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Aproximações e Distanciamentos- o Interesse de Brecht Por Stanislavski

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  • Aproximao e distanciamento: o interesse de Brecht por Stanislavski

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    Aprox imao e d is tanc iamento:o interesse de Brecht por Stanis lavsk i

    In Camargo Costa

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    In Camargo Costa Professora no Departamento de Teoria Literria e Literatura Comparada daFFLCH-USP.

    1 Devo esta e as demais informaes sobre edies soviticas da obra de Stanislavski a Arlete Cavalieri, aquem fao questo de agradecer. A obra completa em russo, Sobranie sochinenii, foi publicada em oitovolumes entre os anos de 1954 e 1961 (cf. Rudnitsky, 2000. Como veremos adiante, esta informao relativa URSS, pois nos Estados Unidos o caso diferente.

    2 Cf. prefcios e/ou notas editoriais das edies brasileiras, todas da Editora Civilizao Brasileira.3 A edio portuguesa de A compra do lato (Brecht, 1999), a propsito de uma sugesto de exerccio

    stanislavskiano para atores, informa que Brecht est citando um ensaio (provavelmente uma resenha)de Rapaport publicado em 1936 na revista americana Theatre Workshop, nmero 1, com o ttulo Thework of the actor (o mesmo da traduo de Elizabeth Hapgood). Em 1937, a mesma revista publicouum outro estudo em seu nmero 2, The actors creative work, de Sudakov. H vrias referncias aoensaio de Rapaport em A compra do lato.

    Introduco

    mbora a grande contribuio de Stanislavskipara o trabalho do ator tenha ocorrido nosltimos anos do sculo XIX e incio do s-culo XX, somente aps a revoluo de Outu-bro de 1917 seu trabalho comeou a ser sis-

    tematizado. A obra por ele publicada em vida, enica no-sistemtica, Minha vida na arte, de1923-1925.1 Muito depois de sua morte (1938) que se publica na URSS O trabalho do atorsobre si mesmo (1955), em dois volumes que noOcidente ficaram conhecidos como A prepara-o do ator e A criao de um papel, e finalmenteem 1957 publicada A construo da persona-gem.

    Estas trs obras sistemticas, que propria-mente constituem o mtodo stanislavski, fo-ram publicadas no Brasil entre os anos de 1960

    e 1970, sempre em traduo das edies ameri-canas, que comearam a sair nos Estados Uni-dos em 1936 graas ao empenho de ElizabethReynolds Hapgood.2 Dessas primeiras informa-es, j se pode afirmar com Brecht que no Oci-dente o sistema Stanislavski surgiu como umtema do teatro americano de esquerda,3 que pri-meiro discutiu o mtodo a srio.

    Como no o caso de repisar aqui algu-mas das informaes bsicas sobre a trajetriade Stanislavski, j que elas esto disponveis nasedies brasileiras de suas obras fundamentais,trataremos apenas de suas compreensveis rela-es com a Revoluo, pois estas respondempelo modo como Brecht reagiu sua cano-nizao pelos stalinistas.

    Para que no se perca o senso das propor-es, porm, no custa lembrar que em 1917,Stanislavski j estava com 54 anos e sua prpria

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    revoluo teatral, de que trataremos adiante,completara 22 anos (o Teatro de Arte de Mos-cou, doravante a ser referido como TAM, es-treou em 1898). Sem se apresentar propriamen-te como hostil s providncias da Revoluo nocampo das artes cnicas ( diferena de algunsde seus mais famosos discpulos, como Vakh-tangov e Meyerhold, que aderiram com entusias-mo), Stanislavski limitou-se inicialmente a de-fender seu territrio e sua concepo edificantede teatro (espao onde os trabalhadores poderi-am aprender bons modos), no que teve bastan-te sucesso. Em retribuio, os revolucionriosasseguraram a continuidade de seu trabalho, nointeresse adicional de preservar bons exemplosda velha cultura (cf. Edwards, 1965, p. 92).

    Mantendo basicamente a rotina do TAM(encenao preferencial de peas de Tchekhove Gorki), Stanislavski e seus discpulos noabandonaram de todo a experimentao, quan-do possvel apresentando peas novas que cla-ramente dialogavam com os acontecimentos e,em momentos cruciais, registravam posies emesmo diagnsticos importantes. Para no en-trar em detalhes que nos levariam longe demais,limitemo-nos a referir a primeira experincianova, o Caim de Byron (texto de 1821), queadota o ponto de vista do fratricida em plenaguerra civil (o espetculo de 1920). Algunsanos depois, em 1926, Stanislavski patrocinoua encenao da pea de Bulgakov, Os dias dosTurbins (direo de Sudakov), um dos maioressucessos do TAM em tempos soviticos (s saiude cartaz em 1941), que foi violentamentecriticada. Um detalhe que no escapou a Brecht:durante a consolidao da corrente stalinista nopoder, a pea tem por assunto as tribulaes deuma famlia ligada ao exrcito contra-revoluci-onrio durante a guerra civil e no esconde asimpatia por essa gente.

    Mas diga-se tambm, e a bem da verda-de, que nesse mesmo ano de 1926, o prprioStanislavski dirigiu a montagem de Coraes ar-dentes (Ostrovski), espetculo que Meyerholdconsiderou perfeito e, para Brecht, que o assis-tiu com enorme prazer em 1955, manifestavatoda a grandeza de Stanislavski (Brecht, 1973,p. 555). Para o leitor de Minha vida na arte, estaconvergncia menos surpreendente do queparece.

    Para concluir esse vo rasteiro, cabe ain-da lembrar que, aps o ataque cardaco sofridodurante as comemoraes do trigsimo aniver-srio do TAM (1928), o diretor diminuiu radi-calmente as suas atividades, o que no o impe-diu de acompanhar de longe a encenao doOtelo em 1930 (que finalmente saiu como elequeria), nem de dirigir em 1932 uma adapta-o de Almas mortas (Gogol), seu ltimo espe-tculo. A essa altura (estamos a dois anos doCongresso de Escritores que proclamar a pala-vra de ordem do realismo socialista), o Teatro deArte de Moscou j d rgua e compasso ao tea-tro sovitico hegemnico.

    A revoluo stanislavskiana

    Em Minha vida na arte (1985), Stanislavskireconstitui de modo vivo e extremamente inte-ressante as diferentes linhas e perodos que mar-caram a trajetria do TAM at os anos 1920.De seus relatos possvel abstrair com razoveldose de verdade (como ele gostava) os dois pas-sos que devidamente combinados configurama revoluo levada a efeito por ele e demais com-panheiros daquela companhia.

    Depois de um primeiro perodo atuando,dentro do possvel, nos moldes da tradio4 ain-da presente nos teatros russos, surge para eles,por iniciativa de Nemirvitch-Dntchenko o

    4 Nas palavras do diretor: (crtica e pblico) no percebiam que o detalhismo na caracterizao(cenrio e figurinos) era um modo de disfarar a imaturidade do elenco. Ironicamente, aindacomenta que o TAM vivia um claro paradoxo: contando com atores que mal sabiam caminhar nopalco, todos tratavam com grande menosprezo o teatro e o ator da velha escola (Stanislavski, 1985,p. 235).

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    problema Tchekhov,5 que foi mais ou menos re-sumido nestes termos: Todos os teatros daRssia e muitos europeus tentaram encenarAnton Tchekhov utilizando os recursos cnicostradicionais. Todas as tentativas fracassaram. Edeve-se ter em conta que suas peas [...] eramrepresentadas pelos melhores artistas do mun-do (Ibid., p. 245).

    Trocando em midos, e permanecendonas formulaes de Stanislavski, o problema de-corria da insatisfao produzida pelas leituras eencenaes das peas do dramaturgo, para nofalar em incompreenso mesmo. Assumindo amscara de leitor desavisado, o diretor enumeraas suas prprias decepes com essas peas: sopouco teatrais, montonas, entediantes, noapresentam nada de particular, nada de surpre-endente, nada de novo; no se sabe o que inte-ressa, se a fbula ou o tema; nenhum dos perso-nagens se destaca a ponto de interessar a umgrande ator e assim por diante.

    Com vasta experincia literria, Nemir-vitch-Dntchenko, o primeiro diretor do TAM,ensinou a Stanislavski e ao elenco da companhiacomo ler e buscar o caminho para interpretarcorretamente a obra do amigo dramaturgo, queat ento s tivera decepes. Entre outras coi-sas, ele reclamava do que hoje chamamos super-representao, aquela maneira de atuar que pro-duz uma clara percepo de artificialismo e,quando exagerada s raias da caricatura involun-tria, no Brasil desqualifica o praticante comocanastro.6 Depois de muita ruminao, contaStanislavski, ns nos convencemos de que eraimpossvel separar forma de contedo, ou seja, oaspecto literrio, psicolgico ou social, das ima-gens e da expresso necessria que, em seu con-junto, concretizavam em cena a arte da poesia

    [de Tchekhov] (Ibid., p. 249). A partir dessacompreenso conseguiram transpor para a cenaalguma coisa do que est em Tchekhov na me-dida em que encontraram uma nova maneirade encen-lo, uma maneira muito particular,que foi a principal contribuio do TAM para aarte dramtica (Ibid., p. 245).

    Esta maneira nova e natural por opo-sio artificial acima referida , que depoisconstituir o ncleo do mtodo, em Minhavida na arte deriva da linha de trabalho voltadapara a intuio e o sentimento e foi desco-berta na busca de alternativas aos clichs econvencionalismos que ainda imperavam atmesmo nos mnimos detalhes dos trabalhos doprprio TAM. Na encenao de A gaivota(1901) foram dados grandes passos, mas nemtudo se resolveu, como o prprio Tchekhov su-geriu ao criticar o figurino escolhido pelo pr-prio Stanislavski para seu personagem Trigorin.O dramaturgo observou-lhe na estria que estedevia usar botas surradas e cala xadrez(Stanislavski usara roupas brancas e comple-mentos impecveis, demorando bastante paraentender seu erro tcnico).

    Depois de compreendidas, as peas deTchekhov puderam finalmente apresentar nopalco as mesmas delcias encontradas por leito-res como Dntchenko. Segundo os achados deStanislavski, elas tm ao e movimento em do-ses gigantescas, mas no nas manifestaes ex-teriores e sim em seu desenvolvimento interno.Tchekhov provou que a ao cnica pode seconcretizar no sentimento e este pode funda-mentar a cena; o ator no tem que representar(segundo as convenes agora superadas), temque ser, viver seu personagem. Quem faz os per-sonagens de Tchekhov precisa perceber que

    5 A experincia com as peas de Ibsen tambm muito reveladora, mas a sua reconstituio nos levarialonge demais.

    6 Em carta de 27/09/1889 a Aleksei Suvrin, editor de um jornal de So Petersburgo, Tchekhov comen-ta sobre a estria de uma de suas peas: Os homens no sabem os seus papis e representam razoavel-mente; as damas sabem os papis e representam mal. (Cf. Tchekhov, 2002, p. 264)

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    com muita freqncia eles dizem precisamenteo que no sentem, que h um claro desencontroentre discurso e sentimento e isso precisa virpara a cena sem maior alarde. Mais ainda: estedramaturgo dispensa as vivncias triviais queprovm da superfcie da alma; suas peas j noprecisam das sensaes desgastadas, desmorali-zadas e convencionais que perderam toda inten-sidade. Sua especialidade expor estados de es-prito que freqentemente so intraduzveis empalavras; pressentimentos, aluses, sinais e som-bras de sentimentos que vm do fundo da almae, em contato com eles, as almas do ator e dopblico se inflamam, produzindo sentimentosvivos, mesmo que ainda sem nome. Com umdetalhe nada desprezvel: estes sentimentos esensaes esto impregnados da poesia semprefresca e florescente da vida das ruas (Ibid., p. 246-9).

    Em outras palavras, ao escrever suas me-mrias, Stanislavski tem plena conscincia deque a novidade produzida por seu teatro foiuma linguagem cnica (obra coletiva que envol-veu atores, diretor, dramaturgista, cengrafo edemais tcnicos) capaz de traduzir o novo con-tedo das peas de Tchekhov: relaes, senti-mentos, palavras, ritmos (pausas), gestos, etc.,correspondentes a uma experincia histricaque no tinha equivalente na dramaturgia nemno repertrio teatral herdados por sua gerao. este o feito que ele reivindica.

    Mas sua revoluo s se completar nopasso seguinte, igualmente promovido porTchekhov e Nemirvitch-Dntchenko. O pri-meiro apresenta Gorki ao TAM e convence seusdirigentes de que s eles seriam capazes de tra-duzir cenicamente a sua obra literria. E o se-gundo novamente ensina como ler Gorki.Stanislavski lembra que a conjuntura pr-revo-lucionria (ele se refere revoluo de 1905) jlevara a escola que mantinham a selecionar paraseus cursos de preferncia candidatos proveni-entes das massas populares: a efervescnciarevolucionria e o nascimento da revoluotrouxeram para o teatro toda uma srie de obrasque refletiam os nimos poltico-sociais de des-

    contentamento, protesto e sonhos com um he-ri capaz de dizer a verdade com energia, dizele (p. 278) a propsito de seu prprio sucessono papel de Dr. Stockmann, em O inimigo dopovo, de Ibsen.

    Das peas que Gorki estava escrevendo, aprimeira que ficou pronta foi Os pequenos bur-gueses, encenada pelo TAM na temporada 1901-2. A experincia no deu muito certo, mas parteimportante da responsabilidade pela frustraodeve ser debitada eficiente vigilncia da cen-sura e da polcia sobre o dramaturgo e, em de-corrncia da perigosa aproximao, sobre acompanhia teatral. Para comeo de conversa, apea s foi liberada depois de demoradas nego-ciaes, com cortes, mas apenas para os scios (osabonados burgueses e aristocratas que ajudavama manter a companhia atravs de assinaturas) eno para o pblico em geral. Alm disso, umasrie de incidentes, desde o ensaio geral abertoapenas a convidados (cercado por policiaiscomo numa operao de guerra), acabou levan-do desistncia da empreitada.

    Com Ral, na temporada seguinte, peana qual Stanislavski fez o papel de Satin, o TAMdeu o segundo passo. Em suas palavras: Nova-mente estvamos s voltas com um problemadifcil; um tom novo e uma nova maneira derepresentar, uma nova vida, um romantismoinslito, uma nfase que por um lado beirava mais perfeita teatralidade e, por outro, ao ser-mo. Quando se trata das obras de Gorki, pre-ciso diz-las de modo tal que cada frase tenhasom e vida. Seus monlogos didatizantes e prxi-mos da pregao [...] tm que ser pronunciadoscom simplicidade, com elevao natural interi-or, sem falsa teatralidade nem grandiloqncia;do contrrio, corre-se o risco de transformaruma obra sria em melodrama vulgar. Foi pre-ciso apropriar-se do estilo peculiar do vagabun-do, sem o confundir nem mesclar com o tomteatral comum das peas de costume, e aindamenos com a declamao falsa e vulgar. (Ibid.,p. 282) Para realizar tal proeza, todo o elenco doTAM tratou de excursionar pelo submundo dosalbergues noturnos, onde acabou encontrando

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    a matriz real da poesia das ruas que, comoTchekhov em outro registro, Gorki elaborou li-terariamente e queria ver e ouvir no teatro. Comesta experincia, Stanislavski, pelo menos,aprendeu a utilizar material vivo para o seutrabalho de criao de homens e imagens.

    Ral fez um sucesso estrondoso, quetransformou Gorki em artista com legies deadmiradores. Mas o perfeccionista Stanislavskino ficou inteiramente satisfeito com seu pr-prio trabalho de ator. Para ele, como seu persona-gem era a tendncia (poltica) personificada, aofaz-lo acabou dando prioridade ao significadopoltico-social da pea; isso produzia nele algummal estar, pois no conseguia viver os pensa-mentos e sentimentos do personagem. Em suaavaliao, nunca chegou a alcanar esse objetivo.

    Depois disso, os fundamentos do sistemastanislavskiano estavam lanados. E dispondodestas informaes talvez fique mais fcil acom-panhar com serenidade e distanciamento (isto: em atitude pica) a relao de Brecht com essahistria.

    Identificao e distanciamento

    compreensvel que Stanislavski s tenha setornado um assunto para Brecht quando este jse encontrava no exlio. At a chegada de Hitlerao poder (1933), ele estava envolvido com aperspectiva de uma Revoluo na Alemanha ecom a sua prpria revoluo no teatro que,como se sabe, tinha entre seus opositores os ve-teranos do naturalismo alemo (inclusive crti-cos). Nunca demais lembrar: estes tambmeram de esquerda e, de um modo geral, ligadosao Partido Socialista. E, pelo que ficou dito aci-ma, tambm compreensvel que seu interesseem matria de teatro sovitico estivesse voltadopara experincias como as do Agitprop e as deMeyerhold, mas devidamente preocupado como modo como este ltimo era recebido pela cr-

    tica alem, como se pode ver num texto de 1930sobre o assunto: em nome das emoes, estescrticos descartavam a contribuio revolucio-nria do diretor para o teatro. Caprichando naironia profunda, Brecht conta que eles reclama-ram da falta de modos dos personagens inglesesna pea A China brame, dirigida por Meyerholde encenada em Berlim, acrescentando que re-clamariam, numa eventual encenao de algu-ma pea sobre tila, o huno, da omisso de seuamor pelas crianas (Cf. Brecht, 1989, p. 202).

    Dentre as referncias a Stanislavski data-das por Brecht, uma das mais recuadas de 12de setembro de 1938, em seu Dirio de traba-lho (1973). Ali Brecht registra que num jornalalemo editado em Moscou, o Deutsche Zentral-Zeitung, o Culto Stanislavski (cujo cadver nemesfriou) vai de vento em popa. Polemizandocom seus sacerdotes, aos quais chama demurxistas7, Brecht observa que no mtodo arazo no suprimida longe disso, um me-canismo de controle. Por exemplo, quandoStanislavski pede a um ator que a expresso sejajustificada, ele quer ver a razo no palco. O ar-gumento completo mais pesado: aqueles sa-cerdotes que exaltam as emoes fingem nosaber que elas so no mnimo to corruptasquanto as funes racionais; eles desconsideramque todo pensamento necessrio tem seu corre-lativo emocional e que todo sentimento tem oseu correlativo intelectual. O diagnstico a res-peito do processo em andamento implacvel:a hipocrisia da Escola de Stanislavski, com seutemplo da arte, sua celebrao da palavra, seuculto do poeta, sua interioridade, sua pureza,sua exaltao, seu natural, do qual se teme sem-pre e inevitavelmente sair, nada mais que oreflexo de seu atraso mental, de sua crena nohomem, nas idias, etc. (Brecht, 1973, p. 26).

    O maior interesse desta entrada do dirio a clara demonstrao de que o problema deBrecht no Stanislavski propriamente dito,

    7 Trocadilho com a palavra alem murksen, que significa trabalhar mal ou, melhor ainda, malbaratar.Cf. nota da edio citada, p. 561, que ainda lembra ser bastante freqente este trocadilho em Brecht.

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    mas a mistificao que teve incio quando daadoo do realismo socialista como palavra deordem stalinista para as artes em 1934, progra-ma no qual, no mbito da encenao teatral,coube a Stanislavski, malgr lui mme, o papelde profeta, por assim dizer. Note-se, entretan-to, que as sagradas escrituras dessa religio scomearam a ser publicadas quando o culto jentrava em declnio at mesmo no mbito ofi-cial, no propriamente por acaso.

    Como se sabe, Walter Benjamin refere-sea Brecht como dramaturgo dialtico (Benjamin,1992)8 e demonstra exaustivamente esta tese emseus ensaios sobre o companheiro de lutas. Pro-vavelmente, o filsofo no teve acesso aos diri-os do amigo, quando ambos estiveram exilados(Ibid., p. 105-21) mas, se tivesse tido, haveriade dizer que a seguinte anlise da identificaostanislavskiana um bom exemplo de exercciode dialtica, diretamente inspirado no Hegel daCincia da Lgica:9 de um lado, o ato de identi-ficao recorre a elementos racionais e, de ou-tro, o efeito de distanciamento pode ser aplicadode maneira puramente sentimental. Stanislavskidesenvolveu longas anlises para chegar iden-tificao, e o efeito de distanciamento dos pa-noramas de feira (Nero contempla o incndiode Roma [...], o terremoto de Lisboa) purosentimento. No teatro aristotlico a identifica-o tambm intelectual; o teatro no-aristotlico tambm recorre crtica sentimen-tal. (Brecht, 1973, p. 142, 17/10/1940)

    Na verdade sempre no esprito brech-tiano , todo o mistrio da identificao pode-r ser dissolvido se recorrermos providnciadialtica de historiciz-lo, o que Brecht natu-ralmente fez nos mais diversos momentos deseus Escritos sobre teatro e sobretudo no inciode A compra do lato. O prprio trabalho deStanislavski em busca da identificao entre ator

    e personagem desenvolvido, como vimos aci-ma, com as dificuldades para encenar peas deIbsen, Tchekhov e Gorki, isto , sob o signo donaturalismo , segundo Brecht, um avanoconsidervel na histria das artes cnicas, nobojo de importantes conquistas sociais e cultu-rais. Por isso observa: o sistema de Stanislavski um progresso pelo simples fato de ser um sis-tema. O jogo que ele desenvolve produz a iden-tificao de maneira sistemtica; esta, portanto,no efeito do acaso, nem do humor, nem dainspirao. O conjunto [ensemble] alcana umaalta qualidade tcnica que tem o objetivo deprovocar uma identificao total do espectador.O progresso em questo fica particularmente vis-vel depois que essa identificao comea a aconte-cer com personagens que at ento no tinham ne-nhum papel no teatro: os proletrios. No poracaso que na Amrica foram justamente os tea-tros da esquerda que comearam a se apropriardo sistema de Stanislavski. Esse modo de repre-sentar tem a possibilidade de permitir umaidentificao com o proletrio, at ento impos-svel. (Brecht, 1989, p. 368, grifos nossos)

    Ainda segundo Brecht, os esforos deStanislavski para desenvolver um mtodo paraconseguir a identificao do ator com seu per-sonagem mostram que desde fins do sculoXIX, justamente pelos novos problemas, situa-es e personagens que os melhores dramatur-gos criaram, foi ficando cada vez mais difcilproduzi-la. neste ponto que os caminhos dosdois diretores se separam, pois enquantoStanislavski trabalhou para salvar uma prticaque tem a idade do drama (burgus), Brecht eoutros (como Meyerhold) buscaram a sua su-perao. Aqui vale a pena passar a palavra a Brecht:Muito ingenuamente, Stanislavski tratou as difi-culdades como fraquezas passageiras, puramentenegativas, que deviam e podiam ser superadas a

    8 Especialmente o ensaio The Country where it is forbidden to mention the proletariat (p.37-41).9 Fredric Jameson desenvolve este tpico em O mtodo Brecht, em especial no item 8 (Da multiplici-

    dade contradio) da primeira parte (Doutrina). Cf. Jameson, F. 1999, p. 101-124.

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    qualquer preo. [...] No lhe ocorreu que as per-turbaes [no processo de identificao] pudes-sem ser conseqncia de mudanas irreversveisque afetaram a conscincia do homem moder-no. [...] Se isto lhe ocorresse, talvez ele se tives-se perguntado se ainda era o caso de procurarpromover a identificao total. Foi a questoque a teoria do teatro pico se colocou. O tea-tro pico se interessou pelas dificuldades, pelasperturbaes e se esforou para encontrar ummodo de atuar que permitisse renunciar iden-tificao total. (Ibid., p. 268-9)10

    Voltando mais uma vez determinaohistrica do trabalho de Stanislavski, agora pos-to em perspectiva, em A compra do lato, Brechtao mesmo tempo faz o elogio e circunscreve oseu alcance: As obras principais de Stanislavski,que alis fazia muitas experincias e realizavapeas fantsticas, foram as da poca naturalista.No caso dele deve falar-se mesmo de obras pois,como habitual com os russos, algumas de suasencenaes j se realizam h mais de 30 anossem qualquer modificao, embora sejam j in-terpretadas por atores diferentes. As suas obrasnaturalistas consistem ento em retratos sociaisminuciosamente executados. [...] A ao daspeas mnima, a ilustrao pormenorizada dosestados de alma ocupa o tempo todo, trata-sede investigar a vida interior de algumas perso-nagens individuais, no entanto h tambm al-guma coisa para os investigadores sociais. Quan-do Stanislavski estava na fora de sua idade, arevoluo aconteceu. O seu teatro foi tratadocom o mximo respeito. Vinte anos depois da

    revoluo foi ainda possvel estudar nesse tea-tro, como num museu, o modo de vida de ca-madas sociais entretanto desaparecidas.(Brecht, 1999, p. 18)11

    Aprender com Stanislavski

    Em 1947, quando ainda estava nos EstadosUnidos, chegou s mos de Brecht uma espciede manual stanislavskiano publicado em Berlimcom o ttulo O livro alemo de Stanislavski, or-ganizado por alemes veteranos das lutas teatraisdos anos 1920 que se refugiaram na URSS du-rante o nazismo. Observando que aqui [nosEUA] tambm o stanislavskianismo significaum protesto contra o teatro mercantil, no dei-xa de avisar que no tal manual no se encontraum nico exerccio tirado da luta de classes, eque seus autores propem um realismo curio-so, praticam um culto alambicado da realida-de (Brecht, 1973, p. 450, 15/09/1947)12. Al-gum tempo depois, a caminho de Berlim, voltaa escrever sobre o manual: o que particular-mente me repugna [nele] esse tom de mora-lismo tacanho (Ibid., p. 464, 04/01/1948).

    Todo mundo sabe que na Alemanha Ori-ental a ortodoxia sovitica reinou quase absolu-ta, sobretudo nos primeiros anos da reconstru-o; por isso no h necessidade de procurardetalhes sobre o modo como esse manual fun-cionou na vida teatral hegemnica no perodo(o Berliner Ensemble foi uma exceo mantidasob permanente vigilncia). Para se armar o pro-blema, s lembrar que nem na URSS estavam

    10 O problema das dificuldades enfrentado nesta mesma chave por Adorno que, em ensaio com essettulo publicado em Impromptus (1985), anuncia ter-se inspirado em Cinco dificuldades para escrevera verdade, texto brechtiano de 1934.

    11 Como a traduo portuguesa, pode ser oportuno esclarecer ao pblico brasileiro que as peas fants-ticas a que se refere Brecht correspondem ao gnero que no Brasil se designa ferie; Stanislavski ence-nou nesse gnero O pssaro azul de Maeterlinck, entre outras de muito sucesso.

    12 A edio inglesa, anotada por John Willett, tem o cuidado de informar que o livro foi compilado epublicado sob os auspcios soviticos e era evidentemente destinado a ser a bblia do realismo socialista,a nova ortodoxia na Alemanha Oriental. Cf. Brecht, 1993, p. 511. Para quem costuma se perguntarpelas horas, no demais notar o atraso com que chegou essa novidade Alemanha ocupada.

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    disponveis os textos do prprio Stanislavski.Da o interesse que pode haver no conselho des-te a Joshua Logan13, que o visitou em 1931 edeu notcia deste encontro na introduo ao li-vro A construo da personagem: Nosso mto-do nos serve porque somos russos, porque so-mos este determinado grupo de russos aqui.Aprendemos por experincias, mudanas, to-mando qualquer conceito gasto de realidade esubstituindo-o por alguma coisa nova, algo cadavez mais prximo da verdade. Vocs devem fa-zer o mesmo. Mas ao seu modo e no ao nosso.O mtodo que usamos em 1898 quando foifundado o Teatro de Arte de Moscou j foi mo-dificado mil vezes. Alunos meus, ou atores danossa companhia se impacientaram e romperamconosco. Formaram novas companhias e hojeacham o Teatro de Arte de Moscou antiquado,fora de moda. Talvez eles descubram algo maisprximo da verdade do que ns descobrimos.(Logan, 1976, p. 7)

    Se Brecht no conversou com o diretorsobre o assunto, provavelmente leu esta intro-duo, de 1949, na traduo americana do li-vro. Independente desta hiptese, certo queBrecht conhecia essa disposio de Stanislavskipara acolher e aprovar justamente os que pro-curaram novos rumos (novas e melhores verda-des),14 o que tambm explica as suas insistentesmanifestaes favorveis ao estudo das obras dodiretor quando voltou Alemanha.

    Em 1951, o Comit das Artes alemo co-meou a organizar, por assim dizer, uma Jorna-da de Estudos sobre Stanislavski que afinal aca-bou acontecendo em 17 a 19 de abril de 1953

    (cf. nota da edio dos Ecrits sur le thtre.Brecht, 1989, v. 2, p. 600). Como se podedepreender das observaes de Brecht, as jorna-das foram mal organizadas e pior realizadas, base de muita improvisao e (acrescentara-mos) exerccios de dogmatismo explcito. Porisso Brecht escreveu que a organizao precisa-va melhorar; a discusso devia ser tambm so-bre teatro (!!!); as teses a serem debatidas nemsequer foram divulgadas; os participantes im-provisaram tudo, e assim por diante (Ibid., p.188). Suas propostas seguiam obviamente nadireo contrria e contemplavam questes ele-mentares, como por exemplo: preciso publi-car os principais escritos de Stanislavski; pre-ciso historicizar Stanislavski, estudar cada fasede seu trabalho, saber o que ele mesmo apon-tou como errado ou insuficiente em seus prpri-os estudos, enfim, o que ele escreveu na ltimafase, a da construo do socialismo na URSS.Suas razes prticas: Um breve estudo domodo de trabalho de Stanislavski basta para re-velar uma grande riqueza de exerccios e de pro-cedimentos teis numa representao realista.H muito o que aprender, mas preciso real-mente querer aprender (Ibid., p. 189).

    Por falar em querer aprender, Brecht re-comenda a leitura de um livro publicado em1952 na Alemanha, Stanislavski ensaiando, deToporkov. D destaque ao trabalho com uma cenada pea Os dias dos Turbins, j referida aqui, emque ocorre a chegada do oficial ferido casa dafamlia. Toporkov conta que o elenco avanourapidamente para a representao dos transpor-tes sentimentais dos familiares e Stanislavski

    13 Mais conhecido no Brasil como diretor de cinema (Picnic, 1956; Nunca fui santa, 1956; Camelot,1967), tem origem no teatro musical. Os interessados em Brecht e Weill devem saber que foi odiretor do musical Knickerbocker Holiday (Maxwell Anderson e Kurt Weill, 1938), de onde vem aconhecida cano It never was you.

    14 impossvel que ele no soubesse que Meyerhold s escapou da execuo enquanto Stanislavskiesteve vivo e pde defend-lo da sanha stalinista. Christine Edwards conta que a ltima apariopblica de Meyerhold aconteceu dez meses aps a morte do mestre. Foi preso no dia seguinte suainterveno no Primeiro Congresso dos Diretores Teatrais da URSS, em que fez um discurso incen-dirio contra o realismo socialista. (Cf. Nicolai Gorchakov, apud Edwards, 1965, p. 97)

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    criticou severamente o procedimento. Depoisexplicou aos atores o que eles estavam ignorando:naquela situao era prioritrio providenciar umesconderijo para o ferido; aquelas pessoas esta-vam lidando com um oficial contra-revolucio-nrio em plena guerra civil; no havia, portan-to, tempo para se perder com transportessentimentais (Ibid., p. 190). Deste episdio,Brecht abstraiu uma importante lio que osatores podem aprender com o teatro deStanislavski o sentimento de responsabilida-de diante da sociedade: Stanislavski ensinouaos atores a importncia social do jogo teatral.Para ele, a arte no um fim em si, mas ele sa-bia que no teatro nenhum objetivo alcanadose no for pela arte (Ibid., p. 191).

    Por afinidades como estas, numa entre-vista sobre as jornadas, Brecht afirmou que osteatros alemes podiam aprender muito comStanislavski: Posso citar de cabea algumas coi-sas que preciso estudar. O carter diferencia-do de suas representaes, as inumerveis suti-lezas, a percepo dos aspectos contraditriosentre os seres e as situaes, o natural artstico,a luta incessante contra os doutrinrios (que in-festam os teatros). H os esforos para estimu-lar a imaginao dos atores e torn-la concreta.H os exerccios para reforar a observao e apercepo; indicaes sobre a maneira pela qualo ator pode se livrar das influncias pertur-badoras da vida privada para ficar em condiesde se consagrar inteiramente a seu papel; indi-caes sobre a maneira pela qual o ator poderealizar o ato de identificao com o persona-gem da obra. (Ibid., p. 193)

    Para concluir, Brecht identifica particular-mente duas afinidades entre seu prprio mto-do e o do diretor russo. So elas a teoria dasaes fsicas e a compreenso do super-objeti-vo, tpicos a partir dos quais seria possvel atfalar em sistemas complementares, desde que seultrapasse a mera contraposio entre identifi-cao e distanciamento, percebendo o distan-ciamento como a superao dialtica (a quepreserva e contm em si o superado) da iden-tificao. Sobre este ponto, interessante a res-

    posta de Helene Weigel, quando perguntadasobre o uso da identificao: Ns representa-mos para as pessoas, seres humanos que no sons. Esse o processo. Por que no haveramos deter conscincia deste processo? (Ibid., p. 187) Emoutro lugar Brecht complementa: Como dra-maturgo, eu preciso da capacidade do ator dese identificar completamente e de se metamor-fosear integralmente que Stanislavski foi o pri-meiro a pensar de modo sistemtico; mas ao mes-mo tempo, e acima de tudo, preciso da distnciaem relao ao personagem que o ator, enquan-to representante da sociedade (de sua parte pro-gressista), deve estabelecer (Ibid., p. 197).

    A partir desses apontamentos, talvez fiquemais compreensvel a manifestao crtica maisacabada sobre este problema, em A compra dolato: A ltima forma, at agora, de represen-tar do teatro burgus assente numa base tericaelaborada, e que associada ao grande drama-turgista e ator russo Stanislavski, utiliza uma tc-nica que pretende garantir a veracidade da re-presentao. O comportamento dos atores nodeve distinguir-se em nada, nem no mais pe-queno pormenor, do comportamento dos ho-mens na vida real. Atravs de um ato psquicoparticular de identificao com a personagem arepresentar, o ator consegue imitaes minuci-osas das reaes de pessoas reais. Este ato ps-quico consiste numa introspeco profunda, naqual o ator entra por inteiro na alma da pessoaa representar, transformando-se a si prpriocompletamente nesta pessoa, um ato que, quan-do conseguido corretamente, realizado tam-bm pelo espectador, de modo que tambm estese identifica completamente com a pessoa re-presentada. Stanislavski, que tem o mrito deter estudado este ato com rigor quase cientfi-co, e que especificou o que preciso para o con-seguir, no acha necessrio defend-lo contraqualquer tipo de crtica: no est de modo ne-nhum preparado para uma tal crtica. A identi-ficao parece-lhe um fenmeno de todoinseparvel da arte, to inseparvel que no sepode falar de arte quando ela no acontece. Al-gum que queira contrariar esse conceito e eu

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    por exemplo vejo-me forado a contrari-lo encontra-se partida numa situao difcil, poisno se pode negar que o fenmeno existe de fatona experincia artstica pura e simples. [...] Nosltimos anos, alguns abandonaram todas as tc-nicas (e existem muitas, a de Stanislavski suma delas) que visam a obteno da identifica-o completa. A razo para tal que estas for-mas de representar permitem mostrar a verdadesobre a vida dos homens em comunidade (que mostrada no teatro) s de uma maneira mui-to imperfeita. (Brecht, 1999, p. 92-3)

    Leituras complementares

    O que Brecht apontou como possvel comple-mentaridade entre o seu sistema e o de Stanis-lavski, em relao ao trabalho do ator, aparecepara quem trabalha com dramaturgia numasimples superposio das anlises que ambos fi-zeram do Otelo de Shakespeare. Detalhe decisi-vo: Brecht tomou a de Stanislavski como pontode partida.

    A segunda parte de A criao de um papel dedicada ao Otelo. A forma dialogada da ex-posio responde pelo interesse em dar a conhe-cer os vrios tipos de incompreenso, as leiturasapressadas, para no falar nada das no-leiturasde atores que se interessam apenas pelos pr-prios papis sem se preocuparem nem mesmocom o significado geral da pea (o super-objeti-vo de Stanislavski). Como no teria propsitodar conta de cada episdio, ou incidente, passoa passo, vamos reproduzir aqui apenas os con-selhos mais importantes do mestre, assim comoas suas concluses.

    Para combater a idiotia do papel (compor-tamento do ator que no gosta de estudar nada,nem mesmo a prpria pea em que vai atuar),Stanislavski d este conselho: vocs devem lere ouvir tudo, todas as peas que puderem, crti-cas, comentrios, opinies. Isso abastece e am-plia o seu estoque de material criador. Mas aomesmo tempo tm que aprender a salvaguardarsua independncia e afastar os preconceitos.Vocs devem formar opinies prprias e no ir

    aceitando irrefletidamente as opinies alheias.Precisam aprender a ser livres. uma arte dif-cil, que s dominaro por meio do conhecimen-to e da experincia. Estes, por sua vez, sero ad-quiridos no por meio de uma lei qualquer, maspor todo um complexo de conhecimentos te-ricos e trabalho prtico no campo da tcnica ar-tstica, e principalmente pela reflexo pessoal,pela penetrao nas essncias, por muitos anosde prtica. (Stanislavski, 1972, p. 117)

    Ainda em funo do mesmo interesse,acrescenta o mestre: o estudo da literaturamundial os auxiliar tremendamente nesses pro-cessos. Em toda pea, como em todos os seresvivos, h uma estrutura ssea, membros: mos,ps, cabea, corao, crebro. Uma pessoa lite-rariamente treinada estudar, como o anato-mista, a estrutura e a forma de cada osso e arti-culao, e reconhecer os seus componentes.Dissecar a pea, avaliar o seu significado social,far surgir seus erros, o ponto onde ela bloqueiao desenvolvimento do tema principal ou se des-via dele. Poder perceber rumos novos e origi-nais numa pea, suas caractersticas internas eexternas, o entrelaamento das falas, o inter-re-lacionamento dos personagens, os fatos, osacontecimentos. Toda esta cincia, habilidade eexperincia extraordinariamente importantena apreciao de uma obra. (Ibid., p. 118)

    Quanto ao Otelo, sem prejuzo da reco-mendao da leitura de todo o captulo, parano falar de todo o livro (a anlise do InspetorGeral de Gogol igualmente reveladora),limitemo-nos s principais concluses. A certaaltura, para explicar por que os atores tm quese interessar pela posio social dos personagens,diz Stanislavski: Otelo rapta a filha de um altodignitrio, e o faz na posio de um estrangei-ro, que por acaso est a servio do Senado. Este um conflito que envolve duas classes diferen-tes e tambm duas nacionalidades. Alm disso,trata-se tambm da dependncia do Senado emrelao a um negro que eles desprezam. Para osvenezianos, este conflito toda a tragdia.(Ibid., p. 156) E, para ilustrar a necessidade derecorrer aos conhecimentos (pressupostos pelo

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    texto) referidos acima, temos o seguinte comen-trio analtico: No haveria o amor entre Oteloe Desdmona sem o xtase romntico de umalinda jovem; sem as histrias fascinantes, lend-rias do Mouro, sobre suas proezas militares; semos inmeros obstculos ao seu casamento desi-gual, que despertam as emoes de uma visio-nria jovem revolucionria; sem a sbita guer-ra, que impe o reconhecimento das npcias deuma jovem aristocrtica com o Mouro, para sal-var o pas. E no haveria ruptura entre as duasraas sem o esnobismo dos venezianos, sem ahonra da aristocracia; sem o seu desdm pelospovos conquistados, a um dos quais o prprioOtelo pertence; sem uma sincera convico dooprbrio que misturar o sangue negro e obranco. (Ibid., p. 127)

    Depois de ler esta anlise, Brecht achouque s tinha a acrescentar o seguinte: comStanislavski aprende-se como deduzir da soci-edade certas caractersticas de um personagemsobre as quais a ao se baseia. Exemplo: o ci-me de Otelo, que no uma paixo eterna emuito menos universal (veja-se o exemplo dosesquims). Isto pode ser expresso no teatro.

    Otelo no possui apenas Desdmona, ele pos-sui um cargo de general. Ele tem que defenderseu cargo que lhe pode ser roubado. Shakespeareescolheu expressamente um general que noherdou seu cargo, mas o conquistou por feitosespecficos, e sem dvida roubou-o de algum. portanto um general assalariado; ele no proprietrio de sua posio de general comoseria o caso de um senhor feudal , como conse-qncia e expresso de sua situao na socieda-de. Em suma, ele vive num mundo de complspor propriedade e por posies, em que a posi-o tratada como propriedade.

    Da mesma forma, sua relao com a mu-lher amada se desenvolve como uma situaode propriedade. A paixo-cime, quando o tea-tro a mostra nestes termos, no fica diminuda;ao contrrio, aprofundada. Neste mesmoprocesso aparecem indicaes das possibilida-des que a sociedade tem de intervir. (Brecht,1989, v. 2, p. 181) Este deveria ser, segundoBrecht, o objetivo de uma montagem pica doOtelo. E ele tem boas razes para acreditar queisto acaba correspondendo ao super-objetivo deStanislavski.

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