Apresentação de Pacientes: Redescobrindo a clínica

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    Ao se posicionar no campo da Sade Mental, o analistano o far sem produzir conflitos, uma vez que a in-cidncia do discurso analtico implica a introduo de umsaber que favorece a singularidade no interior da instituiotradicionalmente mdica. Uma pergunta que se coloca : comoabrir espao ao sujeito da palavra no interior de uma institui-

    o que opera com uma lgica universalizante e silenciadora?Ainda que no seja uma tarefa fcil, no sem precedentes.Podemos buscar inspirao no trabalho de Lacan que, por cerca

    Psicloga epsicanalista; mestreem Psicologia,UFMG, e especialistaem Sade Mental Clnica.

    APRESENTAO DE PACIENTES:(RE)DESCOBRINDO A DIMENSO CLNICA

    Cristiana Miranda Ramos Ferreira

    RESUMO: Nos ltimos anos, a prtica da apresentao de pacientesvem crescendo no campo psicanaltico, e isto se deve, sem dvida,aos incontestveis efeitos clnicos por ela produzidos. Para se fazeruma anlise crtica e avanar nas elaboraes e sistematizaes

    acerca da apresentao, preciso conhecer as bases conceituaissobre as quais o processo se deu. Procura-se, aqui, esboar ummapeamento histrico, procurando identificar as circunstnciasde seu surgimento, transformaes pelas quais passou, at seu usono momento atual.Palavras-chave: Apresentao de pacientes, psicanlise, clnica.

    ABSTRACT: Patient Presentation: (re)discovering the clinicaldimension. On the last years, the practice of patient presentation

    comes growing in the psychoanalytic field, and this is, without adoubt, because of the incontestable clinical effects that it produces.To become a critical analysis and to advance in the elaborationsconcerning the presentation, it is necessary to know the conceptualbases on which the process occurred. This work has as objectiveto sketch a historical mapping, seeking for identifying the circum-stances of its sprouting, transformations through which it passeduntil its use at the current moment.Keywords: Presentation of patients, psychoanalysis, clinic.

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    de 30 anos realizou apresentaes de pacientes em hospitais psiquitricos. Aoassociar a psicanlise a essa prtica, tradicionalmente mdica, Lacan no apenasproporcionou um dilogo acerca da interseo entre psiquiatria e psicanlise,

    mas possibilitou, sobretudo, que a fala do paciente ressoasse no universo ins-titucional. Como nos indica Franois Leguil, (...) a apresentao de Lacan hoje a pedra angular de nossa reflexo sobre a presena do analista no hospital(LEGUIL, 1998, p.99).

    E no apenas as apresentaes de Lacan. De fato, demos continuidade prticade Lacan. Pelo menos no Campo Freudiano, as apresentaes tm se tornadofreqentes, no apenas enquanto prtica realizada em instituies de tratamen-to, mas tambm nos encontros e conversaes, nas quais seus efeitos clnicose institucionais tm sido tema de discusso. Experincias que, como nos disseJ. A. Miller no Conciliabule dAnger(1998),por estarem acontecendo em escala maior,j nos permitem algumas elaboraes.

    por isso que, mesmo sabendo que debater sobre a prtica das apresentaesde pacientes entrar num terreno polmico e controverso, ns, psicanalistas,no podemos nos furtar de avanar nessa discusso. Afinal, se, vez por outra,o repdio a este exerccio volta cena, o que nossa prtica nos ensina que,realizada seguindo os pressupostos psicanalticos, a apresentao pode ser umimportante dispositivo clnico, que produz efeitos sobre o paciente, sobre a

    equipe e sobre a instituio.A falta de consenso em torno da prtica da apresentao de pacientes , po-

    demos dizer, histrica. Ao longo dos anos, ela encontrou tanto praticantes fiis,como opositores implacveis. Foi condenada por uns, defendida por outros, ousimplesmente utilizada sem maiores questionamentos por outros tantos.

    Assim, se quisermos nos posicionar nessa conversa, preciso reconhecer,de incio, que, se h crticas, estas no so de todo infundadas. verdade que aapresentao de pacientes um dispositivo de aplicao prtica de uma teoria,

    operando, assim, em acordo com os princpios ticos e ideolgicos daquele quedela se utiliza. Ou seja, esta no uma prtica homognea, mas ao contrrio,tem tantos senhores quanto diversidade de abordagens psiquitricas.

    Assim, como nos indica Lantri-Laura, reconhecer o campo histrico fundamental:

    Somente esse tipo de esclarecimento [histrico] pode nos ajudar a relativizar o

    prprio presente da psiquiatria, pois s podemos adotar uma atitude de interesse crtico

    frente psiquiatria de 1980 (no nosso caso, a apresentao atual), sob a condio

    de ver nela o desembocar e a complicao progressiva de um conjunto de questes que comearama ser levantadas pelo menos no final do sculo XVIII. Logo, esclarecer o presente

    pelo conhecimento de seu passado e, pelo mesmo movimento, relativiz-lo: o es-

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    tudo histrico aparece, assim, como o meio para um conhecimento mais exato da

    psiquiatria, conhecimento que possui um valor prtico incontestvel e que nunca

    se limita a um adorno erudito. (LANTRI-LAURA, 1989, p.14, grifos nossos)

    SOBRE O NASCIMENTO DA APRESENTAO DE PACIENTES

    A apresentao de pacientes uma prtica originalmente psiquitrica que consisteno exame do paciente, realizado pelo mdico diante de um pblico composto,em geral, pelo corpo clnico e por alunos.

    De acordo com Michel Foucault (2005), teramos como primeiro indciodo uso da apresentao de pacientes, uma proposta de um curso de clnica dasenfermidades mentais oferecido por Esquirol, em Salptrire, j em 1817.

    Uma primeira observao que podemos extrair dessa informao de Fou-cault o quo precoce foi o surgimento da prtica da apresentao em relaoao surgimento da prpria psiquiatria. Se consideramos que o nascimento dapsiquiatria se d no ano de 1793, data em que Pinel assumiu suas funes emBictre, como props Foucault em sua clebre Histria da loucura (1972),temos queesta, e a apresentao de pacientes, so praticamente contemporneas. Outrainformao importante que, em se tratando de um curso de clnica, temos,nesta primeira referncia sua utilizao, que a apresentao de pacientes surgiu

    enquanto dispositivo destinado ao ensino da psiquiatria. Precisamos, pois, reco-nhecer na apresentao uma vocao didtica, sem, no entanto, reduzi-la a isto.Pelo contrrio, nesse momento de seu nascimento, a apresentao de pacientesconstitui, para alm do ensino, um importante instrumento clnico.

    Um instrumento clnico to adequado a essa psiquiatria nascente que, segundoFoucault (2005), no perodo de 1830-1835, a prtica de apresentao j haviaalcanado tal repercusso que, na Frana, era exercida por todo chefe de servio,mesmo por aqueles que no estavam envolvidos com o ensino.

    No perodo anterior revoluo de Pinel, a concepo da loucura era marcada

    pela crena na incurabilidade. Os mdicos de ento tinham absoluto desinteresseseja pelo bem-estar dos doentes, seja pela observao de seus sintomas, ou peloseu tratamento.

    Mitificado como o homem que libertou os loucos de suas algemas, o ato dePinel no era apenas humanitrio, mas estava guiado por interesses cientficos.Ele sustentava ser impossvel determinar se os sintomas mentais resultavam dedoena mental ou dos efeitos das correntes e das distores impostas pelo descon-forto e violncia, at cruel, das administraes dos velhos hospcios (PESSOTTI,

    1996). Ele entendia que o homem alienado deveria ser bem tratado, para poderassim ser observado, analisado empiricamente. Pautados pela necessidade dediagnstico e tratamento corretos da loucura, Pinel introduziu assim o chamado

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    mtodo clnico, que implicava na observao prolongada, rigorosa e sistemticados pacientes, transformando-os de loucos em verdadeiros doentes mentais.

    Pinel fez uma redefinio profunda das funes do manicmio. Com Pinel,

    o manicmio passou de lugar de depsito, a ser parte essencial do tratamento,um instrumento de cura. Segundo Isaias Pessoti:

    Nesse projeto [de Pinel], o manicmio deveria ter duas funes bsicas e peculia-

    res: servir como ambiente privilegiado para a observao sistemtica do compor-

    tamento dos pacientes, a fim de refinar os diagnsticos e, de outro lado, assegurar

    aos pacientes experincias reais que corrigissem pedagogicamente os vcios de sua

    razo desviada. (PESSOTTI, 1996, p.167)

    Ou seja, nesta poca acreditava-se que a cura derivaria do prprio funciona-mento do asilo: do isolamento, que permitia que a loucura se manifestasse emsua forma verdadeira; e do rigor das normas e regras sustentadas em medidaspunitivo-teraputicas, que visavam controlar e adequar o comportamento dolouco, sustentados na presena fsica do mdico. A estratgia era vulnerar, furara onipotncia da loucura submetendo-a a uma vontade ainda mais vigorosa edotada de um poder superior: a realidade do mdico.1

    O que podemos ver que a apresentao de pacientes atendia a essas duasproposies de Pinel para o manicmio. Por um lado, a apresentao servia comoum dispositivo muito apropriado para a observao e para o estudo minuciosodo enfermo, visto que favorecia a apreenso dos fenmenos a partir de sua des-crio, detalhada pelo prprio paciente. Por outro lado, as condies em quea observao se dava eram muito favorveis para estabelecer a relao mdico-paciente, essencial, na concepo de Pinel, para esse tipo de tratamento.

    A apresentao era feita na forma de um interrogatrio que colocava o pacientenuma posio de submisso ao saber do mdico. Isto porque, diferente do quepoderamos imaginar, a inteno do mdico no era obter informaes sobre

    o paciente (ainda que isso ocorresse), pois de fato ele ia para o interrogatriomunido de informaes detalhadas sobre o paciente tanto sobre sua histriade vida, quanto de sua doena, como de seu comportamento no asilo. A intenodo interrogatrio era levar o paciente a reconhecer sua doena, pois se acreditavaque o primeiro passo para o tratamento era o reconhecimento desta somentea partir da confisso da doena, o enfermo poderia desfazer-se dela.

    1 Para entendermos melhor, a idia do poder/presena do mdico como forma de tratamento,tomemos um exemplo de Georget (1795-1828), apresentado por Foucault. Georget dava como

    conselho aos mdicos que no se deveria negar a um alienado a condio que este pretendiater. Se o paciente dizia ser rei, pois bem, era preciso mostrar-lhe que, mesmo sendo rei, elecarecia de poder, estando, portanto, submetido ao mdico e que, este sim, podia tudo sobreseu paciente (FOUCAULT, 2005, p.175).

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    A estratgia fundamental para levar o paciente confisso era a confrontao doque este dizia com aquilo que o mdico sabia sobre ele. O objetivo que o pacienteabrisse mo de sua realidade delirante, de sua realidade particular, e chegasse no

    apenas a consentir com a realidade socialmente compartilhada, reconhecida, mastambm com a verdade de sua doena, de sua loucura. E ainda mais, era precisoevidenciar a crise, atualiz-la concretamente: Sim, escuto vozes!; Sim, tenhoalucinaes!; Sim, creio ser Napoleo! E isso minha doena.2

    Assim, o interrogatrio foi uma das principais estratgias de intervenopara a psiquiatria do sculo XX, que entendia que tratar a loucura era adequaro louco realidade. A apresentao de pacientes sim a forma como ficou co-nhecida a realizao do interrogatrio do paciente quando realizada diante deum pblico. Assim, o interrogatrio, e conseqentemente a apresentao, seconsolidaram como importantes maneiras de extrair a verdade do paciente, delev-lo a dizer a verdade.

    Apesar de no haver relatos diretos sobre os efeitos teraputicos do inter-rogatrio ou, mais especificamente, da apresentao, esta se tornou, como jdissemos, um dos procedimentos mais importantes e mais constantes dentroda prtica psiquitrica.

    Tanto que, mesmo no perodo posterior, quando em funo da nfase maiorna viso organicista o tratamento moral comeou a cair no descrdito e o ma-

    nicmio deixou de ser, ele mesmo, um instrumento de cura, a importncia daapresentao de pacientes se manteve. Podemos supor que isso se deu porque,mesmo que o jogo de foras e poder do mdico sobre o paciente tivesse perdidoum pouco seu sentido teraputico, por outro lado, a apresentao continuavaservindo como excelente dispositivo de investigao diagnstica e de constituiodo saber psiquitrico.

    Psiquiatras como Griesinger (1817-1868), que ficou conhecido como o pri-meiro dos organicistas e influenciou toda a gerao posterior, mesmo focandoo interesse de suas investigaes no locus orgnico da doena, no descartou aimportncia de conhecimento dos pormenores da personalidade do pacientecomo forma de conhecer a doena.

    Jean Pierre Falret, psiquiatra francs, que recebeu influncias de Griesinger,por exemplo, no seu livro De Lenseignement clinique des maladies mental (1850), colocavao interrogatrio pblico no primeiro plano do exame clnico. Segundo ele, erapossvel perceber nestas situaes o esforo do paciente em responder s ques-tes, talvez como forma de compensar o esforo, que percebiam, da dedicaodo mdico:

    2 Referindo-se aqui ao sr. Dupr, cuja cura foi relatada por F. Leuret em Du Traitement moralde la folie 1840, e trabalhada por Foucault. Conf.: El poder psiquitrico (2005), Clase del 9 deenero de 1974.

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    com freqncia, o relato de sua enfermidade, feito em todas as suas vicissitudes,

    impressiona intensamente os alienados, que do testemunho de sua verdade com

    uma satisfao visvel e se comprazem em entrar em maiores detalhes para completar

    seu relato, assombrados e envaidecidos, de certo modo, de que se tenham ocupadodeles com suficiente interesse para poder conhecer toda sua histria. (FALRET apud

    FOUCAULT, 2005, p.221)3

    Dessa forma, longe de uma dimenso puramente didtica, a apresentaose consolidou com uma dimenso marcadamente clnica: de investigao dedescrio de diversas sndromes e entidades nosolgicas. Podemos mesmo dizerque, dentre as intervenes no asilo, foi justo o interrogatrio que mais aproxi-mou a atuao mdica de um trabalho realmente clnico. Afinal, ele colocava omdico no exame direto do paciente. Assim, temos, na apresentao, o mdicoem duplo registro: de examinador do paciente e educador, mestre dos alunos ao mesmo tempo numa funo de cura e de ensino.

    Contudo, no obstante seu importante carter clnico, um aspecto curioso que, na maior parte dos textos em que encontramos alguma referncia s apre-sentaes de paciente realizadas pelos representantes da psiquiatria clssica, tantofrancesa, quanto alem, estas so caracterizadas como um dispositivo eminen-temente didtico, caracterizado pela exibio do saber do mestre, sustentado na

    exposio pblica do paciente. A pergunta que se coloca : por que nos relatoshistricos essa dimenso clnica ficou relegada a um segundo plano? Ou melhor,seria dizer: Por que ela passou a ser ignorada, esquecida?

    SOBRE O DECLNIO DAS APRESENTAES DE PACIENTE

    Encontramos algumas indicaes que nos levam a pensar que essa caracteriza-o da apresentao como dispositivo didtico em essncia um retrato do usodesse dispositivo num perodo muito particular, mais precisamente, a partir da

    segunda metade do sculo XX.Segundo Francisco Paes Barreto, em meados do sculo XX a psiquiatriaclssica, por ser detentora de um saber j constitudo, atravessava uma fase deestagnao. Esta j no apresentava mais progresso dos conhecimentos semio-lgicos ou nosolgicos, uma vez que seu mtodo descritivo j havia chegado aolimite de suas possibilidades (BARRETO, 1988).

    Vemos, assim, que a psiquiatria perde o equilbrio em que se encontrava no cruzamento entre aquilo que investigava, aquilo que encontrava e o queconseguia transmitir. Numa posio de observao pura e simples, se acomodara

    em seu saber ento constitudo. A apresentao, que funcionava como ponto de

    3 Traduo livre do espanhol.

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    aplicao e produo de saber, perdeu seu lugar dinmico de inveno, ficandoabandonada ao automatismo acadmico, restringindo-se funo de ilustraoviva dos quadros conhecidos, que justamente a imagem que chegou at ns

    (LEGUIL, 1998).Associado a essa crise interna da psiquiatria clssica, a nfase na concepo

    organicista que ganhou fora na segunda metade do sculo XIX, transformarao tratamento manicomial em um conjunto de intervenes bastante violentas,calcadas na idia de que somente por meio de intenso sofrimento fsico, se po-deria atuar sobre o crebro doente teraputico. Essa situao tornara-se aindamais insustentvel no ps-guerra, o que favoreceu o surgimento de movimentoshumanitrios que passaram a questionar as instituies, os manicmios e suasprticas de tratamento.

    Dentre esses movimentos, merece destaque a antipsiquiatria, cujos maioresexpoentes foram os psiquiatras ingleses Laing e Cooper. Este movimento, ocor-rido nos anos 1960 do sculo passado, fez severas crticas psiquiatria clssica.Buscava destruir o valor do saber/poder mdico, colocando em questo suafuno mdica de produo da verdade da doena no espao hospitalar.

    Com relao apresentao de pacientes, os representantes da antipsiquiatria,no apenas a condenavam como um instrumento de abuso do poder mdico,como a escolheram como paradigma, como referncia ilustrativa, para demons-

    trar o pice desse poder. Usaram como bandeira a figura de Charcot, que haviaficado conhecido entre outros motivos, por suas clebres apresentaes.

    Charcot foi de um perodo bem anterior antipsiquiatria. Seu momento maisprofcuo e suas apresentaes mais famosas se deram por volta de 1885/1887.Entretanto, estas apresentaes ficaram na histria por serem verdadeiros espe-tculos a ttulo de verificao cientfica e ensino, ele submetia os pacienteshistricos hipnose, utilizando-se da sugestionabilidade desses para fabricar ossintomas que desejava demonstrar. Esse procedimento que, muitas vezes, che-

    gou mesmo a se confundir com espetculos circenses, foi tomado como marcode abuso e objetificao. A forma como a antipsiquiatria se apropriou e falouda apresentao, foi outro fator que influenciou a idia que nos chegou do queteria sido esta prtica enquanto um dispositivo unicamente didtico. Idia queainda habita o imaginrio daqueles que a utilizam e, sobretudo, daqueles quecondenam a prtica de apresentao de pacientes.

    Podemos destacar ainda uma terceira situao que influenciou de mododecisivo na imagem da apresentao de pacientes enquanto dispositivo essen-cialmente didtico. Por volta dos anos 1950, o desenvolvimento alcanado pela

    psicofarmacologia favoreceu o desenvolvimento de uma clnica da medicao.O surgimento do DSM, em 1952, como um modelo de procedimento operacio-nal, que tinha por base uma resposta padro, a administrao de determinada

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    substncia, visando preencher a ausncia de signos patognomnico e exameslaboratoriais em psiquiatria. Segundo Laurent, temos a, nesse modelo, umareduo do saber que se quer obter, pois poucos pontos passaram a servir de

    parmetro para atender sua necessidade, hoje reduzida a medicar o sintoma(CLASTRES et al., 1991).

    Neste caso, porque no h mais interesse nos detalhes fornecidos pela falado paciente, o uso da apresentao permaneceu, mas ficou reduzida a um dis-positivo universitrio, demonstrativo. Afinal, sendo a apresentao uma prticaintrinsecamente articulada ao saber psiquitrico que a condiciona, no poderiaoperar de outra forma. Na medida que esta psiquiatria se serviu da apresen-tao, esta s poderia se dar neste mesmo formato reduzido, empobrecido4.Sua nica vocao ilustrar aquilo que se professa para animar o saber, masa apresentao j no faz prova de verdade de uma confrontao como fazia(LEGUIL, 1998, p.199).

    Assim, a prtica da apresentao to importante, to utilizada pela psiquiatriaclssica, perde seu lugar de destaque, enquanto instrumento clnico, at sua(re)apropriao por Lacan.

    AS APRESENTAES DE LACAN

    Assim, em meados do sculo XX, apesar de j no ter mais o mesmo lugar de

    destaque, a apresentao era uma prtica comum nos hospitais. Entretanto, emlugar do aspecto clnico, de interveno e produo de saber mdico, que acaracterizaram em sua origem, ela adquirira um carter marcadamente did-tico: os pacientes eram expostos aos estudantes de psiquiatria como ilustraode pontos especficos da teoria, de quadros clnicos e de fenmenos psicopa-tolgicos. A apresentao de pacientes era, portanto, um espao de demons-trao, tanto dos fenmenos apresentados pelo paciente, quanto do saber domestre, do professor que fazia a entrevista. Pode-se dizer que, marcada pelo

    empobrecimento deste carter puramente didtico, e pelos ataques de seusopositores, a prtica da apresentao estava ameaada de desaparecimento, decair no esquecimento.

    Curiosamente, em lugar de aderir s interrogaes colocadas apresentaoe mesmo psiquiatria clssica, Lacan encontrou interesse nessa psiquiatria ago-nizante e sustentou sua importncia. De fato, a crtica de Lacan psiquiatria desua poca era severa. Mais do que evocar esse saber clssico, Lacan interrogavao abandono de seu carter investigativo, e colocava em questo o alcance dapsiquiatria atual.

    4 Entendendo aqui, empobrecimento, enquanto abordagem focada no sintoma e no maisnos mecanismos de sua formao expressa na fala do paciente.

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    Seu interesse pela psiquiatria clssica englobava tambm a prtica da apre-sentao de pacientes, a qual Lacan no apenas retomou, mas, podemos mesmodizer, renovou, ou ainda mais Lacan a subverteu.

    Como nos indica Franois Leguil, se Jacques Lacan, indo contra o sensocomum, preservou essa prtica, no seria pelo fato de considerar que se deviaainda procurar nela e nela encontrar uma relao especfica e insubstituvel coma verdade que est em causa na clnica? (LEGUIL, 1989, p.97).

    Clnica que conheceu com Clrambault (1872-1934), seu mestre em psiquia-tria, considerado por muitos como o ltimo dos grandes psiquiatras clssicos;e que sustentou na psicanlise, na medida que, como o prprio Lacan ir dizer:ser psicanalista hoje ser clnico, j que, hoje, ser clnico no ser maisverdadeiramente psiquiatra(Lacan apud LEGUIL, 1989, p.97).

    Lacan, por volta dos anos 1930, j se interessava pelo relato do paciente.Assim, nas suas apresentaes, como ele mesmo diria mais tarde, a palavra erado paciente.

    Em suma, e para lhe prestar homenagem, foi em torno dessa paciente, Aime,

    que fui aspirado para a psicanlise. No foi s ela, claro, alguns outros antes e

    muitos depois para quem dei a palavra, eis em que consistem minhas apresentaes de

    pacientes. (LACAN, 1972, CR Rom)5 (Grifo nosso)

    E na medida que se formou psicanalista, do lugar de analista que ele farsuas apresentaes. Assim, Lacan manteve a forma de entrevista pblica, masem lugar da funo didtica, de demonstrao terica prpria das apresentaesde sua poca, ao associar a psicanlise apresentao, Lacan lhe imprimiu umcarter fundamentalmente clnico. Contudo, a clnica que Lacan operava, longeda vertente do interrogatrio e da confrontao do paciente e da produo dacrise, sustentava-se na crena na virtude da palavra para mudar a clnica de

    um caso.De fato, ao aplicar a escuta psicanaltica a essa prtica originalmente psiqui-trica, Lacan a renovou, pois introduziu no dispositivo da apresentao a subversofreudiana. Como sabemos, Freud subverteu a perspectiva mdica justamenteao deslocar o lugar do saber do mdico para o paciente. Assim, instituiu umaclnica que supera essa perspectiva mdica, estabelecendo um verdadeiro cortediscursivo o sujeito, at ento alienado no saber mdico, toma a palavra ele quem tem algo a dizer. No se trata de classific-lo ou de dar-lhe respostas,mas, antes, de dar-lhe condies para que produza, ele mesmo, um saber sobre

    seu sofrimento.

    5 Traduo livre do espanhol.

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    O que Lacan fez, enquanto psicanalista, foi acolher o paciente, durante aentrevista, deste mesmo lugar proposto por Freud. E se ele acolhe o sujeito,ele o faz por supor que haja ali algo a ser escutado. No por ter um saber

    a mais um saber sobre o paciente e sobre sua doena , mas ao contr-rio, por reconhecer que algo lhe escapa e que sobre isso s o sujeito podedizer, e ele, Lacan, escuta.

    Lacan fez ento uma mudana radical em relao s demais apresentaes reali-zadas por seus contemporneos: na apresentao de Lacan o paciente quem fala, ele quem ensina. O interesse de Lacan se desloca do saber preexistente ao dizerdo paciente, para os aspectos do caso que escapam a um saber preestabelecido. Osujeito interrogado para nos instruir sobre o seu caso, sobre a interpretao quefaz de sua prpria histria por isso dizemos que o saber est do lado do paciente.Esse o sentido que podemos dar frase de J.A. Miller: O ensino dos doentes,na apresentao de Lacan, assim que preciso dizer... (1996, p.146).

    Ainda que as apresentaes fossem muito ricas, do ponto de vista psicopa-tolgico de percepo dos sintomas, e de investigao diagnstica , seuinteresse no se limitava a isto. Com Lacan, no havia mais produo de crise,nem explorao dos sintomas. Ele, longe de uma demonstrao de fenmenos,procurava localizar a posio subjetiva do paciente, ou seja, procurava, ia atrsdos indcios da posio de gozo do sujeito, de sua posio na relao com o

    Outro, com a linguagem.Como efeito, segundo ric Laurent (1989), o que se podia ver era a surpresa

    dos psiquiatras diante do trabalho de Lacan, pois o que presenciavam ali noera em nada parecido com o que tinham conhecido em sua prpria formao.Em lugar de uma entrevista para demonstrao dos sintomas do doente, podiamtestemunhar o encontro de um psicanalista com um sujeito. Como nos diz ClaudeLger: duas pessoas conversando normalmente diante de um auditrio atentoa este colquio singular (LGER, 1998).

    A forma como Lacan realizava suas apresentaes colocava a trabalho, noapenas o paciente, mas tambm seus alunos. Em 1974, um grupo de psicanalistascomeou a se reunir aps algumas das apresentaes para:

    discutir, tentar compreender como o dr. Lacan procedia, o que ele mesmo buscava,

    sobre o que tinha posto nfase, o que tentava nos ensinar quando a se punha de

    uma certa maneira, quando comentava de uma determinada forma. Tentvamos

    compreender a maneira como interrogava, e, efetivamente, o modelo; o que fazia

    o dr. Lacan. (LAURENT,1989, p.151)

    E foi esse tipo de discusso que Lacan possibilitava que, como dissemos,acabou por acentuar o carter clnico desse trabalho em lugar da restrio a

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    seu objetivo de ensino, de diagnstico, nessas reunies discutia-se a dimensomesma do tratamento, mais precisamente, de sua direo. Este trabalho passoua ter, ento, como objetivo, orientar o que, sob o ponto de vista psicanaltico,

    podia ser feito a propsito do tratamento em questo.No apenas a forma de entrevista de Lacan, mas tambm esse exerccio de

    se reunir para trabalhar um caso clnico aps a entrevista, continua presente naprtica dos psicanalistas lacanianos at os dias atuais.

    APRESENTAES NA ATUALIDADE: DO VALOR DIDTICO AO EFEITO CLNICO

    Apesar de todas as controvrsias, polmicas e modificaes pelas quais passoua prtica da apresentao de pacientes ao longo de sua histria, esta continuapresente nas instituies de tratamento psiquitrico.

    Com relao s apresentaes realizadas pelos psicanalistas de formao la-caniana, podemos dizer que estas tm estado cada vez mais presentes em nossaprtica.

    De fato, Lacan introduziu modificaes de tal forma fundamentais em suaforma de fazer a apresentao, que esta teve alteradas no apenas as articulaesentre os elementos (paciente, pblico e entrevistador), mas tambm o seu ob-jetivo e alcance, sendo hoje, considerada valioso instrumento de intervenoclnica e de transmisso da psicanlise.

    Podemos dizer que essa forma de realizar a apresentao de pacientes a partirda psicanlise to diferente da prtica psiquitrica que podemos mesmo, attulo de facilitar a contraposio, dividir em dois os tipos de apresentao deenfermos: por um lado, a apresentao de pacientes conforme a proposio deLacan, marcada pela escuta analtica, que chamaremos de apresentao clnica.E, por outro, as demais apresentaes, que chamaremos de tradicionais.

    A diferena fundamental quanto ao lugar de saber. Na apresentao tradicio-nal, o entrevistador opera segundo o discurso mdico, ou seja, a partir do saber

    do mestre, preexistente ao dizer do paciente. Nesta situao, a fala do enfermo transformada em signos, em sinais mdicos, sendo reduzida quilo que podeser inscrito em suas classificaes, inscrito em seu campo de saber.

    J na apresentao clnica, como realizada a partir da proposta de Lacan,temos uma mudana radical quanto ao lugar do saber. Como o interesse est emtrabalhar a partir da singularidade, no possvel operar com um saber a priori,uma vez que no h como inferir que interpretao o sujeito d sua histria.Assim, o paciente ocupa uma posio de saber, sendo o sujeito convidado anos instruir sobre o seu caso, sobre seu sofrimento e sobre as sadas que tem

    encontrado.Nesta situao, o analista no tem um saber constitudo para demonstrar,

    como na apresentao tradicional. Pelo contrrio, na apresentao clnica, o

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    apresentador se coloca num lugar de no saber, e tenta, a partir desse lugar, in-terrogar o sujeito para aprender algo do que lhe ocorre, ficando numa posiode ser ensinado pelo paciente, pois do lado deste que se produz o saber que

    ensina. Com esta posio de esvaziamento do saber prvio, Lacan introduziu, a,na apresentao, a dimenso de tych, de surpresa, que corresponde ao encontrodo paciente com aquele que o interroga (QUINET, 1997) e que pode, justamentepossibilitar que algo novo aparea: o momento do desencadeamento, um signi-ficante novo, um neologismo, as premissas de uma transferncia...

    Este novo pode possibilitar importantes efeitos no tratamento: o esclareci-mento diagnstico, indicaes de premissas de uma transferncia, perspectivasde estabilizao, so exemplos de aspectos que podem ser esclarecidos, ou re-definidos, a partir de elementos surgidos durante uma entrevista.

    Como efeito, esses elementos podem ser recolhidos pela equipe e aplica-dos ao tratamento. Pois, efetivamente, a apresentao possibilita fazer umaapreciao mais cuidadosa do caso. De fato, a apresentao um excelentedispositivo clnico, que por permitir que o caso seja interrogado a partir dafala do prprio paciente, tomando por base suas particularidades e o que desingular o sujeito revela, a apresentao, de hbito, favorece o que chamamosde construo do caso clnico, auxiliando no esclarecimento do diagnstico,no estabelecimento de intervenes mais adequadas, na reavaliao do progns-

    tico. Enfim, permite redefinir a direo do tratamento e a implicar a equipea partir de um clculo de aes de cada um de seus membros, dentro de umaestratgia coletiva de interveno produzindo efeitos que em geral podemser constatados a posteriori.

    Nossa experincia com apresentao6 tem demonstrado, inclusive, que ainterveno sobre o tratamento costuma obter resultados to significativos noschamados casos difceis, que esse dispositivo desperta o interesse da comunidadeclnica, at mesmo dos profissionais de formaes outras que no a psicanaltica.

    Diante de impasses da clnica, ao se encontrarem com seus recursos esgotados,muitos deles acabam por demandar esses espaos, buscando outras solues, queno as tradicionalmente utilizadas. Assim, o que vemos que esse dispositivopossibilita que a lgica psicanaltica circule, servindo de orientador ltimo parao trabalho de uma equipe, mesmo que heterognea quanto formao de seusprofissionais.

    6 Tomamos como referncia, um trabalho de seis anos de apresentaes de paciente noInstituto Raul Soares (IRS), hospital psiquitrico da rede Fhemig, no qual aconteciam,

    regularmente, dois espaos de discusso clnica: o Ncleo de Pesquisa em Psicose (desde1999) um projeto do IPSM-MGem parceria com o IRS; e a Sesso Clnica do IRS (2000a 2005). Ambos os espaos de orientao psicanaltica, sendo as entrevistas realizadas poranalistas da EBP-MG.

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    O interessante dessa perspectiva, como nos diz Antnio Beneti, que aprtica da apresentao de enfermos realizada pelo psicanalista no mbito dasinstituies de sade mental possibilita uma mudana radical na clnica desen-

    volvida nas mesmas (BENETI, 1994, p.94), pois seu carter de transmissopossibilita uma reorientao da clnica seja no lugar dado palavra, ao saberdo paciente, seja no manejo que exemplifica.

    Se introduzir a dimenso do particular do sujeito no universal da instituio a contribuio que a psicanlise pode trazer, a forma como isso pode ser feito abrir espao na instituio para o sujeito da palavra, introduzir o particulardo sujeito no universal da instituio. Como nos diz Vigan: Colocar no centrodo trabalho institucional o ato da palavra, mais precisamente o ato que cria apalavra (...) (1998, p.246).

    Mas, ainda mais interessante do que esse efeito sobre a equipe e sobre ainstituio o efeito sobre o sujeito. A inteno que, neste nico encontro, oapresentador consiga algum tipo de efeito sobre o paciente, seja sua implicaosubjetiva, seja um reforo dos laos transferenciais, seja um reposicionamentodiante de sua prpria fala....

    E quase sempre os efeitos so muito positivos para o paciente. Numa pesquisaque investiga os efeitos da apresentao de pacientes no tratamento psicanalticodo sujeito psictico,7 alguns funcionrios do Instituto Raul Soares foram interro-

    gados quanto s modificaes que percebiam nos pacientes aps a entrevista.Os profissionais de nvel superior indicaram que de hbito, aps a entrevista,

    era possvel perceber alguma modificao do paciente em relao ao tratamentoou equipe, como, por exemplo, sua implicao no tratamento, uma posiode maior confiana na equipe, s vezes uma organizao do delrio, ou umaretomada pelo prprio paciente de pontos de sua histria que apareceram naentrevista. s vezes, esse efeito era um apaziguamento. E mesmo quando nose percebia um efeito direto, as mudanas produzidas na equipe repercutiam

    sobre paciente. Como disse um dos entrevistados: Se a equipe muda de posiocom o paciente, logicamente ele sente isso. Ele percebe esta mudana. Logica-

    7 Tomamos como referncia, aqui, dados levantados pela pesquisa: Sobre a eficcia clnicada apresentao de pacientes: investigaes sobre o emprego da apresentao de pacientesno tratamento psicanaltico do sujeito psictico. Trata-se de uma pesquisa que investigaos efeitos clnicos e institucionais produzidos pela Sesso Clnica do IRS espao aberto comunidade clnica do hospital, para trabalhar casos difceis, sob a perspectiva psicanal-tica da construo do caso, realizada, geralmente, a partir da entrevista com o paciente. Estasesso clnica foi realizada no perodo de 1999 a 2004, no IRS Fhemig, sob a orientao

    do psicanalista e, na poca diretor do hospital, dr. Wellerson Dures de Alkmim. Mais tarde,seus efeitos passaram a ser trabalhados a partir de uma parceria com a UFMG, num projetode pesquisa coordenado pelo dr. Jsus Santiago, financiado pelo CNPq, da qual fao partena qualidade de pesquisador.

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    mente, ele melhora. Ele est vendo um investimento, uma nova forma de lidar(FERREIRA, 2006).

    Na literatura atual, h relatos de casos surpreendentes,8 nos quais a apre-

    sentao parece ter tido para o paciente o peso de um acontecimento, de umencontro que toca em sua posio subjetiva, levando a verdadeiras retificaessubjetivas. Tomemos como exemplo um pequeno fragmento apresentado porLiliane Cazenave:

    Recordo por exemplo um adolescente, que se caracterizava por ser muito agitado,

    jogava a bola o tempo todo na sesso e a partir da apresentao que participou

    sem jogar, sentado e conversando, passou a situar que ele j estava no momento

    de deixar de jogar para passar a falar. Foi a concluso que ele extraiu da entrevista

    mesma para seu tratamento: uma mudana de posio com relao palavra. Este

    um saldo que o sujeito testemunhou. (CAZENAVE, 2002, p.80)9

    Podemos dizer que os efeitos clnicos que podem ser produzidos decorremno apenas do enfoque do apresentador, interessado na subjetividade do paciente,mas tambm por alguns outros fatores que favorecem a transferncia.

    Um primeiro ponto que parece contribuir para que uma apresentao tenhaefeitos sobre o tratamento o fato de que, em geral, a equipe que solicita a

    apresentao por encontrar-se com algum tipo de questo em relao a algumcaso muito difcil, com dvida diagnstica, no manejo da transferncia, ouna direo do tratamento, no encaminhamento. H, portanto, uma demandada equipe ao analista, mais precisamente, uma transferncia quele que far aentrevista, ou psicanlise.

    O efeito da transferncia dos tcnicos, no meio no qual circula o paciente,produz efeitos no paciente o lugar na transferncia, que o paciente reservaao apresentador durante a conduo da entrevista , de incio, importado da

    relao deste com a equipe e, conseqentemente, da posio desta com o apre-sentador.Outro ponto que pode favorecer o efeito clnico o fato de o paciente con-

    sentir na apresentao condio fundamental para a realizao da entrevista.Em geral, esse consentimento advm da percepo que o paciente tem de que oterapeuta e/ou a equipe tem esperana de que isso vai apontar-lhe algo no queconcerne ao seu tratamento.

    8 Sobre o tema, cf. Ferreira (2006), Sobre o efeito clnico da Apresentao de Pacientes, in

    Papis de Psicanlise: pequenas invenes psicticas, ano 3, n.2 (maio 2006) Belo Horizonte: Institutode Psicanlise e Sade Mental de Minas Gerais. E Ferreira (2006a) Apresentao de pacientes:(re)descobrindo a dimenso clnica. Dissertao de mestrado. UFMG.9 Traduo livre do espanhol.

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    Muitos pacientes chegam mesmo a ter interesse em ser apresentados, sabendoque encontraro um auditrio atento a seus problemas, em ocasio um tantoou quanto solene, bem diferente da entrevista cotidiana, individual um ter-

    reno frtil para compartilhar seja seu drama, seja suas inquietudes (CLASTRESet al.,1991, p.40).

    E realmente, a apresentao costuma ser benfica, pois pela particularidade dasituao, a entrevista de paciente parece favorecer certa formalizao do discurso.Isto porque, como nos indica Genevive Morel (1999): diferentemente do que sed, por exemplo, nas entrevistas preliminares, quando o analista pode utilizar-sede vrios encontros para esclarecer os pontos de interesse, na apresentao, sualimitao a uma nica entrevista pede ao apresentador uma posio mais ativa.Da mesma forma, o paciente sabe que no ir retornar quela situao, o queresulta num efeito de condensao, de precipitao do tempo de compreendere do que preciso dizer, pois se sabe que esse encontro ser nico.

    Resgatamos a dimenso clnica da apresentao, mas ao que parece, aindano sabemos, verdadeiramente, o alcance de suas possibilidades. Sem dvida, hum campo frtil de investigao, e, por certo, muitas questes para responder:Em que se sustentam os efeitos que a se produzem? Do lado do analista, o queo autoriza ao ato em uma apresentao? E do lado do paciente, o que o tornasuscetvel a essa interveno? Qual a funo do pblico?

    Mais do que respostas, o que se tem so suposies, elaboraes iniciais, masque j possibilitam estabelecer algumas coordenadas para uma investigao maissistemtica, que ainda, e cada vez mais, se faz necessria.

    Por fim, importante marcar que no so todas as apresentaes que produ-zem esse tipo de efeito; pelo contrrio, podemos mesmo dizer que esse umencontro raro. preciso considerar que no h garantia de que os resultadossejam sempre positivos: pode ser que nada se produza num encontro, mas podeser, tambm, que testemunhemos efeitos desencadeantes ou de reagudizao

    de uma crise, por exemplo. Assim, formalizar os fundamentos clnicos que aoperam, sistematizar sua aplicao, decerto contribuiria muito, no apenas paraampliar as possibilidades de se produzir um bom encontro e para diminuio dosriscos, mas tambm para aplicar suas conseqncias no tratamento psicanalticoda psicose, de forma geral.

    Nas palavras de Colette Soler: resumindo, diria que os benefcios so ins-truir, colocar prova nossa tcnica de entrevista e experimentar os limites e ascondies de entrada do discurso analtico (SOLER, 1988, p.17).10

    Recebido em 30/10/2006. Aprovado em 12/4/2007.

    10 Traduo livre do espanhol.

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    Cristiana Miranda Ramos Ferreira

    [email protected]