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Aracelli, meu amor de José Louzeiro

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Primeiro capítulo de Aracelli, meu amor de José Louzeiro.

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um

Vitória, sexta-feira, 18 de maio de 1973.Aracelli Cabrera Crespo sai do Colégio São Pedro, na praia de Suá, vai

para o ponto de ônibus, na esquina do Bar Resende, cadeiras de madeira pin-tadas de branco na calçada, uma banca de jornais em frente. É uma garota de nove anos, muito desenvolvida para a pouca idade, olhos negros e vivos, bonita na farda de saia azul, blusa azul mais claro, as iniciais SP bordadas no bolso esquerdo. Ainda não são 17 horas. Chegam outras pessoas, ficam olhando jornais e revistas. Aracelli senta-se numa cadeira, põe a pasta sobre a mesa, brinca com o gato que sempre encontra por ali, silencioso e ágil.

O ônibus aparece, coberto de poeira, naquela tarde de sol quente, céu azul, coqueiros acenando as palmas verdes, bananeiras perfilando-se nas encostas, mostrando o avesso claro e fresco das folhas. Os passageiros tomam seus lugares no ônibus, Aracelli continua na cadeira, alisando o pelo do gato.

– Perdeu o ônibus, Aracelli? – pergunta o garoto que se aproxima na bicicleta sem para-lamas, nu da cintura para cima, pés descalços.

O garoto prossegue pela avenida asfaltada, ninguém mais repara na menina de uniforme bem passado, sapatos lustrosos, que brinca com o gato, oferece-lhe sorvete.

Se Aracelli tivesse tomado o ônibus, agora estaria a meio caminho de casa, no bairro de Fátima, onde as ruas não têm calçamento, são largas, e os arbustos crescem nos quintais, formando tufos de verdura por cima das cercas e muros baixos.

Gabriel Sanches, um espanhol de estatura mediana e gordo, braços ro-liços, rosto largo, bigodes negros, ouve a mulher falar dos fundos da casa no atraso da filha.

– O que será que tá fazendo?Gabriel Sanches argumenta que não era tão tarde assim e cala-se,

estranhando a preocupação da mulher, pois geralmente Aracelli chegava atrasada, algumas vezes quando havia anoitecido.

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– Vai ver que o ônibus enguiçou. Essa linha da Viação Penedo tá cheia de ônibus velhos.

– Se demorar mais é bom ir até a escola – acentua Lola Cabrera Sanches, uma boliviana de cabelos alourados, com quem a filha se parece muito.

O homem pesado e lento bota o blusão, caminha para o carro. Segue na direção da escola, imaginando que até chegar à praia do Suá já a menina estaria em casa.

Bate no portão pintado de verde, passa por baixo da amendoeira, fala com a diretora Zolirma Letait. A professora de Aracelli, Marlene Stefanon, aparece, diz que a menina saiu mais cedo como dona Lola pediu no bilhete.

– Por volta das 16h30 mandei que fosse embora.– Quando o senhor chegar em casa vai encontrá-la – diz dona Zolirma

sorrindo, estendendo a mão.O carro avança pelo portão, as casuarinas crescendo de um lado, o ter-

reno amplo na frente da casa. Entra e vê Lola:– Não encontrou com ela?A mulher está nervosa, a noite vai se fechando na copa das árvores,

Gabriel olha as casuarinas junto ao muro sacudindo penachos, pássaros recolhendo voos. Senta-se perto da porta, fica imaginando que a qualquer momento Aracelli apareceria.

– Deve ter ido na casa de alguma colega, esqueceu de avisar.Lola Sanches mexe nas panelas, abre e fecha a torneira da pia, corta

legumes.– Acho impossível que tenha feito isso.– Vai ver que hoje esqueceu. Sabe como é criança – considera Gabriel,

sentado na sala, contemplando o terreno na frente da casa, agora tomado de noite, uma espécie de lago se insinuando, avolumando, cobrindo com águas negras as formações de arbustos e de relevos.

Misturando-se aos vagos rumores vindos da rua, o choro triste de Lola, que não consegue mais ocupar-se na cozinha. Vem para a sala, enxugando os olhos.

– Aconteceu alguma coisa com Aracelli.– Vou mandar Carlinhos na casa de uns conhecidos enquanto procuro

por aí – responde Gabriel, que também começa a se preocupar.

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josé louzeiro

O ronco do motor vai se distanciando, Lola Sanches fica na porta olhan-do aquele quintal que virou lago completamente escuro, um vaga-lume ou outro acendendo estrelas no chão.

Carlinhos volta primeiro que o pai. Fala das casas por onde foi, das pessoas com as quais falou.

– Ninguém viu Aracelli hoje.Mais de uma hora depois Gabriel reaparece. Não tem coragem de dizer

nada. Lola Sanches chora alto, soluça.– Que foi feito da menina, Deus do céu?Gabriel ajuda-a a sentar-se, o choro se torna convulso, ela tem dificul-

dade de respirar, em certos momentos fica batendo-se, contorcendo-se, gri-tando e gemendo, olhos fechados, rosto arroxeando.

Alguns vizinhos aparecem, a senhora morena e magra sugere que se ponha os pés de Lola Sanches na bacia com água fria, outra manda que tragam mechas de algodão embebidas em álcool para que possa cheirar e passar nas orelhas e no pescoço.

Gabriel desaparece mais uma vez. Quando retorna, a casa está cheia de gente, Lola estendida na cama.

– Minha filha! Que fizeram com ela!A ambulância que Gabriel chamou não aparece, o estado de Lola

torna-se pior, o marido se aflige, os vizinhos temem que a crise se agrave e ela não resista.

Lola estendida, quase toda arroxeada, olhos fechados, as mãos tremen-do levemente. Aí Gabriel se enche de pânico, ergue a mulher, os vizinhos o ajudam a levá-la para o Volkswagen que está perto da casa. Uma vizinha entra no carro. Carlinhos vai também.

Gabriel faz o Fusca desenvolver o mais que pode naquele terreno ir-regular, passa pela igreja que não terminou de ser construída, vai sempre em frente procurando chegar logo à via de acesso, de lá à estrada asfaltada.

No pronto-socorro da Santa Casa de Misericórdia confirma-se a preo-cupação de Gabriel. O estado de Lola Sanches é delicado, tem de ficar internada.

A mulher é levada para a enfermaria, a porta se fecha. Gabriel está sem conseguir raciocinar direito, ele que é lento nos gestos e nas atitudes. Não sabe se vai logo à Polícia, apresentar queixa do desaparecimento da filha,

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não sabe se permanece mais um pouco no hospital, não sabe se volta e con-tinua procurando Aracelli.

– Vamos, pai, talvez ela tenha aparecido.Olha o filho tão triste quanto ele, tem vontade de abraçá-lo, dizer que

está com medo de chegar em casa, abrir a porta e não encontrar Aracelli.Enquanto a vizinha que veio com ele para ajudar Lola vai falando, fa-

lando, tudo que Gabriel recorda é do dia em que fora morar no bairro de Fátima; do terreno amplo que comprara com sacrifício, das plantas que cui-daram, do muro que fizeram, dos projetos.

– Aqui vai virar um bosque, pai. Quando meu cajueiro tiver grande, quero que você coloque um balanço nele. Você coloca?

Lembra a filha e aquele dia tão longe, as lágrimas inundam-lhe os olhos, ele mal pode dizer qualquer coisa cada vez que a vizinha relembra fa-tos antigos e é necessária sua opinião. Carlinhos vê que o pai está chorando, faz que não repara.

Gabriel Sanches começa a sentir o quanto se enganara, o quanto tinha sido inútil sua luta até ali. Primeiro as esperanças do imigrante que vem, raízes aparecendo e sangrando; depois as dificuldades se sucedendo e, mais uma vez, os sonhos um por um achatados.

“Se até minha filha desaparece, por mais que goste desta cidade, que me resta esperar? E se não posso esperar, pra onde poderei ir? Pra onde, se agora já nem sonhos tenho mais?”

– Aquela ali não é Aracelli, pai?O carro parado, Gabriel Sanches movimenta-se ágil demais para seu

peso, alguns passos e a indecisão. A menina vem junto com mais duas. Parece Aracelli, mas não é.

A viagem reiniciada, o carro entrando pelo portão que ficara aberto, silêncio no descampado, grilos invisíveis costurando de ruídos finos os desvãos do escuro. A luz acesa na varanda, a pia na cozinha, os pratos jogados, a mesa sem toalha, as facas e os garfos sujos, a ausência de Lola, que dava vida a todos aqueles objetos.

Gabriel senta-se, Carlinhos entra chorando no quarto. Quando os vizi-nhos se retiram e o cão Radar deita-se perto, Carlinhos fica acariciando-o e chorando por ele e pelo cachorro que não sabia chorar. Radar fora trazido

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pequeno para aquela casa. Aracelli cuidou dele desde os primeiros instantes. Foi ela quem lhe deu o nome, ela o ensinou a correr, a saltar.

– Por que o nome de Radar no cachorro?– Ora, Radar é um aparelho que vê coisas que ninguém pode ver.Carlinhos se lembra das brincadeiras da irmã com o cachorro, Gabriel

recorda a satisfação que era ver a mulher botar o jantar com os dois filhos na mesa. Aracelli contando coisas da escola, as lições que a professora Ste-fanon passara, da boa nota que tirara em História, dos planos que tinha a turma de fazer uma excursão antes das férias. Repentinamente, toda aquela sensação de bem-estar e segurança desaparecia. Um balão que estourava no ar, eliminando forma e cores.

Tarde da noite, ventos mornos vindos do mar gemiam nas hastes das casuarinas, em frente à casa. Gabriel Sanches havia admitido que Lola tinha razão. Alguma coisa de grave ocorrera com Aracelli. E, pensando no sofri-mento pelo qual a filha podia estar passando àquela hora, não se conteve e foi ver como Carlinhos adormecera. Encontra o menino e Radar, ambos na cama. Carlinhos tem um braço por cima do cão, que dorme com o focinho entre as patas.

Volta ao quarto, mas não pode sequer cochilar. O desejo é sair de novo, percorrer todos os recantos da praia do Suá, todas as casas de conhecidos, até localizar Aracelli. Ao mesmo tempo sabe o quanto isso é inútil. Ela esta-va detida em algum lugar, do contrário teria aparecido. Admite então a ideia de que a menina tenha saído do colégio e se afastado muito de casa, passan-do por lugares que não conhecia. Aí sofreu um acidente, foi atropelada, está num pronto-socorro particular.

“É isso. Não pode ser outra coisa.”

Gabriel Sanches deixa o filho dormindo, liga mais uma vez o motor do carro, vai pela cidade à procura de uma menina acidentada, da qual nin-guém sabe dar qualquer informação.

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