, então não só a família, mas também ogoverno teriaderenunciaràpena. IssopermitiriaqueoEstadodecidissepunir o ofensor comoqual osherdeirosda vítima já teriam feito acordo,caso houvesse uma razão jurídica para isso. Os membros da Comissãoicamatentosaofatodequeosherdeirosdavítima,emcasosdecrimedehonra,muito frequentemente são os perpetradores do crime. De fato, nocaso Sarwar, consta que o irmão de Samia, como herdeiro, abriumão dapenalidadequecaberiaaseuspais.26

ODecretodaQisasedaDiyatdeveriaresultaremdoisgrandesavanços

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na situação jurídica das mulheres no Paquistão. Primeiro, ele vinhasubstituir uma tradição do direito inglês que admitia a alegação de“provocação grave e súbita”, a qual por muito tempo havia sidointerpretada no Paquistão como motivo para que os tribunaisdemonstrassem especial leniência com os que matavam em nome dahonra. Infelizmente, o Supremo Tribunal do Paquistão não quis levar emconta essa mudança. Numa decisão de 1995, o tribunal declarou que ainstânciaabaixodele tinhaerradoemignoraraalegaçãodoréudequeocrime“foipraticadosobprovocaçãograveesúbita,aoencontrarofalecidoem posição comprometedora com sua esposa nas primeiras horas damanhã”,edeterminouasolturadoassassino.27

Numa segundamudança importante, a lei proibia explicitamente umadasformastradicionaisdediyat,queconsistianofatodequeumamulherda família do assassino fosse entregue a umhomemda família da vítimacomo forma de “substituição”. Infelizmente, parece que essa práticacontinuaavigorar,especialmenteemzonasruraisafastadasdafiscalizaçãodo governo. E até mesmo uma lei de 2005 que criminaliza essescasamentos parece não ter tido grande impacto. Esses fatos devem noslembrar de que as mudanças na lei, por si sós, pouco contribuem paramelhorar a situação, a menos que sejam efetivamente implementadas, enão é provável que isso ocorra sem umamudança nas atitudes públicas.Comonocasododuelo,corrigiraleiéapenasumcomeço.28

OsprocessosmaispolêmicosocorridossobosDecretosHudoodcriaramum tumulto dentro e fora do Paquistão. Por exemplo, quando Sa ia Bibi,umacriadacegadetrezeanosdeidade,foiestupradapelo ilhodopatrãono Punjab, em 1983, ele foi absolvido porque ela não pôde identi icá-lopeloscritériosdacharia;mas,comoelaerasolteiraeestavagrávida,haviaprovasincontestáveisdezina.O juizcondenouameninagrávidaaapenastrintachibatadas—porcompaixão,eledisse,poiselaeracega.(Naesteiradosprotestos,oSupremoTribunalChariaacabourevendoerevertendoadecisão.) Naeem Shakir, advogado paquistanês, frisou com razão que “oprocesso de Sa ia Bibi trouxe vergonha a toda a nação quando a mídiamundialanunciouanotícia”desuacondenação.29

Este é o ponto, claro. Não há dúvida de que uma estratégia quepodemos chamar de “envergonhamento coletivo” tem exercido pressão

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sobreogovernodoPaquistãoemgeralesobresuasautoridadespolíticasem particular, para abrandar os abusos mais escancarados dos direitoshumanosdasmulheres.Em2004,oParlamentodoPaquistãoaprovouumalei alterando o código penal, deixando explícito que asmortes por honraeram crimes e estabelecendo os prazosmínimos das sentenças para taisdelitos.Masessa leinãoalterouo fatodequeasmortesporhonraaindapodem ter uma “composição” com adiyat. Então, em15 de novembro de2006, depois de muitos anos de pressão dos ativistas nacionais eestrangeiros dos direitos humanos, o Parlamento do Paquistão alterou osDecretos Hudood com uma Lei de Proteção às Mulheres, eliminando aexigência de quatro testemunhas do sexo masculino. (Como era de seprever,aleinãoagradouaosfundamentalistas.)30

Masomesmosistemajurídiconormalmentetrataofatodeohomicídioter se dado em nome da honra como motivo para comutar a sentençacapital; em muitos casos, os assassinos por honra e seus cúmplicescontinuam a não responder a processo.31 Em agosto de 2008, no remotovilarejo de Baba Kot no Baluquistão, três moças que decidiram se casarcontra a vontade de suas famílias foram condenadas à morte por umconselho de anciões. Quando duas parentesmais velhas das condenadasprotestaram, elas mesmas foram acrescentadas à lista de execuções. Oscincocorpos foramatiradosemumavalasemqualquer indicação.Nãosesabesetodasestavamrealmentemortasquandoforamsepultadas.

Numacenaque faz lembrarosdebatessobreocasodeSamiaSarwar,quase uma década antes, o senador Israrullah Zehri, representante daregião, ergueu-se no Senado do Paquistão em defesa dessas “tradiçõesseculares”.32 (Isso me lembra a história — talvez apócrifa — dofuncionáriocolonialbritânicoqueproibiuqueumafamíliaindianadeixasseque uma viúva fosse queimada na pira fúnebre do marido. Os indianosprotestaram:“Mas,senhor,énossocostume”.Ofuncionáriorespondeu:“Eénossocostumeexecutarassassinos”.)Assim,éprecisoquecontinuemosapelos à honra nacional feitos pelos ativistas paquistaneses dos direitoshumanos,somadosaosprotestosdosestrangeiroscontraessetratamento.

Uma reação dentro do Paquistão é reclamar, como fez a câmara docomércio de Peshawar, que pessoas como Hina Jilani, que chamam aatenção para esses problemas, prejudicam o bom nome do país. Mas,

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quando uma nação faz algo muito errado, mostrar o fato aos olhos dacomunidadedasnaçõeséexatamenteoquedeveriafazeropatriotaquesepreocupa com a justiça e a honra nacional. Beena Sarwar, a artista,jornalista e documentarista paquistanesa, diz àqueles que gostariam queos conterrâneos não protestassem que “precisam se perguntar quem éresponsável: os que perpetuam a violência ou os que são suas vítimas.Oque nos faria uma nação melhor e mais forte: lidar com o problema ouenterrá-losobaareia?”.33

questõesvivas

Será que podemos aprender alguma coisa sobre as perspectivas de

mudança no Paquistão a partir das três revoluções morais que jáexaminamos, em que a mudança das ideias sobre honra levou associedades na direção do progressomoral? O duelo, o enfaixamento dospéseaescravidãoatlântica foramabandonadoshámuitasgerações.Mas,como vimos, o que surgiu não foi tanto uma mudança nas convicçõesmorais, e sim uma revolução nas práticas— em que a honra teve papelcentral. O que havia de novo não eram os argumentos morais, e sim adisposiçãoemviverdeacordocomeles.

A honra, evidentemente, opera de maneiras diferentes nessas trêsrevoluções morais, e assim sabemos agora que não é apenas ummecanismo que liga a honra e o progresso moral. Mas comecemosobservando algumas características comuns a essas revoluções moraismuitodiversasentresi.

Em primeiro lugar, a própria prática imoral antiga dependia de umconjuntodecódigosdehonra.Issoéevidentenoduelo.Maslembrequeaamarraçãodospésera,naorigem,umapráticadehonra, garantindonãosóaposiçãosocial,mas tambémacastidadedasmulheresdaelitehan;elembre ainda que a escravidão das fazendas no mundo atlântico não seresumiaaumainstituiçãoeconômica—umafontedemãodeobra—,masconstituía também um sistema de honra, em que o trabalho braçal eraatribuído a uma raça desonrada, e a honra dos brancos,mesmo damaisbaixacondiçãosocial,erareforçadaporsuaidentidadecomomembrosde

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umaraçaque, legalmente,nãopodiaserescravizada.Assim,umelementocentralemtodososcasoséque,paraqueapráticadeixassedeexistir,oscódigos de honra tinham de mudar. O duelo teve de deixar de ser umaformadesustentarapretensãodehonradocavalheiro;aamarraçãodospés teve de deixar de ser um símbolo de posição elevada; o trabalho e aascendência africana tiveram de ser dissociados da desonra (este últimoprocessoaindaestáemcurso).

Umasegundacaracterísticacomuméqueocódigodehonraenfrentoucontestaçõesmoraisereligiosasmuitoantesdarevolução.

E, inalmente,ostrêscasostêmemcomumque,ao inaldarevolução,ahonra foiarregimentadaparao ladodamoral.Oduelose tornouridículo,objeto de zombaria e até fonte de vergonha. Indivíduos que antesprocuravam a honra atando os pés das ilhas agora mostravam honrarecusando-se a enfaixá-los. E os britânicos extraíram um senso de honranacional do papel que sua nação desempenhou para pôr im a um vastosistematricontinentaldetrabalhoforçado.

Mas, como eu disse, os casos também apresentam diferençasimportantes.Paraentendê-las,lembreinicialmentealgoqueeuaponteinocapítulo 2: a identidade é importante para a honra de duas maneirasdiferentes.Primeiro,umcódigodehonramoldasuasopçõesestabelecendoo que uma pessoa com sua identidade deve fazer. Ele determina umconjunto de práticas de honra. Segundo, um código permite que vocêparticipe da honra derivada das realizações de outras pessoas, com asquaisvocêcompartilhaumaidentidade.

Essa segunda ligação entre identidade e honra—partilhar o respeitoatravésda identidade—nãodesempenhounenhumpapel importantenoimdoduelo.Os cavalheirosna Inglaterranão tentarampersuadiroutroscavalheirosaabandonarodueloporpensaremqueoduelotraziadesonraa todos os cavalheiros ingleses. Eles mudaram suas práticas de honraporqueestasnãofuncionavammais,empartedevidoàdemocratizaçãodomundodahonraemmeadosdoséculoxixnaInglaterra,etambémporque,nessemomento, a pretensãodos cavalheiros aodireitodeusufruir dessainstituição especí ica despertava não o respeito, mas o escárnio. Elesestavam, portanto, reagindo a transformações em torno deles. Nãoabandonaramahonra.Oque izeram foi rede inir seus códigosdehonra

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paraadaptá-losàsnovascondiçõessociais.Mas os letrados chineses contrários à amarração dos pés realmente

tentaram convencer seus colegas a abandonar a prática, pois pensavamque ela desonraria a todos eles. Esta é, então, umamaneira de rever aspráticas de honra, e na verdade várias normas de muitas espécies. Aspessoas de uma determinada identidade (chinesa, neste caso) podemdecidirconvencertodososquepartilhamdessamesmaidentidadeaparardefazeralgumacoisa,porqueissodesonraatodoseles.Podemtambémsesentir motivados por sua honra coletiva a querer que pessoas de outraidentidade interrompam alguma prática, como as classes trabalhadorasbritânicas que quiseram que os senhores escravocratas coloniais e osEstados Unidos acabassem com a escravidão. As classes trabalhadorasantiescravistas, que jamais se envolveram na escravidão, queriam queaquelaspessoasacabassemcomaescravidãoporqueimplicavaemsiumafalta de respeito, uma fonte de desonra para elas. A mesmademocratização queminou o duelo também solapou a escravidão. Assim,nestesúltimoscasoshaviaumsensodehonracoletiva,fossemchinesesoutrabalhadores, que ajudou no avanço dos movimentos, mas por doismecanismosmuitodiferentes.

Este é apenas um conjunto de observações históricas abstratas. Massuponhaquevocêqueiraextrairalgumasliçõesparaamorteporquestãodehonra, que, comooduelo, a amarraçãodospés e a escravidão, é umaprática imoral.Umaviapara amudança, que aprendemos coma sagadoenfaixamento dos pés, consistia em persuadir as pessoas de que suaprática trazia uma desonra coletiva, perante um mundo da honra maisamplo.Estaéaestratégiadoenvergonhamentocoletivo,queacabamosdeveremfuncionamentonoPaquistão.Esseenvergonhamento teveêxitonaChinaenoestágio inicialdoantiescravismobritânico,quando formouummovimentopatrióticodeclassemédiaemdefesadahonrabritânica.

Vamos lembrar como ele funciona. As pessoas chamam a atenção deseusconterrâneosparaoprejuízocausadoporumapráticadehonraàsuareputação nacional no estrangeiro. A estratégia exige uma aplicaçãocuidadosa, porque pode produzir uma reação nacionalista defensiva, emque a prática sob crítica é adotada e defendida com vigor renovadojustamente porque estrangeiros sem compreensão se declararam

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contrários a ela. Esta é uma das razões pelas quais é importante que ascontribuições dos estrangeiros não demonstrem incompreensão. Insistirque o crime de honra é contrário ao islamismo— que a vergonha recainãosobreo islã,esimsobreoPaquistãoesuaincapacidadedeimplantaros mesmos ideais islâmicos que, segundo a própria constituição do país,estão no cerne do projeto nacional — é, por esta razão, de importânciafundamental. Na luta contra a morte por questão de honra, o islã é umaliado.

A morte por questão de honra, evidentemente, não é um problemarestritoaoPaquistão.Ela tambémseencontraempaísesvizinhos, comooAfeganistão e a Índia. Na Turquia, onde leis contra ela foram de fatoimplantadas,apráticaaindaécomum,sobretudoentreoscurdos,emseusenclaves dentro de cidades como Ancara e Istambul, em outras cidadesondeeles constituemmaioriaenasáreas rurais.Asmulheres sãomortasou marcadas com cicatrizes causadas por ácido no mundo árabe — doEgitoàArábiaSaudita,daJordâniaedeterritóriospalestinosaoIraque—emnomedahonra.Todassãosociedadesmuçulmanasondeohomicídioéilegal,mesmoquea lei àsvezes sejademasiado lenientequandosealegadefesadahonra.

QuandoosemigrantesdesseslocaisseradicamnaEuropaenaAméricadoNorte, levamconsigoasnormasdamorteporquestãodehonra;comoas famílias imigrantes enfrentam o desa io de se adaptar a novassociedadescomideiasmuitodiferentessobreoqueseesperadacondutaedo tratamento a ser dado às jovens, a ameaça da morte por questão dehonra tem se tornado uma das maneiras pelas quais os pais e irmãoscontrolam as ilhas ou irmãs que resistem aos alegados costumes do larancestral.

Em todos esses lugares, o problema é proteger as mulheres dessesriscos, revendo ao mesmo tempo os códigos que são a fonte da ameaça.Nem todos os perpetradores desses crimes são muçulmanos: há casosentreossiquestantonosuldaÁsiaquantoemcomunidadesimigrantes,eentre os cristãos na Palestina. Mas com grande frequência são mesmomuçulmanos;então,nestecaso,podemoscomeçaraconversaassinalandoqueelesestãotransgredindoedesonrandosuareligião.

Mas seria tolice ignorar o fato de que existem outros aspectos do

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tratamento dado à sexualidade na lei e na sociedade de um país como oPaquistãoqueviolamosdireitoshumanose,aomesmotempo,têmsólidasraízes nas tradições muçulmanas. Na questão do crime de honra, nãoprecisamos argumentar contra o islamismo tradicional, mas em outrasquestões não há como evitar essa di iculdade. É possível interpretar aexigência do Profeta em ter quatro testemunhas do sexo masculino (ouuma con issão) como prova dezina enquanto uma forma de criar umcritériotãorigorosoparaasprovasquemuitoraramenteseráatendido.E,ameuver,éumahipóteseplausívelqueoProfetatenhaestabelecidoessescritérios rigorosospara tentaramenizaraspenalidadesmais severasdoscódigos árabes anteriores de honra sexual. A inal, salvo uma únicaexceção,todososcapítulosdoCorãocomeçamsereferindoaDeuscomo“omaiscompassivo,omaismisericordioso”.

No entanto, as sociedades muçulmanas, com base em interpretaçõesnãoforçadasdepassagensdoCorãoedahadith,têmapedrejadohomensemulheres até amorte por causa de adultério. Se uma república islâmicapretende reconhecer os direitos humanos de seus cidadãos, terá derepudiar esse elemento da tradição muçulmana. Mas sabemos que asreligiõesencontrammeiosdepraticartaiscoisas.ABíbliahebraicadiz,emLevítico20,10:

Eo homemque comete adultério comamulher de outrohomem, ou o que comete adultériocomamulherdeseuvizinho,oadúlteroeaadúlteracertamenteserãocondenadosàmorte.

A lei mosaica, como a charia, via o apedrejamento como o método

adequado para executar essa sentença. Mas nenhuma seita cristã oujudaica dominante na atualidade quer que um Estado implante essapolítica.34

mudandoosfundamentosdahonra

Oenvergonhamentocoletivo,paraobterresultados,requerumaaliança

denacionais e estrangeiros, como vimos especialmente no caso da China.Ao tentar formar essa aliança, podemos nos basear na analogia com a

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posiçãoantiescravistadaclassetrabalhadora,quemobilizouumgrupodepessoas levando-as a ver que uma prática de honra em outro lugar domundo, e uma prática na qual não estavam propriamente envolvidas,acarretava desrespeito a elas. Chamarei essa estratégia de “ iliaçãosimbólica”: você consegue envolver pessoas na luta contra uma práticafazendo-as ver que essa prática pressupõe que elas mesmas sãodesonradas.Eumadasprincipaismaneirasdemobilizarosestrangeiroséexatamente essa estratégia. Pois entre os aliadosmais importantes entreaqueles que lutam contra o crime de honra no Paquistão (e em outroslugares) estão as organizações feministas internacionais, que em largamedida vieram a se envolver com a questão porque entendem que aprática dokaro-kari trata as mulheres como pessoas menos dignas derespeito — menos honradas — do que os homens. Certamente elas sepreocupamcomoproblemacomoumaquestãodejustiça,mastambémsesentem consideravelmentemotivadas pelo signi icado simbólico do crimedehonracomoumaexpressãodasubordinaçãodasmulheres.Éóbvioqueissoseremeteàhonradasmulheresdetodoomundoere leteaconvicçãodequeelasnãotêmdireitoaumtipoderespeitomuitosimplesebásico.

Apráticadamorteporquestãodehonra—que,emboratambémsejateoricamente aplicável aos homens, na imensamaioria das vezes volta-secontra as mulheres— serve não só para aterrorizar muitas mulheres eobrigá-las a aceitar abusos conjugais, como também para oferecer aoshomensumaformadeselivrarimpunementedemulheresinconvenientes.Os anais judiciários do Paquistão estão repletos de casos nos quais ohomicídio comumaparece sobodisfarcedeumcrimedehonra. 35 Assim,umamulherestásemprevulnerávelaameaçasdomarido,dosirmãos,dospais e atémesmodos ilhos. Elespodemdizer: faça o quenósqueremos,senãovamosacusá-ladezinaevamosmatá-la,eprovavelmentesairemoslivresdessa.SamiaSarwarqueriasedivorciardomarido—doqualtinhase separado muitos anos antes — para se casar com um homem queamava.Tinhaodireitodefazê-lopelamoralvigente,pelaleiislâmicaepelalegislaçãopaquistanesa.Mas,comoodivórciopoderiaarranharahonradafamília, ela foi abatida a tiros em público pelo assassino levado por suamãe. E, o que é pior, a lagrante conivência da família com o crimerealmenteresgatouahonrafamiliar.Emboraoassassinotenhamorridona

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confusãoapósamortedeSamia,édeduvidarqueelefosseexecutadocasosobrevivesse.36OspolíticosnoSenadodoPaquistãoelogiaramosensodehonrada família,quali icandoSarwar(umamulhercasadade29anosdeidade) debachi, criança, e descrevendo o refúgio das mulheresdesamparadas onde ela tinha se abrigado como um “antro deprostituição”.37Procuraramenvergonharamortaeprodigalizaramhonraàsuafamília.

As paquistanesas comuns sempre trabalharam, na agricultura ou emserviços domésticos. Atualmente, tem aumentado o número de mulheresdeposiçãomaisaltaquetrabalham.AssimcomoSamiaSarwaresuamãe,essas mulheres estão se quali icando pro issionalmente e contribuindoparaaeconomianacional.Tambémtêmdesenvolvidoohábitodefalarempúblicoe serouvidas.Mulheres comoaprimeira-ministraBenazirBhuttoouailustreadvogadadeSamiaSarwar,HinaJilani,sópuderamcontribuirpara a vida pública paquistanesa porque se libertaram de um código dehonra que idealiza a invisibilidade pública feminina. Emulheres com taisexperiências não icarão caladas enquanto suas irmãs são assassinadas,como mostraram os protestos generalizados logo após o assassinato deSamia Sarwar. Enquanto as mulheres das áreas rurais do Paquistãogeralmentenãocontamcomorganizaçõeslocaisquelhesdeemapoioenãotêm para onde escapar, as mulheres das cidades podem se refugiar emabrigos como Dastak e receber o apoio de organizações feministas e dedireitos humanos.38 Nessas condições, os códigos de honra usados paramanterasmulheres“emseulugar”têmsofridopressõescadavezmaiores.

Aqui a história do im do duelo, quando um mundo da honra seconvenceudequeseuscódigosdehonranãofuncionavammais,podenosensinar algumas coisas. Houve uma revisão das práticas de honra,passando daquelas de uma nobreza militar para os novos códigos maiscivis do cavalheiro moderno de Newman, que se adequava melhor aomundopresente.Certamentemuitospaquistaneses teriamdi iculdadeemimaginar novas concepções deghairat que considerassem o verdadeirorespeito pelas mulheres como elemento central para a honra masculina,assimcomoseriadifícilconcebernaInglaterradocomeçodoséculoxixumcódigocavalheirescocentradoemevitardanosaossemelhantes,ou,ainda,naChinade1880,umcódigomatrimonialquecolocasseemdesvantagema

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mulher de pés atados. Mas essas novas concepções já começam a serimaginadas. Após o assassinato de Samia Sarwar, Asma Jahangirperguntou: “Que tipo de honra é disparar contra uma mulherdesarmada?”.39O lemanaspáginasdo sitewww.nohonor.orgna internet,que se anuncia com a frase “Árabes e muçulmanos contra crimes ‘dehonra’”, aponta exatamente para o cerne da questão: não há honra nocrimedehonra.

Em todas as revoluções anteriores, o poder motivador da honramanteve-se inconteste. Pelo visto, a maneira correta de avançar não éargumentar contra a honra, mas trabalhar para mudar os fundamentosdela,alterandoassimoscódigoscomquesedistribui.AsmaJahangirfezapergunta certa. E, como ela própria ressaltou, Asma é apenas uma entreincontáveis paquistanesas que izeram amesma pergunta. No capítulo 1,citei uma pergunta semelhante de William Godwin sobre o duelo. Comovocê há de lembrar, ele perguntou se não seriamais corajoso resistir doque ceder à pressão social pelo duelo. Godwin tentava colocar a honracontra o duelo, assim como Asma Jahangir e seus companheiros deativismotentamcolocá-lacontraokaro-kari.

A violência contra as mulheres é um problema que permeia todo oplaneta. A morte por questão de honra é apenas uma de suas váriasmodalidades.Masacreditoquecabereformarahonrareferenteatodasasformas de violência com discriminação sexual; e, em particular, todasociedade precisa manter códigos em que o ataque a uma mulher — oataqueaqualquerpessoa—desuafamíliasejafontededesonraemotivodevergonha.

ahonracomoproblemaesolução

Os trêscasosmuitodiferentesque jáexaminamosaquimostramcomo

as mudanças nos códigos de honra podem remodelar a honra,mobilizando-a em favor do bem. Com o duelo, as revisões nas noções dehonra cavalheiresca na Inglaterra demeados do século xix geraramumanova cultura em que a ameaça central à honra do cavalheiro — apossibilidadedeperderorespeitoesofrervergonha—deixoudeseruma

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razãodedueloepassouaserumaconsideraçãocontraoduelo.NaChina,na virada do século passado, a honra das mulheres da elite culturalchinesaexigiaqueelasatassemospés.Masasmudançasnapercepçãodahonra nacional entre os letrados levaram à mobilização de um tipo dehonra — a honra nacional — contra o antigo sistema de honraaristocráticacujoscódigosexigiamoenfaixamentodospés.Osintelectuaisque desejavam que o país encontrasse um lugar no mundo modernoremodelaramaculturadahonra,deformaque,noprazodeumageração,os pés atados passaram a ser fonte não mais de honra, e sim deconstrangimentoeatédevergonha.No inaldoséculoxix,umafamíliadaelite chinesa han teria encontrado grande di iculdade em conseguir ummarido apropriadoparauma jovem compésnormais; nos anos1930, namaioria dos lugares, acontecia o contrário. E, ao encontrar uma honraprópria comopovo trabalhador, ooperariado inglêsdemeadosdo séculoxixaliou-secontraaculturadaescravidão,queassociavaaliberdade(eapelebranca)àhonra,eaescravidão(eapelenegra)àdesonra.

Há mais uma coisa surpreendente em nossos três exemplos: foramrevoluções. Aconteceram, como pudemos ver com o im do enfaixamentodospés,comumarapidezespantosa.Omovimentopelaaboliçãodotrá iconegreiro começou no decênio de 1780 e se impôs nos anos 1790,precisamente nas duas décadas em que o secular trá ico inglês deescravos atingiu seu auge.40 Em termos históricos, cada um dessesmomentos faz lembrar uma daquelas experiências de laboratório nocolegial,emqueumcristalseespalharapidamentenum luidoapartirdeumasementeminúscula.Oapogeudoduelotambémnãoestálongedesuasentença de morte. Observando a morte por questão de honra, práticamais antiga do que o islamismo e ainda existente em grandes áreas daÁfrica e da Ásia, cabe lembrar que esses outros costumes antigos quepareciamimensos,permanenteseirremovíveissedissolveramcomopapelqueimado.

No inal deSedotta e abbandonata , don Vincenzo Califano sofre umenfarte com a tensão de organizar o casamento da ilha mais nova, querelutava em aceitar Peppino. Enquanto agoniza, obtém do advogado e domédicoapromessadequenãodirãonadaaninguémantesdeterminaracerimônia. Nos momentos inais do ilme, vemos uma resignada e

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indiferente Agnese no altar, e vemos também sua irmã enquanto lhecortamos cabelose se torna freira—umaesposadeCristo.A seguir,nacena inal, apareceumbustodedonVincenzosobresuasepultura, comainscrição: “Honra e Família”. Três Ascalone renderam seus sacri ícios àhonra. Mas o ilme, mesmo triste, é uma comédia, uma sátira. Era umre lexo dos processos na cultura italiana que permitiram a Franca Violaresistiràculturadahonraemsuasociedade.Eoqueo ilmemostranãoéapenasque essaspráticas são erradas—criando casamentos semamor,frustrandosonhos,gerandosofrimentoseatéamorte—,masquetambémsãoabsurdas,ridículas,efazemdaSicíliamotivodechacota.Solventurrisutabulae.Ocasofoiabsolvidocomrisadas.

A lição que extraio é de que podemos ter mais êxito em libertar asmulheres paquistanesas da morte em nome da honra se trabalharmospara remodelar essa honra, em vez de simplesmente pregar a moral. Avergonha,eàsvezesatémesmooridículocuidadosamentecalibrado,podeser a ferramenta de que necessitamos. Não que os apelos à moral— àjustiça, aos direitos humanos — não se apliquem. Pois o objetivo doativismo contra os homicídios por honra deve ser o de incentivar maispaquistaneses a perceber que o país cai em desgraça ao permitir essesmales. A essência errada desses crimes é fundamental para explicar porque eles são vergonhosos, assim comoa essência erradada escravidão edo enfaixamento dos pés foi fundamental para os argumentos quemostravamquetaispráticaseramfontesdevergonhaparaaInglaterraeaChina. A esperança que vejo é que, quando chegar a hora, haverá umarevolução:umagrandemudançanumbreveespaçodetempo.

Comovimos,asmulheres—eoshomens—noPaquistãojáperguntam:comoumhomemquemataumamulherdaprópriafamíliapodealegarqueé honrado? Os intelectuais modernizadores já fazem a mesma perguntasobreamorteporquestãodehonraqueKangYouweifaziaapropósitodoenfaixamento dos pés: como podemos ser respeitados se fazemos umacoisa terrível? E fazem essa pergunta não só porque o mundo da honradeles se ampliou e passou a incluir o restante da humanidade, mastambém porque desejam que sua nação seja digna de respeito a seuspróprios olhos.Deve-se voltar a honra contra o crimedehonra, tal comoela se voltou contra o duelo, contra o enfaixamento dos pés, contra a

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escravidão. Continue lembrando às pessoas, de todas asmaneiras, que amorte por questão de honra é imoral, ilegal, irracional, irreligiosa. Masreceio que a admissão dessas verdades, por si só, não levará a umacoerência entre o que as pessoas sabem e o que fazem. A morte porquestãodehonrasófindaráquandoforconsideradaumadesonra.

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5.Liçõeselegados

Oquenossospaischamavamdearquétipodahonraera,narealidade,apenasumadesuas formas.Davamumnomegenéricoaoqueerasomenteumaespécie.Portanto,pode-seencontrarhonranosséculosdemocráticosenostemposaristocráticos.Masnãoserádifícilmostrarque,naqueles,elaapresentaoutraface.

AlexisdeTocqueville,DemocracianaAmérica1

honra:elementosbásicos

Percorremos muitas épocas e latitudes na pesquisa sobre o papel da

honra em três revoluções morais do passado, visitando Wellington eWinchilsea em Londres, Kang Youwei em Beijing, Ben Franklin naFiladél ia e Josiah Wedgwood em Stoke-on-Trent; e terminamos noPaquistãomoderno,ondepodemosteraesperançadeque,embreve,umarevolução aconteça. Agora chegamos na etapa em que, como prometi noinício, podemos expor na forma de uma teoria básica o que aprendemossobreahonra.

Eis, então, o quadro: ter honra signi ica ter direito ao respeito. Emdecorrênciadisso,sevocêquisersaberseumasociedadesepreocupacomahonra, primeiro procure ver se essas pessoas pensamque alguém temdireitoasertratadocomrespeito.Apróximacoisaéverseessedireitoaorespeito é dado com base num conjunto de normas compartilhadas, umcódigo.Umcódigodehonradizcomopessoasdecertasidentidadespodemganhardireito ao respeito, comopodemperdê-lo e, ainda, comoo fatodetereperderahonramudaamaneiracomoelasdevemsertratadas.

Você pode mostrar muitos tipos de respeito pelas pessoas. Cada tiposupõedaropesoapropriado,aotratarmoscomaspessoas,aalgumfatooufatosreferentesaelas.Umaespéciederespeitoimportanteenvolvetermos

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umaconsideração positiva por alguém devido a seu êxito em atender adeterminados critérios. A isso podemos chamar deestima. Estimamospessoas que são boas em qualquer tipo de coisa, desde saltar deparaquedasaescreverpoesia.Àsvezes,porém,aconsideraçãonãoderivado êxito em relação a um critério, e é este segundo tipo de respeito queimporta para a honra. Trata-se do respeito por reconhecimento . Devemosrespeito por reconhecimento a policiais em serviço (desde que cumpramos códigos pro issionais pertinentes). Encontre uma sociedade com umcódigo que conceda direito a um desses tipos de respeito e você teráencontradoahonra.

Pessoas como o duque de Wellington e o conde de Winchilsea, quecompartilhamuma identidade e ummundodehonra, sãopares de honra .Geralmente,têmdireitoaumrespeitomútuo,quesebaseianãonaestima,masnoreconhecimentorecíprocodaposiçãoquecompartilham.Osparesde honra são iguais num sentido importante. Esse tipo de honra entreparesémuitodiferentedahonracompetitiva,quevocêobtémdestacando-seemalgumacoisa,atendendoalgumcritériomelhordoqueosoutros.Ahonra de Aquiles, que lhe era devida por ser um grande guerreiro, eracompetitiva. A honra competitiva é intrinsecamente hierárquica, poisclassificaaspessoassegundoumcritério.

Um código de honra exige um comportamento especí ico das pessoascom determinadas identidades. Logo, o que se tem muito amiúde são:identidades diferentes, exigências diferentes. É frequente, por exemplo,que os códigos façam exigências distintas a homens e mulheres. Mas aspessoasquerespeitamummesmocódigopertencemaummesmomundodahonra, quer compartilhemounãouma identidade.O que elas têmemcomum é o fato de aceitarem as exigências que lhes faz o código emvirtudedesuasidentidadeseesperaremqueosoutrosfaçamomesmo.OPashtunwaliincluiumcomplexocódigoexatamentedessetipo,talcomooscódigosqueregiamosletradoschinesesouoscavalheirosingleses.

Tanto a estima quanto o respeito por reconhecimento podem serdistribuídos por códigos de honra sem qualquer referência à moral. Orespeitoporreconhecimentoaqueoscavalheiros ingleses tinhamdireito,porexemplo,nãoeraumaquestãodeméritomoral.Eaestimaquetêmosartistas de sucesso re lete, sem dúvida, o atendimento a critérios de

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excelência, mas não a critérios de excelênciamoral. Os códigos de honratambémpodemexigirqueaspessoasdedeterminadasidentidadesfaçamcoisasquesãoefetivamenteimorais:osassassinatosporhonrasãoosmaisóbvios.

Todavia, um tipo de honra é o direito ao respeito que você conquistafazendooqueamoralexige;outro tipoéodireitoàestimaquevocê temquando faz além do que exige amoral. Esta é a honra de santosmoraiscomoMadreTeresa.Finalmente,aprópriamoralexigequereconheçamosque todoserhumano tem, sendo todasasoutrascoisas iguais,umdireitofundamentalaorespeito,quechamamosdedignidade.Adignidadetambéméumaformadehonra,eseucódigofazpartedamoral.

Seja qual for a maneira como chegou à sua honra — pelo êxito quelevou à estima ou pelo reconhecimento de algum fato saliente que lheconcerne—,vocêpodeperdê-lacasodeixedeatenderaocódigo.Sevocêseatémaumcódigodehonra,nãosóreagirácomrespeitoàquelesqueocumprem, como também reagirá com desprezo àqueles que não ocumprem.Assim,sevocêatenderaoscritérios,terárespeitoporsimesmo;sefalhar,sentirádesprezoporsimesmo,ouseja,vergonha.Sealguémnãosentevergonhaao falhar(ou,pelomenos,ao falhar fragorosamente), issomostraquenãoseatémaocódigo.Dizemosqueelanãotemvergonha.

O que você deve sentir quando se atém ao código émenos simples. Oorgulho é o oposto da vergonha, e você pode supor que seria a reaçãocorreta da pessoa frente à própria honra. Mas alguns códigos de honraexigem que os honrados sejammodestos. Todavia, emmuitas sociedadesos códigos de honra ditam que as pessoas de certas identidadesreivindiquemestimaquandoamerecemeinsistamquandonãoarecebem.

Ahonra, comovimos, não é apenasuma coisa individual. Emprimeirolugar,comotambémjávimos,asexigênciasdocódigodehonradependemdesuaidentidade,oquesigni icaqueelefazasmesmasexigênciasatodosaqueles que compartilham a mesma identidade. Mas, em segundo lugar,vocêpodecompartilharahonradepessoasque têmamesma identidadeque você, sentindo orgulho ou respeito por si próprio quando elas agembem(evergonhaquandoagemmal)etambémsendotratadopelosoutroscomrespeitooudesprezo.Eissomesmoquevocênãotenhafeitonada.

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umolharretrospectivo

Muitas coisas nessa imagem da vida de honra parecem muito

antiquadas,nãoémesmo?Hojeemdia,supõe-sequeenxergamosatravésdesses sucedâneos de um ideal e vemos que a moral propriamente ditaconsistenajustiça,noconsentimento,nosdireitosouemnãocausardanos;equeo sexoea classeaquevocêpertence,dequalquer forma,não têmnenhumain luênciaparadeterminaroqueamoralexigedevocê.Ahonradeve ser exilada para alguma Santa Helena da iloso ia, icando acontemplar suas dragonasmurchas e sua espada outrora reluzente a secorroernoarsalino.

Obviamentenãoéessemeupontodevista.Nesteúltimocapítulo,queroargumentar que a honra, sobretudo quando expurgada de seuspreconceitosdecasta,sexoecongêneres,éespecialmenteadequadaparaconverter os sentimentos morais privados em normas públicas. Suacapacidadedeuniropúblicoeoprivadoficaevidentenamaneiracomoelaconduziu—naInglaterra,naChinaeagoranoPaquistão—asconvicçõesmorais individuais à criação de associações e ao planejamento deassembleias, petições e campanhas públicas. Todas elas, comocorretamente frisarão os historiadores e os sociólogos, são fundamentaispara as vitórias inais demovimentos políticos desse gênero. Esta é umarazãopelaqualaindaprecisamosdahonra:elapodenosajudarafazerummundomelhor.

Masossistemasdehonranãonosajudamapenasa fazerobempelosoutros; podemnos ajudar na busca de nosso próprio bem. Se os códigossão corretos, uma vida honrada será uma vida genuinamente digna derespeito. Ummundo da honra como esse dará respeito às pessoas e aosgruposqueomereçam.Orespeitoseráumadasrecompensasdeumavidadignadeservividaefortaleceráorespeitoprópriodaspessoasquevivembem.Nummundoemquesedárespeitoaosquevivembem,maispessoaspoderão viver bem; a cultura do respeito lhes dará sustentação. Assim, ahonranãoéumvestígiodecadentedeumaordempré-moderna;paranós,ela é o que sempre foi: ummecanismomovido pelo diálogo entre nossasautoconcepções e a consideração dos outros, que pode nos impelir a

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assumir seriamente nossas responsabilidades num mundo quecompartilhamos.Umapessoa com integridade sepreocuparáemviverdeacordo com seus ideais. Se consegue, devemos respeito a ela. Maspreocupar-se em agir corretamente não equivale a preocupar-se em serdignoderespeito.Éapreocupaçãocomorespeitoquefazaligaçãoentreoviver bem e nosso lugar num mundo social. A honra torna pública aintegridade.

odesafiomoral

Mas se é com o avanço moral que nos preocupamos, por que tanto

alvoroço em torno da honra? A inal, sabemos que as coisas podem saircertoouerradocomigualfacilidade.NocasodeWinchilsea,nãosóeraumdescréditoparaele,comotambémeraerradoqueacusasseWellingtondetrapaça,deixandodeladoaquestãodahonra.Assim,vocêpoderiapensarqueWellingtonquisumaretrataçãoparareti icaramentira,enãoporqueestivesse com a honra ofendida. Eis então o desa io que amoral lança àhonra: se as pessoas devem fazer o certo porque é certo—um ideal davidamoral que foi claramente expresso pela primeira vez por ImmanuelKant—,osistemaaoqualessesnobresestavamreagindoéquestionável,pois,mesmoqueosorientea fazeroqueporacasoé certo, farãoo certopelasrazõeserradas.Seoerradoémentirounãoapresentarasdesculpasdevidas,porquenãodizer issopuraesimplesmente?Paraque invocarahonra?

Veja um caso muito simples. Suponha que eu seja uma pessoa comsenso de honra. E suponha também que os códigos de meu mundo dahonra concedam o direito ao respeito àqueles que tratam os outros comhonestidade, algo que, evidentemente, a moral também exige. Se soutentado a mentir, enganar ou roubar, terei um leque de razões pararesistir à tentação. A razão mais básica é que isso seria simplesmenteerrado.Seeumeabstenhoporessarazão,mostrooqueKantchamavadeboa vontade: faço o que é certo porque é certo. E, como está dito naprimeira frase de suaFundamentação da meta ísica dos costumes , Kantconsideravaqueumavontadeboa é o único bem irrestrito que existe no

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mundo.2Como tenho senso de honra, também quero preservarmeu direito ao

respeito. Desse modo, tenho mais uma razão para me abster, isto é,preservar minha honra. Quero ser digno de respeito, quer efetivamenteme respeitem ou não. Assim, o dever e a honra me fornecem, ambos,razõesquenãotêmnadaavercomasreaçõesefetivasdequalqueroutrapessoa a mim — razões que, neste sentido, são internas. Mas tambémexistem razões externas para fazer o que é certo— razões que, como omedo da punição num tribunal, dependem do que aconteceria se aspessoas descobrissem que iz algo errado. Como pessoa honrada,preocupo-me não só em ser digno de respeito, mas também em serefetivamente respeitado; gosto de ser respeitado e, além disso, se aspessoasdeixaremdemerespeitar,nãovãomaismetratartãobem.

Uma das razões pelas quais Kant achava que o melhor era agir pelabondade de nossa vontade era que, se tentássemos agir assim etivéssemos êxito, geralmente não seria por acaso que izemos o que eracerto.Poroutrolado,alguémqueageapenasporconsideraçõesdeordemexterna, como acabei demencionar, não terá nenhuma razão em fazer acoisa certa, amenos que pense que poderá ser descoberto. Note, porém,queno casoque imaginei—emqueo código conferehonraàquelesquefazemoqueémoralmentecerto—,apreocupaçãocomahonraaparece,nesteaspecto,comoumavontadeboa.Sepossoobterhonrafazendooqueé moralmente certo, então o motivo da honra estará atuanteindependentementedascontingênciasdasituaçãoexterna.Assim,sevocêdá valor à boa vontade pela razão de Kant, poderia dar valor à honraexatamentepelamesmarazão,desdequeseuscódigosassociemahonraafazeroqueécerto.Sualigaçãocomaaçãocorretanãoseriacontingente,esiminterna.

Não é esta, penso, a posição de Kant. Logo a seguir na suaFundamentação, ao considerar explicitamente a “inclinação pela honra”comomotivo,eledizqueelanãoédignadomaisaltorespeito,mesmoquecoincidacomodevereointeressecomum.Issoporque,aseuver,aúnicacoisa que merece pleno respeito é fazer a coisa certa porque é a coisacertaasefazer;comoàsvezeselediz,éagirpordever.

Ora, o que Kant aborda aqui é um caso em que a honra e o dever

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coincidemglücklicherweise, isto é, por um feliz acaso. Assim, ele não estáconsiderandoapossibilidadequeacabeideesboçardeum tipodehonracuja ligação com a moralnão é uma questão de acaso. Então talvez eleconcordasse comigo que, no caso especí ico de um código de honraplenamentemoralizado,queconcederespeitoapenasaocumprimentododever moral, a honra é uma motivação tão valiosa quanto o dever. Aconcepção de Wilberforce correspondia a algo semelhante a isso, comovimos, e tanto Kant quanto Wilberforce eram modelos de pietismoprotestante.

Mas o próprio Kant diz que devemos “elogiar e encorajar” as açõescorretasmotivadaspelahonra.3Parecemuitosensato.Afinal,seaspessoasachamdi ícil(eclaroqueacham)agirpordever,eisentãoumacausaparagarantir que elas tenham outras razões para fazer o que é certo. Paraatender a este desa io moral, não precisamos de formas de honra quesejamplenamentemoralizadas,associandoodireitoaorespeitoapenasaocumprimentododevermoral.Precisamosédecódigosdehonraquesejamcompatíveis comamoral, oqueéumaexigênciamuitomenor.EKant,defato,comoosoutrospensadoresdoIluminismoqueabordeinocapítulo1,sempreescreve comose ahonra—pelomenoso tipo certodehonra—fosseumaboacoisa.

Masofatodeahonramotivarboasaçõesnãofazdelaumarazãoparaagir bem, não é? Para Kant, a questão das razões está associada a algorealmente grandioso: a liberdade — minha concepção de mim mesmocomo pessoa agindo livremente. A liberdade não é uma questão de serindeterminado;éumaquestãodeserdeterminadoporrazões.Assim, serlivreéseverrespondendoarazõesparaagir.Asrazõessãointeligíveis,enão só para a pessoa em questão. É por isso que não podemosreinterpretaras razõesqueguiamnossasescolhascomosimples re lexosdo que eventualmente queremos. Quando, como dizemos, “capto” umarazão,elafazsentidoparamimcomobaseparafazer(oupensar,ousentir)algumacoisa.Arazãomeajudaaentenderporquedevofazeraquilo.Esevocê quiser me entender, precisa captar que isso também fornece umabase. Ver suas escolhas como decorrentes de simples desejos é não terabsolutamente nenhuma razão efetiva. Não admira que a palavra latinaparaasimplesvontade—arbitrium—tenharesultadoemnossapalavra

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“arbitrário”. A percepção de Kant foi de que a vontade livre não é umavontade desgovernada; pelo contrário, é uma vontade governada porrazões. E uma vontade que é governada por razões precisa tomar essasrazõescomoprovenientesdealgoexterioraela.

Aqui sustento contra Kant que a honra é mais um dos apelos que arazão faz a nós; é um apelo que depende de nosso reconhecimento dosmúltiploscritériosdiferentespressupostosporaquelescódigosdehonra.Equando aqueles critérios fazem sentido para nós— quando habitamos omesmomundo da honra—, entendemos igualmente que aqueles que osatendemmerecemnosso respeito.Àsvezes, comovimos,o critério seráamoral.Masmuitasvezesnão.

oproblemadahierarquia

Às vezes somos motivados por um senso de justiça ou por uma

preocupaçãoemfazeracoisacerta,querosoutrospercebamounão.Mascom frequência somos motivados (outambém somos motivados) pelasexpectativas da reação das pessoas ao que fazemos. Aqueles que gostamdenós,porexemplo,vãonostratarmelhor,eéporissoquequeremosquegostemdenós.Estassãorazões,quepodemoschamarde“instrumentais”,para nos importar com as atitudes dos outros em relação a nós.Mas, demodogeral, nós, seres humanos, reagimos ao respeito e aodesprezonãopor termos razões instrumentais para isso, mas porque não temos comoevitá-lo. É um fato inato quequeremos ser respeitados e, pelomenos emparte,queremosissocomoalgoemsi.

Recentemente, alguns psicólogos sociais têm proposto taxonomias dossentimentos morais fundamentais, os sentimentos que, como dizem, são“recrutados” pelas culturas para sustentar suas normas. O levantamentoincluireaçõesparaevitaroualiviardanos,bemcomoreaçõesrelacionadascoma justiça e a reciprocidade, a pureza e a contaminação, as fronteirasentregruposinternoseexternos,e,ainda,oquechamamde“reverência”e “elevação”.4 Mas também reconhecem uma disposição humanafundamental emrelaçãoàhierarquia e ao respeito, sendoeste entendidocomo algo derivado da hierarquia. John Locke, escrevendo em 1692,

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colocou a questão de forma concisa: “O desprezo ou a falta do devidorespeito,percebidonosolhares,palavrasougestos[...]dequemquerqueprovenha, sempre traz desconforto; pois ninguém suporta contente sesentir menosprezado”. 5 É razoável supor que as emoções e práticas dahonra — a estima, o desprezo, o respeito, a deferência — tenham sedesenvolvido com a hierarquia nos primeiros grupos humanos. A honra,nessesentido,seriaatávica?

Esta não é uma hipótese que podemos descartar de imediato. Umdosproblemas com o código britânico da honra cavalheiresca era que eledistribuía o respeito de formas hierárquicas incompatíveis com a moral.Sem dúvida, o código exigia que os cavalheiros desa iassem em duelooutros cavalheiros que lhes negavam o respeito que lhes cabia comocavalheiros; mas não fazia tal exigência se o ofensor fosse das ordensinferiores. Quando um homem das ordens inferiores o tratasse comdesrespeito,areaçãoadequadaerafustigá-locomochicotedecavalo.Aquio chicote demontaria era simbólico. A distinção entre os cavaleiros e osoutros no sistema feudal era uma distinção entre os que combatiammontados e os que combatiam a pé. O chicote demontaria simbolizava aposição do cavaleiro. A palavra chivalry [cavalaria ou cavalheirismo] vemdapalavrafrancesaparacavaleiro, chevalier,alguémquemontaumcheval,umcavalo. (AindahojenaFrança,ahonrariamaisaltaé serum chevalierdaLegiãodeHonra.)

O código cavalheiresco realmente exigia certas formas decomportamento—deveraoreieaopaís,cortesia,eassimpordiante.Maso código, além das normas de conduta, também abrangiameros fatos denascença:vocêganhavapontossefossebem-nascido.Eraumacontinuaçãodessa característica do critério que conferia ao príncipe Hal o direito àhonra. De vez em quando, no séculoxviii, podia-se admitir que alguémsuperasse suas origens — que um homem fosse, segundo aquelaexpressão condescendente, um “cavalheiro por natureza”. Mas haviamenosdisposiçãoemadmitirqueumhomemoumulherdeberço—umadamaouumcavalheirodenascimento—pudesseser,digamosassim,umplebeu por natureza. (Embora, é claro, muitas jovens tenham aprendidonos romances que um integrante das classes superiores pode secomportarcomoumbruto.)

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A luta para romper a íntima ligação entre honra e berço é quase tãoantigaquantoaprópria ligação.Lembremo-nosdeHorácio— ilhodeumescravoalforriado—dirigindo-seaMecenas,opatronodasartesmaisricoemaisnobrenaRomadeAugusto,cercade2milanosatrás.Mecenasdiz:“Não importa quem sejam seus pais, enquanto você for digno”; masHoráciodeploraqueamaioriadosromanosnãopensadessamaneira. 6 Opoeta se queixa que qualquer pretendente a um cargo público deveresponder “de que pai descende e se é desonrado pela obscuridade damãe”.7 Essa é a característicado antigo sistemadehonraque rejeitamos,conforme passamos a descon iar da ideia de que alguns merecem umtratamento melhor (ou pior) devido a identidades que não escolheram.Pensa-seque suaposição social—ou classe, se preferir—nãodeve lheconferir nenhum direito moral, tampouco sua raça, seu sexo ou suaorientaçãosexual.8

Certamente,nemsempreorespeitoestáligadoàhierarquia.Orespeitoporreconhecimento,comovocêhádelembrar,étrataralguémdamaneiraapropriada à luzdos fatos referentes àpessoa, e geralmente éumdevermoral.Porexemplo,odevermoraldenãocausarsofrimentodesnecessárioaos outros deriva de um respeito que lhes é devido por causa de suacapacidade de sofrer. Mesmo o código britânico de honra cavalheiresca,como vimos, incorporava uma forma de respeito por reconhecimento: nopressuposto de fundo da pertença a uma mesma classe, ele insistia emcertaformadeparidadesocial.Oduelocomqueiniciamosestelivrotrouxeacampoumveneradoheróideguerraeumparpouco ilustre,unindo-oscomoiguais.

Noentanto,issonãosigni icanegarqueorespeitoporavaliação,sendocomparativo, realmente leva a alguma espécie de hierarquia, emboradevamos ter claro que isso não precisa necessariamente colidir com amoral. Quando alguém faz algo moralmente heroico, podemos dever-lhenãosóorespeitonormalporreconhecimento,mastambémorespeitoporavaliação, e a estima que lhe concedemos vem impregnada de umsentimento moral. Ao mesmo tempo, grande parte da estima queconcedemos—grandepartedahonraqueprestamos—envolvecritériosque não têm absolutamente nada a ver com a moral. Quando honramosgrandesestudiosos,artistasouatletas,geralmenteoqueavaliamosnãosão

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suas virtudes morais. (Na verdade, hoje em dia estamos muitoacostumados a nos decepcionar moralmente com nossos heróisacadêmicos, artísticos, políticos e esportivos.) Entretanto, nas sociedadesmeritocráticas, a estima frequentemente re lete critérios razoáveis deavaliação.Eunãodeveria estimarumganhadordoPrêmioNobel, alguémque recebeu de minha universidade um título honorário por suas açõesilantrópicas, uma pessoa laureado com a Legião de Honra ou com amedalhadehonradoCongresso?

“Todomundo ganhou, etodos devemreceberprêmios”, diz oDodôemAlicenoPaísdasMaravilhas.MasnãovivemosnoPaísdasMaravilhas.Nãopodemosdeixardereconhecerhierarquiasemáreascomoosesportesouos estudos: levar esses campos a sério é simplesmente reconhecer quevocêpodesesairmelhoroupiorneles.Emdecorrênciadisso,umsistemade estima devidamente organizado pode apoiar motivos que devemosquerer apoiar. E, como os mecanismos psicológicos subjacentes à estimafuncionarãoquer vocêqueiraounão, aúnicapolítica sensata éorganizá-los,namedidadopossível,paraquesejamcompatíveiscomobjetivosquepodemosaprovar.

Emrespostaaoceticismoprotestanteemrelaçãoàestima(dotipoquevimosemWilberforce),Humefoiin lexível:“Umdesejodefama,reputaçãooubomnomejuntoaosoutrosestátãolongedesercensurávelquepareceinseparáveldavirtude,dogênio,dacapacidadeedeumadisposiçãonobreougenerosa”. 9 Por “virtude”, ele se refere à excelênciamoral, claro;maspor“gênio”eleserefereaoutrostiposdeexcelência.Aqui,oargumentodeHumeéocontráriodoqueciteinocapítulo1.Lá, seuargumentoeraquevocêpodeterhonrasemvirtude—ahonrado“devasso”emdueloémá;aquieleinsistequeédi ícilsustentaraexcelênciasemoapoioqueahonraconfereàsuaprática.Honranãoémoral;masapsicologiaqueelamobilizacertamentepodeserpostaaserviçodarealizaçãohumana.

asededesangue

Assim,ahonrapodeatenderaodesa iomoraletambémpodeselivrar

da dependência de formas hierárquicas moralmente ilegítimas. Mas ela

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enfrenta um terceiro desa io que quero examinar e que parecedesagradavelmente ligado à violência.O duelo, o enfaixamentodos pés, aescravidão, o assassinato em nome da honra: todos estão associados aformas de vida em que a honra é sustentada pelo combate ou pelaimposição da dor. Talvez, nos primórdios da história de nossa espécie,emoções relacionadas com a honra tenham ajudado a estruturar gruposquepoderiamcaçar,proteger-secontraospredadoresedividiratarefadecriaros ilhos.Aaçãoemgrupoeracoordenadaporcritériosdedeferênciano julgamento edeobediênciano comportamento.A cultura tomouessesmecanismos básicos e lhes deu outros usos. Mas muitas vezes essesmecanismos para manter a ordem falham, e então nós, humanos, eespecialmenteoshomens,lutamos.

De fato somos uma espécie tremendamente violenta: lutamos dentrodos grupos, muitas vezes até a morte; e também nos organizamos emgrupo para lutar contra outros, com uma frequência maior do que agrandemaioriadasoutras espécies. Lutamospor alimento, sexo epoder;mas também por honra. Em busca da honra, as pessoas despendemrecursose,maisespecialmenteoshomens,colocamavidaemrisco.Issosóseassentariaemnóscomotendênciahereditáriaseoscustostrouxessembene íciosquecompensassem.Sejacomofor,elesprovavelmenteexplicampor que nossa preocupação com a hierarquia— e nossa capacidade deincluiranóseaosoutrosdentrodela—étãoaguçada.

Assim, inevitavelmente, asmudançashistóricasque levaramao imdoduelo, da escravidão e do enfaixamento dos pés alteraram a honra, masnãoadestruíram.Comovimos,cadaumadessasmudanças faziapartedeumarevoluçãomaisdemoradaemaisabrangentenossentimentosmorais,tendocomometareduziropapeldaclasse,daraçaedosexonade iniçãodahierarquia.Essasmudançassociaismodi icaramosigni icadodahonra,masnão extinguiram todas as hierarquias, visto quepermitemdistinçõesbaseadasparticularmentenomérito.Pelocontrário,elasvisavamamudaros padrões, a ajustar os critérios com os quais as pessoas são avaliadas.Masoutroprojeto social fundamental foidomesticara sedede sanguedahonra.

Essaé,defato,umadasfaçanhasnotáveisdarevoluçãomoralquepôsim ao duelo na Inglaterra. Ela removeu um tipo de apelo rotineiro à

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violência,amansandoasdisputasacercadahonra.(Aquihácertaironia,jáque os próprios códigos dos duelos tinham sido outrora um avançomoralizador: substituíram uma cultura da Itália renascentista em que osjovens buscavam sua honra em rixas desenfreadas, como aquela emqueRomeu mata Teobaldo na peça de Shakespeare.) O cardeal Newman, nadiscussãoqueciteimaisacima,sempre insistiunagentilezadohomem—sua descrição do ideal, que se estende por várias páginas, é uma leiturafascinante. O cavalheiro de Newman não apenas evita in ligir sofrimento,como também “presta atençãoa toda companhia; é terno comomodesto,gentil comodistante, indulgente comoabsurdo;pondera comquemestáfalando,evitaalusões imprópriasoutemasquepossamirritar;raramentesedestacanaconversa,enuncaéenfadonho”.

E um pouco adiante, como que censurando deliberadamente (emborademaneira implícita)osduelistasdageraçãoanterior, o cardeal escreve:“Ele é sensato demais para se sentir afrontado com insultos, ocupadodemais para lembrar injúrias e indolente demais para ter maldade”. 10Desdeo“Homemdesentimento”deMackenzieeSterne,no inaldoséculoxviii,atéocavalheirodeNewman,emmeadosdaeravitoriana,tem-seumcorpo argumentativo em desenvolvimento, na literatura e na ensaísticamoral, que visa a trocar amasculinidade irritadiça do campo de batalha,ciosadahonramarcial,pelacivilidademaisamistosadasaladevisitas.

Mas a domesticação da honra cavalheiresca pessoal não eliminou atentação de buscar a honra coletiva com a espada e a arma de fogo.QuandoNewmanescrevia,britânicossaíamparaumimpérioemexpansão,imbuídosdaleituradaspeçashistóricasdeShakespeareoudeadaptaçõesdaMorted’Arthur , comnoçõesdehonracommaisdequinhentosanosdeexistência. O séculoxx começou com uma guerra que trouxe umamortandade indizível e cujos objetivos ninguém é capaz de lembrar. AtémesmoRupertBrooke,umjovemesensívelpoeta inglêsqueconsiderariaodueloridículo,celebroucommemorávelvigoressedesperdícioinsensatodevidashumanas:

Soprem,clarins,soprem!Trouxeram-nos,emnossacarência,Santidade,tantotempoausente,eAmoreDor.AHonraretornou,comorei,àterra,

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Easeussúditospagourégiosoldo;EaNobrezavoltaapercorrernossoscaminhos;Eentramosnapossedenossaherança.11

Os que treinam nossas Forças Armadas alegam que a honramilitar é

essencial para motivar e civilizar a condução da guerra. Conformesustentareiadiante, sinto-me inclinadoaacreditarneles.Masoproblema,claro,équesentimentoscomoosdeRupertBrooke—equalalma,mesmomedianamente sensível, não sente a tentação de responder ao chamadodaquelesclarins?—nosdispõemaindamaisairparaaguerra.

Sem dúvida seria utópico esperar que a sociedade internacional sejacapaz, num futuro previsível, de elaborar modos de administrardivergênciasquetornemaameaçadaguerraalgoobsoleto.EseoExércitoé um mal necessário, a vida dos soldados pro issionais é uma daquelasinstânciasemqueaindasentimosnecessidadedealgosimilaràduradouraculturadahonramarcial,ahonradopríncipeHal. 12 Contudo,precisamosmantê-la em seu lugar, que é o campo de batalha, e não a condução dapolíticaexterna.

aestimaeaéticaprofissional

Como vimos, uma espécie básica de respeito por reconhecimento é

agora algo que julgamos ser um direito devido a todos, sob a forma dedignidade humana. Mas isso não signi ica que não tenhamos diferentesformasderespeitoporpessoasdeidentidadesespecí icas.Sãoexatamenteessesdireitosespecí icosaorespeitoqueconcedemosaospadresduranteamissa, aos gerentes no trabalho, aos policiais em serviço, aos juízes notribunal e a muitos outros funcionários públicos cumprindo suasobrigações.Nessescasos,muitasvezesnossorespeitoassumea formadeuma espécie de deferência determinada pelo contexto: no tribunal,dirigimo-nos ao juiz como “Meritíssimo”, e nãoo criticamos comamesmafranqueza que poderíamos manifestar numa conversa à mesa do jantar,casoelecometesseumerrojudicial.

Umadasconsequênciasdademocratizaçãodenossaculturaéquenão

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esperamos que as pessoas mostrem esse tipo de deferência a seusconcidadãos fora do contexto em que desempenham seus papéisespecí icos. Em formasde vida socialmais antigas emenosdemocráticas,os homens podiam esperar deferência das mulheres; as classessuperiores,podiamesperá-ladasclassesinferiores;osbrancos,dosnegros—epodiamesperaressadeferênciaatodomomentoeemtodolugar.Issocriava mundos sociais onde a experiência das formas mais positivas dereconhecimentoestavavetadaagrandepartedapopulaçãohumana.

Mas, quando se trata de sustentar e disciplinar esses papéis sociaisespecí icos, o respeito por avaliação — a estima — desempenha umafunção essencial. Ele ajuda a manter normas de conduta rigorosas. Comefeito, como apontam Geoffrey Brennan e Philip Pettit, a estima, comomaneirademoldarnossocomportamento,époliciadaportodosnomundoda honra. A razão disso é simples: as pessoas num mundo da honraautomaticamenteveemcomrespeitoaquelesqueatendemaseuscódigoseveemcomdesprezoaquelesqueostransgridem.Comoessasreaçõessãoautomáticas, é extremamente barato manter esse sistema. A única coisaque ele exige de nós é que reajamos da maneira como já somosnaturalmentepropensosareagir.

Suponha, inversamente, que você queira alcançar os mesmos efeitosusandoomecanismoformalda lei.Entãovocêteriadedarnovospoderesde controle e decisão a determinadas pessoas, o que gera novaspreocupações.Vocêdepararia comavelhapergunta latina: Quis custodietipsos custodes? Quem guardará os guardiões? Um aspecto atraente daeconomia da estima é que todos nós somos seus guardiões. Nenhumindivíduoconcentraospoderesdeaplicarosincentivosdaestima,talcomofaz um policial quando prende alguém ou um juiz quando decide umasentença.13

Considere o código da honra militar. Ele vale para os indivíduosenquanto soldados (ou fuzileiros, o iciais... en im, abrange diversasidentidades)e,naturalmente, comoagorasabemos,enquantoamericanos,ingleses ou paquistaneses; e, ainda que os soldados possam sentirvergonhaouorgulhoquandoseuregimentooupelotãosesaimaloubem,o que lhes importa fundamentalmente é que devem seguir os códigos dehonradosmilitares.

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Vale a pena indagar por que temos necessidade dessa honra. A inal,poderíamosusarapenasa leiparaconduzirnossosexércitos;adisciplinamilitar usa com facilidade as mais variadas espécies de punições. E osmercenários podem ter a motivação do dinheiro. Então, por que essasformas comuns de regulação social — o mercado e a lei — não sãosu icientes para gerir um exército, tal como são su icientes para gerir,digamos,outrasfunçõesestataiscomoamanutençãodasestradas?

Bem,antesdetudo,essasoutrasformasderegulaçãoexigemvigilância.Se podemos pagar a você uma grati icação adicional ou puni-lo por suasinfrações, alguém tem que ser capaz de descobrir o que você andoufazendo. Mas, no calor da batalha, tudo ica encoberto pelas nuvens daguerra. Se o objetivo de um soldado era apenas ganhar um bônus ouescapar da prisão, não teria incentivo para se comportar bem no exatomomentoemquemaisprecisamosdisso.É claroquepoderíamosdedicarumesforçoenormeedispendiosoparaessetipodevigilância—teríamosde equipar cada soldado com um dispositivo que monitorasse todos osseus atos—,mas, alémdos custos inanceiros signi icativos, isso tambémteria altos custos morais e psicológicos. Em contraste, a honra, que sefunda no próprio senso de honra do soldado individual (e no de seuspares), pode ser e iciente semexigir grande vigilância; e, ao contráriodeuma sentença judicial ou de um contrato comercial, qualquer um queestiverporaliepertenceraomesmomundodahonraseráe icienteparagarantir a vigência do código, de forma que o custo de fazer vigorar ahonraé,naverdade,extremamentebaixo,e,comobemnotaramBrennanePettit,nãoteremosdenosincomodaremguardarseusguardiões.

Há outra razão para preferir a honra à lei como mecanismo paramotivarossoldados.Ostiposdesacri íciomaisúteisnaguerraexigemqueas pessoas corram riscos que lhes exigem fazer coisas que, segundo ojargão, são supererrogatórias: são atos moralmente desejáveis, masdemasiado exigentes para ser moralmente obrigatórios. É moralmenteerradopuniralguémpornãoterfeitoalgoquenãotinhaodeverdefazer.Mas, visto que normalmente é admissível oferecer uma recompensainanceira para se fazer algo supererrogatório, isso poderia nos levar apensar que a maneira correta de regulamentar a conduta militar, casovocê conseguisse enxergar por entre as nuvens de poeira levantadas no

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calordabatalha,seriapormeiodeincentivosfinanceiros.Porém, na medida em que temos um conjunto de códigos

compartilhados sobre a honra militar, também temos compromissos quenos fazem pensar que o dinheiro seria a linguagem errada pararecompensar façanhas militares: é simbolicamente inapropriado. Nãodamos bônus aos soldados por bravura: damos medalhas; maisimportante,prestamoshonraaeles.Damosaelesorespeitoquesabemosquemerecem.Tenhoaquidefendidoquevivemosnãoapós ahonra,mascom novas formas de honra. Todavia, nossos exércitos permanentesmodernosconservaramummundodahonramilitarondemuitaslealdadese sentimentos, imagino, seriam reconhecidos por Wellington, bem comoporAquiles deHomero ou pelo duque de Bourbon de Shakespeare, que,percebendoemAgincourtqueperderamabatalhadaqueledia,exclama:

Vergonha,eternavergonha,nadaalémdevergonha!Morramoscomhonra!Henriquev,atoiv,cenav

Soldadosquepensamassimsãograndesadversários.Essasre lexõessobreahonraeporqueelaé tãoe icienteepoderosa

emmotivarossoldadossugeremquetalvezexistamargumentosparecidosque se apliquema outras pro issões. Pro-fessores,médicos e banqueiros,por exemplo, fazem tantas coisas que seria muito di ícil ou caro vigiar apontodecontrolarseestãosendo feitasdemaneiraconscienciosa.Temostodas as razões para esperar que façam mais do que exigem seuscontratosdetrabalho.E,comovimosnascrisesdaeconomiaamericananaprimeira década deste milênio, o comportamento de banqueirosindividuais buscando lucro pode, no conjunto, impor custos pesados atodosnós.14

Nãosoueconomistae,paraentendercomodevemosmoldarasnormaspro issionais, é necessário o tipo de re lexão sobre o projeto dasinstituições que, justamente, constitui o estudo pro issional doseconomistas. Mas um fato visível na história recente é que, em muitoscampos pro issionais, os consolos do dinheiro têm em certa medida seequiparadoaosdaestima.Àsvezesosdoistiposderecompensafazemum

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acordodesagradável.O cirurgiãoAtulGawande comentou, ao examinarocomprovadoaumentodoscustosmédicosnosEstadosUnidos,queexistemcomunidades médicas nas quais os valores empresariais — o trabalhointenso e a inovação com vistas a maiores lucros — ultrapassaram osvalorescorporativostradicionaisdoJuramentodeHipócrates.Quandoissoacontece, a estima cresce aliada ao dinheiro, em detrimento, como eleafirma,dasaúde.15

Já em relação ao ensino, quantas vezes você ouviu as pessoasperguntarem o que aconteceu com o dedicado professor que trabalhavalongas horas, respeitadopela comunidade e pelos pais dos alunos? (Aquitambém, se a sociedade dá o devido apreço ao que fazem os bonsprofessores,porqueentãoelesrecebemsaláriostãobaixos?)Semdúvida,éumaquestãohistóricacomplexasaberatéquepontoexistiuoutroraummundo onde essas pro issões eram regidas por normas pro issionaisamparadasporumcódigodehonra,eatéquepontoessemundodahonradesapareceu. Mas descon io, e muitos compartilham dessa descon iança,queaquirealmentehouveumaperda.

missõeshonrosas

A honra, na forma de dignidade individual, alimenta o movimento

mundialpelosdireitoshumanos;comoestimaindividualmerecida,permiteque as comunidades, grandes e pequenas, recompensem e incentivem aexcelência; como honra nacional, com suas possibilidades de orgulho eriscos de vergonha, pode motivar os cidadãos na luta interminável paradisciplinar os atos de seus governantes. Somem-se esses aspectos àmaneira como a honra pode nos servir em nossas pro issões. Em todosesses contextos, ela se baseia numa característica de nossas psicologiassociaisque,atéondesabemos,éinelutável.

Masagoraquero inalizarnãocomabstrações,esimcomduaspessoas,umhomemeumamulher,comorigensecontextosquenãopoderiamsermaisdiversos.Ambosforamlevadosporumsensodehonraaseconduzirdaquelas formas louváveisqueconstituemomelhorargumentoparaumavida honrada. Ambos desa iaram um código de honra que contrariava a

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justiçaeadecência,ecomissoimpulsionaramsuasprópriassociedades—enãoapenaselas—nadireçãodeumfuturomaisjusto.

Vou começar pelo homem. No início de 2004, como todos devemlembrar, o mundo soube que soldados americanos na prisão de AbuGhraib torturaram homens e mulheres sob sua guarda. Em 7 de maiodaquele ano, o secretário da Defesa Donald Rumsfeld testemunhouperanteoSenadodosEstadosUnidosqueosguardasdeAbuGhraib,comotodos os membros das Forças Armadas americanas no Iraque, tinham“instruções [...] de cumprir as Convenções de Genebra”. 16 Isso foi umasurpresa para o capitão Ian Fishback, o icial de 26 anos de idade da 82 aDivisão Aérea, que servira duas vezes— no Afeganistão e no Iraque—com a impressão de que as Convenções de Genebra não se aplicavamàqueles con litos. No decorrer de uma curta carreira, em que já haviarecebidoduasEstrelasdeBronzeporbravura,eletinhavistoprisioneirosnoIraquesubmetidosatorturasemCampMercury,pertodeFallujah,nosnovemeses anteriores ao depoimento deRumsfeld.Na verdade, duranteseusserviçosnosdois teatrosdeguerra,ele tinhapresenciado“umvastoleque de torturas, incluindo ameaças de morte, espancamentos, ossosquebrados, assassinatos, exposição aos elementos, imposição de esforçoísico extremado, captura de reféns, desnudamento, privação de sono etratamentodegradante”.ElepensavaqueessasviolaçõesdasConvençõespodiam ser decorrentes do fato de que outros, como ele, ignoravam oscritériosqueregiamotratamentodosprisioneiros.

E assim decidiu descobrir quais eram realmente suas obrigaçõesformais,atéporquehaviaaprendidoemWestPointque,comoo icial,deviagarantirqueseushomensjamaisenfrentassemoônusdecometerumatodesonroso.Maistarde,eleescreveu:

[Consultei minha] cadeia de comando até o comandante do batalhão, múltiplos advogadosmilitares, congressistas e respectivos assessores democratas e republicanos, o escritório doinspetor-geral do Fort Bragg, relatórios do governo, oministro das Forças Armadas e o iciais-generais,uminterrogadorpro issionalnabaíadeGuantánamo,ovice-diretordodepartamentoem West Point responsável por ensinar a Teoria da Guerra Justa e o Direito de GuerraTerrestre,enumerososparesqueconsiderohomenshonradoseinteligentes.17

Nenhuma dessas fontes, disse ele, foi capaz de lhe dar o

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“esclarecimento”queprocurava.Mas falar em esclarecimento era, em certa medida, um eufemismo. O

que ele realmente andava fazendo, durante boa parte do tempo, eralevantar a questão da tortura em Camp Mercury. A certa altura, um deseus comandantes lhe disse que, caso insistisse naquelas indagações, a“honra de sua unidade estaria em jogo”. 18 Mas o capitão Fishback sabiaqueexisteumadiferençaentreahonraeareputaçãodaunidade.Eassim,emboraasForçasArmadasamericanasnãooatendessem,elenãoestavadisposto a ceder. Informou os investigadores da Vigilância dos DireitosHumanos, contando-lhes o que sabia. Quando saiu o relatório daorganização, as ForçasArmadas novamente o decepcionaram: os agentesda Divisão de Investigação Criminal que falaram com ele pareciammaispreocupadosemrastrearosnomesdossargentosquelhetinhampassadoalgumasdesuasinformaçõeseeminvestigarsuarelaçãocomaVigilânciadosDireitosHumanos.19

Em 16 de setembro de 2005, Ian Fishback decidiu não se esconderatrás do anonimato que lhe fora oferecido pela Vigilância dos DireitosHumanos.EscreveuaosenadorJohnMcCain, insistindopara“fazer justiçaa seus homens emulheres de farda”, apresentando-lhes “padrões clarosdecondutaquere litamosideaispelosquaisarriscamsuasvidas”.Por im,o senador McCain e outros dois senadores se uniram para redigir umalegislaçãoatendendoaisso.

Ian Fishbackmostra o poder da honra a serviço da decência humana.Ele entende que a honra signi ica não só ser estimado,mas também serdignodeestima.Estavadispostoaincorrernadesaprovaçãodeseusparese superiores—ou seja, comaperspectivadeumacarreira arruinada—para preservar aquele direito. Seu senso pessoal de honra, seu senso dehonra como o icial militar, seu senso de honra como americano: todosestavam em jogo e em risco. “Somos os Estados Unidos da América”,escreveu ao senador McCain, “e nossas ações deveriam se ater a umpadrão mais elevado: os ideais expressos em documentos como aDeclaraçãodeIndependênciaeaConstituição.”Aquivemosoduploserviçoqueumsensodehonranacionalprestaacadaumdenós:elepermitequenos engajemos na vida de nosso país, mas também nos garante oengajamento dos concidadãos que se importam igualmente com nossa

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honracompartilhada.Quanto ao padrão de honra individual de Ian Fishback, ele inclui a

lealdade à lei e àmoral, bem como a seus subordinados, os quais colocaacima dos desejos de seus superiores. O ex-secretário da Defesa DonaldRumsfeld—cujapercepçãodessasverdadessobreahonraparecemenosclara —, ao que consta, teria dito na época: “Dobrem esse homem ouacabem com ele. E rápido”. 20 Talvez ele não tenha dito tal coisa. Já ébastanteruimquesejatãofácilcrernessapossibilidade.Entãoéumaboacoisa— para o capitão Fishback e para seus concidadãos— que, comodisse umdos funcionários doCongresso, Ian Fishback fosse “umapessoamuito poderosa”, sem mencionar que era também “o indivíduo maiscomprometidocomahonraqueencontreiemtodaminhavida”.21

O capitão Fishback nos mostra que a honra militar devidamenteentendidaéalgoquemereceorespeitodetodosnós,soldadosecivis.Mas,para entender o poder da honra em toda sua envergadura, precisamosexaminar locais menos óbvios do que o mundo militar. E não há lugarmenosóbviodoqueumvilarejoruralnomundoemdesenvolvimento.Foinumlugarassim,naaldeiadeMeerwala,pertodacidadede Jatoi,distritodeMuzaffargarh,suldoPunjabi,Paquistão,quenasceu,cercadeseisanosantesdocapitãoFishback,amulherqueémeusegundomodelodehonra.Ela se chamaMukhtaranBibi, e sua família cultivamenos de umhectarenuma área dominada por membros poderosos de uma tribo balúchi, osmastois.

Em22dejunhode2002,seuirmãoShakur,comdozeoutrezeanosdeidade,foiacusadoporalgunsmastoisdeterdesonradoSalma,umamulherda tribo balúchi com vinte e poucos anos, aparentemente porque estavaconversando com ela num trigal perto de casa. Os acusadores decidiramlhedarumalição:espancarameestupraramomenino,mantendo-opreso.

OpaideShakurpediuaomulálocalqueinterviesse,masoreligiosonãoconseguiupersuadirosmastois.Entãoopai foiàpolícia.Aessaaltura,osmastois já tinham aumentado o ocorrido, acusando Shakur de violentarSalma.OmeninofoientregueàpolíciaeencarceradonaprisãoemJatoi,acerca de treze quilômetros de distância, denunciado por zina bil jabr, ocrime Hudood que ocorre quando o sexo fora do casamento envolvecoerçãooudolo.

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Enquanto avançavam as negociações naquela tarde entre osrepresentantes da família de Mukhtaran e Shakur e os mastois, umamultidãosejuntoudiantedosmurosdacasamastoi,atrezentosmetrosdedistância da casa de Mukhtaran Bibi. No inal da tarde, seu pai, GhulamFarid, disse-lhe que osmastois tinham garantido que, se ele fosse com ailhapedirdesculpaspelaofensadeShakur,oassuntoestariaresolvido.Eassim,depoisdeanoitecer,Mukhtaran,opai,otioeumamigodafamíliasedirigiram ao espaço aberto perto da mesquita, onde havia mais de cemhomens reunidos. Mukhtaran, que na época estava com cerca de trintaanos,levavaseuCorão,livroquenãopodialer,masquetinhaaprendidoarecitardecor, livroqueensinavaàscriançasdaaldeia, livroquepensavaqueiaprotegê-la.

Cincomastoiscomandavamosprocedimentos,agitandoasespingardas,gritando, ameaçandooshomensqueacompanhavamMukhtaranBibi.Umdeles, AbdulKhaliq, irmão de Salma, empunhava umapistola.MukhtaranBibi,numgestoderespeito,estendeuoxalenochãodiantedeles, recitouumversículodoCorãoe rezousilenciosamenteenquantoaguardavaparaver o que aconteceria.Nãoprecisou esperarmuito.Osmastois já haviamdecidido que a reação à desonra que alegavam ter sofrido com o ataqueimaginário a Salma seria desonrar a família do menino acusado.MukhtaranBibi foi agarrada por quatro homens e estuprada pelo bandodurante uma hora, numa choupana não muito distante. Quandoterminaram, empurraram-na para fora, quase nua, e o pai a levou paracasa.

Evidentemente,afaltadepudordosmastoisre letiaaconvicçãodequese safariam semnenhumproblema. Em circunstâncias assim, no Punjabi,seriadeesperarqueumamulhernaposiçãodeMukhtaranBibi—mulherpobredeuma famíliade lavradores—sofreriaemsilêncio;esua família,aterrorizada pelos mastois, com suas armas e ligações na polícia e nogovernodaprovíncia,teriadeaceitar.MuitasmulheresdoPunjabi,nessascondições,sematariam.

Mas na semana seguinte, nas preces da sexta-feira, em seu sermão, omulácondenouosmastoispeloquetinhamfeito.Umjornallocalpublicouocaso damulher condenada ao estupro em grupo por umpanchayat — oconselho de aldeia —, e o episódio foi abraçado por grupos de direitos

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humanos,divulgadopelainternetepublicadonaimprensainternacional.OgovernodoPunjabideterminouqueapolícialocalinvestigasseoassunto.Eassim,numdomingo,oitodiasapóstersofridooataquebrutal—oitodiasque passou em lágrimas, isolada com a família —, Mukhtaran Bibi foiintimada pela polícia e levada a Jatoi, com o pai e o tio, para ointerrogatório.Osrepórteresreunidosnadelegaciacomeçaramalhefazerperguntas e, ao invés de se retrair envergonhada, ela lhes contou suahistória.

Nos anos seguintes, com o auxílio de ativistas de direitos humanos noPaquistãoenoexterior,MukhtaranBibicontinuoualutarporjustiça.Easautoridades do país estavam divididas entre os dispostos a ajudá-la e osdispostos a impedi-la. A polícia local, acostumada a se alinhar com ospoderosos, falsi icouseudepoimento,pedindoquepusessesuaimpressãodigital numa folha de papel em branco para então distorcer sua história.Mas depois um juiz entrevistou Mukhtaran e o mulá, e registrou suaspalavras.Emtrêsmeses,umtribunalcondenouseishomensàmortepelaparticipação no estupro. Mas a sentença foi anulada pelo tribunal desegundainstânciaemLahore,queosabsolveu.Então,umTribunalChariaanulou a decisãodo tribunal de Lahore, e o SupremoTribunal, diante detrêsdecisõescon litantesemtrêstribunaisdiferentes, interveioporcontaprópria e decidiu considerar diretamente o caso. Isso foi em 2005. Emfevereirode2009,os jornaispaquistanesesnoticiaramqueoministrodotribunal federal responsável pela defesa, Abdul Qayyum Khan Jatoi, querepresentaaregiãodeMukhtaranBibinoParlamentopaquistanês,estavatentandoconvencê-laaretiraraqueixa.Maissurpreendente,talvez,équeoprocessoaindaestivessependente,depoisdeseteanos.

Enquanto isso, Mukhtaran Bibi estava sob a proteção constante depoliciais, que a defendiam de seus vizinhos mastois enfurecidos. E emmarçode 2009 ela se casou comumdos policiais enviados à aldeia paraprotegê-la.

Mas,enquantoos tribunaispaquistanesesnãosedecidiam,MukhtaranBibi transformousuaaldeiae seupaís.A ilhaanalfabetadeum lavradorse tornou Mukhtar Mai, a Respeitada Irmã Mais Velha, nome pelo qualagoraelaéconhecidaemtodoomundo.Quandoogovernolheenviouumcheque de indenização, ela utilizou o dinheiro não só para pagar as

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despesas judiciais, como também para abrir uma escola de meninas emMeerwala.Nãoqueriaquemaisumageraçãocrescessenoanalfabetismoenafaltadecapacitação.Àmedidaqueseucasopassavaasercadavezmaisconhecidonomundo,elarecebiaassistênciaedinheirodemuitos lugares.Agora ela dirigeduas escolas (umaparameninas, outraparameninos) etambém a Organização de Assistência às Mulheres Mukhtar Mai, queofereceabrigo,assistênciajurídicaeserviçosdeadvocacia.

Acima de tudo, ela divulga constantemente sua situação e a de outrascamponesas. Ao invés de se esconder com a vergonha que seusestupradores pretenderam lhe impor, ela expôs a depravação deles einsistiu na justiça, não só para si,mas também para asmulheres de seupaís. Mukhtar Mai entendeu que sua casta e seu sexo não eram razõesparaquelhenegassemrespeito.Elavivesuadignidadee,comisso,ensinaaoutrasmulheresqueelastambémtêmdireitoaorespeito.

NicholasKristof,ojornalistadoNewYorkTimesqueajudouadivulgarocaso de Mukhtar ao redor do mundo, descreve a cena na casa dela nasseguintespalavras:

MulheresdesesperadasdetodooPaquistãochegamemônibus, táxisecarroças,poisouviramfalardeMukhtareesperamqueelapossaajudar.Ospiorescasossãoosdenarizamputado—puniçãopaquistanesacomum,ministradaamulheresparaenvergonhá-lasparasempre.EntãoMukhtar ouve até o im e tenta arranjar médicos, advogados ou outros auxílios para elas.Enquantoisso,essasmulheresdormemcomMukhtarnochãodoquarto[...]todasasnoites,háaté doze mulheres, todas deitadas no chão, aninhadas umas nas outras, consolando-semutuamente. São vítimas com histórias dolorosas— e, no entanto, também são símbolos deesperança,sinaisdequeostemposestãomudandoeasmulheresestãoreagindo.22

Emsuaprópriahistória, contadaaum jornalista francês,MukhtarMai

narra como encarou a multidão furiosa de mastois consumidos pelaprópria honra. E diz: “Mas, embora eu conheçameu lugar comomembrode uma casta inferior, também tenho um senso de honra, a honra dosgujars. Nossa comunidade de pequenos camponeses pobres está aqui hámuitascentenasdeanose,mesmoqueeunãoconheçanossahistóriaemdetalhes,sintoquefazpartedemimeestáemmeusangue”.Édi ícilsabercomo interpretar essas palavras sob o véu da tradução.Mas, quando eladescreve sua vida anterior e a reação de seu pai ao ataque que sofreu,

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temos a impressão de que foi criada numa família que entendia que,qualquer que fosse a posição que ocupasse na hierarquia social local,tambémtinhadireitoaorespeito.

Vocêpodeperguntarqualéopapeldahonranessashistóriasquenãopossaserdesempenhadopelamoralemsi.Umapercepçãomoral impedequeossoldadosviolentemadignidadehumanadeseusprisioneiros.Leva-osadesaprovarosatosdosquenãotêmessapercepção.Epermitequeasmulherescruelmenteviolentadassaibamqueseusviolentadoresmerecempunição.Maséprecisosensodehonraparaqueumsoldadonãoselimiteafazerocertoecondenaroerrado,einsistaquesefaçaalgoquandooutrosa seu lado estão fazendo coisas más. É preciso senso de honra para sesentirenvolvidopelasaçõesdosoutros.

Evocêprecisadesensodedignidadeprópriaparainsistir,contratodasasprobabilidades,emseudireitoàjustiçanumasociedadequeraramenteoferecejustiçaamulherescomovocê;eprecisadeumsensodedignidadedetodasasmulheresparareagiraoestuprobrutalnãosócomindignaçãoe desejo de vingança,mas com uma determinação de reformar seu país,para que asmulheres sejam tratadas com o respeito que você sabe queelasmerecem.Fazeressasescolhaséviverumavidadedi iculdades,eàsvezes até de perigo. Mas é também, e não por acaso, viver uma vida dehonra.

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Notas

prefácio

1.RenéDescartes,“CommentsonaCertainBroadsheet”,1648,em ThePhilosophicalWritingsof

Descartes, vol. 1, trad. John Cottingham, Robert Stoothoff e Dugald Murdoch (Cambridge:CambridgeUniversityPress,1987),p.307.

1.morreoduelo

1.ChristopherHibbert,Wellington:apersonalhistory (Reading:Perseus/HarperCollins,1999),

p.275.2.Wellington,Despatches,correspondence,andmemoranda,v,p.542.3. JosephHendershot Park (org.),BritishPrimeMinistersof theNineteenthCentury:Policiesand

Speeches(Manchester:AyerPublishing,1970),p.62.4.Wellington,Despatches,v,p.527.5.Greville,Memoirs,p.250.6. Uma cópia dos arquivos do King’s College de Londres pode ser encontrada em

<http://www.kcl.ac.uk/depsta/iss/archives/wellington/duel08a.htm>.7.SirWilliamBlackstone,CommentariesontheLawsofEngland(Oxford:ClarendonPress,1765-

1969), livroiv, cap. 14: “Of Homicide”;<http://avalon.law.yale.edu/18th_century/blackstone_bk4ch14.asp>.

8. Sir AlgernonWest,Recollections:1832-1886 (NovaYorkeLondres:Harper&Bros.,1900),p.27.

9.SirThomasMalory,LeMorteD’ArthurtheoriginaleditionofWilliamCaxtonnowreprintedandeditedwithanintroductionandglossarybyH.OskarSommer:withanessayonMalory’sprosestylebyAndrew Lang (Ann Arbor: University of Michigan Humanities Text Initiative, 1997), p. 291;<http://name.umdl.umich.edu/MaloryWks2>.

10.Stewart,Honor,pp.44-7.11. Hugh Lloyd-Jones, “Honor and Shame in Ancient Greek Culture”, em Greek Comedy,

Hellenistic Literature, Greek Religions, andMiscellanea: The Academic Papers of Sir Hugh Lloyd-Jones(Oxford,ClarendonPress,1990),p.279.

12. Sobre os axântis no séculoxix, ver John Iliffe,Honor in African History (Cambridge:CambridgeUniversityPress,2004),pp.83-91.

13.Homero,Ilíada,trad.FredericoLourenço(Lisboa:Cotovia,2005),p.417.14.Kiernan,TheDuelinEuropeanHistory,p.216.15.Id.,ibid.,p.102.16.Id.,ibid.,p.190.17.Hamilton,TheDuellingHandbook,p.138.CitadocomlevesdiferençasemRobertBaldick,The

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Duel: A History of Duelling (Londres: Hamlyn, 1970), pp. 33-4. Citado em Douglass H. Yarn, “TheAttorneyasDuelist’sFriend:Lessons fromTheCodeDuello”,51, CaseW.Res.L.Rev. ,69,2000,pp.75-6,n.71.

18.Wellington,Despatches,v,p.539.19. Tresham Lever,The Letters of Lady Palmerston: Selected and Edited from the Originals at

BroadlandsandElsewhere(Londres:JohnMurray,1957),p.118.20. Frances Shelley; R. Edgecumbe (org.),The Diary of Frances Lady Shelley (Londres: John

Murray,1913),p.74.21.Hamilton,TheDuellingHandbook,p.140.22.Wellington,Despatches,v,p.539.23.Id.,ibid.,v,p.544.24. LordBroughton (JohnCamHobhouse),Recollections of a Long LifewithAdditional Extracts

fromHisPrivateDiaries ,ed.LadyDorchester,v.3:1822-1829(NovaYork:CharlesScribner’sSons,1910),pp.312-3.

25. V. Cathrein, “Duel”, em The Catholic Encyclopedia, vol. 5 (Nova York: Robert AppletonCompany,1909);<http://www.newadvent.org/cathen/05184b.htm>.

26. Concílio de Trento, 25a sessão, 3 e 4 de dezembro de 1563, “On Reformation”, cap. 19;<http://www.intratext.com/IXT/ENG0432/_P2J.HTM>.

27. Francis Bacon; James Spedding (org.),The Letters and the Life of Francis Bacon, vol. 4(Londres:Longmans,Green,Reader&Dyer,1868),p.400.

28.EdwardHerbert;WillH.Dircks(org.),TheAutobiographyofEdward,LordHerbertofCherbury(Londres:WalterScott,1888),p.22.

29.AmelotdeHoussaye,citadoemCharlesMackay,MemoirsofExtraordinaryPopularDelusionsandtheMadnessofCrowds(Ware,Herts:WordsworthEditions,1995),p.668.

30.Bacon,LettersandLife,p.400.Esses“panfletos”sãooscódigosdeduelos.31. É como John Chamberlain descreve a situação na carta de 1613, na qual relaciona as

disputasmencionadas.Spedding(org.)citaapassagememBacon,op.cit.,p.396.32.Bacon,op.cit.,pp.409e399,respectivamente.33.WilliamHazlitt;P.P.Howe(org.), TheCompleteWorksofWilliamHazlitt (LondreseToronto:

J.M.Dent&Sons,1934),vol.19,p.368.34. Jeremy Bentham,An Introduction to the Principles ofMorals and Legislation, 1823 (Oxford:

Clarendon Press, 1907), cap. 13, par. 2;<http://www.econlib.org/library/Bentham/bnthPML13.html#Chapter%20XIII,%20Cases%20Unmeet%20for%Punishment>.

35.WilliamRobertson,TheHistoryof theReignof theEmperorCharlesV (NovaYork:Harper&Bros.,1836),p.225.

36. David Hume,Essays, Moral, Political, and Literary . Library of Economics and Liberty, em<http://www.econlib.org/library/LFBooks/Hume/hmMPL50.html>.

37. Francis Hutcheson; Luigi Turco (org.),Philosophiae moralis institutio compendiaria with AShort Introduction to Moral Philosophy (Indianápolis: Liberty Fund, 2007). Cap.xv: “Of RightsArisingfromDamageDone,andtheRightsofWar”;<http://oll.libertyfund.org/title/2059>.

38.Hamilton,TheDuellingHandbook,p.125.39.AdamSmith;R.L.Meek,D.D.RaphaeleP.G.Stein(orgs.), LecturesonJurisprudence,vol.5da

ediçãodeGlasgowdeWorksandCorrespondenceofAdamSmith (Indianápolis:LibertyFund,1982).“Friday,January21st,1763”;<http://oll.libertyfund.org/title/196>.

40.WilliamGodwin,AnEnquiryConcerningPoliticalJustice,anditsIn luenceonGeneralVirtueandHappiness, vol. 1 (Londres: G. G. J. & J. Robinson, 1793). Apêndice, no ii: “Of Duelling”;<http://oll.libertyfund.org/title/90/40264>.

41.Boswell;Napier(org.),TheLifeofSamuelJohnson,LL.D.TogetherwiththeJournalofaTourto

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theHebrides,v.v,p.195.42.Voltaire,DictionnairePhilosophique,OeuvresComplètesdeVoltaire (Paris:De l’Imprimeriede

laSociétéLittéraire-Typographique,1784),vol.36,p.400.43. David Hume,The History of England from the Invasion of Julius Caesar to the Revolution in

1688(1778),6v.(Indianápolis:LibertyFund,1983),vol.3,p.169.44.Boswell,op.cit.,ii,p.343.45. Conforme apresentado pelo King’s College de Londres em

<http://www.klc.ac.uk/depsta/iss/archives/wellington/duel12.htm>.46.Essa chargeestádisponível, comoutramais conhecida feitaporWilliamHeath,no sitedo

King’sCollegeLondon:<http://www.kcl.ac.uk/depsta/iss/archives/wellington/duel16.htm>.)47.SoumuitogratoaPhilipPettitportersugeridoisso.48.Greville,Memoirs,p.196.49.Id.,ibid.,p.198.50.Id.,ibid.,p.199.51.Hibbert,Wellington:APersonalHistory ,p.275.ALiteraryGazette é citadaporHamilton (op.

cit.,p.xiv).52.Disponívelem<http://www.kcl.ac.uk/depsta/iss/archives/wellington/duel12.htm>.53.Wellington,Despatches,v,p.585.54.Bacon,op.cit.,p.400.55. Richard Cobden; John Bright e James E. Thorold Rogers (orgs.),Speeches on Questions of

PublicPolicybyRichardCobdenM.P.(Londres:Macmillan&Co.,1878),p.565.56.Mill; JohnM.Robson(org.),CollectedWorksof JohnStuartMill , v. 18,EssaysonPoliticsand

SocietyPart i (Toronto:UniversityofTorontoPress;Londres,Routledge&KeganPaul,1977). “DeTocqueville on Democracy in America”, ii, 1840;<http://oll.libertyfund.org/title/233/16544/799649>.

57.LordeBroughton,op.cit.,p.312.58. John Henry Cardinal Newman,The Idea of a University (Londres: Longmans, Green & Co.,

1919),p.208.59. James Kelly, That Damn’d Thing Called Honour: Duelling in Ireland 1570-1860 (Cork: Cork

UniversityPress,1995),p.267.60. James Landale,The Last Duel: A True Story of Death and Honour (Edimburgo: Canongate,

2005).61.Kiernan,TheDuel inEuropeanHistory,p.218,dizqueeste “foi consideradooúltimoduelo

naInglaterra”.Eletiracertaplausibilidadedeseuargumentoantecipandooepisódioemtrêsanos,em1849.

62. Sir Algernon West,Recollections, p. 28, citando Horácio,Satires, livro 2, 1. O verso 86 é“Solventur risu tabulae, tu missus abibis” (corrigi o “solvuntur” de sir Algernon, embora sejafrequenteacitaçãocomagra iaerrada)—“Asdenúnciasserãoretiradascomrisos;solto,sairás”.Horáciocomentaqueumaaçãopordifamação—as tabulaesãooselementosapresentadosaojuiz— será anulada com risos se os versos escandalosos que deram origem à queixa foremsuficientementeengraçados.

63. SirWilliamGregory; ladyGregory (org.),AnAutobiography (Londres: JohnMurray, 1894),pp.149-51.

64.EvelynWaugh,TheSwordofHonourTrilogy(NovaYork:Knopf,1994),p.449.

2.alibertaçãodospéschineses

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1.CitadoemHowardS.Levy,ChineseFootbinding:TheHistoryofaCuriousEroticCustom (NovaYork:WaltonRawls,1966),p.72.

2. Robert Hart; John King Fairbank, Katherine Frost Brunner e ElizabethMacLeodMatheson(orgs.),TheI.G.inPeking:LettersofRobertHart,ChineseMaritimeCustoms1868-1907(Cambridge,ma:HarvardUniversityPress,1976),vol.2,p.1311.

3. Keith Laidler, The Last Empress: The She-Dragon of China (Chichester: John Wiley & Sons,2003),p.32.

4.TimothyRichard,Forty-fiveYearsinChina(NovaYork:FrederickA.StokesCompany,1916),p.253ess.

5. JohnKingFairbankeMerleGoldman,China:ANewHistory (Cambridge:HarvardUniversityPress,2006),p.229.

6.Richard,op.cit.,p.262.7. Weng Tonghe, preceptor dos imperadores Tongzhi (1861-75) e Guangxu. A amizade de

KangeWengTonghecomeçouem1895.VerKang, KangNanhaizibiannianpu,pp.33-7 (Hsueh-YiLin,comunicaçãopessoal,17defevereirode2009).

8. YongZ. Volz, “GoingPublicThroughWriting:Women Journalists andGendered JournalisticSpaceinChina,1890s-1920s”,MediaCultureSociety,vol.29,no3,2007,pp.469-89.

9.Levy,op.cit.,p.72.10.Id.,ibid.AquicorrigieamplieiatraduçãodeLevycombasenatraduçãodooriginalfeitapor

Hsueh-Yi Lin. Kang Youwei, “Qing jin funü guozu zhe” [Memorial pedindo a proscrição doenfaixamento dos pés das mulheres], em Tang Zhijun (org.), Kang Youwei zhenglun ji (Beijing:Zhonghua, 1981), p. 335. Ela esclareceu que a última frase é “um recurso retórico comum nummemorial”.(Hsueh-YiLin,comunicaçãopessoal,17defevereirode2009).

11.BrennanePettit,TheEconomyofEsteem,p.19.12.Levy,op.cit.,p.39.13.Id.,ibid.14.ArchibaldLittle,TheLandoftheBlueGown(Londres:T.Fisher&Unwin,1902),p.363.15. Gerry Mackie, “Ending Footbinding and In ibulation: A Convention Account”, American

SociologicalReview,vol.61,no6(dezembrode1996),p.1008.16.LanlingXiaoxiaoSheng,TheGoldenLotus,trad.ClementEgerton,vol.1,p.101(minhaedição

traz os detalhes da edição em chinês). Levy (op. cit., p. 51) manifesta algumas dúvidas sobre aconfiabilidadedatraduçãodeEgerton.

17.Levy,op.cit.,p.55.18.Id.,ibid.,p.60.19.Chau,dissertaçãodemestrado,pp.13-6.20.Levy,op.cit.,pp.283-4.21.Id.,ibid.,p.107.22.Id.,ibid.,pp.65,248e118.23. Endymion Wilkinson,Chinese History: A Manual, ed. rev. (Cambridge: Harvard University

Press, 2000), pp. 273-7. O reinado do imperador terminou o icialmente em 1795, depois desessenta anos no trono, aparentemente porque a piedade exigia que não governasse por maistempodoqueopredecessor;maselecontinuoucomoregenteatésuamorteem1799.

24. Patricia Buckley Ebrey,Cambridge Illustrated History of China (Cambridge: CambridgeUniversityPress,1996),p.199.

25.Kwang-ChingLiu,prefácio,emop.cit.,p.6.26.Id.,ibid.,p.229.27.HarleyFarnsworthMacNair,ModernChineseHistory:SelectedReadings (Xangai:Commercial

PressLtd.,1923),pp.2e4.28. Arthur Waley,The OpiumWar Through Chinese Eyes (Stanford: Stanford University Press,

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1958),p.103.29.FairbankeGoldman,op.cit.,p.222.30. Arthur P.Wolf e Chuang Ying-Chang, “Fertility andWomen’s Labour: TwoNegative (But

Instructive)Findings”,PopulationStudies,vol.48,no3(novembrode1994),pp.427-33.31.Hsueh-YiLin,comunicaçãopessoal,10dejunhode2009.32.FairbankeGoldman,op.cit.,p.218.33.Chau,op.cit.,pp.19e20.34.Id.,ibid.,p.22.35.Id.,ibid.,p.23.LiJu-Chen(LiRuzhen);LinTai-Yi(org.),FlowersintheMirror(BerkeleyeLos

Angeles:UniversityofCaliforniaPress,1965),p.113.36.ArchibaldLittle,IntimateChina,citadoemChau,op.cit.,p.41.37.DorothyKo, Cinderella’sSisters:ARevisionistHistoryofFootbinding (Berkeley:Universityof

CaliforniaPress,2005),p.15.38.Chau,op.cit.,pp.45e57.39.Ko,op.cit.,p.16.40. FanHong,Footbinding, Feminismand Freedom: The Liberation ofWomen’s Bodies inModern

China(Londres:Cass,1997).41. Patrick Hanan, “The Missionary Novels of Nineteenth-Century China”,Harvard Journal of

AsiaticStudies,vol.60,no2(dezembrode2000),p.440.Chau,op.cit.,p.28.42.Richard,Forty-fiveYearsinChina,p.158.43.EcumenicalMissionConferenceNewYork,1900 (NovaYork:AmericanTractSociety;Londres:

ReligiousTractSociety,1900),vol.1,p.552.44.FairbankeGoldman,op.cit.,p.222.45.Chau,op.cit.,p.51.46.Levy,op.cit.,p.74.47.AngelaZito,“SecularizingthePainofFootbindinginChina:MissionaryandMedicalStagings

of theUniversalBody”, Journalof theAmericanAcademyofReligion,vol.75,no1 (marçode2007),pp.4-5.

48. Ver “Mrs. Archibald Little, About the Author”,<http://www.readaroundasia.co.uk/miclittle.html>.

49.FanHong,op.cit.,p.57.50.Little,TheLandoftheBlueGown,pp.306-9.51.Richard,Forty-fiveYearsinChina,pp.227-8.52.Yen-P’ingHaoeErh-MinWang,“ChangingChineseViewsofWesternRelations,1840-95”,

emDenisCrispinTwitchett; JohnKingFairbank (orgs.),CambridgeHistoryofModernChina, vol. 2:TheLateCh’ing1800-1911,parteii(Cambridge:CambridgeUniversityPress,1978),p.201.

53.Richard,op.cit.,pp.265-7.54.FairbankeGoldman,op.cit.,p.231.55.VeradiscussãodesseperíodoemSeagrove,DragonLady,eHensvandeVen, “RobertHart

andGustavDetringDuringtheBoxerRebellion”, ModernAsianStudies,vol.40,no3,2006,pp.631-62.

56.Chau,op.cit.,p.121,citandoatraduçãocontemporâneanoNorthChineseHerald.57.Levy,op.cit.,pp.278-9.58.FanHong,op.cit.,cap.3-4.59.Chau,op.cit.,p.104.60.Id.,ibid.,p.98.61.Levy,op.cit.,pp.128,181e94.62.J.M.Coetzee,“OnNationalShame”, DiaryofaBadYear (NovaYork:Viking,2007),pp.39e

45.[Diáriodeumanoruim, trad. JoséRubensSiqueira.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2008.]O

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romancereproduzensaiosescritospeloprotagonista.63. Essa é uma das ideias centrais de Benedict Anderson,Comunidades imaginadas: re lexões

sobreaorigemeadifusãodonacionalismo,trad.DeniseBottmann(SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2008).

64.ErnestRenan,Qu’est-cequ’unenation?,2aed.(Paris:Calmann-Lévy,1882),p.26.65.Mackie,op.cit.,p.1001.66.Levy,op.cit.,p.171.

3.ofimdaescravidãoatlântica

1. Lecky,History of European Morals, vol. 1, cap. 1: “The Natural History of Morals”;

<http://oll.libertyfund.org/title/1839/104744/2224856>.2.EricWilliams,CapitalismandSlavery (ChapelHill:UniversityofNorthCarolinaPress,1994),

pp.142e210-1[Capitalismoeescravidão, trad.CarlosNayfeld.Riode Janeiro:CompanhiaEditoraAmericana,1975].

3.Id.,ibid.,p.211.4.Drescher,CapitalismandAntislavery,p.5.5.Id.,ibid.,p.7.6.Id.,ibid.,p.11,citandoobradeWrigleyeSchofield.7. Benjamin Disraeli,Lord George Bentinck: A Political Biography (Londres: G. Routledge & Co.,

1858),p.234.8. O trecho continua: “Era também uma característica romana — especialmente de Marco

Aurélio”,eterminacomafrasequeciteianteriormente.9.Encyclopédie,ouDictionnaireraisonnédessciences,desartsetdesmétiers,parunesociétédegens

delettres.Misenordre&publiéparM.Diderot...&quantà lapartiemathématique,parM.d’Alembert ,28vols.(Genebra,PariseNeufchatel,1772;1754-72).CitadoemTheMakingof theModernWorld(FarmingtonHills:ThomsonGale,2007),vol.16,p.532.

10.Quemenunciaaúltimafraseéa“consciência”.ErasmusDarwin,“TheLovesofthePlants”,1789,emTheBotanicGarden(Londres:Jones&Company,1825),p.173.

11. Erasmus Darwin,Zoonomia; or, The Laws of Organic Life (Filadél ia: Edward Earle, 1818),vol.2,p.325.

12.ComozombouThomasCarlyleemPastandPresent,“ometodismosempreolhandoopróprioumbigo: perguntando-se com torturante ansiedade de Esperança e Medo, ‘Estou certo? Estouerrado? Serei salvo? Não serei condenado?’ — o que é isso, no fundo, senão uma nova fase deEgoísmo,estendidoaoIn inito;enessasuain initudenemporissomaissagrado?”.Carlyle, PastandPresent,1843(Londres:Chapman&Hall,1872),p.101.

13.DavidTurley,TheCultureofEnglishAntislavery,1780-1860(Londres:Routledge,1991),p.9.14.Brown,HumanUniversals,p.391.15.Id.,ibid.,p.429.16. Talvez seja importante lembrar que também havia muitos quacres no comando da

Sociedade.17.Drescher,op.cit.,pp.28-9.18.DavidBrionDavis,TheProblemofSlaveryintheAgeofRevolution:1770-1823 (Ithaca:Cornell

UniversityPress,1975),p.435.19.Brown,op.cit.,p.437.20.LaurenceSterne,ASentimentalJournal,1768(Londres:PenguinBooks,2001),p.69-70.21.WilliamCowper, “TheNegro’sComplaint”, TheGentleman’sMagazine (dezembrode1793),

ii, 55-6, em H. S. Milford (org.),The Complete Poetical Works of William Cowper (Londres: Henry

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Frowde,1905),pp.371-2.22.CitadoemBrown,op.cit.,p.166.23.Id.,ibid.,pp.71e141-2.24.Id.,ibid.,p.371.25.Id.,ibid.,p.134.26.Id.,ibid.,p.170.27. Frederick Douglass,The Life andWritings of Frederick Douglass (Nova York: International

Publishers,1950),vol.1,p.147.28.Asrepressõesdo inaldoséculoxviiitambémeliminarammuitasorganizaçõesradicaisque

apoiavamaabolição—verThompson,Aformaçãodaclasseoperáriainglesa, trad.DeniseBottmam(SãoPaulo:PazeTerra,1987).

29.WilliamWilberforce,AnAppeal totheReligion, Justice,andHumanityof the Inhabitantsof theBritishEmpireinBehalfoftheNegroSlavesintheWestIndies (Londres:J.Hatchard&Son,1823),p.1.

30. William Wilberforce,A Practical View of the Prevailing Religious System of ProfessedChristians, in the Higher and Middle Classes in This Country Contrasted with Real Christianity (NovaYork:AmericanTractSociety,1830),pp.241e249-50(originalmentepublicadonaInglaterraem1797).

31.Id.,ibid.,p.105.32.Williams,op.cit.,p.181.33.LettersontheNecessityofaPromptExtinctionofBritishColonialSlavery;Chie lyAddressedto

theMoreInfluentialClasses(Leicester:ThomasCombe&Son,1826),p.104.34.Id.,ibid.,pp.149,163,165,184e159.35.Disraeli,LordGeorgeBentinck,p.234.36. “London Workingmen’s Association: Further Papers”, em D. J. Rowe (org.), London

Radicalism 1830-1843: A selection of the Papers of Francis Place (Londres: London Record Society,1970),pp.160-77;<http://www.british-history.ac.uk/source.aspx?pubid=230>.

37. Betty Fladeland,Abolitionists and Working-Class Problems in the Age of Industrialization(Londres:Macmillan,1984).

38.Thompson,op.cit.,p.807.39. Ver Orlando Patterson,Slavery and Social Death (Cambridge: Harvard University Press,

1985).40.WilliamCobbett,RuralRides,1830(Londres:J.M.Dent&Sons,1912),pp.306-7.41. Catherine Gallagher,The Industrial Reformation of English Fiction (Chicago: University of

Chicago Press, 1988), p. 10. Ela cita a segunda passagem a partir de Cobbett,Weekly PoliticalRegister,7(1805),p.372.

42.Id.,ibid.,citadoapartirdeCobbett,WeeklyPoliticalRegister,7(1806),p.845.43.Id.,ibid.,p.9,citadoapartirdeCobbett,WeeklyPoliticalRegister,27deagostode1823.44.UniversalDeclarationofHumanRights,<http://www.un.org/en/documents/udhr/>.45.SamuelJohnson;JohnWalkereR.S.Jameson(orgs.),ADictionaryoftheEnglishLanguage,2a

ed.(Londres:WilliamPickeringChanceryLane;GeorgieCowie&Co.PoultryLane,1828),p.204.Omesmodicionáriode ine“digni icar”como“promover;elevar;exaltar;honrar;adornar;dar lustroa”,lembrandoaíntimaassociaçãoentrehonraedignidade.

46.EdmundBurke,Re lectionsontheRevolutioninFrance(1790)(NovaYork:OxfordUniversityPress,1999),p.49.[Re lexõessobreaRevoluçãoemFrança, trad.RenatodeAssumpçãoFaria,DenisFontes de Souza Pinto e Carmen Lídia Richter Ribeiro Moura. Brasília: Editora Universidade deBrasília,1969.]

47. ThomasHobbes,Hobbes’s Leviathan reprinted from the editionof 1651withanEssayby theLateW.G.PogsonSmith (Oxford:ClaendonPress,1909).Cap.xvii:“OftheCauses,Generation,and

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De inition of a Common-Wealth”, <http://oll.libertyfund.org/title/869/208775/3397532>.[Leviatã,trad.JoãoPauloMonteiroeMariaBeatrizNizzadaSilva.SãoPaulo:MartinsFontes,2003.]

48. Paramuitos seguidores das religiões de Abraão, evidentemente, um dos fundamentos denossadignidadeéquetodosfomoscriados“àimagemdeDeus”.

49. Seymour Drescher, “Public Opinion and the Destruction of British Colonial Slavery”, emJamesWalvin (org.),SlaveryandBritishSociety1776-1848 (BatonRouge:LouisianaStateUniversityPress,1982),p.29.

50.JamesWalvin,“ThePropagandaofAnti-Slavery”,emWalvin(org.),op.cit.,pp.52-4.51.Id.,ibid.,p.53.Paraasestatísticas,verpp.54-5.52. Citado em Alan Nevins,TheWar for the Union , vol. 2:War Becomes Revolution: 1862-1863

(NovaYork:CharlesScribner’sSons,1960),p.244.53.Id.,ibid.,p.250.54.“Emmaiode1847,dr.Bowringpresidiuaprimeiraassembleiaanualdaligaendividadae

moribunda.Foitambémaúltima”,emDouglasC.Stange,BritishUnitariansAgainstAmericanSlavery,1833-65(Rutherford:FairleighDickinsonUniversityPress,1984),p.88.

55.ParaocomentáriodesirHenryMolesworth,veroartigosobreVincentemSidneyLee(org.),DictionaryofNationalBiography (Londres:Smith,Elder,&Co.,1909),vol.20,p.358.OcomentáriosobreasoportunidadesperdidasfoiextraídodeWilliamMcFeely,FrederickDouglass(NovaYork:W.W.Norton,1995),pp.138-9.

4.guerrascontramulheres

1. Citado em Richard Galpin, “Woman’s ‘Honour’ Killing Draws Protests in Pakistan”, The

Guardian,Londres,8deabrilde1999;<http://www.guardian.co.uk/world/1999/apr/08/14>.2. Sedotta e abbandonata, de 1964, direção de Pietro Germi; história e roteiro de Luciano

Vincenzoni.3. John Webber Cook,Morality and Cultural Differences (Nova York: Oxford University Press,

1999),p.35.4.Melodia foi assassinado em 1978 numa execução ao estilo damá ia, dois anos depois que

saiudaprisão.5. “Il consiglio che voglio dare è di stare sempre attenti, ma di prendere ogni decisione

seguendosempreilpropriocuore”[Oconselhoquequerodaréestaremsempreatentos,masfazercadaescolha seguindosempreopróprio coração].Entrevista comRiccardoVescovo,publicadaem17 de janeiro de 2006 emTestata giornalistica dell’Università degli Studi di Palermo ;<http://www.ateneonline-aol.it/060117ric.php>.

6. “State of the World Population”, Fundo de População da onu (unfpa), 2000;<http://www.unfpa.org/swp/2000/english/ch03.html>.

7.SalmanMasood,“PakistanTriestoCurb‘HonorKillings’”,NewYorkTimes ,27deoutubrode2004: <http://www.nytimes.com/2004/10/27/international/asia/27stan.html>. Islam Online, 11de janeiro de 2007: <http://www.islanonline.net/servlet/Satellite?c=Article_C&cid=1168265536796&pagename=Zone-English-News/NWELayout>.

8.Ver<http://www.scci.org.pk/formerpre.htm>.9. Suzanne Goldberg, “A Question of Honour”, The Guardian, 27 de maio de 1999;

<http://www.guardian.co.uk/world/1999/may/27/gender.uk1>.10. Amir H. Jafri,Honour Killing: Dilemma, Ritual, Understanding (Oxford: Oxford University

Press,2008),p.67.Ghairatquerdizer“honra”tantoemurduquantoempachto.11.Pakistan:HonourKillings of Girls andWomen , Anistia Internacional, setembro de 1999 (ai

Index:asa33/18/99).KalpanaSharma,“KillingforHonour”, TheHindu,Chennai,Índia,25deabril

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de1999,recuperadoemWestlaw,6dejunhode2009,ref:1999wlnr4528908.12.Pakistan:HonourKillingofGirlsandWomen,pp.5-6.13.Galpin,“Woman’s‘Honour’KillingDrawsProtestinPakistan”.14.Jafri,op.cit.,p.125.15. Zaffer Abbas, “Pakistan Fails to Condemn ‘Honour’ Killings”, bbc Online, 3 de agosto de

1999;<http://news.bbc.co.uk/2/hi/south_asia/410422.stm>.16. Irfan Husain, “Those Without Voices”, Dawn Online Edition, Karachi, Paquistão, 6 de

setembrode2008;<http://www.dawn.com/weekly/mazdak/20080609.htm>.17. Rabia Ali,The Dark Side of “Honour”: Women Victims in Pakistan (Shirkat Gah Women’s

ResourceCentre,Lahore,2001),p.30.18. “MoC consulting stakeholders on newatta”, The Business Recorder, 19 de novembro de

2009;<http://brecorder.com/index.php?id=988220>.19. Ver a discussão da estrutura social dos pachtos em Ali Wardak, “Jirga — Power and

Traditional Con lict Resolution in Afghanistan”, em John Strawson (org.), Law After Ground Zero(Londres: Glasshouse Press, 2002), pp. 191-2 e 196. Sobre o Pashtunwali, ele cita N. Newell e R.Newell,TheStruggleforAfghanistan(Londres:CornellUniversityPress,1981),p.23.

20.Jafri,op.cit.,p.76.21.Id.,ibid.,p.7.22.Id.,ibid.,pp.66e123.23.Ver<http://www.paklinks.com/gs/culture-literature-linguistics-148820-ghairat.html>.24.JasonBourke,“TeenageRapeVictimExecutedforBringing‘Shame’toHerTribesmen”, The

Guardian, 18 de abril de 1999;<http://www.guardian.co.uk/Archive/Article/0,4273,3855659,00.html>.

25.Ver<http://www.pakistani.org/pakistan/constitution/preamble.html>.26.ncswReportontheQisasandDiyatOrdinance,p.68.Nãoencontreioutrasreferênciasaessa

declaração.27.Shamoonalias v.TheState, 1995,scmr 1377, citado emncswReporton theQisasandDiyat

Ordinance,p.35.28. Também no caso da escravidão, a emancipação legal é apenas o começo. Ver Kwame

Anthony Appiah, “What’s Wrong with Slavery?”, em Martin Bunzl e K. Anthony Appiah (orgs.),BuyingFreedom(Princeton:PrincetonUniversityPress,2007),pp.249-58.

29. Naeem Shakir, “Women and religious minorities under the Hudood Laws in Pakistan”,postadoem2dejulhode2004em<http://www.article2.org/mainfile.php/0303/144/>.

30.DavidMontero, “RapeLawReformRoilsPakistan’s Islamists”, ChristianScienceMonitor, 17denovembrode2006;<http://www.csmonitor.com/2006/1117/p07s02-wosc.html>.

31.Paraexemplos,verJafri,op.cit.,pp.115-6.32.State of Human Rights in 2008 (Lahore: Human Rights Commission of Pakistan, 2009), p.

134.33. Beena Sarwar, “No ‘Honour’ in Killing”, News International, 3 de setembro de 2008;

<http://www.thenews.com.pk/daily_detail.asp?id=133499>. (Beena Sarwar, até onde sei, não temparentescocomSamiaSarwar.)

34. Naturalmente, sei que, quando lhe apresentaram umamulher “apanhada em adultério”,Cristo disse: “Atire a primeira pedra aquele que, entre vós, nunca tiver pecado” (João 8, 7).MasnemaquinememqualqueroutrolugarCristorepudiaexplicitamenteasleisdeMoisés,assimcomoo profetaMaomé, ao colocar as provas exigidas para a acusação de adultério, não rejeita a visãoárabetradicionaldequeoapedrejamentoéapenalidadeadequada.

35.VerPakistan:HonourKillingsofGirlsandWomen,p.8.36.VerJafri,op.cit.,pp.115-7.

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37.Id.,ibid.,pp.92-3.38. Existe no Paquistão uma rede de refúgios femininos públicos chamadaDar ul-Amans. O

primeirodelesfoicriadoemLahoremuitosanosatrás,maselessãoamplamenteconhecidoscomolocaispoucoamistosos.VerMeeraJamal,“HaplessWomenCallDarulAman‘NoLessThanPrison’”,DawnInternetEdition,13deagostode2007;<http://www.dawn.com/2007/08/13/local1.htm>.

39.Galpin,“Woman’s‘Honour’KillingDrawsProtestinPakistan”.40.PhilipD.Curtin,TheAtlanticSlaveTrade:ACensus (Madison:UniversityofWisconsinPress,

1969),p.136.

5.liçõeselegados

1.AlexisdeTocqueville,DeladémocratieenAmérique,5aed.(Paris:Pagnerre,1848),vol.4,pp.

152-3. [A democracia na América, trad. Neil Ribeiro da Silva. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte:Itatiaia,1987.]

2. Immanuel Kant,Groundwork of the Metaphysics of Morals, Mary Gregor (org.), CambridgeTexts in the History of Philosophy (Cambridge: Cambridge University Press, 1997), p. 7.[Fundamentaçãodameta ísicadoscostumes,trad.GuidoAntôniodeAlmeida.SãoPaulo:BarcarollaeDiscursoEditorial,2010.]

3.Id.,ibid.,p.11.4. Trato de algumas dessas obras recentes de psicologia moral em meu livroExperiments in

Ethics.5.JohnLocke,TheWorksofJohnLockeinNineVolumes ,12a ed. (Londres:Rivington,1824),vol.

8, “Some Thoughts Concerning Education”;<http://oll.libertyfund.org/title/1444/81467/1930382>.

6.Horácio,Sermones,i,p.6;ii,pp.7-8.7.Id.,ibid.,ii,pp.34-7.8.Devofrisarqueidentidadesatribuídaspelonascimentoepelapertençaaumafamíliapodem

ser bases operacionais para a parcialidade. Você temo direito (na verdade, às vezes o dever) detratarAmelhordoqueBsimplesmenteporqueAésuairmãeBnãotemnenhumparentescocomvocê. Mas reconhecer algo como motivo para parcialidade é reconhecer que não há nenhumasuperioridade intrínseca àquelas pessoas com quem somos parciais: se houvesse, as razões parafavorecê-laspoderiamserimparciais.VerAppiah,TheEthicsofIdentity,cap.6.

9. David Hume; L. A. Selby-Bigge (org.),Enquiries Concerning the Human Understanding andConcerning thePrinciplesofMoralsbyDavidHume,2a ed. (Oxford:ClarendonPress,1902),p.265.[Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral , trad. José Oscar deAlmeidaMarques.SãoPaulo:EditoradaUnesp,2004.]

10.Newman,TheIdeaofaUniversity,pp.208-11.11.RupertBrooke,“TheDead”,em1914:FiveSonnets(Londres:Sidgwick&Jackson,1914),p.3.12.Quantoàsrazõesparapensarassim,verPaulRobinson,MilitaryHonourandConductofWar:

FromAncientGreecetoIraq(Londres:Routledge,2006).13.BrennanePettit,op.cit.,p.260.14.Éocontráriodeumbempúblico:éummalpúblico.15. Atul Gawande, “The Cost Conundrum: What a Texas Town Can Teach Us About Health

C a r e ” , The New Yorker , 1o de junho de 2009;<http://www.newyorker.com/reporting/2009/06/01/090601fa_fact_gawande>.

16. “Rumsfeld Testi ies Before Armed Services Committee”, transcrição do depoimento aoSenado na sexta-feira, 7 de maio de 2004, em <http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A8575-2004May7.html>.

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17. Ian Fishback, carta ao senador John McCain, publicada emThe Washington Post , 28 desetembro de 2005, com a manchete “A Matter of Honor” [Uma questão de honra];<http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2005/09/27/AR2005092701527_pf.html>. Ver também Tara McKelvey,Monstering:InsideAmerica’sPolicyofSecretInterrogationsandTortureintheTerrorWar (NovaYork:BasicBooks,2008),pp.6-7.

18. Coleen Rowley, “Ian Fishback”, revista Time, 30 de abril de 2006;<http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,1187384,00.html>.

19.McKelvey,op.cit.,p.179.20. TimDickinson, “The Soldier: Capt. Ian Fishback”, RollingStone, 15 de dezembro de 2005;

<http://www.rollingstone.com/news/story/8957325/capt_ian_fishback>.21.McKelvey,op.cit.,p.179.22.NicholasKristof,noprefáciodeIntheNameofHonor:AMemoir,deMukhtarMai,p.xiv-xv.