Upload
suriaseixas
View
223
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
"A presente pesquisa, intitulada Aparência Cangaceira: um estudo sobre a aparição comoaspecto de poder, visa, por intermédio de uma abordagem multidisciplinar, a concatenarfundamentos de campos do conhecimento disciplinar – como a Sociologia, a História, aFilosofia e a Antropologia – com saberes de caráter não-disciplinar – tais como depoimentos,vivências e fotografia – para propiciar o estudo da configuração da imagem públicado indivíduo cangaceiro com a proposição de inserir-se no jogo de poder imanenteda cultura do cenário. Para tanto, este estudo foi desenvolvido por meio da leitura bibliográfica;da pesquisa em jornais do acervo dos Institutos Históricos e Geográficos dosEstados de Sergipe, Ceará e Bahia; e da convivência com pessoas que estiveram no Cangaçoou passaram a conviver com o tema por intermédio de estudos e das artes."
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CINCIAS PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PS-GRADUAO
EM CULTURA E SOCIEDADE
APARNCIA CANGACEIRA: UM ESTUDO SOBRE A APARIO COMO ASPECTO DE PODER
por
GERMANA GONALVES DE ARAUJO
Orientador: Prof. Dr. RENATO JOS AMORIM DA SILVEIRA
SALVADOR, 2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CINCIAS
PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PS-GRADUAO EM CULTURA E SOCIEDADE
APARNCIA CANGACEIRA: UM ESTUDO SOBRE A APARIO COMO ASPECTO DE PODER
por
GERMANA GONALVES DE ARAUJO
Orientador: Prof. Dr. RENATO JOS AMORIM DA SILVEIRA
Tese apresentada ao Programa Multidisciplinar
de Ps-Graduao em Cultura e Sociedade do Ins-
tituto de Humanidades, Artes e Cincias como
parte dos requisitos para obteno do grau de
Doutor.
SALVADOR 2013
FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
A663a
Araujo, Germana Gonalves de Aparncia cangaceira : um estudo sobre a apario como as-
pecto de poder / Germana Gonalves de Araujo ; orientador Re-nato Jos Amorim da Silveira. Salvador, 2013.
208 f. : il.
Tese (Doutorado em Cultura e Sociedade) Universidade Fede-ral da Bahia, 2013.
1. Cangaceiros. 2. Aparncia. 3. Poder. I. Lampio, 1900-1938. II. Silveira, Jos Amorim da, orient. III. Ttulo.
CDU 391
GERMANA GONALVES DE ARAUJO
APARNCIA CANGACEIRA: UM ESTUDO SOBRE A APARIO COMO ASPECTO DE PODER
Tese apresentada ao Programa Multidisciplinar de Ps-Graduao em Cultura e Sociedade do
Instituto de Humanidades, Artes e Cincias como parte dos requisitos para obteno do grau de
Doutor.
Aprovada em 08 de abril de 2013.
BANCA EXAMINADORA
Renato Jos Amorim da Silveira Orientador Doutor em Antropologia cole des Hautes tudes en Sciences Sociales. Universidade Federal da Bahia - UFBA.
Renata Pitombo Cidreira Doutora em Comunicao e Cultura Contemporneas Universidade Federal da Bahia. Universidade Federal do Recncavo Baiano - UFRB. Maurcio Matos dos Santos Pereira Doutor em Cultura e Sociedade - Ps Cultura - Universidade Federal da Bahia. Universidade Federal da Bahia - UFBA. Snia Lcia Rangel Doutora em Artes Cnicas Universidade Federal da Bahia. Universidade Federal da Bahia - UFBA.
Durval Muniz Albuquerque Jnior Doutor em Histria UNICAMP. Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN.
Para minha me, Clara Germana S. Gonalves do Nascimento.
Para meu pai, Telmo Silva de Araujo, eterna saudade.
AGRADECIMENTOS
Para tornar realidade esta pesquisa de doutorado durante quatro anos de minha vida,
tive que envolver diretamente e indiretamente pessoas do mbito familiar, amigos, alu-
nos e aqueles que me forneceram informaes ou compartilharam sabedoria ao longo
da caminhada. Percebo-me grata a um nmero significativo de pessoas e, por isso, no
posso deixar de memor-las com o meu singelo agradecimento.
Agradeo primeiramente ao Edgard Augusto Silva Rocha, meu esposo e companheiro,
que nunca hesitou em me apoiar nesta jornada. O apoio dele foi imprescindvel para
fortalecer a minha autoestima e o credo que mantive constantemente vivo para alcan-
ar o ponto de chegada desta tese.
Mantendo-me no mbito familiar, no posso deixar de agradecer o suporte de meus
filhos, Vitor de Araujo Rodrigue e Tlio de Araujo Rocha, que mesmo sem terem a di-
menso do quanto foi necessrio para mim, suportaram as minhas ausncias e falta de
ateno.
minha me querida, que me proporciou fecundos debates sobre indivduo e socie-
dade. Sempre afetuosa, ela se manteve atenta ao processo de construo da tese du-
rante os quatro anos e, juntamente com minha irm, Paula Gonalves de Araujo, me
manteve estimulada. importante tambm agradecer Paula, por ser uma irm-amiga,
parceira, uma pessoa que ao existir me faz lembrar o quanto a vida importante.
Ao meu pai, Telmo Silva de Araujo (in memoriam), que participa constantemente das
minhas buscas mentais e reflexes, j que as ideias e viso de mundo dele me proporci-
onaram capacidades de construir, aprender e gerar conhecimento.
Agradeo imensamente a Renato da Silveira, pela orientao dedicada e atenciosa, por
acreditar na pesquisa e na minha capacidade de desenvolver o trabalho que tinha sido
enunciado. O acompanhamento dele foi de extrema importncia para alcanar os devidos
avanos.
Aos amigos, parceiros de viagens, companheiros de estudo e incentivadores assduos,
em especial ao historiador baiano Manoel Neto, pela sua generosidade em compartilhar
conhecimentos sobre a histria do Nordeste.
Em particular famlia Ferreira, especialmente a Vera Ferreira, neta de Lampio e Maria
Bonita, que esteve presente durante toda a minha trajetria de estudo, fornecendo-me
raras obras literrias sobre o tema Cangao, acompanhando-me nas viagens a lugares
que fizeram parte do cenrio, ajudando-me na investigao de documentos. Sem o en-
volvimento de Vera, algumas informaes jamais teriam sido alcanadas e tratadas
nesta tese.
Aos meus colegas do Ncleo de Artes e Design da Universidade Federal de Sergipe
NADE/UFS, assim como equipe da Editora UFS, por um convvio agradvel e a compre-
enso de que em alguns momentos foi preciso me ausentar na execuo de algumas
tarefas.
E, finalmente, ao Programa Multidisciplinar de Ps-Graduao em Cultura e sociedade
PS-CULTURA, pela oportunidade de me colocar de frente com o conhecimento mul-
tidisciplinar indispensvel para o desenvolvimento desta pesquisa de doutoramento. Em
especial aos professores Paulo Cesar Borges Alves, Antnio Albino Canelas Rubim, Ldia
Maria Pires Soares Cardel e Renata Pitombo Cidrera, pelos contedos administrados em
sala de aula e as valiosas recomendaes de leitura. Delmira, pela aprazvel convivn-
cia e o auxlio nas tarefas administrativas junto ao Programa.
Trata-se de um modo de ser ilusrio, no qual a extravagncia, a
loucura e o valor mercantil e simblico das coisas zombam das
maneiras ordinrias e dos hbitos plebeus e vulgares.
DANIEL ROCHE (2007)
ARAUJO, Germana Gonalves de. Apario Cangaceira: subttulo. 208 f. il. 2013. Tese (Doutorado) Instituto de Humanidades, Artes e Cincias, Universidade Federal da Ba-hia, Salvador, 2013.
ABSTRACT
The present research entitled Cangaceira appearance: a study on the appearance of the cangaceiro as an aspect of power aims, through a multidisciplinary approach, to concat-enate the fundamentals of fields of disciplinary knowledge - such as Sociology, History, Philosophy and Anthropology - with non-disciplinary knowledge in nature - such as tes-timonies and experiences - to provide the analysis of the public image configuration of the cangaceiro individual with the proposition of inserting himself in the power game immanent from the cultural scenario. Therefore, this study was developed through read-ing literature; research papers in the collection of the Historical and Geographical Insti-tutes of the State of Sergipe, Bahia and Cear, and coexistence with people who have been in Cangao or started to live with the theme through researches and arts. Assuming conceptions of Sociology that favor for a flexible way of thinking - that understands both the individual as the result of a complex network of relationships in a socio-cultural con-text, as regards the aspects of individuality in collective existence - it is understood that the cangaceiro, in order to make her role convincing before other actors of the scenario begins to develop with authenticity - from the end of the 1920s an own style of dress-ing and behaving, leading authority before his lush appearance. The style of the cangaceiro shows signs of symbolic influence of corporations, such as the Army and the Church, but also makes clear how the choices about the use of certain objects are part of the intimate feeling of pleasure and distinction struggle inside and outside the group. In this sense, the cangaceiro changes from primitive and wild to be considered a creative individual, purposeful and conscious of his choices, unlike how he is understood by the regionalist literature and traditionally cangaceirista. We conclude that Lampio had no idea that he was a player that generated results in the face of competition and enemies and that when he prosecuted creative practices to have the configuration of the appear-ance of his group as part of the mechanisms of struggle, made him the protagonist of the Cangao history.
Keywords: Cangao, Appearance, Power.
ARAUJO, Germana Gonalves de. Apario Cangaceira: subttulo. 208 f. il. 2013. Tese (Doutorado) - Faculdade de Comunicao, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.
RESUMO
A presente pesquisa, intitulada Aparncia Cangaceira: um estudo sobre a apario como aspecto de poder, visa, por intermdio de uma abordagem multidisciplinar, a concatenar fundamentos de campos do conhecimento disciplinar como a Sociologia, a Histria, a Filosofia e a Antropologia com saberes de carter no-disciplinar tais como depoi-mentos, vivncias e fotografia para propiciar o estudo da configurao da imagem p-blica do indivduo cangaceiro com a proposio de inserir-se no jogo de poder imanente da cultura do cenrio. Para tanto, este estudo foi desenvolvido por meio da leitura bibli-ogrfica; da pesquisa em jornais do acervo dos Institutos Histricos e Geogrficos dos Estados de Sergipe, Cear e Bahia; e da convivncia com pessoas que estiveram no Can-gao ou passaram a conviver com o tema por intermdio de estudos e das artes. A partir da observao descritiva e das concepes da Sociologia que favoreceram para um modo flexvel do pensar que tanto entende o indivduo como sendo fruto de uma com-plexa rede de relaes em um contexto sociocultural, quanto considera os aspectos da individualidade na existncia coletiva , compreendeu-se que o cangaceiro, com o in-tuito de tornar seu papel convincente perante outros atores do cenrio, passou a elabo-rar com autenticidade a partir do final dos anos de 1920 um estilo prprio de vestir-se e comportar-se, provocando autoridade diante de sua aparncia exuberante. O estilo do cangaceiro apresenta sinais da influncia simblica de corporaes, tais como o Exr-cito e a Igreja, mas, tambm, deixa evidente o quanto as escolhas sobre o uso de deter-minados objetos fazem parte da ntima sensao de prazer e da luta pela distino den-tro e fora do grupo. Neste sentido, o cangaceiro cambia de primitivo e selvagem para ser considerado um indivduo criativo, propositivo e consciente de suas escolhas, dife-rentemente de como ele compreendido pela bibliografia regionalista e tradicional-mente cangaceirista. Conclui-se que Lampio tinha noo de que era um jogador que gerava resultados em face da concorrncia e que exercia prticas criativas para ter a configurao da aparncia cangaceira como parte dos mecanismos de luta, tornando-se um protagonista diferenciado da histria do Cangao.
Palavras-chave: Cangao, Aparncia, Poder.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 01 Roupa de vaqueiro estampada no couro, 38
FIGURA 02 Retirantes de Cndido Portinari, 78
FIGURA 03 Roupa de Vaqueiro, 105
FIGURA 04 Princpio compositivo do ornamento, 107
FIGURA 05 Desenho do Cangao, 108
FIGURA 06 Objeto do Cangao, 109
FIGURA 07 Revista Noite Ilustrada, 113
FIGURA 08 Recorte de Jornal, 120
FIGURA 09 Lampio e Maria Bonita, 124
FIGURA 10 Traje de padre Ccero, 133
FIGURA 11 Cantil original, 133
FIGURA 12 Farda do cangaceiro, 138
FIGURA 13 Bornal original, 140
FIGURA 14 Tenente Bezerra, 143
FIGURA 15 Volante travestida, 144
FIGURA 16 Chapu de Lampio (antes de 1930), 169
FIGURA 17 Chapu de Lampio (depois de 1930), 169
FIGURA 18 Trajes da cangaceira, 173
FIGURA 19 Cangaceiros e Mulheres de Cndido Portinari, 175
SUMRIO
INTRODUO 12 O CANGAO REVISITADO CAPTULO I 32 A APARNCIA NO CANGAO
39 1.1 A noo scio-histrica de indivduo no contexto do Cangao
47 1.1.1 Vtima social, revolucionrio ou bandido uma perspectiva sobre o papel social do cangaceiro
53 1.2 Sobre a cultura das vestes do cangaceiro 60 1.2.1 Descrio da cultura cangaceirista: mtodo de estudo 68 1.2.2 A indumentria sertaneja dos anos de 1930
CAPTULO II 84 A POTICA DA IDENTIDADE CANGACEIRA 100 2.1 Aparncia como resultado da atividade
formativa 106 2.1.1 O objeto no contexto do Cangao 114 2.2 Identidade e estilo das vestes do cangaceiro 129 2.2.1 Influncia das corporaes na aparncia do cangaceiro
CAPTULO III 145 LAMPIO SCENA: A APARIO DO PROTAGO-NISTA COMO ASPECTO DE PODER
164 3.1 moda do rei do Cangao 176 3.2 A roupa de cangaceiro como jogo de cena e
poder
CONCLUSO 188 UM OLHAR MULTIDISCIPLINAR SOBRE A APARNCIA CANGACEIRA
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
196
ANEXOS
201
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 12
I N T R O D U O
INTRODUO
O Cangao revisitado
A questo primeira a ser explicitada neste estudo com relao s concepes so-
bre o tema Cangao que podem ser evocadas para favorecer a compreenso da cultura
das aparncias como parte fundamental do processo de interao social de grupos de
cangaceiros. No se pode perder de vista que a maneira como o tema abordado nesta
pesquisa referindo-se s vertentes tericas e metodolgicas necessrias para o cum-
primento de um percurso intelectual que possibilitasse ao entendimento da imagem
pblica como aspecto de poder na realidade sociocultural do cangaceiro tem carter
renovador em relao ao que tem sido produzido cientificamente, nos sculos XX e XXI.
Neste sentido, para fundamentar esta tese, faz-se necessrio apresentar, em primeira
instncia, um histrico das abordagens ideolgicas que sustentaram as escrituras sobre
o Cangao a partir de 1930.
Sem perder de vista que a cada poca a histria do conhecimento se configura por
novas formas de delimitar contedos sobre determinados temas, parece inevitvel ter
que construir um repertrio de como o Cangao tem sido observado. Vale salientar que
a questo desenvolvida nesta pesquisa ressaltando que se trata de uma abordagem
sobre este tema que ainda no foi cogitada a possibilidade de estabelecer relao do
papel social desempenhado pelos cangaceiros com a atividade criativa da produo de
objetos, construtos de um estilo manifestado na aparncia, necessrios para a configu-
rao de uma imagem pblica autntica. E isso quer dizer que se pensa na possvel rela-
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 13
I N T R O D U O
o da apario de um cangaceiro com a funo de propiciar uma interao social singu-
lar propulsora de distino social e autoafirmao de identidade com o intuito de inter-
ferir na poltica do cenrio e estabelecer poder.
Faz-se valer, ento, da narrativa do historiador regionalista; das interpretaes da
histria contada pelo escritor cangaceirista; da reflexo do socilogo sobre a noo de
indivduo e sociedade e o debate sobre as lutas de poder do indivduo oprimido diante
de um cenrio poltico autoritrio; do modo de especulao do filsofo para alcanar a
dimenso esttica da atividade criativa do cangaceiro na produo e uso de objetos; do
discurso da mdia como produtor de senso comum; dos estudos socioculturais sobre
moda e, por fim, dos sistemas de significao encontrados na representao do modo de
vida do cangaceiro pelas artes (artes visuais, moda, msica, literatura, teatro, artesanato,
etc.). Alm dessas exemplificaes do flego sobre o tema, as quais serviram para cons-
truir um panorama das formas existentes do conhecimento gerado sobre o Cangao, foi
imprescindvel debruar-se nos depoimentos de pessoas que viveram o movimento, ou
de estudiosos que vivenciaram as histrias dos sobreviventes do cenrio. Para tanto, con-
comitantemente s leituras e pesquisas realizadas nos Institutos Histricos dos estados
de Sergipe, Bahia e Cear, foram realizadas algumas caminhadas no rastro rido de can-
gaceiros, obtendo-se o fortuito de adentrar em alguns territrios e conviver com pes-
soas e a natureza do contexto. Nessa caminhada, surge a oportunidade de realizar en-
trevistas com o ex-cangaceiro Vinte e Cinco, com Dr. Lamartine Lima, um dos mdicos
que no final dos anos de 1930 era residente do Instituto Nina Rodrigues e, em 1938, foi
um dos que receberam as cabeas e objetos dos cangaceiros mortos no combate da
Grota do Angico onde Lampio, Maria Bonita e outros nove cangaceiros foram mortos
e decapitados. Foram contactadas tambm pessoas que mantm a memria da vivncia
com o cenrio, tais como historiadores e estudiosos sobre o Cangao.
importante no perder de vista que a conformidade do arcabouo terico e me-
todolgico desenvolvido pelas reas de conhecimento regida por concepes que se
engendram no tempo e em determinados territrios. Grande parte dos livros publicados
sobre o Cangao at a dcada de 1950, por exemplo, foi escrita por pessoas que de al-
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 14
I N T R O D U O
guma maneira tiveram como observar ou conviver com o Cangao, tais como, por exem-
plo: ex-volantes, ex-coiteiros, coronis e ex-cangaceiros ou jornalistas e curiosos sobre
o tema. E nessa realidade, os primeiros escritos sobre o Cangao foram amparados pela
ideia de que se estava tratando de pessoas oriundas de um primitivismo social, caracte-
rizando, assim, uma concepo determinista sobre o modo de vida no serto conside-
rado conservadoramente arcaico. Quer dizer que, s primeiras escrituras sobre o tema
as quais podem ser datadas do incio do sculo XX at a dcada de 1960 propunham
uma descrio minuciosa do cenrio (realismo paisagista) e, como j foi explicitado an-
teriormente, enalteciam a narrativa oral das histrias contadas por pessoas que de al-
guma maneira observaram ou participaram do movimento. Dizendo de outra maneira,
ex-volantes, ex-coiteiros, ex-cangaceiros e autores que realizaram suas pesquisas in loco
constroem uma perspectiva que determina a injustia social como sendo a causa pri-
mordial para a existncia do Cangao, naturalizado o movimento como circunstancial.
Como desenvolve o historiador Fernando de Araujo S, tratando sobre os ecos da tra-
dio oral na historiografia do cangao, recorrente a [...] presena da histria oral e
da literatura de cordel na produo da memria sobre a histria do cangao e, sendo
assim, sem o devido rigor metodolgico, a composio narrativa de historiadores fica
merc de julgamentos morais (S. 2011, p. 46).
Pode-se verificar que j existem inmeras tentativas de estudo que relacionam o
cangaceiro com a ideia de indivduo primitivo que tem um estilo de vida rudimentar
em consequncia das circunstncias de um contexto rido. De maneira geral, no h
preocupao dos autores em perceber o quanto a atividade criativa era empreendida
na produo de uma aparncia peculiar com o propsito de interferir no processo de
interao social do cangaceiro.
Um exemplo de escritura da poca a literatura de cordel, que, apesar de ser uma
escritura ficcional, focava no realismo das histrias vividas pelos personagens do con-
texto do Cangao. Entretanto, mesmo admitindo que o fator ficcional seja o que dife-
rencia o apelo da histria do cordel para o leitor, o poeta cordelista e xilgrafo J. Bor-
ges tambm compreende a existncia do folheto que pretende narrar os acontecimen-
tos histricos: o cordel feito jornalismo (J. BORGES apud FERREIRA, 2006, p. 41). A
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 15
I N T R O D U O
respeito disso, o jornalista e pesquisador no assunto Jeov Franklin discorre que, no
perodo inicial do sculo XX, os versos rimados e estruturados em linguagem simples,
impressos de forma rudimentar, representavam para o sertanejo de pouca ou ne-
nhuma leitura a nica fonte atualizada de informao e entretenimento (FRANKLIN,
2006, p. 96). Isso quer dizer que, com o foco nos combates e artimanhas do cangaceiro,
principalmente de Lampio, o Cangao tem sido relatado em cordis desde o incio do
sculo XX. Em uma miscelnea de verdades, a histria se engendra com o imaginrio
popular, e a narrativa dessa literatura cumpre o papel de familiarizar a sociedade com
o estilo do modo de vida do Cangao. Por fazer parte de um momento histrico espe-
tacular barbarismo, mas tambm romance, arcasmo e sofisticao , o Cangao
torna-se relevante, seja l em qual esfera da realidade for narrado. Neste sentido, o
historiador Albuquerque Jnior desenvolve que a narrativa contida em um cordel pro-
duz uma realidade nascida de reatualizao de uma memria popular entrelaada com
acontecimentos das mais variadas temporalidades e espacialidades. [...] uma prtica
discursiva que inventa e reinventa a tradio [...] (ALBUQUERQUE JNIOR, 2009, p.
130).
Entrando em outro mbito de estilo literrio, e mesmo considerando que o cordel
gera ressonncia para outros tipos de discurso, a escritura produzida pelos autores con-
siderados regionalistas, nesse incio do sculo XX, era desenvolvida sob a viso pessimista
da poca sobre uma regio e apresentava, como ponto central justificativa das causas
do Cangao, a combinao da negao injustia de questes sociais e polticas engen-
dradas com as caractersticas territoriais castigantes do rido territrio onde o movi-
mento se desenvolvia. O historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., em sua obra inti-
tulada A inveno do Nordeste: e outras artes (2009), desenvolve a relao das ideias
regionalistas com a caracterizao dos escritos da poca. Segundo o autor, no Brasil, que
desde a metade do sculo XIX se concentrava na afirmao do discurso regionalista
inicialmente com o intuito de firmar questes provincianas e locais e, posteriormente,
rompendo com as fronteiras dos estados e promovendo a ideia de uma identidade naci-
onal , a literatura apresenta um discurso em que determinadas prticas diferenciado-
ras dos diversos espaos so trazidas luz, para dar materialidade a cada regio (Ibid.,
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 16
I N T R O D U O
p. 61). Com relao narrativa realista dessa poca, Albuquerque Jnior complementa
dizendo que
a escolha de elementos como o cangao, o messianismo, o corone-
lismo, para temas definidores do Nordeste, se faz em meio a uma mul-
tiplicidade de outros fatos, que, no entanto, no so iluminados como
matrias capazes de dar uma cara regio (ALBUQUERQUE JNIOR,
2009, p. 61).
Em outras palavras, o discurso regionalista apresentava-se conservador e criava
uma essncia para a identidade do Nordeste pautada na afirmao de um espao de
natureza pobre, onde as caractersticas, territoriais e de raa incivilizada, no eram
favorveis ao progresso socioeconmico ou mesmo ao desenvolvimento intelectual das
populaes nativas tidas, lamentavelmente, como primitivas ou como antimoderniza-
o do sistema.
Mesmo hoje, no h clareza dos motivos que impossibilitaram um olhar frutfero dos
primeiros escritores para os elementos constructos de uma identidade visual autntica da
aparncia do cangaceiro. A esttica da seca e da fome era o que estabelecia vnculo ima-
gtico da identidade visual do Nordeste nos escritos e nas artes do perodo e, por isso,
pouco foi compreendido sobre a inventividade da exuberncia das vestes do cangaceiro
j que se estava tratando de um movimento sociocultural considerado arcaico, que rom-
pia com todas as formas de progresso estabelecidas pelo poder pblico da poca. A ima-
gem gerada do cangaceiro, por intermdio, inclusive, da narrativa presente nos jornais do
sul do pas, reforava a questo de que o homem do norte era incivilizado, irracional e
violento. Corroborando com esse pensamento, o mdico legista e escritor Nina Rodrigues
(1862-1906) reforava a ideia de que o nordestino era uma raa inferior.
Portanto, seja na imprensa do sul, seja nos trabalhos de intelectuais
que adotam os paradigmas naturalistas, seja no prprio discurso da
seca, o Norte aparece como uma rea inferior do pas pelas prprias
condies naturais, ainda que no discurso da seca essa deficincia de
meio e de raa deveria ser compensada pela atuao do estado, inves-
tindo na modernizao da rea, numa poltica de imigrao, numa s-
rie de medidas para solucionar o problema das secas (ALBUQUERQUE
JNIOR, p. 75)
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 17
I N T R O D U O
Salienta-se que nas cincias humanas do incio do sculo XX a aparncia do indiv-
duo era compreendida como algo superficial, e, por isso, o olhar sobre ela deveria ser
de ocupao dos interesses do campo da moda. Convm frisar que a moda, desde o
sculo XVIII, era geralmente considerada como um movimento de reprodutibilidade do
objeto geralmente ao que seria apropriado para vestir pertencente apenas classe
socioeconmica privilegiada, da qual o indivduo sem posses e sinnimo de criminoso
como o cangaceiro no poderia fazer parte. Entretanto, pensar sobre o Cangao pelo
ponto de vista da aparncia dos indivduos pode requerer esforos de estudos por no
mnimo trs princpios que permeiam o campo da moda ou da histria cultural da vesti-
menta1: afirmao (poder social), personalizao (identidade esttica) e simbolizao
(cultura).
Desenvolvendo a questo por intermdio da histria da indumentria, Daniel Roche,
em sua obra intitulada Cultura das aparncias: uma histria da indumentria sculos
XVII-XVIII (2007), fornece um aporte terico para compreender as regras de encadea-
mento por intermdio de vnculos e cdigos, tanto do ponto de vista das restries
quando se trata de elementos sancionados pela sociedade que revelam prticas sociais
quanto da extenso das transgresses, na qual o indivduo estabelece a singularidade do
gesto de vestir e revela o anseio da aparncia distintiva (ROCHE, 2007, p. 59). Ou seja,
Daniel Roche busca desenvolver os dois lados da questo: do indivduo que se veste obje-
tivamente sob a indicao normativa, mas, tambm, ao mesmo tempo, tem a autonomia
de gerar algo novo que transgrida as normas com a funo de se distinguir. Nesta pers-
pectiva, a reflexo sobre a aparncia cangaceira pode ser desenvolvida considerando dois
universos: a imagem pblica (a apario) construda tanto por intermdio de uma cultura
material dos objetos fruto das culturas que deram origem ao indivduo cangaceiro
quanto pela imagem reconfigurada a partir das necessidades sociais de um indivduo que
se desenvolve na cultura do Cangao.
1 O socilogo Frdric Godart, em seu livro intitulado Sociologia da Moda, propicia o estudo da histria social da moda por intermdio de seis princpios (afirmao, convergncia, autonomia, personalizao, simbolizao, imperializao) que so compreendidos como aspectos especficos da moda (GODART, 2010).
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 18
I N T R O D U O
Outra questo que pode ter tornado invisvel a possibilidade de relacionar a identi-
dade visual com uma aparncia a ideia de que o cangaceiro, sertanejo de origem, ja-
mais poderia compreender e se beneficiar com a noo de beleza e bem-estar, j que
ele habita um rduo contexto submetido s caractersticas territoriais severas associado
a um Estado que negligencia os direitos legais para os que so considerados desvalidos.
Entretanto, estranho olhar para a elaborada fachada do cangaceiro e comungar com
o pensamento do pesquisador Lus da Cmara Cascudo (1898-1986), que, ao falar da
intelectualidade do sertanejo, enuncia que a noo da beleza para ele a utilidade, o
rendimento imediato, pronto e apto a transformar-se em funo (CASCUDO, 2009 apud
FERREIRA; ARAUJO, 2011, p.51). Em outras palavras, Cascudo defende a ideia de que a
arte intil para o sertanejo, j que este precisa resolver problemas cotidianos de ma-
neira imediata. Segundo esse pesquisador:
Basta ver a ornamentao dos oratrios, os enfeites pintados por um
curioso local nas fachadas, os frisos dos cemitrios e a cimalha dos
frontes das igrejas antigas. tudo rapidamente sentido e expresso
num estilo nervoso e simples, sem subjetivismo, sem mundo interior,
sem querer dizer coisa alguma alm das linhas materiais (CASCUDO,
2009 apud FERREIRA; ARAUJO, 2011, p.51).
A partir da dcada de 1960 as produes escritas sobre o Cangao apresentam nova
configurao: um olhar que, apesar de ainda narrar a histria oral como verdade ex-
trema da realidade (histria nica), tenta relacionar histria reflexes tericas sobre
os fatos socioculturais. O historiador Rui Fac (1913-1963) lanou em 1963 a obra inti-
tulada Cangaceiros e fanticos. A pesquisadora Christina da Matta Machado lanou em
1969 a primeira edio do livro As tticas de guerra de um cangaceiro2.
Adentrando nos anos de 1970, o padre-escritor Frederico Bezerra Maciel (1912
1980), aps 30 anos de pesquisa, iniciou a publicao da coleo, em seis volumes, inti-
tulada Lampio, seu tempo e seu reinado. O volume 6, que possui o ttulo Lampinidas,
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 19
I N T R O D U O
a imagem de Lampio complementar e analtico (1988), inaugura a tentativa de rela-
cionar a aparncia de Lampio com a possibilidade de sua sensibilidade artstica dife-
renciada da dos demais que habitavam o contexto dos sertes. Entretanto, a exubern-
cia da aparncia do cangaceiro, agora no sentido de uma identidade, foi pensada como
sendo uma beleza estranha composta por alguns elementos desconexos. Neste sentido,
passa a existir uma possvel associao de uma afetao na composio visual das vestes
(roupa e acessrios) como o mpeto de vaidade natural de um sertanejo.
Outra questo, que tambm precisa ser desdobrada nesta pesquisa, a omisso da
existncia dos profissionais que produziam artesanalmente os objetos para o cenrio,
no somente os prprios cangaceiros, mas tambm os ferreiros, ourives e coureiros da
regio. O silncio em relao capacidade criativa do arteso que atendia s necessida-
des de produo de objetos do cenrio pode dar vazo vertente que tenta naturalizar
a aparncia do cangaceiro. A ideia que se fomenta de que o modo como o cangaceiro
se apresentava era resultado de prticas artesanais comuns ao sertanejo da poca, ig-
norando a alternativa de que de alguma maneira a aparncia cangaceira constitua um
sentido, proporcionava sensaes, mesmo que, a priori, parecesse pouco racional.
Ressalta-se que a literatura cangaceirista dessa poca, de modo geral, apresentava
um discurso pautado no que os autores nomeiam de verdade histrica e, por conta disso,
as narrativas orais so, geralmente, consideradas como fonte nica na composio das
ideias que so escritas e publicadas.
De modo geral, os discursos acerca do Cangao geraram, desde sempre, perspectiva
histria e sociolgica sobre o tema, mais do que qualquer outra forma de olhar. Pode-se
dizer que, a despeito disso, a leitura dos escritos cangaceiristas, apesar do carter con-
servador, foi de grande valor para essa pesquisa. Todavia, existem poucas tentativas para
tratar a questo das escolhas dos construtos da imagem do cangaceiro por intermdio
dos fundamentos filosficos. Neste mbito, o que se tem visto, por exemplo, que atu-
almente a palavra esttica tem sido utilizada juntamente com o Cangao na tentativa de
traduzir as palavras desenho, beleza ou mesmo padro figurativo. Por isso, para o arca-
bouo terico desta pesquisa de doutorado foi necessrio recorrer ao filsofo esttico; e
no lugar de tentar cambiar a palavra de outros sentidos, a esttica tratada como um
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 20
I N T R O D U O
modo de perceber (experimentar) determinados elementos que, ao mesmo tempo, so
produtos da atividade artstica e produtores da experincia que instala a sensao de
beleza e bem-estar na aparncia cangaceira. Neste sentido, especula-se que a aparncia
cangaceira torna-se um objeto esttico-figurativo. Tal concepo sobre a aparncia ,
antes de tudo, relevante para compreender os elementos (sinais grficos) que compem
visualmente um cangaceiro e direcionar o olhar para o quanto o modo de vida no Can-
gao teve como necessidade a configurao de uma imagem pblica singular e apropri-
ada para a interao social do cangaceiro uma identidade visual com estilo singular
capaz de gerar diferenciao e afirmar poder.
Considerando, ento, que a configurao dos elementos que constituem a aparn-
cia cangaceira parte da inventividade criativa do cangaceiro, busca-se no filsofo itali-
ano do sculo XX, Luigi Pareyson (1918-1991), em sua obra intitulada Problemas da es-
ttica (2001), compreender a relao da forma com o contedo no exerccio da arte.
Para esse autor, a atividade [...] artstica implica em processos: um processo de forma-
o de contedo e um processo de formao da matria, assumindo que os dois pro-
cessos so simultneos, coincidindo a expressividade com a produtividade (PAREYSON,
2001, p.61-62). Nesta perspectiva, a formao de uma matria, por intermdio de tc-
nicas de pensar e fazer, s pode ser arte quando a matria formada em si a expresso
de um contedo e esse contedo no necessariamente um discurso, mas revela algo
visualmente valorado pelo artista e por outros, a ponto de criar uma afetao tanto in-
telectual quanto emocional. Outra questo apontada por Pareyson que do ponto de
vista da inseparabilidade da forma e contedo, ou seja, entre a espiritualidade do ar-
tista e o seu modo de fazer arte, h precisamente identidade. Portanto, considera-se
como arte cangaceira todo objeto que foi configurado para compor a identidade social
do cangaceiro, sendo ele considerado essencialmente o estilista, mas no necessaria-
mente o artista j que tambm eram utilizados outros produtores para configurar e
produzir objetos. Configura-se, ento, uma vertente que se encarrega de desenvolver o
carter dbio do conceito de aparncia que ora revela e ora omite informaes sobre
o indivduo assumindo, de certa maneira, a dicotomia entre aparncia e essncia da
imagem que o indivduo constri de si para relacionar-se com outros. Pareyson (2001)
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 21
I N T R O D U O
ressalva que no se tem como separar as caractersticas pessoais do artista (como gosto,
expressividade e emoo) dos gestos operativos do fazer a obra (potica), e que a co-
munho entre o artista, a matria e a tcnica resulta em um estilo revelador.
A partir da relao entre forma e contedo de Pareyson, pode-se ampliar a reflexo
do quanto os estudos tradicionais sobre a imagem do cangaceiro parecem fugir dos pro-
psitos da esttica, j que determinam que o objeto concebido por ele ou por inter-
mdio dele essencialmente contedo e, por estar atrelado obrigatoriamente a um
discurso, a forma compreendida em segundo plano. Tal concepo enfatiza que a se-
mntica dos elementos existe independentemente da atividade artstica formadora da
matria (atividade formativa). Quer dizer que o objeto observado exclusivamente por
uma possibilidade de significado. Neste sentido, compreensvel o porqu de historia-
dores normalmente descreverem a vestimenta do cangaceiro dando importncia sig-
nificao singular atribuda a cada um dos elementos de adorno. Esse ponto crucial
para a segunda parte da tese, porque se a atividade artstica do cangaceiro, ou do ser-
tanejo que tambm o arteso que produz os objetos do Cangao, no consideravel-
mente relevante, ignora-se a possibilidade de que existia uma relao esttica entre o
objeto e o indivduo e se assume a vertente de que os elementos construtos da aparn-
cia do cangaceiro so essencialmente universais e s chegaram a ele por uma herana
histrica. Contudo, para desenvolver a ideia de que o cangaceiro pode ser um indivduo
criativo capaz de propor novos usos prticos, simblicos e estticos para os elemen-
tos figurativos que compem sua aparncia, a reflexo sobre a esttica imprescindvel
para esta tese.
Nesse direcionamento, a leitura nos escritos do socilogo francs Pierre Francastel
(1905-1970), que desenvolve a ideia de que o objeto figurativo tem lgica prpria e
irredutvel linguagem verbal, foi fecunda para a construo de uma vertente terica
que fundamenta a possibilidade de que a imagem provoca uma experincia esttica em
plano distinto ao juzo de valor. Francastel, em seus estudos sobre a Sociologia da Arte,
desenvolve que a arte figurativa, diferentemente do que se pensa nas civilizaes oci-
dentais, uma das faculdades fundamentais do esprito humano que serve como ve-
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 22
I N T R O D U O
culo para algumas das mais altas e mais eficientes formas do pensamento (FRANCAS-
TEL, 1967, p. 14). Para esse autor, a arte um modo de compreenso e um modo de
ao ao mesmo tempo; uma atividade material e simblica que no se limita ela-
borao de objetos no-usuais, mas que se associa s modalidades mais diversas de
ao. No podemos reduzi-la nem ao personalismo nem ao simbolismo (Ibid., p. 20).
E neste sentido que a atividade artstica do cangaceiro est sendo observada aqui:
como algo que responsvel pela construo da imagem, mesmo que no pertena
exclusivamente subjetividade de Lampio nem tampouco a uma pura herana de sm-
bolos cultuados por povos anteriores.
A partir do pensamento de Francastel pode-se alcanar a compreenso de que no
basta reunir imagens, entrevistar pessoas que conviveram no Cangao e narrar as carac-
tersticas do poder scio-poltico do coronelismo marcante na histria dos sertes do Nor-
deste no perodo de final do sculo XIX e incio do sculo XX. Deve-se desvendar algo que
transcenda a prtica de agrupamento de informaes para se chegar ao entendimento da
razo pela qual os cangaceiros chefiados por Lampio tinham uma aparncia demasiada-
mente particular para aquela regio e poca. Como explicita o autor, o pensamento es-
ttico , sem dvida, um desses grandes complexos de reflexo e de ao em que se ma-
nifesta uma conduta que permite observar e exprimir o universo em atos ou em atos par-
ticulares (Ibid., p.5).
Ressalta-se que Lampio, que era nmade e no integrante de um bando de seden-
trios, afirmava-se como um ator que no hesitava em exercer seu papel de poder
comandava aes de extermnio em funo de acentuar sua autoridade3 onde quer que
estivesse , assim como tambm empreendia esforos na construo de uma impresso
de pessoa amena para conseguir dialogar com outros atores constituintes do poder, tais
como padres e coronis no cenrio do Cangao. Para compreender essa questo, evoca-
3 Em 1929, Lampio comandou um ataque ao quartel da cidade de Queimadas (Bahia). Na ocasio, soldados foram mortos a sangue frio sem nenhum motivo aparente que justificasse a ao de extermnio (FERREIRA; AMAURY, 2009, p. 213). Como desenvolve em sua fala, o historiador Frederico Pernambucano, em entrevista realizada na casa dele em 27 de agosto de 2010, s poderiam existir duas maneiras para que Lampio estabelecesse poder: por intermdio da fora de ocupao, no caso de o bando ser composto por um grande nmero de cangaceiros; ou pelo terror.
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 23
I N T R O D U O
se a concepo da segregao do auditrio, proposta por Erving Goffman (1922-1982)
em A representao do eu na vida cotidiana (2004) , para pensar que Lampio pre-
zava pelo seu desempenho e, por isso, planejava uma faceta diferente de si mesmo a
cada um dos diversos pblicos com que ele interagia. Lampio estrategicamente singu-
larizava-se num jogo de poder e entrega, de lutas e conciliaes.
Adentrando os anos de 1980, ainda que sejam poucos os estudos sobre a esttica
do Cangao, historiadores e pesquisadores cangaceiristas inclinam-se na identificao de
significados que podem ser atribudos ao elemento grfico utilizado para compor a ima-
gem cangaceira. Na perspectiva desses autores, os atributos, tais como estrelas, rosceas
e moedas, tornam-se resultados de um universo de significados que j foram pretendidos
por determinados povos e so assumidos pelo cangaceiro como se fossem herana sim-
blica dessas outras culturas. Tentando obedecer a uma coerncia histrica, essa con-
cepo de estudo evidencia que h intencionalidade semntica do cangaceiro como au-
tor de sua imagem; e, sendo assim, inclina-se para a compreenso sobre o que ele pre-
tendia dizer (significado imutvel) em vez daquilo que foi realmente dito (recebido e in-
terpretado).
Certamente, no se pode negar que havia uma inteno de sentido pretendido por
Lampio a partir do momento em que ele passou a reunir cada elemento como neces-
srio para a composio de sua aparncia. Lampio pode ser considerado como sendo
um estilista na histria das aparncias do Cangao, pois foi ele quem props estilo sin-
gular para os bandos sob seu comando. Todavia, ignorar os possveis significados gera-
dos no processo de recepo da aparncia cangaceira pode pr em risco a compreenso
sobre o quanto Lampio era visionrio e constantemente criativo.
O problema, aqui, no est em reconhecer que um elemento figurativo tambm j
pde ter pertencido a culturas anteriores, mas sim em excluir a possibilidade de que
Lampio prope uma ressignificao a esses elementos, seja por no ter conscincia do
sentido que foi atribudo ao elemento anteriormente seja por ter a capacidade e neces-
sidade de reinventar novos significados. Desta maneira, no necessrio ter como pre-
texto um significado pronto aliado ao contedo do adorno em si aparente na veste do
cangaceiro, mas sim considerar que a aparncia cangaceira tambm uma composio
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 24
I N T R O D U O
visual que revela algo e, sendo assim, ora pode ser percebida como uma representao
semntica tem significado objetivo , ora como uma expresso provoca vnculos
emocionais. Nesse sentido, foi estabelecido um estilo como resultado dos gestos opera-
tivos no processo de configurao da imagem pblica. Abre-se espao para o debate
que problematiza uma questo primordial para a defesa desta tese: o quanto Lampio
fruto de uma estrutura social ou o quanto se pode observ-lo como indivduo propo-
sitivo (contribuies individuais) dentro dessa estrutura.
O socilogo Marcel Mauss (1872-1950) em seu pensamento que fundamenta a
ideia de sociedade a partir da tica funcionalista, explicitada em seus estudos consti-
tuintes na obra intitulada O sacrifcio (2005) desenvolve que um fato social a sntese
da lgica das relaes sociais. Nesta perspectiva, apesar de se acreditar que a aparncia
cangaceirista, proposta durante o tempo em que Lampio chefiou o movimento (1920
a 1938), inusitada e, por isso, deixa de ser parte da herana simblica de outras cul-
turas, no se pode perder de vista que a lgica fundamental que rege o uso dos ele-
mentos grficos observada em outros grupos localizados em culturas diversas como
se a necessidade de estabelecer o credo em determinados desenhos como represen-
tantes de significados religiosos, polticos, econmicos e sociais fosse realmente igual
para toda a humanidade na configurao da comunicao em suas relaes sociais.
Neste sentido, pesquisadores optam por uma linha de pensamento universalista que
conduz o entendimento de que o homem, desde sua origem, constri sinais grficos
gerais com a inteno de se comunicar e tornar tangveis conceitos sociais abstratos.
Um autor que aborda esse tipo de enfoque o pesquisador e designer de tipografia
Adrian Frutiger (1928-2011), que, em sua obra intitulada Sinais e Smbolos: desenho,
projeto e significado (2001), diz que na histria da humanidade h possibilidade de sig-
nificao objetiva e imutvel aplicada a elementos visualmente representados como
forma de comunicao entre culturas. Exemplificando o pensamento de Frutiger no
qual o sinal grfico pode percorrer os tempos e movimentos com o mesmo significado
, a roscea que Lampio usava no centro superior da aba batida de seu chapu pode
ser interpretada como um elemento que transmitia atividade contnua j que, segundo
Frutiger, o crculo, para os primitivos, tinha uma simbologia ligada ao sol (energia) e
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 25
I N T R O D U O
pode, atualmente, estar associado ideia de movimento contnuo das rodas e engrena-
gens (energia). , tambm, associado a outros elementos circunscritos que geram a im-
presso de irradiao no sentido do centro invisvel para o meio exterior, gerando o sig-
nificado de vida ativa (FRUTIGER, 2001, p. 26-27). Ou seja, para Frutiger, o sinal grfico,
simples ou composto, tem uma funo semntica e jamais pode ser contextualizado de
modo especfico (Ibid., p. 4). Para esse autor, sinais grficos primrios com formas idn-
ticas podem ter significados semelhantes para as diversas populaes de pocas dife-
rentes (Ibid., p. 23). Ou seja, os sinais grficos tm significao fixa independente do
contexto cultural onde esto inseridos.
O historiador Frederico Pernambucano, mantendo-se dentro dessa concepo que
considera a significao das coisas acima de qualquer outra importncia, no reluta em
enaltecer o valor simblico dado estrela que ornamentava o chapu utilizado pelo can-
gaceiro Corisco, a partir de uma possvel relao dessa estrela de Salomo ou de Davi.
O que se est tentando dizer que a identidade formadora da aparncia do Cangao,
nessa perspectiva da universalidade das significaes culturais, posicionada na conti-
nuidade da identidade visual de grupos anteriores, como sendo uma forma sinttica
constituda de regras e evolues fixas, por mais que possam existir outros sentidos (pr-
ticos, estticos e simblicos) para o cangaceiro.
Essa questo ilustra o quanto o conceito de identidade visual pode estar sendo en-
tendido como um discurso ideolgico utilizado para a descrio de um grupo e no por
um grupo mesmo considerando que o grupo veste e consolida as formas propostas
pelas expectativas de outros para se tornar visvel. como se a identidade visual da ima-
gem de um cangaceiro estivesse sendo compreendida por um movimento de fora para
dentro do grupo, sendo algo no negocivel e, sim, desenvolvido por imposio das for-
as de poderes externos.
Prope-se compreender tambm o que est sendo dito por intermdio do olhar da
mdia e das artes em geral. A imagem miditica do cangaceiro foi construda de modo
arbitrrio em relao ao que se considerava justo em funo dos valores morais de cada
poca. Ilustrando a questo, a mulher cangaceira feita de barro pelo arteso pernam-
bucano Mestre Vitalino , por exemplo, considerada pelo socilogo Jos Souza Martins
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 26
I N T R O D U O
em sua obra Sociologia da fotografia e da imagem (2009) como uma imagem trans-
gressora, pois se trata do retrato de uma mulher fora do patamar que o arteso entendia
ser natural da mulher:
As cangaceiras de Vitalino, no geral, so feias, grosseiras, robustas.
Uma condenao da mulher que abandona o seu universo feminino,
to claro e to passivo em suas esculturas, e se masculiniza nos adere-
os e armamentos. A mulher que se embebeda, outra expresso desse
feminino abandonado, dessa transgresso da ordem, aparece assedi-
ada pelo demnio numa de suas esculturas (MARTINS, 2009, p. 144).
Outra maneira de exemplificar o que est sendo dito em relao ao quanto a iden-
tidade visual da aparncia no Cangao pode ter sofrido influncias de normas sociais
o fato de que Lampio era devoto de Santo Expedito e, sozinho ou em grupo, exercia
cotidianamente prticas religiosas oraes e rezas eram constantes no dia a dia dos
cangaceiros. Isto implica que, desde sempre, mesmo antes de iniciar a configurao
exuberante de suas vestes, Lampio exercia a prtica de apreciar imagens e smbolos
grficos representantes de significaes de natureza religiosa. O padre Maciel, em sua
obra j citada, apresenta uma detalhada narrativa sobre tais prticas religiosas de Lam-
pio e expe que elementos msticos e religiosos faziam parte da aparncia de um can-
gaceiro: medalhas com imagens de santos, Nossa Senhora, So Jorge, assim como pa-
tus e outros objetos de mandinga. Ou seja, existe, de fato e em alguma medida, in-
fluncia da corporao na configurao da aparncia do cangaceiro. O que ser desen-
volvido no decorrer do segundo captulo desta tese o quanto a significao dos sinais
grficos religiosos pode ter sido ou no tambm incorporada pelo cangaceiro.
Nessa perspectiva, sobre a possibilidade da influncia de uma corporao para a
construo da aparncia do cangaceiro, d-se relevo que aps receber uma pseudopa-
tente militar do governo federal em exerccio na poca, em 1926, Lampio passa a ves-
tir-se uniformizado. Desde ento, novos sinais grficos passaram a incorporar as vestes
do cangaceiro influenciando, assim, na imagem interna e externamente ao Cangao.
Ressalta-se, entretanto, que representar hierarquia sociopoltica por intermdio de ele-
mentos grficos prtica identificada na aparncia dos cangaceiros era parte, de fato,
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 27
I N T R O D U O
de natureza comum de um indivduo quando este tenta estabelecer relao de poder,
confiana e riqueza.
Segundo depoimento do ex-cancageiro Vinte e Cinco (gravao e transcrio reali-
zada em junho de 2008), somente os chefes de bandos possuam alguns tipos de ador-
nos; e o patriarca Capito Lampio tinha sua roupa diferenciada da de todos. Vinte e
Cinco tambm se lembrou de dizer que a roupa do jovem iniciante parecia com a farda
simples do soldado raso (um reco); e, com o tempo de atuao, o cangaceiro recebia de
seu chefe veste mais elaborada, de tecidos mais resistentes e adornos mais extravagan-
tes, tal qual a farda de um oficial subalterno ou intermedirio (tenente ou capito). O
que se est tentando dizer que embora exista uma incgnita com relao ao que est
sendo representado pelo desenho em si de cada um dos elementos usados para compor
a aparncia cangaceira, parece factvel considerar que h uma lgica do uso de sinais
grficos tpicos de determinadas instituies.
Ressalta-se que no se est negando as possibilidades da origem histrica dos signi-
ficados atribudos aos adornos dos cangaceiros. Entretanto, para gerar suporte terico
na defesa desta tese, faz-se necessrio compreender duas outras questes do problema
acerca da aparncia no contexto do Cangao. A primeira, que pode ser preferencialmente
compreendida no captulo II, diz respeito aparncia cangaceira artisticamente execu-
tada, sendo analisada no somente como produtora de sentido, mas tambm como pro-
duto de um universo criativo do homem, ou melhor, de pessoas com habilidades artsti-
cas, tais como o ferreiro, o arteso de couro, o ourives, entre outros. Essas pessoas tam-
bm tiveram uma histria de vida sociocultural que lhes propiciou experincias estticas
e, que, a partir do momento em que passaram a confeccionar objetos para o cangaceiro,
passaram a compartilhar constructos de uma identidade cultural. A segunda questo re-
fere-se ao quanto Lampio esteve consciente, a partir de seus ideais ou de suas refern-
cias, no processo de configurao de sua identidade visual, priorizando assim a configu-
rao de uma moderna aparncia que faz todo um sentido no processo de interao so-
cial e no somente do uso de um significado fixo pretendido para cada um dos elementos
constituintes de sua imagem.
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 28
I N T R O D U O
Voltando-se para o lado da questo que compreende o cangaceiro como um sujeito
propositivo, a leitura realizada nas escrituras do socilogo Georg Simmel (1858-1918)
foi fundamental para discorrer sobre o fato de que o homem naturalmente um indiv-
duo que busca a diferena. Em Questes fundamentais da sociologia (2006), Simmel de-
senvolve questes que podem auxiliar na compreenso de que para a sociologia, a im-
portncia no est nos grupos sociais em si, mas sim no que torna os grupos com carac-
tersticas determinadas. Isto quer dizer que a ideia de indivduo para, esse autor, fe-
cunda para fortalecer a observao do quanto o sujeito cangaceiro foi propulsor de mu-
danas e responsvel por possveis especificidades socioculturais para a histria do ar-
caico Nordeste brasileiro. Na viso de Simmel, a sociologia passa a ser uma cincia par-
ticular no quanto ao contedo (o fato em si) j que todo tipo de conhecimento parece
pertencer ao mundo do homem que naturalmente social mas a partir de uma ma-
neira particular de observar a forma em que os contedos se realizam. E neste sentido,
para a realizao do estudo da aparncia do indivduo no Cangao em uma perspectiva
multidisciplinar, que se torna importante o uso da histria como complemento para a
compreenso das relaes sociais em determinado momento e espao.
Desse modo, a aparncia do cangaceiro pode ser vista, diferentemente do usual,
como fruto das relaes sociais em um contexto cultural onde a sensibilidade para a
diferena constitui naturalmente o esprito do indivduo. O autor explicita que a dife-
rena nos garante a vantagem ou desvantagem perante os demais indivduos (SIM-
MEL, 2006, p. 46). Surge, pois, a hiptese de que talvez esse significado prtico da
diferena existente na relao do indivduo com os demais possa ser explorado para
se obter a compreenso de que existiu em Lampio a razo do apreo por uma apa-
rncia nova com o foco na distino social, independentemente da possibilidade de
que ele valorava a herana simblica de cada um dos elementos grficos utilizados em
sua fachada.
Inserindo a observao sobre o contexto cultural, busca-se o conceito de habitus
extrado do pensamento do socilogo francs Bourdieu (1930-2002). Segundo este au-
tor, h uma dialtica entre o indivduo social e a estrutura social e, sendo assim, o habi-
tus no se reproduz duramente numa realidade existente, mas como resultado de uma
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 29
I N T R O D U O
negociao, renovando a ideia de indivduo com a realidade construda. Ou seja, o habi-
tus uma matriz de percepo que, por exemplo, pode fazer com que o gosto de indi-
vduos iguais pessoas de um mesmo contexto sobre determinadas coisas possa ser
diferente. E por esta razo que em Bourdieu o estudo dos caminhos efetivamente per-
corridos pelos indivduos (formas) mais importante do que o entendimento das regras
abstratas da sociedade. O discurso tradicional reproduz as regras como receiturios, e
que a fora est na relao dos grupos com essas regras. Desenvolve-se, ento, que o
habitus renova a regra. Mais uma vez surge a ideia de que observar a maneira singular
das relaes sociais do cangaceiro pode ser um caminho para se compreender os cons-
trutos identitrios do modo de vida do Cangao. Deve-se pensar em um cangaceiro
como indivduo que se relaciona alm dos modos de um sertanejo criminoso para poder
caracteriz-lo de forma singular. Neste sentido, recorre-se ao mtodo descritivo de an-
lise sobre aspectos da cultura onde o Cangao se desenvolveu para possibilitar compre-
ender questes essenciais das relaes sociais.
No mbito da representao social do indivduo, vale-se do pensamento de Erving
Goffman, em sua obra citada anteriormente, para refletir sobre o quanto a aparncia de
Lampio, enquanto aspecto cnico da fachada equipamento expressivo foi cons-
truda em funo de se criar uma identidade social singular, uma impresso cangaceira.
Goffman desenvolve que quando o indivduo desempenha um papel, implicitamente
solicita de seus observadores que levem a srio a impresso sustentada perante eles
(GOFFMAN, 2008, p. 25). , portanto, relevante pontuar que aparncia um termo
usado nesta pesquisa no somente para referir-se aos atributos que constituam a veste,
mas, inclusive, pelo engendramento da singularidade da veste com os demais equipa-
mentos expressivos do cangaceiro, tais como o comportamento, o aparato gestual tipi-
ficado e os modos de interagir com os demais fora e dentro dos bandos. Segundo
Goffman, a aparncia um termo que se refere a um estmulo que, juntamente com a
maneira como ela se revela, configura a fachada social de um indivduo (Ibid., p. 31).
Pode-se, pois, acreditar que a imponncia da veste cangaceira parte dos esforos que
Lampio canalizava para dramatizar sua representao; e isto pode ser compreendido
como uma de suas estratgias de diferenciao sociocultural e poder.
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 30
I N T R O D U O
Esta tese foi construda em trs partes, que esto entre a Introduo e a Concluso
da pesquisa. No Captulo I, intitulado Aparncia do Cangaceiro, foi desenvolvida a noo
histrica do indivduo no contexto do Cangao. Por intermdio de uma abordagem s-
cio-histrica, nessa primeira parte foram realizadas leituras de autores cangaceiristas,
de recortes da mdia da poca4 , dos depoimentos de pessoas que viveram no Cangao,
concomitantemente com o estudo dos autores da Histria, Sociologia e Antropologia,
tendo como os principais: Eric Hobsbawm, Nilton Frexinho, Antnio Fernando S, Fre-
derico Pernambucano de Melo, Durval Muniz de Albuquerque Jnior, Georg Simmel,
Ervin Goffman, Peirre Bourdieu, Marcel Mauss, Daniel Roche, Norbert Elias e Bronislaw
Malinowski. Nesse captulo, utilizou-se dos preceitos das cincias sociais para o estabe-
lecimento da noo de indivduo, de grupo, de subgrupo, de cultura e sociedade, assim
como para localizar os conceitos de aparncia, estigma e fachada social. A primeira parte
desta tese teve o propsito de delimitar e clarificar o conceito de aparncia relacionado
noo de indivduo cangaceiro, relevando a histria cultural das aparncias para com-
preender o dilogo entre cultura e indumentria. D-se relevo que desde o incio, esta
pesquisa parte do pressuposto de que existe uma identidade social no Cangao, e que,
portanto, a percepo sociocultural do indivduo que se torna cangaceiro importante
para a investigao da formao do gosto e do que ele possa estabelecer como belo.
O Captulo II, intitulado A potica da identidade cangaceira, trata de como a busca
por uma referncia esttica pode interferir na atividade criativa de um grupo. Para de-
senvolver essa segunda parte da pesquisa foi necessrio realizar leitura sobre a Esttica,
e, para tanto, autores contemporneos como Pierre Francastel e Luigi Pareyson foram os
principais expoentes tericos que auxiliaram na compreenso do pensamento sobre arte
e esttica. O complexo arcabouo existente hoje sobre o conceito de identidade tambm
foi evocado com o propsito de compreender qual das concepes sobre a formao dos
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 31
I N T R O D U O
constructos identitrios de indivduos e grupos sociais poderia ser mais plausvel com a
ideia de aparncia delimitada no captulo I desta tese.
O Captulo III, que recebeu o ttulo de Lampio scena, desenvolve a perspectiva de
que a aparncia proposta por Lampio , na realidade, uma apario termo utilizado
nesta tese para designar um valor cnico na atuao pblica de Lampio , o que parece
ser uma proposio cabvel para se pensar que a aparncia desse cangaceiro mtico era,
antes de qualquer coisa, parte do seu jogo de distino social perante os demais jogado-
res-atores do cenrio. Corrobora-se com a ideia de Norbert Elias sobre a relao indiv-
duo-sociedade para desenvolver o quanto um cangaceiro tanto reproduz as regras de
contexto sociocultural como tambm capaz de criar novos elementos que interferem
no processo de recepo de sua imagem pblica, contabilizando, assim, o carter amb-
guo da aparncia. Defende-se a ideia de que o indivduo-cangaceiro em busca de poder
exerce a prtica criativa de construo de sua prpria imagem.
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 32
C A P T U L O I
CAPTULO I
Aparncia do cangaceiro
[...]conhecer libertar-se da aparncia.
[...]conhecer confiar na aparncia.
(ABBAGNANO, 2007, p. 78)
Aparncia um conceito com estatuto ambguo. Ao mesmo tempo, indcio de
algo que se revela, mas tambm que se oculta em contradio ao que se pensa sobre
ser verdade. dessa maneira, cambiando entre sentidos opostos, ora para o lado da
incgnita, ora afirmando a realidade, que o Dicionrio de Filosofia de Nicola Abbagnano
explicita o significado da palavra aparncia; tratamento semntico que ser relevante
para a defesa desta tese.
Essas duas concepes de aparncia intricaram-se de vrias formas na
Histria da filosofia ocidental. De um lado, esta nasceu do esforo de
atingir saber mais slido transpondo os limites das A., isto , das opi-
nies, dos sentidos, das crenas populares ou mticas. De outro, pro-
curou, com igual constncia, ter em conta a aparncia (salvar os fe-
nmenos), reconhecendo assim que nela se manifesta, em alguma
medida, a prpria realidade (ABBAGNANO, 2007, p. 78).
Segundo consta no Dicionrio de Filosofia, o pensamento aristotlico reconhece a
neutralidade da aparncia sensvel, que, [...] tanto como sensao quanto como ima-
gem, pode ser to verdadeira quanto falsa (ABBAGNANO, 2007, p. 78.). Assumir os sig-
nificados, a priori opostos, relevante para compreender, por exemplo, o quanto Lam-
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 33
C A P T U L O I
pio teve apreo pelos objetos artesanalmente bem elaborados anunciando particu-
laridades de seu gosto, sensivelmente perceptvel dentro de um universo sociocultural
determinado , mas, tambm, deixa por refletir o que ele intencionalmente (ou consci-
entemente) estava querendo construir sobre sua identidade pessoal por intermdio de
uma imagem inusitada. Quer dizer que existem coisas que podem ser percebidas e ou-
tras refletidas sobre a aparncia de Lampio. Neste sentido, para manter a aparncia
sensvel como verdade, torna-se razovel que se adote a ideia de que Lampio era um
sertanejo que externalizava sua vaidade extrema, apresentando sua habilidade artstica
e sensibilidade simbologia culturalmente herdada. Todavia, permite-se tambm a
transcendncia do que visivelmente perceptvel para ressaltar o quanto a aparncia
pode fazer parte do jogo das interaes sociais. Abbagnano expe que em outros ter-
mos, a aparncia o ponto de partida para a busca da verdade, que, porm, s reco-
nhecida em sua necessidade mediante o uso dos princpios do intelecto (Ibid., p. 78).
O autor desse dicionrio explicita, em seu verbete sobre aparncia, que somente a
filosofia moderna (a partir do sculo XVII), numa perspectiva que ele chama de revalori-
zao empirista do conceito, reconhece o carter real da aparncia, j que aparecer se
torna um fenmeno sensvel. O modo como se apreende (recepo de) um objeto o
que distingue sentido e intelecto. No se pode perder de vista que, neste momento, o
fenmeno considerado o princpio que possibilita conhecer as coisas (Ibid., p. 79). O
termo fenmeno, nesse Dicionrio de Filosofia, denotado, em primeira instncia, como
tendo o mesmo sentido da palavra aparncia um significado comum entre essas duas
palavras pode ser encontrado em Bacon (em De Interpretation naturae proeminum,
1603), em Descartes (Princ. Phil.,III,4), em Hobbes (De corp., 25, 1) e em Wolff (Cosm.,
225) (Ibid., p. 510).
De todos os fenmenos que nos circundam o mais maravilhoso jus-
tamente o parecer. certo que entre os corpos naturais alguns pos-
suem os exemplos de todas as coisas e outro, de nenhuma. Conse-
quentemente, se os fenmenos so os princpios para conhecer as ou-
tras coisas, preciso dizer que a sensao o princpio para conhecer
os prprios princpios e que dela deriva toda a cincia. Para indagar as
causas da sensao no se pode, portanto, partir de outro fenmeno
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 34
C A P T U L O I
que no seja a prpria sensao [De corp., 25, 1] (ABBAGNANO,
2007, p. 79).
Para o desenvolvimento desta tese, no se pode perder de vista a relevncia de
desenvolver um conceito de aparncia que fruto da complexidade das relaes nas
quais o indivduo est imerso. As ideias nesse Captulo I discorrem sobre a aparncia de
um indivduo percebida por elementos que configuram a dualidade entre revelar e omi-
tir.
Para fortalecer o que se pensa sobre a aparncia do indivduo, como princpio fun-
damental no processo de interao social, faz-se necessrio trazer o pensamento do so-
cilogo Erving Goffman (1922-1982). Goffman, oriundo da Escola de Chicago5 intelec-
tual que parte do grupo dos estruturalistas do perodo Ps-Segunda Guerra Mundial,
entre 1940 e 1950 , utiliza-se da fenomenologia como mtodo cientfico em seus estu-
dos e, por intermdio da observao das interaes sociais (interacionista), desenvolve
a chamada sociologia formal. Pierre Bourdieu (1930-2002), socilogo francs contem-
porneo, desenvolve que Goffman olhava de perto eventos da realidade social que nor-
malmente no eram observados pela sociologia e, assim, constatava que [...] sensvel
teatralidade da vida social [...] (BOURDIEU, 2004, p. 12). No desdobramento dessa
teatralidade da vida social que Goffman traz tona os elementos que compem o
universo das interaes sociais, onde se pode encontrar uma ideia de aparncia aplicada
ao indivduo. Reforando, Bourdieu coloca que:
Atravs dos indcios mais sutis e mais fugazes das interaes sociais,
ele capta a lgica do trabalho de representao; quer dizer, o conjunto
das estratgias atravs das quais os sujeitos sociais esforam-se para
5Assim como todo o grupo de socilogos de Chicago que teve seu PhD na virada da metade do sculo, Goffman desenvolveu de fato uma certa disposio para com o mundo, que guiou suas percepes, apreciaes e aes ao longo de suas carreiras dali em diante, qual se pode chamar de habitus de Chicago (WINKIN apud. GASTALDO, 2004, p. 28). Yves Winkin Deste modo, pode se dizer que existem trs princpios gerativos que regem a produo intelectual dos chicagoanos contemporneos de Goffman: 1. Vera para Crer a atitude bsica de Goffman era orientada pelos dados ( um homem a servio da observao do campo); 2. H sempre uma ponta de ironia no modo Chicago de ver o mundo [...] no apenas uma questo de acuidade crtica, uma postura epistemolgica, uma maneira de quebra o espelho da iluso[...] serve como fonte de resistncia simples incorporao das definies dos atores sobre seus papis e vises de mundo ao trabalho do socilogo; 3. Ele no benfeitor, nem assistente social (WINKIN, 2004, p. 28-29).
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 35
C A P T U L O I
construir sua identidade, moldar sua imagem social, em suma, se pro-
duzir: os sujeitos sociais so tambm atores que se exibem e que, em
um esforo mais ou menos constante de encenao, visam se distin-
guir, a dar a melhor impresso, enfim, a se mostrar e a se valorizar
(BOURDIEU, 2004, p. 12).
Em sua obra intitulada A representao do Eu na vida cotidiana (2008), Goffman
desenvolve que quando um indivduo desempenha um papel deve ser percebido de ma-
neira convincente para sustentar uma impresso pretendida por ele perante o outro e,
por isso, [...] de um modo geral as coisas so o que parecem ser (GOFFMAN, 2008, p.
25). Quer dizer que, aqui, para que o indivduo convena sobre a realidade em cena,
deve manter uma aparncia condizente com a verdadeira realidade.
No h exatamente uma ideia dualstica com relao ao conceito de aparncia em
Goffman. Para este autor, a aparncia e outros aspectos cnicos, que podem ser encon-
trados em um processo de representao e interao social, formam os construtos do
que ele trata como fachada social. Desde modo, a aparncia em Goffman tende a signi-
ficar mais revelao e realidade do que algo que se oponha a isso. Contudo, o que no
est aparente tambm faz parte da construo de uma realidade.
Em Goffman, alguns termos so importantes e necessrios para que se possa com-
preender, posteriormente, o que ele define como aparncia. O primeiro o de repre-
sentao como sendo [...] toda atividade de um indivduo que se passa num perodo
caracterizado por sua presena contnua diante de um grupo particular de observadores
e que tem sobre estes alguma influncia; e o segundo a palavra fachada, que
entendida como [...] o equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou in-
consciente empregado pelo indivduo durante sua representao (Ibid., p. 29). Como
parte da fachada, o autor tambm define o cenrio o pano de fundo, o palco geo-
grfico para a representao (ao humana) ; a aparncia de acordo com a infor-
mao que se queira transmitir, definida por estmulos que funcionam no momento
da interao social e tem a funo de revelar status social do ator ; e a maneira
tambm no momento de interao, so estmulos que informam sobre o papel que est
sendo desempenhado (GOFFMAN, 2008, 31). Aparncia e maneira devem ser estmulos
compatveis para uma representao convincente.
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 36
C A P T U L O I
Utilizando os conceitos definidos por Goffman, pode-se chamar de cenrio canga-
ceiro o serto do Nordeste brasileiro, compreendendo que este um palco cultural mar-
cado pela complexidade da relao entre os fatores ambientais com os socioeconmicos
e polticos tratados mais a fundo no prximo item deste captulo I. Nesta perspectiva,
a maneira como a aparncia cangaceira se revela, pode ser consideradas como resultado
da combinao de vrios elementos constructos que servem como estmulos ao pro-
cesso de percepo da sociedade sobre um cangaceiro, considerando tanto o elemento
fixo ou natural (etnia, gnero, entre outros), como o elemento mvel ou cultural (ves-
turio, gesticulao, por exemplo).
Uma questo interessante sobre como a agressiva aparncia sensvel do canga-
ceiro foi socialmente construda sendo associada a determinados valores morais, por-
tanto conservadores, considerados plausveis pela sociedade da poca (entre os anos de
1920 a 1938). Alm do mais, a mdia teve um papel imprescindvel para que a percepo
do papel social de Lampio acontecesse conforme o discurso que pudesse favorecer os
poderes do cenrio. Matrias de jornais interferiam em como a sociedade deveria per-
ceber Lampio com a funo de estabelecer uma opinio popular de negao ao trnsito
de cangaceiros pelo horizonte da caatinga. Intrigante saber como o sertanejo, pelo
menos at 1936 j que somente depois deste ano, com as fotografias do libans Ben-
jamim Abraho, foi que os jornais tiveram a oportunidade de publicar a imagem dos
cangaceiros , formulava a aparncia de Lampio que era apenas descrita de maneira
verbal, seja pela fala ou pela escrita. Jornais e cordis esmiuavam a barbrie dos com-
bates entre cangaceiros e polcia volante com a funo de construir uma imagem pblica
cangaceira fundada no horror. Desta maneira, o imagtico configurado acerca do can-
gaceiro era de bicho, monstro e irracional.
Outra questo que ser aprofundada ainda neste captulo I a influncia da apa-
rncia de outros atores que tambm fazem parte do cenrio cangaceiro, tal como o va-
queiro. Por problemas de natureza funcional, ou devido ao que se pensa sobre o uso
prtico das vestes de um sertanejo relevando que ele exercia uma atividade pecuria
em ambientes naturais ridos de extrema aspereza; a caatinga , associado ao significa-
tivo fator simblico de riqueza, poder e proteo, existia um culto ao couro, e a pele de
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 37
C A P T U L O I
gado era usada para a confeco das vestes do vaqueiro. certo que no h semelhana
entre as aparncias do vaqueiro e do cangaceiro. O couro no faz parte da representa-
o do cangaceiro e, mesmo que essa matria possa ser mantida no cenrio por seu
valor simblico, deu passagem para a trama de algodo, mescla azul-acinzentada, para
compor a aparncia do cangaceiro. Entretanto, no imaginrio coletivo, mesmo fazendo
parte de pequena quantidade de artefatos da aparncia cangaceira, peas de couro so
fortes referncias do cenrio.
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 38
C A P T U L O I
FIGURA 01: Roupa de vaqueiro estampada por um coureiro. O processo de estampagem realizado com punes
e vazadores moldes confeccionados em metal que so martelados sobre o couro e que serve de matriz de deter-
minados desenhos decorativos (motivo grficos). FONTE: ARAUJO, Emanoel (org.). O serto da caatinga, dos san-
tos, dos beatos e dos cabras da peste. 1. ed. So Paulo: Museu Afro Brasil, 2012, p. 62-63.
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 39
C A P T U L O I
1.1 A NOO SCIO-HISTRICA DE INDIVDUO NO CONTEXTO DO CANGAO
Proliferando, em meio misria, seu nmero crescendo, o latifndio
estagnado no podia integr-lo totalmente em sua economia limitada.
[...] Cria-se no Nordeste uma espcie de nomadismo permanente, que
as secas s fazem aumentar e dar caractersticas mais trgicas. ento
que se juntam, ante o flagelo, renem-se nos caminhos para as longas
jornadas em busca do po e gua. [...] A seca expulsa-os e congrega-os.
[...] A seca mata-lhes a criao, queima-lhes a roa e no lhes resta se-
quer gua barrenta da cacimba rasa, cavada com a enxada, junto ao
casebre (FAC, 1978, p. 28).
Rui Fac (1913-1963), jornalista e pesquisador cangaceirista cearense, defende ve-
ementemente, em sua obra intitulada Cangaceiros e Fanticos (1978), que o Cangao
era uma forma de reao extrema de camponeses contra a injusta estrutura social vi-
gente. A narrativa desse autor apresenta as caractersticas de um cenrio complicado
(final do sculo XIX), sobre o qual ele lamenta e desenvolve que o atraso cultural dos
sertes localizados na regio Norte, que a partir de 1920 passa a ser intitulada de Nor-
deste com o isolamento da populao sertaneja em um contexto marcado pelo mo-
noplio de terra e o trabalho escravo era caracterizado por um [...] analfabetismo
quase generalizado. Ignorncia completa do mundo exterior, mesmo o exterior ao ser-
to, ainda que nos limites do Brasil (Ibid., p. 9).
Segundo Nilton Frexinho, historiador pernambucano contemporneo, o estudo so-
bre os cenrios dos sertes deve ir alm da viso unilateral que situa o problema como
sendo resultado do fator preponderantemente do latifndio e do monoplio de terra
como desenvolve o historiador Rui Fac (FREXINHO, 2003, p.18-19). Para esse autor, no
se pode perder de vista que existiu um significativo abandono da regio por parte do
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 40
C A P T U L O I
Estado, acarretando, entre outras coisas como as prprias caractersticas territoriais
desfavorveis o empobrecimento agudo dos sertes.
Frexinho apresenta fatos conjecturais que determinaram o progressivo esvazia-
mento daquela regio, como a queda da exportao do acar nacional devido con-
corrncia, em qualidade e valor, do acar produzido nas Antilhas e a transferncia do
Governo-Geral da colnia de Salvador para o Rio de Janeiro, provocando o desloca-
mento da capital econmica e poltica do Norte para o Sul (Ibid., p.43). As oligarquias
locais, enfraquecidas, abandonam o serto e empreendem esforos poltico-administra-
tivos no litoral (Ibid., p. 45).
Jos de Souza Martins, socilogo debruado no estudo das lutas populares do
campo, expe que, no final do sculo XIX, o Estado passou a ter o domnio das terras
devolutas e, por isso, desencadeou no Brasil, em vrias regies, a especulao imobili-
ria; a necessidade de regularizao dos limites entre fazendas (delimitao de frontei-
ras); e a definio da situao jurdica da propriedade fundiria. Alm disso, [...] terras
de antigos agregados, vaqueiros convertidos em sitiantes, sofreram a ameaa de incor-
porao ao patrimnio dos fazendeiros mais ricos e poderosos (MARTINS, 1993, p. 50).
Com a Proclamao da Repblica (em 1889) definiu-se um quadro de [...] usurpao e
injustia, aprofundando o domnio da lei do co, a ordem social do mal (Ibid., p. 53).
Em sua obra intitulada Os camponeses e a poltica no Brasil (1993), Martins faz uma
crtica sobre a produo de intelectuais da Histria que tratam da compreenso terica
do processo de transformao da sociedade [...] o processo que resolve a contradio
entre a produo social e a apropriao privada pela qual o capitalismo se constitui e se
define (Ibid., p. 13). Segundo esse autor, o campons6 no tem recebido ateno devida
nos estudos acadmicos. Por no estar inserido em um processo de desenvolvimento
capitalista, o homem do campo, , pelo contrrio, interpretado como um indivduo que
6 As palavras campons e latifundirio, segundo Martins, so relativamente novas no vocabulrio acadmico bra-sileiro e tm carter poltico: No so, portanto, meras palavras. Esto enraizadas numa concepo da Histria, das lutas polticas e dos confrontos entre classes sociais (MARTINS, 1993, p. 23).
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 41
C A P T U L O I
gera contradio e se configura como um insubmisso e revoltado, sem organizao par-
tidria ([...] erguendo resistncia expropriao capitalista). Para Martins, o problema
aqui de, principalmente, natureza poltica e deve ter importncia histrica, mesmo
que a populao camponesa seja considerada atrasada.
Seria, entretanto, pura imbecilidade tentar convencer o campons que
est sendo despejado, cuja casa est sendo queimada pelo jaguno e
pela polcia, de que deve aceitar tal fato como uma contingncia his-
trica, como ocorrncia que ruim para ele, mas boa para a humani-
dade (ou ao menos para os idelogos e justificadores de tais violncias
e injustias), pois o que vai permitir o desenvolvimento do capital,
daquele mesmo que o antagoniza patrocinando tais violncias (MAR-
TINS, 1993, p. 13).
Nos anos de 1930, o cenrio dos sertes se tornou verdadeiro palco da violncia
exercida tanto por grupos comandados quanto pelos insubmissos. Os paisanos, os ja-
gunos, a volante, alm dos cangaceiros, formaram grupos independentes. Cada um
com suas caractersticas e interesses configurava o palco do terror. Frexinho explicita
que:
No de se estranhar que aquele complexo quadro de fatores e cir-
cunstncias gerasse nas populaes pobres e marginalizadas dos ser-
tes do Nordeste inquietude e insatisfao generalizadas. A princpio
dissimuladas e reprimidas, em face de falta de perspectivas individuais
para situar-se na sociedade rural em que o sertanejo deveria integrar-
se. No fundo, um verdadeiro bloqueio s iniciativas criativas, bloqueio
que o sertanejo buscou romper por meio de dois caminhos: a aliena-
o por meio do radicalismo religioso; ou a violncia liderada por che-
fes carismticos [terrorismo de cl] (FREXINHO, 2003, p. 27).
Em se tratando do Nordeste, certo que at a literatura regionalista usa a violncia
como pano de fundo em romances. Para alguns autores fica difcil tratar da histria dos
sertes sem adentrar no enredo marcado por uma realidade cotidiana de vida arcaica.
De qualquer modo, assumir que o cangaceiro na mesma perspectiva da dos autores con-
siderados regionalistas assumir a interpretao de que o sertanejo um indivduo sem
esperana, triste e sem nada a perder diante de uma vida dura. Esta concepo, de certa
maneira, coloca o sertanejo frente de um destino dramtico, e que por ser considerado
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 42
C A P T U L O I
incapaz intelectualmente, alm de fazer parte de uma populao em estado pr-pol-
tico, precisaria, irrevogavelmente, assumir um subterfgio margem da ordem social
para resistir sua desgraa. Neste sentido, o que pode ficar aparente que se est ten-
tando criar uma imagem de indivduo com estigma de marginal, que no tem culpa do
caminho seguido, ou de pessoa sem arcabouo intelectual suficiente para gerar solues
adversas s violncias fsicas. Dizendo de outra maneira, essa uma perspectiva de viti-
mizao social, desenvolvida por autores que promovem o pensamento de que os fato-
res sociais so os principais motivos da origem do Cangao ou seja, que se trata de um
fenmeno que efeito de uma estrutura social desequilibrada e injusta , colocando o
sertanejo como um indivduo pouco evoludo e atrasado. Essa alegao refora, de al-
gum modo, a ideia do mdico legista e escritor Nina Rodrigues (1862- 1906)7, quando
este compreende que o equipamento biolgico do indivduo sertanejo resultado mal
sucedido de uma mistura tnica e, isso, tem relao direta com o fato de alguns deles
se tornarem cangaceiros. Nesse sentido, aparta-se aqui essa perspectiva que retira do
cangaceiro a possibilidade de ele ser um indivduo com capacidades propositivas.
Esse conceito de homem primitivo que se organiza socialmente em uma estrutura
pr-poltica formulado por Lucien Lvi-Bruhl (1857-1939) no incio do sculo XX. Em
1922, em sua obra intitulada originalmente La mentalit primitive A mentalidade pri-
mitiva (2008) Lvi-Bruhl utiliza inmeros relatos de missionrios europeus e norte-
americanos que narram suas impresses sobre as regies longnquas onde habitavam
os povos considerados por eles como primitivos. Certamente, e o prprio Lvi-Bruhl ad-
mite que a orientao dessa mentalidade a qual denomina os hbitos mentais carac-
tersticos dos primitivos acontece por intermdio da observao da cultura de povos
sem o devido distanciamento da sociedade europeia. Nessa perspectiva, povos que no
possuem o mesmo tipo de educao dos europeus, por exemplo, foram considerados
com dificuldade de reflexo e, por isso, mantinham-se no universo das ideias restritas e
7 Formado em medicina, Nina Rodrigues encontrou em Salvador/BA ambiente favorvel s pesquisas sociais. Tais pesquisas eram herdeiras diretas da antropologia criminal do mdico italiano Cesare Lombroso e, obviamente, do inicial positivismo sociolgico na rea penal.
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 43
C A P T U L O I
da apreenso dos objetos imediatos. Segundo os relatos, o homem primitivo tinha uma
averso por aquilo que os lgicos chamam de operao discursiva do pensamento e,
por isso, se mantinha como selvagem. O que os relatos dos missionrios tentam cons-
truir que por no ter capacidade de conjecturar questes complexas, as relaes soci-
ais so imediatistas. Por isso, que o conceito de pr-poltico determina um tipo de
ordenao social pouco complexa e concreta. Lvi-Bruhl apresenta ideias evolucionistas,
mesmo que em seu discurso ele desconsidere que a condio de primitivo tenha relao
com a incapacidade intelectual; mas, sim, com um atraso causado por um tipo de apren-
dizado que no exercita o raciocnio mnimo dessas civilizaes. Ele admite que a maior
parte dos missionrios perderam a oportunidade de pesquisar singularidades culturais
por no se permitirem vivenciar os fatos observados.
Corroborando com o pensamento do socilogo Jos de Souza Martins, que define
ser principalmente de natureza poltica o problema do banditismo desenvolvido no Nor-
deste brasileiro, no perodo de final do sculo XIX ao comeo do sculo XX, revisita-se a
histria da entrada de Virgolino Ferreira da Silva, o Lampio, para o movimento do Can-
gao. A princpio, o que geralmente se define como sendo o motivo que levou o jovem
Ferreira a se envolver com um modo de vida marginal foi uma desavena entre famlias
os Ferreira e os Saturnino. Aconteceu que um morador da fazenda Pereira, proprie-
dade do velho Saturnino Alves de Barros que se situava vizinho ao stio do Jos Ferreira,
pai de Virgolino, cometeu um furto de algumas cabras e bodes de propriedade dos Fer-
reira. Virgolino empreendeu esforo numa investigao procura do ladro que so-
mente foi cessada quando as peles dos animais furtados foram encontradas enterradas
na casa do Joo Caboclo, o tal morador da fazenda vizinha. At o ocorrido, as famlias
tinham um convvio sem desacordos. A esposa do velho Saturnino, inclusive, era madri-
nha de um dos filhos dos Ferreira, o Joo Ferreira. Tentando arrumar uma medida que
pudesse evitar futuros imbrglios entre as famlias, o Jos Ferreira foi at o velho Satur-
nino pedir que o morador-ladro fosse despedido. O pedido no foi atendido e outros
moradores da fazenda Pereira passaram a afrontar os Ferreira, que, tambm, passaram
a incitar o ciclo de medida de fora e investir em atitudes provocativas e ameaas. Num
A P A R N C I A C A N G A C E I R A | 44
C A P T U L O I
mpeto de prepotncia de ambas as famlias, nasce entre elas a rivalidade (FERREIRA;
AMAURY, 2009).
Segundo a narrativa do pesquisador cangaceirista Antnio Amaury, que possivel-
mente conseguiu estar com o maior nmero de pessoas que viveram no cenrio do Can-
gao, nenhum in