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APRISIONANDO O OUTRO: HISTÓRIA INFAME E ESTEREÓTIPOS DOS SURDOS BRASILEIROS Renata Ohlson Heinzelmann Bosse Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul Ricardo Morand Goes Universidade Federal do Rio Grande Ser surdo é, em primeiro lugar, não ser escutado. Os ouvintes se agitam, falam e de- cidem por vocês [surdos] como se simplesmente não estivessem aí. Os responsáveis oficiais da pedagogia dos surdos foram durante cem anos a ilustração, em escala ins- titucional, do que acontece com as pessoas surdas na sua cotidianidade. E se mostram tão incapazes de prestar atenção aos propósitos dos Surdos, que esses propósitos ficam, de qualquer maneira, desqualificados de antemão ante seus olhos: os surdos não são profissionais, não são especialistas, não sabem do que falam. Bernard Mottez (1992, p. 227) 1 Neste artigo, procura-se mostrar como a tradição cultural surda tem sido capaz de esta- belecer uma identidade dinâmica e performativa, a despeito de sua complexa diversidade. As- sim sendo, nos detemos a trabalhar com os autores Veiga-Neto (2003) e Costa (2003) que abor- dam sobre diferença cultural; bem como Rosa (2012), Perlin e Miranda (2003) e Lane (1992) que abordam sobre diferença e identidade surda. Conceitos estes que pensamos serem signifi- cativos para o desenvolvimento do nosso texto. Também abordaremos a questão terminológica, de três denominações utilizadas para fazer referência aos surdos. São elas: “surdo-mudo”, “deficiente auditivo” e “surdo”. Discuti- remos questões históricas, relacionadas aos casamentos entre surdos, à educação de surdos e alguns dos estereótipos que existem sobre este sujeito. Antes dos anos 50, utilizava-se a denominação surdo-mudo que, com o passar do tempo, mudou para deficiente auditivo. Para a comunidade surda, o termo “deficiente” está relacionado à questão da “cura”, da “falta” de algo, da incapacidade, sendo utilizado principalmente pela área clínica. O termo surdo é o que está mais ligado à comunidade surda, sendo assim possível a exploração de outros níveis de significado. Para Paddy (2002) e Perlin e Miranda (2003), o 1 Sociólogo francês e diretor de pesquisa emérito do CENTRE NATIONAL DE LA RECHERCHE SCIENTIFIQUE EA ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES (EHESS), no Centro para o estudo dos movimentos sociais. Bernard Mottez é conhecido por criar o nome língua de sinais francesa, em substituição à linguagem gestual, importante passo para o despertar surdo.

APRISIONANDO O OUTRO: HISTÓRIA INFAME E ESTEREÓTIPOS … · dam sobre diferença cultural; bem como Rosa (2012), Perlin e Miranda (2003) e Lane (1992) que abordam sobre diferença

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  • APRISIONANDO O OUTRO: HISTÓRIA INFAME E ESTEREÓTIPOS DOS SURDOS

    BRASILEIROS

    Renata Ohlson Heinzelmann Bosse

    Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul

    Ricardo Morand Goes

    Universidade Federal do Rio Grande

    Ser surdo é, em primeiro lugar, não ser escutado. Os ouvintes se agitam, falam e de-

    cidem por vocês [surdos] como se simplesmente não estivessem aí. Os responsáveis

    oficiais da pedagogia dos surdos foram durante cem anos a ilustração, em escala ins-

    titucional, do que acontece com as pessoas surdas na sua cotidianidade. E se mostram

    tão incapazes de prestar atenção aos propósitos dos Surdos, que esses propósitos ficam,

    de qualquer maneira, desqualificados de antemão ante seus olhos: os surdos não são

    profissionais, não são especialistas, não sabem do que falam. Bernard Mottez (1992,

    p. 227)1

    Neste artigo, procura-se mostrar como a tradição cultural surda tem sido capaz de esta-

    belecer uma identidade dinâmica e performativa, a despeito de sua complexa diversidade. As-

    sim sendo, nos detemos a trabalhar com os autores Veiga-Neto (2003) e Costa (2003) que abor-

    dam sobre diferença cultural; bem como Rosa (2012), Perlin e Miranda (2003) e Lane (1992)

    que abordam sobre diferença e identidade surda. Conceitos estes que pensamos serem signifi-

    cativos para o desenvolvimento do nosso texto.

    Também abordaremos a questão terminológica, de três denominações utilizadas para

    fazer referência aos surdos. São elas: “surdo-mudo”, “deficiente auditivo” e “surdo”. Discuti-

    remos questões históricas, relacionadas aos casamentos entre surdos, à educação de surdos e

    alguns dos estereótipos que existem sobre este sujeito.

    Antes dos anos 50, utilizava-se a denominação surdo-mudo que, com o passar do tempo,

    mudou para deficiente auditivo. Para a comunidade surda, o termo “deficiente” está relacionado

    à questão da “cura”, da “falta” de algo, da incapacidade, sendo utilizado principalmente pela

    área clínica.

    O termo surdo é o que está mais ligado à comunidade surda, sendo assim possível a

    exploração de outros níveis de significado. Para Paddy (2002) e Perlin e Miranda (2003), o

    1 Sociólogo francês e diretor de pesquisa emérito do CENTRE NATIONAL DE LA RECHERCHE

    SCIENTIFIQUE EA ECOLE DES HAUTES ETUDES EN SCIENCES SOCIALES (EHESS), no Centro para o

    estudo dos movimentos sociais. Bernard Mottez é conhecido por criar o nome língua de sinais francesa, em

    substituição à linguagem gestual, importante passo para o despertar surdo.

    https://www.furg.br/

  • conceito surdo está relacionado à experiência visual, onde se usa a visão principalmente, além

    do reconhecimento cultural e linguístico. Segundo Perlin e Miranda:

    Experiência visual significa a utilização da visão (em substituição total a au-

    dição), como meio de comunicação. Desta experiência visual surge a cultura

    surda representada pela língua de sinais, pelo modo diferente de ser, de se

    expressar, de conhecer o mundo, de entrar nas artes, no conhecimento cien-

    tífico e acadêmico. (2003, p. 218)

    A denominação surdo apresenta outra perspectiva sobre o que o sujeito surdo pensa; não

    é pejorativo, não nos torna incomuns; a expressão surdo tem um significado cultural que refere

    nossos modos de vida, o que queremos. Para nós, surdos, esta perspectiva é importante, pois

    apresenta as várias possibilidades de se viver na sociedade com todos.

    O livro “Os infames da história” (LOBO, 2015) fala sobre as questões médico-legais

    que envolviam o casamento entre surdos no Brasil, no período entre os séculos XIX e XX.

    Independente da relação de amor entre homens surdos e mulheres surdas e da sua intenção de

    casar, estes dependiam da aprovação médica para efetivarem seus casamentos.

    Médicos influenciaram a legislação no século 18 sobre a consanguinidade2 dos surdos

    do Brasil, vetando casamentos entre surdos que tivessem laços de sangue, ou mesmo herança

    de surdez na família, pois a preocupação geral era na “qualidade” da população do Brasil. Lobo

    relata:

    Comparado ao imbecil, o surdo-mudo vinha logo a seguir na escala das degeneres-

    cências e monstruosidades. Ele foi objeto de acirrado debate entre os adeptos das teses

    consanguinistas e anticonsanguinistas no século XIX e no começo do XX. Mas, qual-

    quer que fosse a origem dos casamentos (consanguíneos ou não), a surdo-mudez era

    quase sempre inata, o que lhe conferia um caráter mais greve de degenerescência e

    atraso mental. (2015, p 61)

    Havia então o impedimento do casamento entre surdos e surdas, sendo preciso verificar

    o histórico de consanguinidade na família, assim se algum deles tinha herança de surdez em

    primeiro, segundo ou terceiro graus, deveriam buscar casamento com outra pessoa que não

    tivesse estas características. Mas, como é possível interferir, desta forma, na vida dos surdos,

    criando uma situação de “amor proibido entre os surdos”? Será que pensavam que os sujeitos

    surdos concordavam com essa ideia? Se casassem escondidos, seria crime e seriam acusados?

    2 Parentesco entre os que descendem de um mesmo pai; laço de sangue.

  • Podemos pensar num casal de ouvintes, que têm um filho surdo e não o aceitam, então optam

    por um Implante Coclear (IC)3 para que este bebê se torne “ouvinte”. Comparativamente, então,

    um casal de surdos, que têm um filho ouvinte, também pode pensar em fazer uma intervenção

    para que o torne “surdo”? Isto seria crime? Assim como Bosse,

    O implante coclear é grande polêmica. Sobre isso temos a tese de doutorado de Patrí-

    cia Rezende (2010). Muitas pessoas ficam chocadas quando digo que sou surda e te-

    nho orgulho disso, que não tenho o menor interesse no implante para virar “ouvinte”.

    Já falei muitas vezes que sempre estou com vontade de fazer o processo de implante

    nas mãos (é a minha imaginação) dos meus filhos e as pessoas se chocam com essa

    inversão, de fazer com que eles se tornem surdos. (2014, p.77)

    No livro de Lobo (2015), encontramos o relato do caso de um menino surdo, que foi

    preso à época, sendo descrito como “(…) ser dotado de índole reversa, indomável, constando

    que nas vésperas da internação tentara contra a vida de sua mãe. Se há uma fácies característica

    do criminoso nato e uma atitude provocadora de agressor contumaz, com facilidade se estam-

    pam no retrato dele”. (p. 62) Aqui se percebe que não há um esclarecimento sobre o menino,

    no sentido de buscar a situação familiar e social em que vivia, se havia comunicação, atendi-

    mento na escola, enfim, em que condições se deu o crescimento deste menino. Citamos Lobo:

    Os médicos, estes sim, distinguiam no surdo-mudo de nascença uma infinidade de

    estigmas físicos, acrescentavam-lhe a imagem lombrosiana do surdo-mudo imbecil,

    violento e de má índole, sobretudo quando não educado (2015, p. 62).

    Pessoas surdas tiveram uma infinidade de estigmas, foram vítimas, muitas vezes, de

    violência pelas famílias, escolas, educadores e clínicas, além da falta de educação adequada e

    de comunicação. Também durante a inquisição, no século XVIII, como podemos ver, no relato

    do caso de Francisco Mendes Simões, encontrado em Lobo:

    Não teve melhor sorte o surdo (que hoje seria chamado vulgarmente de “duro de ou-

    vido”) Francisco Mendes Simões, 47 anos, meio cristão-novo, salvo da morte por um

    “milagre” no século XVIII. No cárcere, “pretende o privilégio da surdez ... não pode

    ter ouvido as declarações de judaísmo que seus inimigos dizem ter feito nem pode

    respondê-las, conforme lhe imputam. Francisco Mendes Simões só percebia quando

    lhe falavam em voz alta e os encontros judaicos sempre dão-se em voz baixa. Bela

    família: filho surdo, mãe vesga, por isso a chamam de torta, almas podres” (Dines,

    1992, p.791). Francisco foi denunciado pela própria mãe, que também amargou as

    agruras da prisão. Mesmo sendo surdo como alegava, era mestre-escola de uma escola

    de meninos, na rua Dr. Clemente Martins, atual São Clemente, em Botafogo, no Rio

    de Janeiro. Na sala da Inquisição, ocorreu o “Milagre, obra da acústica... ou graças à

    3 É um dispositivo eletrónico, parcialmente implantado, que visa proporcionar aos seus usuários sensação auditiva

    próxima ao fisiológico.

  • poderosa voz dos inquisidores, ou ainda, quem sabe, porque Deus Nosso Senhor de-

    sentope seus tímpanos” (p. 793). Francisco ouviu sua condenação à morte e resolveu

    confessar suas práticas judaicas, incriminando 27 pessoas. O “milagre” livrou-o da

    morte, não dos cinco anos nas galés.” (2015, p. 94)

    No século XVIII, a comunidade religiosa defendia a ideia de que as pessoas com defi-

    ciência estariam relacionadas ao pecado, que seriam ruins para a sociedade, além do mito de

    que Deus exigia sua morte. Clínicas e educadores construíram uma face perversa para os surdos,

    inseriram uma máscara, um “disfarce” de sujeito normal. Juízes, médicos e políticos produzi-

    ram também essas e outras máscaras.

    No livro de Lobo (2015) são apresentadas imagens de um sujeito surdo:

    Figura 1: “Consanguinidade e surdo-mudez: caso do “criminoso nato” apresentado na pesquisa de

    Pinheiro Guimarães no Instituto Nacional de Surdos-Mudos (1917)” (LOBO 2015, s/p)

    O pesquisador Pinheiro Guimarães (LOBO, 2015) referiu o sujeito surdo da imagem

    como “criminoso nato”. Por que o chamou de criminoso? Seu comportamento se relacionava

    com sua constituição física, ele não adquiriu linguagem escrita; nem a língua de sinais, não

    havia comunicação com pai, mãe e irmão. Cresceu alimentando um sentimento de revolta desde

    sua infância, transformando-se em uma pessoa violenta na idade adulta. Na verdade, observa-

    mos uma vítima por causa do estigma que foi construído dentro dele, a exemplo do impedi-

    mento de casamento consanguíneo entre os surdos.

    Algumas teses, face de tantas anomalias, principalmente da ameaça da surdo-mudez,

    propunham a proibição dos casamentos consanguíneos, antecipando o movimento eu-

    gênico do século XX. É o caso, além da já citada de Rego Filho (1868), de “Dos

  • casamentos consanguíneos em relação à higiene (1875), de Manoel de Avilez Carva-

    lho. (LOBO, 2015, p. 197)

    Outra citação da mesma autora:

    Mesmo negando a influência da consanguinidade nos casos de surdo-mudez, Pinheiro

    Guimarães confirma as teses das causas inatas: “A surdo-mudez é um episódio da

    degeneração... O surdo-mudo não chega a ser um monstro na acepção rigorosa do

    termo: mas a identidade dos processos patogênicos e a natureza das lesões descobertas

    no surdimutismo congênito levam-no à categoria de forma teratológica abreviada par-

    cial” (GUIMARÃES, 1917, p 60 apud LOBO, 2015, p. 62)

    “Surdimutismo” é um termo que nasce na comunidade surda, quando os surdos adqui-

    rem poder surdo no grupo de esporte, associações dos surdos. No entanto, no instituto, os surdos

    foram encaminhados para tratamento teratológico parcial, para reduzir a cultura. O trabalho da

    clínica patogênica era excluir a língua materna dos surdos, a partir das decisões do II Congresso

    Internacional dos Educadores dos Surdos em Milão (Second International Congress on Educa-

    tion of the Deaf), na Itália, no ano 1880. As práticas de normalização do corpo dos surdos, visto

    como “danificado” sofreu investidas biomédicas, terapêuticas e pedagógicas, bem como a des-

    valorização das línguas de sinais. A proibição dos casamentos entre os surdos ocorreu com o

    objetivo de evitar que gerassem filhos surdos, reduzindo o nascimento de surdos.

    Em suas reflexões, Lobo (2015, p. 62-63) traça um comparativo entre os sujeitos surdos

    e os cegos, afirmando, a partir das pesquisas de Oliveira (1902), na tese Consanguinidade e

    surdo-mudez, que o “desenvolvimento intelectual do cego de nascimento é infinitamente menos

    embaraçado que o do surdo-mudo. O primeiro, mais instruído e geralmente mais inteligente, é

    também mais dócil” (LOBO, 2015, p. 62 apud OLIVEIRA, 1902, p. 55). Na comparação entre

    os sujeitos cegos e surdos, sendo os primeiros mais dóceis porque tem o domínio da língua oral,

    os surdos são descritos como mais rebeldes e violentos porque os professores procuram ensinar

    todos com a mesma metodologia oral padrão.

    Os cegos eram vistos como mais calmos e dispostos a receber os cuidados: “(…) o cego

    – que ao contrário do surdo era alvo privilegiado da caridade e da piedade filantrópica (…)”

    (LOBO, 2015, p. 62). Eram privilegiados porque não representavam perigo, os surdos eram

    vistos como perigosos porque não representavam uma identidade social única com os outros.

  • Pela medicina, os surdos eram tratados como aqueles que mais precisavam de investimentos e

    cura.

    Muitas vezes comparado ao cego, o surdo-mudo ocupava lugar muito inferior: ‘A

    surdo-mudez é uma das enfermidades mais cruéis que afligem a espécie humana, di-

    remos mesmo a mais desolante’, afirma o doutorando Avelino Senna de Oliveira na

    tese Consanguinidade e surdo-mudez, de 1902. (LOBO, 2015, p. 62)

    Ainda o pesquisador Augusto Ferreira dos Santos (LOBO 2015, p. 62) explica que o

    surdo-mudo era embrutecido pela falta da linguagem, incluindo “afecções mentais”; concluiu,

    o autor, que a responsabilidade moral dos surdo-mudo dependeria do grau de educação.

    Por estes motivos, os médicos impediam o casamento entre os surdos no começo do

    século XX: afecções mentais, fraqueza de espírito, demência, idiotia, imbecilidade; além de que

    eles não seriam dotados da mesma inteligência e do mesmo sentimento moral de qualquer outro

    indivíduo. Itard, educador do menino selvagem, que vivia no bosque de Aveyron, afirma que

    entre idiota e um surdo-mudo existe pouca diferença.

    Fardo social – corpos inúteis para o trabalho, a pesar nas costas de toda a sociedade,

    daí a necessidade maior de práticas preventivas de esterilização e controle dos casa-

    mentos ou de recuperação. Nesse momento, começou-se a juntar aos degenerados in-

    feriores, também chamados anormais, os cegos, os surdos-mudos, os aleijados, os do-

    entes, as crianças que não aprendiam, determinados tipos de delinquentes, principal-

    mente os juvenis. (LOBO, 2015, p. 103)

    Existem várias pesquisas de educadores que têm a mesma visão sobre os sujeitos surdos,

    como o estudo do Tobias Leite, com sua teoria sobre o ensino dos surdos-mudos em 1881: “O

    surdo-mudo congênito tem a face pálida, a fisionomia morta, o olhar fixo, a caixa torácica de-

    primida, movimentos lentos e o caminhar trôpego e oscilante, é excessivamente tímido e des-

    confiado” (LOBO, 2015, p. 61). Neste trecho percebe-se uma aproximação com a descrição dos

    sujeitos surdos como aquele que tem outras deficiências e características únicas. Identificamos

    também uma relação com a surdez e outras deficiências: a surdez marca o sujeito, ele acaba

    sendo descrito como surdo que tem uma outra deficiência, e não uma pessoa com deficiência

  • que também é surda. A surdez é uma marca que acaba entrando em evidência nas relações

    sociais.

    Benvenuto (2006) diz que a figura da surdo-mudez é, no século XIX, o protótipo da

    "corrigível incorrigibilidade", assim como a figura do monstro e do masturbador, sendo esses,

    segundo Foucault, os três eixos que constituem o campo da anomalia. (p. 229)

    Na educação, Jean-Jacques Valade-Gabel (1874) fala a respeito do “atraso mental” e

    explica: “Aos 10 e 11 anos de idade o caráter do surdo-mudo não está mais manifesto do que o

    menino que fala aos 4 e 5 anos; são tímidos e inquietos, sombrios e desconfiados, algumas

    vezes irascíveis e violentos: qualidades devidas ao abandono em que de ordinário vivem e às

    dificuldades que sofrem de compreender e de se fazerem compreender” (Guia para os profes-

    sores primários iniciarem a instrução de surdos-mudos, p. 05) (LOBO, 2015, p. 61). Este atraso

    na fala, na comparação entre surdos e ouvintes, acontece porque só apresentam a perspectiva

    da área clínica. Diferente desta relação entre a surdez e a descrição de outras deficiências, temos

    a imagem de L’Eppe com alunos surdos a seguir:

    Figura 2: Abade de L'Epee ensina a língua de sinais para crianças e juventude. Disponível em http://jde-

    lord.free.fr/An2001/lamain_latoile2/millerf/textesignes.html. Acesso em: 01 jul. 2016

    L´Eppe, professor francês, mostrou a capacidade dos surdos em desenvolver a aprendi-

    zagem. Percebe-se que os surdos, na figura 2, são crianças e jovens que se comunicam em

    língua de sinais. A imagem mostra o desenvolvimento da língua materna dos surdos. L´Eppe

    desenvolveu trabalhos com as crianças e jovens surdos, modificando a metodologia para melhor

    http://jdelord.free.fr/An2001/lamain_latoile2/millerf/textesignes.htmlhttp://jdelord.free.fr/An2001/lamain_latoile2/millerf/textesignes.html

  • ensinar os surdos. A partir da língua de sinais, os surdos começavam a ter conhecimento do

    mundo.

    Para Benvenuto (2006, p.236), a educável ineducabilidade de ensinar a língua oral como

    língua primeira as crianças surdas, justificaria a presença do pedagogo, ouvinte, num amplo

    programa de "desmutização" do surdo, que se desenvolveu por um tempo. Assim, foi lastimável

    a perda de Abade de L'Epee, considerado pai surdo pela comunidade surda.

    Atualmente ainda há alguns estereótipos elaborados com base em representações cole-

    tivas (clínica) dos ouvintes. Questiona-se: o surdo@ pode se formar engenheiro? Surd@ pode

    dirigir o carro? Ser piloto de avião? Como se comunica na sociedade? Apresentaremos aspectos

    sobre diferenças das representações.

    Costa (2003) coloca que o conceito de cultura “incorpora novas e diferentes possibili-

    dades de sentido”. É possível pensar sobre os Estudos Surdos, como um aumento no interesse

    pelas questões culturais nas esferas “acadêmicas”, “políticas” e da “vida cotidiana”. Para

    Veiga-Neto (2003) parece crescer a centralidade da cultura para pensar o mundo. “Mas tal cen-

    tralidade não significa necessariamente tomar a cultura como uma instância epistemologica-

    mente superior às demais instâncias sociais”. (p. 5-6)

    Pensamos que a cultura é algo que se passa de pessoa a pessoa numa determinada co-

    munidade e sociedade. Surdos se constituem, se integram e se identificam na sociedade, em que

    marcam seus pertencimentos, suas histórias, suas identidades.

    Perlin (1998) define que as identidades são múltiplas e multifacetas, podendo ser defi-

    nidas em várias categorias, sempre dependendo de suas vivências sociais. Perlin e Miranda

    (2003) explicam a cultura como constituidora de identidades, sendo uma experiência na convi-

    vência do ser na diferença; e Rosa (2012, p.21) explica que “identidade não é presa a um modelo

    único”. Partir do contato com o outro surdo entra em circulação a identidade que é descoberta

    e fortalecida. Parece como um espelho, em que o encontro surdo-surdo não é considerado uma

    única identidade, e sim uma luta constante em que a identidade nunca será fixa. A identidade e

    a diferença podem ser construídas em ambientes sociais, vivenciados, influenciados e possíveis

    de modificações, mudando de sujeito para sujeito, de momento para momento, dependendo das

    representações históricas, sociais e visuais.

    O estudo das identidades surdas foram realizados por Perlin, no ano de 1998, em sua

    dissertação de Mestrado e publicadas, também, em forma de artigo em diversos espaços. A

  • busca pelo fortalecimento das identidades surdas não deseja o “rótulo” de melhores ou piores

    que outras, mas busca uma identidade que sujeito pode usufruir.

    É muito comum as pessoas deduzirem que os surdos vivem isolados e para se integrar à

    sociedade é preciso adquirir a cultura ouvinte, isto é, precisam ouvir e falar, precisam ser civi-

    lizadas. Pode-se entender por que os ouvintes tentam normalizar o surdo. Lane (1992) diz que,

    para a sociedade ouvinte, a surdez parece aterrorizadora, e estes estereótipos dados aos surdos

    se devem ao fato de que o surdo está “isolado, incomunicável e incapaz de receber comunica-

    ção”. No entanto, os surdos que nasceram numa cultura visual não pensam desta forma. Esse

    pensamento sobre os surdos é uma forma de mascarar os interesses econômicos e ideológicos

    da ideia de incluir o surdo.

    Os acontecimentos narrados ou estereótipos sobre as atitudes e comportamentos dos

    surdos revertem sobre a formação desses sujeitos, pois não há reflexão sobre sua própria história,

    sendo que esta reflexão é caminho e condição para mudar os destinos próprios e os de outros

    sujeitos.

    São tantas as narrativas sobre sujeitos que, algumas vezes, podem ir além do texto teó-

    rico para a discussão do universo social. As narrativas, sejam como for, sempre trazem a marca

    da história, da política, do poder. E não o faz como ciência, mas sim como uma experiência,

    um modo de significar-se no universo social.

    Por que se vê no outro a dor da exclusão ou os sentimentos de pertencimento a um grupo?

    As narrativas são experiências sentidas por cada um, como sua e, neste sentido, são intransfe-

    ríveis, particulares. Isto não quer dizer que não se pode narrar sobre o outro e, sim, que antes

    de narrar deve-se conhecer, vivenciar e entender os sentimentos e os pensamentos do outro.

    A mídia mostrou, há quatro anos, numa entrevista, em rede nacional, sobre um médico

    que falava dos milagres do implante coclear. Ao ser questionado sobre o valor deste tipo de

    cirurgia; que na época custava R$ 70.000,00, a apresentadora do Programa “Mais Você” da

    Rede Globo, Ana Maria Braga, comentou sobre o alto custo da cirurgia, e imediatamente este

    Doutor falou das dificuldades que este sujeito surdo teria. Veja o diálogo:

    Dr RICARDO BENTO: Mas você imagina pegar uma pessoa... A relação custo bene-

    fício desse aparelho é maior que de um marca-passo cardíaco, por exemplo, porque

  • você vai socializar uma criança que ia ficar a vida inteira dependendo de alguém, não

    ia ter sua profissão e não ia poder estudar, e ia ser ...

    ANA MARIA BRAGA: Claro! Não aprende a falar.

    Dr RICARDO BENTO: Praticamente uma pária da sociedade ali. ANA MARIA BRAGA: Nossa, salva vida!

    Dr RICARDO BENTO: Por 70 mil reais. Se você decidir isso em 70 anos de vida...

    ANA MARIA BRAGA: Nossa!

    O que sabe este Doutor Ricardo Bento, sobre cultura surda? O que vimos anteriormente,

    neste infeliz comentário, foi um rótulo da incompetência dos surdos por não ouvirem. Mas a

    comunidade surda atenta a tudo isso, fez seu manifesto ao programa. A apresentadora Ana Ma-

    ria Braga usou dois minutos do seu programa para falar do manifesto, se desculpou em nome

    dela e do Doutor, e seguiu com o programa. Foram dois minutos contra os vinte de entrevista

    com o Doutor Ricardo Bento! Pergunto, qual deles surtiu mais efeito na opinião pública? Neste

    sentido, é importante colocar, aqui, que quem torna o surdo uma pária da sociedade é a própria

    sociedade que não sabe se comunicar.

    Na sociedade vemos muitas situações, que parecem engraçadas, e não deixam de ser

    “verdades”, mas que, de alguma forma, rotula os surdos como sujeitos que não podem ter livre

    acesso, ou que não podem viver sozinhos, por que isto limita sua convivência na sociedade.

    Alguns estereótipos são dados por outros que narram e discursam sobre surdos. Segundo

    Quadros, Pizzio e Pinto (2007)

    Várias pessoas acreditam em coisas que não necessariamente sejam verdadeiras. Ob-

    servamos nos discursos das pessoas que não conhecem os surdos e as línguas de sinais

    que há uma série de crenças que não correspondem à realidade. As pessoas pensam

    essas coisas sobre as línguas de sinais, porque por muitos anos houve ideias a respeito

    que foram disseminadas por questões filosóficas, religiosas, políticas e econômicas.

    Talvez você mesmo pense que essas coisas sejam verdadeiras. Não se sinta culpado,

    pois isso é fruto do desconhecimento. Apesar do impacto dessas concepções, as pes-

    quisas avançaram muito e nos mostraram que tais concepções são equivocadas. (p.12)

    Como é possível verificar, o desconhecimento acaba promovendo discursos e narrativas

    que aprisionam o surdo, porém é importante perguntar aqueles de quem se escreve: o que pen-

    sam, como agem e como vivem. Nós gostaríamos de ser perguntados.

    Benvenuto (2006, p.242) diz que membros de uma comunidade linguística e cultural

    nascem como um contra-discurso, ou seja, um novo olhar sobre a surdez pode produzir uma

    construção de si e de relação dos surdos com o mundo. “A surdez, numa perceptiva cultural, é

  • compreendida como uma relação visual com o mundo. A língua de sinais constitui o elemento

    mais atacado da singularidade da cultura surda”. (p. 246)

    Desta forma, os rótulos e estereótipos dados aos surdos estão relacionados a sujeitos que

    não possuem discernimento de seus comportamentos, dos sons que produzem, da inferioridade

    de sua língua, da sua ausência de audição, da sua falta de leitura e escrita - são invenções que

    excluem os surdos da vida em sociedade e da educação.

  • REFERÊNCIAS

    BENVENUTO, Andrea, O Surdo e Inaudito: à escuta de Michael Foucault. GONDRA, José;

    Kohan, Omar Walter (Orgs.). Foucault 80 anos. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 227 – 246.

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