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ARQUEOLOGIA DE UMA FÁBRICA DE FERRO: MORRO DE ARAÇOIABA SÉCULOS XVI-XVIII ANICLEIDE ZEQUINI São Paulo Dezembro de 2006

arqueologia de uma fábrica de ferro: morro de araçoiaba séculos xvi

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  • ARQUEOLOGIA DE UMA FBRICA DE FERRO: MORRO DE ARAOIABA

    SCULOS XVI-XVIII

    ANICLEIDE ZEQUINI

    So Paulo Dezembro de 2006

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO Museu de Arqueologia e Etnologia

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUEOLOGIA

    ARQUEOLOGIA DE UMA FBRICA DE FERRO: MORRO DE ARAOIABA, SCULOS XVI-XVIII.

    Anicleide Zequini

    Tese apresentada ao programa de Ps-Graduao em Arqueologia, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Arqueologia.

    Orientadora Professora Doutora Margarida Davina Andreatta

    So Paulo 2006

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    Aos meus Pais: Francisco Zequini

    e Dirce da Costa Zequini e Ismar

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    AGRADECIMENTOS

    Durante a primeira visita ao Stio Arqueolgico Afonso Sardinha da Floresta Nacional de Ipanema em Iper, So Paulo, no ano de 2003, tive oportunidade de

    conhecer o objeto de estudo desta Tese: as evidncias da Fbrica de Ferro com a

    sua respectiva vala da roda e os inmeros artefatos que haviam sido recolhidos

    durante as escavaes. Naquela oportunidade, fui gentilmente recebida pela Sra.

    Janette Gutierrez, a quem deixo meus agradecimentos, extensivo aquela

    Instituio.

    Recebi ainda, no transcorrer do meu trabalho, importantes informaes das

    Sras. Vivian Cristiane Fernandes e Nair Tanabe Tomiyama, ambas do Ncleo de

    Arqueologia da Universidade Braz Cubas, assim como das Sras. Snia Paes do

    Museu Histrico Sorocabano e Marizia Tonelli.

    Agradeo tambm ao Sr. Jos Monteiro Salazar, o qual gentilmente me

    recebeu em sua residncia em Boituva, SP, um apaixonado pela Historia de

    Ipanema, o qual contou fatos de grande interessante sobre a descoberta das

    runas, assuntos que incorporei na minha Tese.

    Em maro deste mesmo ano apresentei minha qualificao, oportunidade

    em que recebi valiosas sugestes das Professoras Doutoras Helosa Maria

    Silveira Barbuy e Elaine Farias Veloso Hirata, a quem agradeo.

    Finalmente, com admirao e especial carinho que agradeo a minha

    orientadora, a Professora Doutora Margarida Davina Andreatta, com quem tive a

    oportunidade de discutir longamente os conceitos e detalhes deste meu trabalho.

    Os seus conhecimentos e a responsabilidade com que conduziu a orientao

    foram fundamentais para a elaborao desta Tese, assim como para minha

    prpria formao em Arqueologia, em especial na Arqueologia Histrica.

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    SUMRIO

    ndice 06 ndice das Figuras 10 Resumo 14 Abstract 15 Introduo 16 Captulo I 19 Captulo II 47 Captulo III 83 Captulo IV 109 Capitulo V 126 Capitulo VI 167 Consideraes finais 193 Bibliografia 195 Glossrio 214 Anexos 220

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    NDICE INTRODUO 15 CAPTULO 1 O STIO AFONSO SARDINHA: QUESTES DA ARQUEOLOGIA HISTRICA 1.1 Contexto do presente trabalho 19

    1.1.1 Avaliao dos dados bibliogrficos 19 1.1.2 Histrico das descobertas das runas 26 1.1.3 Consideraes sobre a metodologia 32 1.1.4 Descrio geral das pesquisas arqueolgicas realizadas 37

    1.2 Principais questes a serem abordadas no decorrer da Tese 46

    CAPITULO 2 A TECNICA DE PRODUO DE FERRO NO PERIODO ENTRE OS SCULOS XVI AO XVIII 2.1 Consideraes sobre Tcnica e Tecnologia 47 2.2 O conceito de Tcnica 50 2.3 A valorizao do conhecimento tcnico e a cincia

    experimental moderna 53 2. 4 A Tecnologia como sinnimo de Tcnica 55 2.5 A Tcnica de produo do ferro 59 2.6 Fornos de fundio de ferro 64 2.7 Tratados Tcnicos de Metalurgia 78

    CAPITULO 3 HISTRICO DA MINERAO NO BRASIL COLONIAL 3.1 As primeiras expedies martimas: a busca dos metais nobres 83 3.2 O Peabiru: uma trilha para o Serto 85 3.3 O descobrimento da prata em Potosi 88 3.4 A busca de metais nobres na Capitania de So Vicente 90 3.5 D. Francisco de Sousa: a organizao da explorao mineral 91

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    3.6 Tcnicos e prticos na minerao e metalurgia 94 3.7 A Fbrica de Ferro de Santo Amaro 96 3.8 A Fbrica de Ferro do morro de Araoiaba: os empreendedores 99 3.9 A Real Fbrica de Ferro de So Joo do Ipanema 103 CAPTULO 4 O STIO AFONSO SARDINHA 4.1 Localizao 109 4.2 A vegetao 116 4.3 Rios e ribeires

    4.4 A magnetita: o minrio do morro de Araoiaba 119 4.5 Fatores fisiogrficos da ocupao europia 123

    CAPTULO 5 INVESTIGAES ARQUEOLGICAS: AS EVIDENCIAS DE UMA FBRICA DE FERRO 126 5.1 Estruturas hidrulicas para a produo da fora motriz. 129 5.1.1 O Canal de Derivao. 129 5.1.2 A Vala da Roda 132 5.1.2.1 Evidncias de esteios 134 5.2 A Fbrica de Ferro: os espaos de produo 137 5.2.1 Area C 137 5.2.2 A rea B (Forja) 139 5.3 Area E: Sul da Fbrica de Ferro 150 5.3.1 Fornos de fundio na rea externa da Fbrica (rea A1) 155 5.3.1. Forno de Fundio 1 157 5.3.2 Fornos de fundio da rea A2 159 5.3.2.1 Forno de fundio 1 (rea A2) 161 5.3.2.2 Forno de fundio 2 (rea A2) 165

    CAPITULO 6 INTERPRETAES DOS DADOS ARQUEOLGICOS 6.1 Avaliao das caractersticas do Arranjo das Estruturas 167 6.2 As ferreras de gua na Pennsula Ibrica 170 6.3 Sistema hidrulico: produo da fora motriz 175

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    6.3.1 Dique de represamento do ribeiro do Ferro 175 6.3.2 Canal de Derivao das guas 176 6.3.3 Vala da roda 177 6.3.4 A Caixa de gua - Banzao 179 6.3.5 A roda hidrulica 180 6. 4 A Fbrica de Ferro: os espaos de produo 183 6.4.1 A Oficina da Fbrica de Ferro. 183 6.4.1.1 O Malho 188 6.4.1.2 Fornos de fundio e foles 190 CONSIDERAES FINAIS 193 BIBLIOGRAFIA 195 GLOSSRIO 214 ANEXOS 220 1. Relatrio de Ensaio Laboratrio de Vidros e Datao FATEC 2. Inventrio de Peas: Cermica 3. Inventario de Peas: Ltico 4. Inventrio de Peas: Louas 5. Inventrio de Peas: Telhas 6. Inventrio de Peas: Metal 7. Tratado da Arte de ensaiar e fundir cobre, ferro e ao. Ano de 1691 8. Aranzel ou Roteiro de haveres de oiro e pedras preciosas. Ano de 1696 9. Planta Geral da rea pesquisada. Stio Afonso Sardinha (Mapa 1) 10. Mapeamento das reas de decapagem e escavao ( Mapa 2) 11. rea E - Concentrao de lminas de metal (Mapa 3)

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    12. rea E - Concentrao de escrias (Mapa 4) 13. rea E - Concentrao de blocos de arenito (Mapa 5) 14. rea E Concentrao de cravos de metal (Mapa 6) 15. rea E - Concentrao de telhas (Mapa 7)

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    INDICE DAS FIGURAS

    1. Mapa de localizao da FLONA Ipanema 2. Mapa de localizao do Stio Afonso Sardinha 3. Desenho esquemtico da localizao da Fbrica de Ferro 4. Aspecto do Stio Afonso Sardinha, 1983 5. Incio das pesquisas arqueolgicas no Stio Afonso Sardinha, 1983 6. Reunio de trabalhos, 1984 7. Aspecto da Fbrica de ferro, em 1987 8. Planta do Stio Afonso Sardinha: reas A1 e A2 9. Planta da rea A1 10. Vista Geral da rea A1 11. Vista Geral da rea A2 12. Planta da rea A2B: detalhe 13. Planta do morrote A2B 14. rea A2: morrote e evidencias de fornos de fundio 15. Corte esquemtico de um forno baixo 16. Maquete de forno de fundio (Celta) 17. Forno de fundio (romano) 18. Fornos de fundio de lupa ou de vento 19. Corte esquemtico de fornos de fundio de lupa ou de vento 20. Fornos de fundio de Guaira (Potosi)

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    21. Fornos de fundio, sculo XVI 22. Fornos de Fundio, sculo XVI 23. Arranjo funcional de uma Fbrica de Ferro 24. Elementos que compem uma Farga Catalan 25. Traado do Peabiru (Tronco de So Vicente) 26. Mapa do Peabiru feito por Pasquale Petrone 27. Prospecto das runas da Fbrica de Ferro de Santo Amaro 28. Vista Geral da Fbrica de Ferro de Ipanema, 1827 29. Vista Geral da Fbrica de Ferro de Ipanema, sculo XIX 30. Altos fornos geminados construdos por Varnhagem, 1818 31. Alto forno construdo pelo Cel. Mursa, 1888 32. Roteiro Histrico da Minerao e metalurgia paulista 33. Mapa Geolgico do Morro de Araoiaba 34. Bloco diagrama da regio da Serra de Araoiaba 35. Vista geral do morro de Araoiaba I 36. Vista geral do morro de Araoiaba II 37. Magnetita 38. Limpeza do Stio Afonso Sardinha, 1984 39. Equipe de trabalho, 1988 40. Vista geral da rea E, 1988 41. Dimenses da Vala da roda e localizao da evidncias de esteios 42. Vala da roda hidrulica, 1987 - I 43. Vala da roda hidrulica, 1987 II 44. Evidncias de esteios

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    45 Detalhe da evidncia de esteios 46. Detalhe de um esteio 47. Topografia do terreno da rea C 48. Vista geral da rea C, 1987 49. Reconstituio das paredes da rea B, 1984 50. Evidncias de paredes da rea B, 1984 51. Parede reconstituda da rea B, 1984 - I 52. Parede reconstituda da rea B, 1984 - II 53. Parede reconstituda da rea B, 1984 - III 54. Vasilhame de cermica (01/06) rea B, sculo XVI - I 55. Vasilhame de cermica (01/06) rea B, sculo XVI - II 56 Vasilhame de cermica (01/06) rea B, sculo XVI III 57. Vasilhame de cermica (01/22) rea B, sculo XVI I 58. Vasilhame de cermica (01/22) rea B, sculo XVI II 59. Tijela, faiana , [sculo XVII] 60. Escria restos de fundio, rea E 61. Telha (01/15), rea E, sculo XVIII 62. Telha rea E 63. Telha rea E 64. Raspador plano convexo, rea E 65. Garrafa de grs, rea A forno1 66. Decapagem rea A, forno 1 67. Vestgios do forno de fundio 1, rea A1 68. Morrote e vestgios de fornos de fundio, rea A2

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    69. Croqui da rea A2, morrote B 70. Vestgios do forno de fundio 1, rea A2 71. Croqui do forno de fundio 1, rea A2 72. Vestgios do forno de fundio 2, rea A2 - I 73. Vestgios do forno de fundio 2, rea A2 II 74. Vestgios do forno de fundio 2, rea A2 III 75. Aspecto de uma ferrera de gua, sculo XVII 76. Sistema de pujn tuorto 77. Trabalho de extrao da bola de ferro ou massa de ferro 78. Traado esquemtico do Canal de Derivao, rea A1 (Interpretao) 79. Depsito de gua: soluo Banzao 80. localizao do malho e da roda hidrulica (Interpretao) 81. Fbrica de Ferro do Stio Afonso Sardinha: arranjo dos equipamentos (interpretao) 82. Fbrica de Ferro: Planta baixa (interpretao) 83. Fbrica de Ferro: rea erodida (Interpretao)

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    RESUMO

    Esta Tese tem como objetivo analisar a pesquisa arqueolgica e os

    artefatos coletados no Sitio Arqueolgico Afonso Sardinha, localizado no morro de

    Araoiaba, Iper - So Paulo.

    O resultado da anlise permitiu concluir que a rea corresponde a um

    campo de minerao de ferro com a presena de evidncias de uma Fbrica de

    Ferro, de um sistema de aproveitamento de energia hidrulica para movimentar

    os equipamentos e ferramentas destinadas a produo e de fornos de fundio.

    Alm disso, a datao do material cermico (vasilhames e telhas) indica que as

    atividades de explorao do minrio tiveram incio no sculo XVI.

    Palavras-Chaves: Arqueologia Histrica; Floresta Nacional de Ipanema; Tcnica

    de produo de ferro Colonial; Sitio Afonso Sardinha, morro de Araoiaba, Iper-

    SP.

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    ABSTRACT This Thesis has the goal to analyze archaeological research and artifacts

    found in Afonso Sardinha Archaeological, site located on Mount Araoiaba, Iper

    So Paulo.

    The analysis result leads to the conclusion that the area corresponds to iron

    mining field with the presence of Iron Factory evidence, a system that makes use

    of hydraulic power to move the equipment and tools used in the production and

    small ovens to melt iron. Besides, the ceramic date (pots and tiles) indicates that

    mineral digging activities began in the 16th century.

    Key words: History Archeology; Ipanema National Forest; Colonial Iron

    Production Technique; Archeological Site Afonso Sardinha; Mount Araoiaba,

    Iper-SP

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    INTRODUO

    A presente Tese busca analisar sob o ponto de vista da Arqueologia

    Histrica os resultados da pesquisa arqueolgica desenvolvida pela pesquisadora

    e arqueloga Margarida Davina Andreatta, entre os anos de 1983 a 1989, na rea

    do stio arqueolgico Afonso Sardinha, localizado no morro de Araoiaba,

    municpio de Iper a cerca de quinze quilmetros da cidade de Sorocaba, So

    Paulo.

    Os estudos desenvolvidos consideraram apenas os fatos relacionados

    explorao e fabricao do ferro no morro de Araoiaba desde finais do sculo

    XVI at o sculo XVIII, portanto antes da instalao do Estabelecimento

    Montanstico de Extrao de Ferro das Minas de Sorocaba, em 1810 e mais tarde

    com a denominao de Real Fbrica de Ferro de Ipanema.

    O resultado final do trabalho do levantamento de campo formou um

    conjunto vasto e consolidado em textos de Dirios de Campo escritos pela

    pesquisadora, correspondncias, levantamentos topogrficos, planos de

    escavao, croquis e desenhos geomtricos de plantas das runas, croquis de

    cortes estratigrficos e de reconhecimento das escavaes, Inventrio de Peas e

    fotografias, tudo devidamente registrado em relatrios da pesquisa arqueolgica.

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    Os artefatos coletados durante as investigaes de campo foram

    acondicionados em caixas devidamente protegidas e identificadas e depositadas

    nas dependncias do Museu do Centro de Visitantes da FLONA de Ipanema.

    Foram desenvolvidos trabalhos de reconhecimento e anlise detalhada dos

    registros arqueolgicos que resultaram da pesquisa de campo e, em seguida

    interpretadas as informaes anteriormente consolidadas com base nos

    conhecimentos da Arqueologia Histrica e Histria da Tcnica e da Cincia.

    Na elaborao da sntese interpretativa foi necessrio valer-se de

    instrumentos disponveis em outras reas do conhecimento, tais como: Geologia,

    Mineralogia, Metalurgia, Engenharia, dentre outras reas.

    Tambm foram elaborados exames visuais e catalogrficos visando a

    datao relativa, assim como foram encaminhadas amostras de cermica as

    quais foram submetidas a testes de datao absoluta, com base em ensaios de

    Termoluminescncia pelo Laboratrio de Vidros e Datao da Faculdade de

    Tecnologia de So Paulo - FATEC.

    Por outro lado, amostras de resduos de fundio (escrias) foram

    ensaiadas em laboratrio para anlise qumica-mineralgica no Departamento de

    Mineralogia e Geotectnica GMG, do Instituto de Geocincias da Universidade de

    So Paulo.

    No Captulo 1 O Stio Afonso Sardinha: questes da Arqueologia Histrica,

    optamos por colocar uma sntese dos achados arqueolgicos no Sitio Afonso

    Sardinha, sendo que com base nas informaes disponveis foram expostas as

    questes da Arqueologia Histrica que resultaram das investigaes de campo e

    de laboratrio, assim como das pesquisas bibliogrficas.

    No Capitulo 2 A Tcnica de Produo de Ferro no perodo entre os

    sculos XVI ao XVIII foram analisadas e discutidas as questes conceituais da

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    tcnica e da tecnologia relacionadas a metalurgia no perodo de interesse desta

    Tese compreendido entre os sculos XVI e XVIII. Para compreenso dos

    processos de produo de ferro foram apresentadas descries dos

    procedimentos de fabricao, bem como ilustraes das ferramentas,

    equipamentos e mquinas em uso naquele estgio do conhecimento tcnico.

    O Captulo 3 Histrico da Minerao no Brasil Colonial trata de uma

    avaliao da historiografia disponvel sobre as atividades de minerao no Brasil

    e, particularmente para o caso da ento Capitania de So Vicente, merecendo

    esclarecer que parte destas obras foi produzida na primeira metade do sculo XX.

    Alm disso, foram consultados documentos do Arquivo Municipal de So Paulo,

    do Arquivo do Estado de So Paulo e Biblioteca e Arquivo do Museu Histrico

    Sorocabano.

    No Captulo 4 O Sitio Afonso Sardinha apresenta-se a localizao

    geogrfica, as caractersticas geolgicas e geomorfolgicas do morro de

    Araoiaba, a vegetao, a hidrografia, recursos minerais com destaque especial

    para a presena da Magnetita. Finalmente oferece-se um contexto sucinto a

    respeito da ocupao colonial e a presena de naturalistas viajantes, inclusive

    Saint Hilaire em 1919.

    No Captulo 5 Investigaes Arqueolgicas: as evidencias de uma Fbrica

    de Ferro com base em todos os dados que resultaram da pesquisa de campo

    foram desenvolvidos trabalhos, sendo que num primeiro momento relacionados

    ao reconhecimento e anlise detalhada dos registros arqueolgicos fornecidos

    pela pesquisa acima mencionada.

    No ltimo Captulo de nmero 6 Interpretaes dos dados arqueolgicos

    buscou-se elaborar uma interpretao das informaes consolidadas nos

    documentos produzidos a partir dos conhecimentos da Arqueologia Histrica e

    Histria da Tcnica e da Cincia.

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    CAPTULO 1

    O STIO AFONSO SARDINHA: QUESTES DA ARQUEOLOGIA HISTRICA O presente Captulo tem por objetivo indicar um conjunto de questes que devero ser analisadas no decorrer da elaborao desta Tese, as quais

    emanaram dos resultados alcanados pelas pesquisas arqueolgicas realizadas

    no stio Afonso Sardinha pela pesquisadora e arqueloga Margarida Davina

    Andreatta.

    Para melhor compreenso dos fatos que fazem parte do contexto do

    presente trabalho, tendo em vista a identificao daquelas questes, so

    apresentados: a) uma avaliao dos dados bibliogrficos que tratam de assuntos

    relacionados ao stio arqueolgico; b) um histrico da descoberta das runas; c) consideraes sobre a metodologia utilizada; d) uma descrio geral resumida

    das pesquisas arqueolgicas realizadas.

    1.1 Contexto do presente trabalho 1.1.1 Avaliao dos dados bibliogrficos As primeiras notcias relacionadas s minas de ferro do Morro de

    Araoiaba e, com os trabalhos de fundio daquele minrio, foram dadas por

    Pedro Taques de Almeida Paes Leme (1714-1777). Alm de sua obra mais

    conhecida a Nobiliarquia Paulistana Histrica e Genealgica, escreveu a Histria

    da Capitania de So Vicente e um compndio sobre a explorao e a legislao

    mineira intitulado Noticia das Minas de So Paulo e dos Sertes da mesma

    Capitania.

  • 20

    Neste ltimo trabalho, escrito na segunda metade do sculo XVIII, afirmou

    ter sido o bandeirante Afonso Sardinha e seu filho mameluco do mesmo nome,

    os que tiveram a glria de descobrir ouro de lavagem nas Serras de

    Jaramimbaba e do Jaragu em So Paulo, na de Votoruna em Parnaba e na

    Biraoiaba, no Serto do Rio Sorocaba, ouro, prata e ferro pelos anos de 1597

    (TAQUES, 1954, p. 112). Em Notcias Genealgicas, citado por Nicolau de

    Campos Vergueiro, PedroTaques completa aquela informao indicando que

    Afonso Sardinha havia construdo uma fbrica e dois fornos de ferro em

    Biraoiaba e que havia doado, um dessas Fbricas, D. Francisco de Souza,

    quando em pessoa passou a Biraoiaba no ano de 1600 (VERGUEIRO, 1978,

    p.6).

    Taques, escreveu suas obras dentro de um contexto em que os trabalhos

    historiogrficos buscaram dar um enfoque positivo a participao bandeirante na

    histria de So Paulo e, ao mesmo tempo, contrapor todas as outras narrativas

    que haviam sido escritas nos sculos anteriores, sobretudo, pelos Jesutas.

    Assim, firmou para que Afonso Sardinha e seu filho passassem para a Histria

    como tendo sido os descobridores daquelas minas e os pioneiros na fabricao

    do ferro no Morro de Araoiaba.

    Entre os veculos de divulgao dessa historiografia, est o Instituto

    Histrico e Geogrfico de So Paulo e do Brasil (sediado na cidade do Rio de

    Janeiro), sendo este ltimo, responsvel pela divulgao das obras de Pedro

    Taques1. Por outro lado, aquelas afirmativas foram reforadas pelo

    1 Os Institutos Histricos e Geogrficos foram, junto com os Museus brasileiros, os primeiros e mais importantes espaos que existiam no sculo XIX para a pesquisa de humanidades, e para a cincia em geral, no Brasil. O Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo ser uma instncia de produo a afirmar uma suposta especificidade paulista, elaborar tradies do estado atravs de biografias de seus vultos, estudos sobre o passado da provncia etc. Nesse sentido, tambm uma historiografia com teor cvico, paulista, sobretudo, mas que buscava afirmar a prevalncia de So Paulo perante a nao como um todo releitura da figura do bandeirante, no sentido de elev-lo condio de construtor da nao. ROMANCINI, Richard. Inventando tradies: os historiadores e a pesquisa inicial sobre o jornalismo. II Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho Florianpolis, de 15 a 17 de abril de 2004. Disponvel em: . Acesso em 06/07/06

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    desaparecimento de total ou significativa parcela dos documentos que

    constituram as fontes pesquisadas por aquele autor tais como: os arquivos do

    Primeiro Cartrio dos rfos de So Paulo, os da Provedoria da Real Fazenda e

    os da Cmara da Vila de So Paulo2.

    Alm disso, uma significativa parcela dos trabalhos publicados entre os

    sculos XIX e XX sobre as atividades metalrgicas desenvolvidas no morro de

    Araoiaba, estavam voltados para as anlises sobre os aspectos da geografia,

    historia, mineralogia, botnica e geologia a partir da implantao da Real Fbrica

    de Ferro de Ipanema, fundada em 1810 3. Quanto aos perodos anteriores, a fonte

    de informao sempre foi a obra de Pedro Taques, a qual foi amplamente

    difundida com a publicao da obra de Azevedo Marques intitulada

    Apontamentos histricos, geogrficos, bibliogrficos e estatsticos da provncia de

    So Paulo, em 1879.

    A construo da Real Fbrica de Ferro de Ipanema est inserida no mbito

    da implementao de polticas voltadas para favorecer a transferncia para a

    colnia de todo o aparelho institucional do reino a partir da chegada de D. Joo VI

    a cidade do Rio de Janeiro4. Entre os projetos estava a implantao e

    desenvolvimento da siderurgia no Brasil a partir da explorao das jazidas de

    ferro j conhecidas como as do Morro de Araoiaba, na Provncia de So Paulo e,

    das jazidas de ferro de Minas Gerais localizadas nos atuais municpios de

    Congonhas do Campo e Gaspar5.

    2 Os arquivos da Provedoria foram destrudos por uma enchente do Tamanduate em 1929. Dos outros arquivos restam apenas poucos exemplares e que esto incompleto como o das Atas da Cmara da Vila de So Paulo. RODRIGUES, Leda Maria Pereira. As Minas de ferro em Araoiba (So Paulo. Sculos XVI-XVII-XVIII). Annais do III Simpsio dos Professores Universitrios de Histria. Franca, 1966, p. 171. 3 A Real Fbrica de Ferro de Ipanema, inicia suas atividades a partir da promulgao da Carta Rgia de 4 de dezembro de 1810. Esta carta contm instrues para o funcionamento de uma fbrica de ferro em Sorocaba. Em 1895 encerra definitivamente as suas atividades. Ver bibliografia. 4 Com a presena de D. Joo VI foi promulgada em 1808 a abertura dos portos para o comrcio e um alvar que revogava o Decreto de D. Maria I, de 1785, referente a proibio da abertura de fbricas e manufaturas no estado do Brasil e Domnios Ultramarinos. 5 As minas de ferro de Gaspar Soares deram origem a Real Fbrica de Ferro de Gaspar Soares, cuja direo foi dada ao Intendente Manuel Ferreira da Cmara. Em 1811, tambm para o Brasil o tcnico alemo Gotthelft Von Feldner com a incumbncia de examinar as minas recm

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    Para dar andamento queles projetos foram trazidos para o Brasil o

    mineralogista alemo Friederich Ludwig Wilhelm Varnhagen (1782-1842) e

    Wilhelm-Ludwig Von Eschwege (1777-1835), ambos funcionrios da Coroa

    Portuguesa6. Eschwege foi enviado para Minas Gerais para inspecionar as

    jazidas e minas de ferro e criar com outros acionistas, a companhia siderrgica

    Fbrica Patritica do Prata de Congonhas do Campo que comeou a funcionar

    em fins de 1811 e Varnhagen para o Morro de Araoiaba7.

    Aps observaes mineralgicas realizadas por Varnhagen em

    Araoiaba. A partir dos resultados daquelas observaes ficou determinado que

    Sorocaba era o local mais apropriado para a construo de uma siderurgia, pois,

    a mina existente dentro de sua circunscrio muito rica em metal de ferro e

    conta, na sua proximidade, com extensas matas as quais h muitos anos mandou

    reservar, e que fornecero o indispensvel combustvel.(FRAGA, 1968, p. 66).

    Assim, em 1810 foi fundado o Estabelecimento Montanstico de Extrao de Ferro

    das Minas de Sorocaba denominado posteriormente de Real Fbrica de Ferro de

    Ipanema.

    A rea escolhida para aquele novo empreendimento estava localizada junto

    ao rio Ipanema, que da retira aquela denominao, deixando para traz a histria

    da metalurgia que havia sido desenvolvida, durante dois sculos, no interior Morro

    de Araoiaba no vale das Furnas onde est localizado o Stio Arqueolgico

    Afonso Sardinha.

    Os primeiros trabalhos sobre a Real Fbrica privilegiavam as anlises

    voltadas para a mineralogia e as tcnicas de fundio. Quanto a este ltimo

    descobertas de carvo do rio Pardo, no Rio Grande do Sul. Cf. FIGUEIROA, Silvia, As cincias Geolgicas no Brasil: uma Histria Social e Institucional: 1875-1934. So Paulo: Hicitec, 1997. p. 63-65. 6 Varnhagen e Eschwege voltaram para Portugal em 1822. 7 Varnhagen esteve em Araoiaba acompanhado por Martim Francisco de Andrada Martim Francisco Ribeiro de Andrada, Inspetor de Minas e Matas da Capitania de So Paulo.

  • 23

    aspecto, destacam o emprego do alto forno, da fabricao do carvo e o emprego

    de fundentes, bem como crticas relacionadas produo e qualidade do ferro8.

    Entre as obras mais gerais sobre aquele empreendimento publicadas no

    sculo XIX, esto os trabalhos de Antonio da Costa Pinto Silva (1852), Nicolau de

    Campos Vergueiro (1843), Frederico Augusto Pereira de Moraes (1858), M. Alves

    de Arajo (1882), Francisco de Assis Moura (1888), J. Ewbank da Cmara (1875),

    Leandro Dupr (1885), Baro Homem de Mello (1888), Manuel Eufrzio de

    Azevedo Marques (1879), Carlos Conrado de Niemeyer (1879), Frederico

    Augusto Pereira de Moraes (1858).

    Sobre a mineralogia e a geologia esto os de Jos Bonifcio de Andrada e

    Silva (1820, 1846), Martim Francisco Ribeiro de Andrada (1828, 1846, 1855), F.

    Schimidt (1853) e Wilhelm L. Von Eschwege (1833) e Orville Adalbert Derby

    (1891 e 1895, 1909). Derby foi o descobridor, em 1891 da apatita mineral que foi

    amplamente explorado para a fabricao de adubos a partir de 1927. Naquele

    mesmo sculo foram realizadas as primeiras anlises da magnetita de Ipanema

    pela Escola de Minas de Ouro Preto9, as quais tiveram como resultado a

    identificao do titnio como componente daquele minrio.

    Dessa forma foi possvel entender a dificuldade tcnica que enfrentaram

    todos os diretores de Ipanema em produzir um ferro de boa qualidade, pois a

    magnetita alm de sua exagerada densidade apresentava-se impregnada de

    xido de Titnio, fatores que contribuem, de forma decisiva, para dificultar sua

    reduo mesmo em altos fornos (FRAGA, 1968, p. 86). Entre as pesquisas

    realizadas por essa Escola, esto os trabalhos de Paul Ferrand (1885) e Leandro

    Dupr (1885), Joo Pandi Calgeras (1893, 1895, 1904,1828) e Ferdinando

    Gautier, responsvel em 1891, pela identificao da presena de fsforo no

    minrio, elemento tambm nocivo para a produo do ferro. Ainda no sculo XIX,

    8 Fundentes so materiais que quando mesclados com o carvo vegetal, dentro do forno, facilitam a fundio dos minrios, no caso de minrios de ferro. Em Ipanema eram utilizados como fundentes os dioritos, tambm chamada pedra verde" (do alemo grunstein). 9 A Escola de Minas de Ouro Preto foi inaugurada em 1876. Destinava-se a formar profissionais para a minerao.

  • 24

    esto os relatos elaborados pelo naturalista viajantes como Saint Hilaire, Von

    Martius e Zaluar.

    No sculo XX os trabalhos relacionados com aquele empreendimento

    foram desenvolvidos em duas linhas de investigao, o da histria econmica e

    da social. Nesta ltima, as anlises privilegiaram as abordagens sobre o processo

    de trabalho e, mais para o final daquele sculo, para as questes sobre o meio

    ambiente como os aspectos da ecologia florestal, recursos hdricos, gesto

    ambiental e do turismo ecolgico.

    Os trabalhos historiogrficos daquele sculo pouco acrescentaram aos

    aspectos relacionados com a implantao dos primeiros empreendimentos

    metalrgicos anteriores construo da Real Fbrica10. Contudo, trs trabalhos

    podem ser destacados pelas contribuies, seja pela releitura de documentos

    ainda existentes, como foi o caso dos estudos realizados por Mrio Neme, seja

    pelos trabalhos de pesquisa documental elaborados tanto por Leda Maria Pereira

    Rodrigues, quanto por Estefania Knotz Canguu Fraga.

    No primeiro caso Mrio Neme apresenta em seu livro Notas de Reviso da

    Histria de So Paulo, uma reavaliao das obras de Pedro Taques, bem como

    de outros autores, que tratam da histria de So Paulo at o momento da 10 Entre as obras direcionadas a um contexto geral brasileiro esto: Sylvio Froes Abreu (1937,1962), Afranio do Amaral (1946), Renato Frota de Azevedo (1955), Tanus Jorge Bastini (1957), Vicente Licinio Cardoso (1924), Sobrinho Costa e Silva (1953), Alpheu Diniz Gonalves (1937), R. Hermanns (1958), R. N. Jafet (1957), Theodor Knecht (1931), Viktor Leinz (1942), Clodomiro de Liveira (1914), Ncia Vilela Luz (1961), Manuel Moreira Machado (1919), Roberval Germano Medeiros (1947), Geraldo Magella Pires de Melo (1957), Geraldo Dutra Moraes (1943), Almiro de Lima (1929), Matias Gonalves de Oliveira Roxo (1937), Edmundo de Macedo Soares (1953), Gilberto Freyre (1988), Francisco Adolpho de Varnhagen (1956), Jos Epitcio Passos Guimares (1981), Francisco Magalhes Gomes (1983), Francisco de Assis Barbosa (1958), Francisco de Assis Carvalho Franco (1928), Silvia Figueroa (1997), Roseli Santaella Stella (2000). Para anlises direcionadas ao Estado de So Paulo esto as de Paulo R. Pestana (1928), Luis Flores de Moraes (1930), Afonso Taunay (1931), Benedito Lima de Toledo (1966), Mrio Neme (1959) Srgio Buarque de Holanda (1960, 1966), Ernani da Silva Bruno (1953) Jesuno Felicssimo Jnior (1969), Washington Luis (1956), Gabriel Pedro Moacyr (1935). E, aqueles relacionados histria local da Real Fbrica, esto o de Jos Monteiro Salazar (1982), Astor Frana Azevedo (1959), Luiz de Almeida Castanho (1937, 1939, 1958), Jaime Benedito de Arajo (1939), Ezequiel Freire (1953), Emanuel Soares Veiga Garcia (1954), Joo Loureno Rodrigues (1953), Otvio Tarqunio de Souza (1946), Hlio Vianna (1969), Andr Davino (1965), Guido Ranzani (1965), Miriam Escobar (1982), Theodoro Knecht (1930), Helmut Born (1989), Lenharo, S L R (1996), Antonio Maciel Botelho Machado (1998) e Jaime Rodrigues (1998), Aluzio de Almeida (2002).

  • 25

    publicao da obra em 1959, confrontando as afirmaes dos autores com base

    nos documentos disponveis naquele momento. A obra, segundo o autor, fora

    escrita com base em pesquisa documental realizada por ele durante duas

    dcadas, tendo concludo que firmamo-nos na convico mais absoluta de que a

    crnica de nossa formao e evoluo est a exigir ampla reviso, quer em

    matria de fatos e acontecimentos, na sua ocorrncia e significao imediata e

    futura, e no que toca a dados, datas e nomes, quer em matria de interpretao

    (NEME,1959, p.11).

    Ao final deste trabalho Neme conclui que, os dados oferecidos por Pedro

    Taques a respeito da construo de uma Fbrica de ferro por Afonso Sardinha no

    Morro de Araoiaba, no passou de uma fbula criada por aquele autor, sendo

    que a nica Fbrica de ferro que de fato existiu no incio do sculo XVII foi a de

    Santo Amaro.

    No segundo trabalho a ser considerado, trata-se de um artigo publicado em

    1966 pela historiadora Leda Maria Pereira Rodrigues, intitulado As Minas de ferro

    em Araoiaba (So Paulo. Sculos XVI-XVII-XVIII), onde a autora afirma que os

    primrdios de nossa Histria fazem surgir dvidas difceis de serem esclarecidas,

    pois h falta de documentos coesos que provem incontestavelmente a veracidade

    de certas afirmaes. Neste mesmo trabalho ela conclui que at a instalao da

    Real Fbrica em 1810, todos os empreendimentos anteriores constituram numa

    srie de tentativas frustras. A autora demonstra que pelo menos dois

    empreendimentos foram efetivamente implementados naquele local, o de Luiz

    Lopes de Carvalho, por volta de 1690, e o de Domingos Pereira Ferreira, em 1875

    (RODRIGUES, 1966, p.246-249).

    Em 1968, Estefania Knotz Canguu Fraga, sob a orientao da historiadora

    Leda Maria Pereira Rodrigues, seguindo as discusses iniciadas pela autora

    acima mencionada, desenvolveu uma tese na rea de Histria do Brasil com o

    titulo Subsdios para o estudo da Histria da Real Fbrica de Ferro de Ipanema

    (1779-1822). Neste trabalho, analisou especialmente, o empreendimento de

  • 26

    Domingos Pereira Ferreira, como tambm, as primeiras dcadas de

    funcionamento da Real Fbrica sob a direo de Hedberg (1810-1814) e

    Varnhagen (1814-1822). A autora, depois de enumerar as possveis causas que

    teriam levado ao que atribui ser um insucesso econmico daqueles

    empreendimentos, conclui que:

    mesmo que a fbrica de ferro de Araoiaba (como

    primitivamente era denominado o local), no possa oferecer

    ao pesquisador nada alm de constantes provas de seu

    insucesso, ainda assim o propsito que o anima, no deve

    esmorecer. Afinal, o que seria da Historia se s merecessem

    registro os eventos vitoriosos? Quantas derrotas no

    levaram as vitrias? Porque ento omiti-las se fazem parte

    integrante da mesma? Porque esquec-la se refletem uma

    circunstancia real, mesmo que nela se insinue uma ou mais

    foras obstrutivas que consagram ao fracasso tudo o que

    nela se condiciona, mas que, nem por isso, obstam uma ou

    vrias tentativas de superao? sabido que a dualidade de

    foras impele a civilizao. E mais, que a tanta glria existe

    na derrota quanto na vitria quando supem luta. E poder

    algum negar que Ipanema no foi um glorioso campo de

    luta? (FRAGA, 1966, p. 109).

    1.1.2 Histrico das descobertas das runas O Stio Arqueolgico Histrico Afonso Sardinha foi assim denominado, por

    ter sido Afonso Sardinha, bandeirante, e seu filho mameluco11 Afonso Sardinha, o

    moo, apontados por Pedro Taques e pela historiografia, como os provveis

    11 Filho de pai branco e me indgena. No caso dos mamelucos, os pais reconheciam publicamente a paternidade e os filhos gozavam da liberdade plena e aproximavam-se identidade portuguesa. Essa denominao cai em desuso no sculo XVIII e substituda pelo termo bastardo, que passava a designar qualquer pessoa com ascendncia indgena. (MONTEIRO, 1994, p 167).

  • 27

    descobridores e construtores dos primeiros fornos de fundio naquele local em

    finais do sculo XVI.

    No ano de 1977, Jos Monteiro Salazar, pesquisador estudioso da histria

    regional e, particularmente, da Real Fbrica de Ferro de Ipanema acompanhado

    pelos engenheiros agrnomos Nerzon Nogueira de Barros e Dinchiti Sinzato, e

    pelo fotgrafo Venedavel Acosta, encontrou as runas de um possvel Fbrica de

    ferro que atribuiu ser aquele construdo por Afonso Sardinha em finais do sculo

    XVI (SALAZAR, 1997,156-159). Tal avaliao decorria do fato de que aquela

    regio teria sido uma rea de provvel explorao mineral do ferro, que

    remontaria aos primrdios da colonizao de So Vicente, conforme apontavam a

    historiografia disponvel sobre aquela Capitania.

  • 28

    Fig. 1 MAPA DE LOCALIZAO DA FLONA Floresta Nacional de Ipanema, Escala: 1:250 000 CENEA- Centro Nacional de Engenharia Agrcola, 1985

  • 29

    Fig. 2 MAPA DE LOCALIZAO DO STIO AFONSO SARDINHA Folheto IBAMA, sem data e sem escala.

  • 30

    Fig. 3 DESENHO ESQUEMTICO DE LOCALIZAO DA FBRICA DE FERRO. Salazar (1997, p.80).

    Fig. 4 MARGARIDA DAVINA ANDREATTA E JOS MONTEIRO SALAZAR. Aspecto do Stio em 1983.

  • 31

    Fig. 5 MARGARIDA DAVINA ANDREATTA E JOS MONTEIRO SALAZAR. Incio das pesquisas no Stio Afonso Sardinha, 1983. As runas foram localizadas no interior do vale das Furnas, onde est o

    ribeiro do Ferro, que nasce e cruza o Morro de Araoiaba, desaguando no rio

    Ipanema, o qual por sua vez um afluente, pela margem esquerda do rio

    Sorocaba.

    Este ribeiro:

    (...) nasce no Monte do Chapu e corre primeiro do norte para o

    sul e, depois de passar pelo Vale das Furnas, torce bruscamente

    e muda radicalmente de direo, fazendo uma grande curva e

    passando a correr do sul para o norte, indo desaguar, afinal no

    Ipanema. (SALAZAR, 1997, p. 02)

    Foi numa das curvas do ribeiro do Ferro que aquelas runas foram

    localizadas. As estruturas ali descobertas se cercavam de condies fisiogrficas

    favorveis para viabilizar a atividade de produo do ferro, devido a proximidade

  • 32

    das jazidas do minrio, existncia de matas abundantes, assim como de uma

    hidrografia favorvel para o aproveitamento da fora motriz das guas.

    A primeira constatao da existncia de uma estrutura por eles encontrada

    foi uma fileira de pedras bem conservadas que identificaram como canal,

    certamente para o desvio do rio a fim de mover os martinetes. Descobriram uma

    muralha, que atriburam ser uma parede de forja (SALAZAR, 1997, p.159-160).

    1.1.3 Consideraes sobre a metodologia. O termo arqueologia histrica surge nos Estados Unidos nas dcadas de

    1960 para designar o estudo da cultura material dos europeus no mundo. Esse

    termo passou a ser oficialmente adotado em 1967, tendo em vista regulamentar a

    nomenclatura para designar as pesquisas arqueolgicas em stios histricos que

    estavam sendo desenvolvidas nos Estados Unidos. At ento eram utilizados,

    para identificar aqueles trabalhos arqueolgicos, uma nomenclatura diversificada

    como, arqueologia colonial, arqueologia da historia, arqueologia de stios

    histricos, entre outros.

    Naquela mesma dcada, a arqueologia histrica passa a ser uma

    disciplina, valendo-se da aplicao de mtodos de escavao j consagrados

    pela arqueologia pr-historica e, das abordagens terico-metolgicas voltadas

    para a interpretao dos registros arqueolgicos. As ferramentas tericas

    metodolgicas apresentadas pela arqueologia foram sendo revisadas e

    aprimoradas de modo a contribuir com as anlises destinadas a interpretar as

    culturas pretritas.

    Outra questo diz respeito compreenso do papel da Arqueologia

    Histrica aplicada s pesquisas desenvolvidas na Amrica, tendo em vista a

    viso desenvolvida por Charles Orser Jr., segundo o qual cabe a esta disciplina

    investigar fundamentalmente os (...) aspectos matrias, em termos histricos,

  • 33

    culturais e sociais concretos, dos efeitos do mercantilismo e do capitalismo que

    foi trazido da Europa em fins do sculo XV e que continua em ao ainda hoje

    (ORSER, 1992, p. 23).

    Posteriormente, Orser trouxe novas contribuies a aquela conceituao

    ao formular a Teoria de Rede, segundo a qual as pesquisas em Arqueologia,

    deveriam levar em considerao a questo das interligaes globais,

    demonstrando a origem e os desenvolvimentos ulteriores da globalizao, da

    modernizao e da expanso colonialista, criados por agentes conscientes do

    colonialismo, do eurocentrismo e da modernidade, que proporcionaram a

    criao de uma srie de elos complexos e multidimensionais que uniam

    diversos povos ao redor do mundo (ORSER, 1999, p. 87).

    No que se referem interpretao dos registros arqueolgicos, as

    pesquisas em arqueologia histrica empregam teorias e mtodos que foram

    sendo desenvolvidos por meio da aplicao de mtodos de abordagens como o

    Histrico-Culturalismo (foi amplamente difundida entre os arquelogos

    brasileiros), New Archaeology ou Arqueologia Processual e Ps-

    processualismo e suas derivaes. Cada mtodo privilegiou uma escala

    apropriada de anlise, para o Histrico Culturalismo foi o stio, para o

    Processualismo, a regio e, para o Ps-Processualismo passou a ser o

    indivduo (LIMA, 2000, p. 2).

    No Brasil, a formao da primeira gerao de arquelogos na dcada de

    1970 foi orientada por duas correntes tericas. A americana representada pelos

    arquelogos Clifford Evans (1920-1981) e Betty Meggers coordenadores do

    Programa Nacional de Pesquisas Arqueolgicas (Pronapa) criado na dcada

    de 1960. E a Francesa representada por Joseph e Annette Emperaire. Da

    escola francesa destacamos as pesquisas realizadas pelo grupo do Centre

    National de la Recherche Scientifique que trabalharam em Minas Gerais,

    Paran, So Paulo e no Piau em convenio com o Museu Paulista da

    Universidade de So Paulo e a Universidade do Piau, com o objetivo de

  • 34

    proporcionar as primeiras dataes para as obras rupestres e sua insero no

    contexto cultural pr-histrico (PROUS, 1992, p.17).

    A partir da pesquisas do grupo Franco-Brasileiro foram fornecidas as

    primeiras dataes radiocarbono, a introduo de tcnicas e mtodos mais

    refinados de decapagem e a realizao de escavaes sistemticas no Brasil.

    Alm da influncia terica-metodologica o convnio entre aquele grupo

    representado por Joseph e Annette Laming Emperaire e o Centre National de

    la Recherche Scientifique proporcionou a formao de arquelogos e de

    especializaes na Frana. Entre os anos de 1960-1980 o legado francs

    permanecia em duas Instituies de So Paulo, o Museu de Pr-Histria

    (atualmente incorporado ao MAE) e Museu Paulista da Universidade de So

    Paulo e em Minas Gerais, no Museu de Histria Natural da Universidade

    Federal de Minas Gerais.

    A partir da dcada de 1960, as pesquisas relacionadas ao campo da

    arqueologia histrica foram conduzidas, particularmente por arquelogos pr-

    historiadores que passaram a desenvolver pesquisas em Stios Histricos.

    Num primeiro momento, aquelas pesquisas arqueolgicas foram marcadas

    pelas teorias do mtodo histrico-culturalista, privilegiando monumentos como

    igrejas, conventos, misses jesuticas, fortificaes, solares, entre outros,

    encorajadas pelos rgos de preservao do patrimnio histrico e cultural e

    pela recm-criada Lei 3.924, de 26 de julho de 1961, atravs da qual os

    monumentos arqueolgicos e pr-histricos passaram a serem considerados

    como patrimnio da Unio. (ANDRADE, 1993; FUNARI, 1998; RUBINO, 1996).

    At a dcada de 80 as pesquisas ainda seguiam aquela linha de

    investigao, privilegiando pesquisas em monumentos. Contudo, j havia

    perspectivas de novas abordagens de pesquisa, notadamente, voltadas para

    os segmentos sociais desfavorecidos de registros, possibilitando recuperar

    memrias sociais, reinterpretar a Histria Oficial, resgatar elementos e prticas

    da vida cotidiana, sobre os quais normalmente no se escreve.

  • 35

    Proporcionando a arqueologia histrica investigar uma diversificada temtica,

    transformando em Stios Histricos, quilombos, unidades domsticas, becos

    urbanos, senzalas, tecnologias de produo de materiais e povoados, etc.

    (ANDRADE, 1993, p. 228).

    Neste contexto, se inserem as pesquisas em arqueolgica histrica

    desenvolvida na cidade de So Paulo. O Programa de Arqueologia Histrica no

    Municpio de So Paulo foi coordenado por Margarida Davina Andreatta do

    Museu Paulista da Universidade de So Paulo em colaborao com o

    Departamento do Patrimnio Histrico da Secretaria Municipal de Cultural. A

    pesquisa realizada a partir de prospeces e escavaes sistemticas em

    Casas Bandeiristas e locais pblicos e privados do municpio como becos,

    ruas, praas, quintais, lixes, logradouros, etc. Entre os anos de 1979 e 1981

    foram realizadas pesquisas arqueolgicas no Municpio de So Paulo nos

    Stios Mirim, em Ermilindo Matarazzo; Sitio de Morrinhos, no Jardim So Bento;

    Casa do Grito, no Parque da Independncia Ipiranga; Beco do Pinto, Bairro

    da S; Casa n. 1 do Ptio do Colgio e Casa do Tatuap e no bairro do

    Tatuap (ANDREATTA, 1981/2; 1986a; 1986b). Em 1983, Margarida Davina

    Andreatta iniciou as pesquisas arqueolgicas na Fazenda Ipanema Iper,

    So Paulo, atualmente um rea de proteo ambiental FLONA 12.

    Durante o desenvolvimento dessa pesquisa foram realizadas

    escavaes e prospeces em uma rea extensa daquela Fazenda, incluindo

    todas as edificaes que pertenceram a Real Fbrica de Ferro de Ipanema

    (1810-1895)13 e as runas existentes no Vale das Furnas, junto do ribeiro do

    Ferro e interior do Morro de Araoiaba. Nesta ltima rea denominada Stio

    Afonso Sardinha, foi evidenciado estruturas de um Fbrica de Ferro e Fornos 12 As edificaes da Real Fbrica de Ferro de Ipanema foram tombadas pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, em 1964. O Stio Arqueolgico Afonso Sardinha foi registrado tambm no IPHAN em 1997, por Margarida Davina Andreatta. Ver: Detalhes de Stios Arqueolgicos. Disponvel em . Acesso em 09.mar. 2004. 13 Foram realizadas pesquisas arqueolgicas nas reas dos altos fornos, fornos de carvo, edifcio de armas brancas, Praa Afonso Sardinha, entre outros, dependncias pertencentes a Real Fbrica de Ferro de Ipanema.

  • 36

    de Fundio e uma diversificada tipologia de materiais, os quais compe os

    documentos arqueolgicos que foram registrados no Inventrio de Peas

    relacionadas a pesquisa (exemplos em anexo).

    Da pesquisa no Sitio Afonso Sardinha, foram produzidos um significativo

    conjunto documental formado por inmeras tipologias de documentos de

    arquivo, que formam o Fundo Sitio Afonso Sardinha. A partir dessa

    documentao foi possvel acompanhar o processo de desenvolvimento

    daquela pesquisa e tambm contextualizar os documentos arqueolgicos

    permitindo assim, a realizao de interpretaes quanto sua datao e

    significado. Nas palavras de Hodder, a partir del momento em que se conoce

    el contexto de um objeto, este ya no es completamente mudo (HODDER,

    1994, 18).

    Os documentos do Fundo Stio Afonso Sardinha so compostos por

    dirios de campo, relatrios de pesquisa, planos de escavao, fotografias,

    correspondncias e tambm por uma coleo formada por documentos de

    apoio a pesquisa como plantas topogrficas, planoaltimtricas, bibliografia

    histrica e tcnica sobre minerao e fundio de ferro no Brasil nos primeiros

    trs sculos de colonizao.

    A pesquisa realizada a partir da bibliografia encontrada no Fundo Afonso

    Sardinha apontou caminhos de investigao que direcionaram para uma

    bibliografia tcnica e histrica sobre a tcnica da produo de ferro

    desenvolvida na Europa, especialmente na Espanha, entre os sculos XVI-

    XVIII. Alm disso, foi agregada aquela investigao um conjunto de

    documentos de cunho oficial, escritos pelos empreendedores daquela

    produo e rgos administrativos coloniais, como a Cmara da Vila de So

    Paulo.

    Assim, os documentos pertencentes ao Fundo Afonso Sardinha,

    documentos textuais oficiais e documentos arqueolgicos permitiram

  • 37

    interpretar que a rea do Stio corresponde a um campo de trabalho de

    produo de ferro e que as atividades de minerao e fundio estavam

    distribudas por uma rea extensa com forte influencia dos modelos de ferrarias

    de gua que haviam, no perodo pesquisado, na regio basca da Espanha.

    Assim, as possibilidades dadas pela arqueologia histrica de permitir a

    utilizao tanto de documentos arqueolgicos (artefatos) e textuais na

    realizao da pesquisa e produo do conhecimento tambm, uma das

    principais tenses que norteiam as questes tericas-metodolgicas da

    arqueologia histrica. Para tanto, autores como Anders Andrn, ao considerar

    que o problema da arqueologia histrica o encontro entre a cultura material e

    a escrita, indica tambm que a arqueologia histrica no pode ignorar as

    disciplinas que tratam do homem, como o caso da Histria, da Antropologia

    ou da Filologia, propondo que a metodologia em arqueologia histrica deve

    estabelecer dialogue between artifact and text that is unique in relation to

    prehistoric archeology as well as history (ANDRN, 1998, p. 177).

    1.1.4 Descrio geral das pesquisas arqueolgicas realizadas Entre os anos de 1983 1989, as runas encontradas por Jos Monteiro

    Salazar (1982) foram objeto de uma pesquisa arqueolgica iniciada pelo

    Protocolo de Intenes entre o Museu Paulista da Universidade de So Paulo e o

    CENEA Centro Nacional de Engenharia Agrcola - rgo autnomo do Ministrio

    da Agricultura, ao qual a Fazenda Ipanema estava ligado. A pesquisa foi

    coordenada pela arqueloga Margarida Davina Andreatta, do Museu Paulista da

    Universidade de So Paulo14.

    14 A Fazenda Ipanema pertenceu ao CENEA, Centro Nacional de Engenharia Agrcola, rgo autnomo do Ministrio da Agricultura, at a extino desse Centro em 1990, poca em que foram exploradas as minas de Apatita para a fabricao de adubos. A pesquisa arqueolgica nesta rea foi coordenada pela pesquisadora e arqueloga Profa. Dra Margarida Davina Andreatta , tendo como assistente o pesquisador da Historia regional Jos Monteiro Salazar, alm de estagirios da Universidade de So Paulo e voluntrios.

  • 38

    Fig. 6 MARGARIDA DAVINA ANDREATTA E EQUIPE EM REUNIO COM A DIRETORIA DA FLORESTA NACIONAL DE IPANEMA, 1984.

    Fig. 7 ASPECTO DA FBRICA DE FERRO, em 1987

  • 39

    Fig. 8 Planta da rea do Sitio Afonso Sardinha: reas A1 e A2

  • 40

    As pesquisas arqueolgicas desenvolvidas no sitio Afonso Sardinha

    evidenciaram a existncia de um campo de produo de ferro, localizado na

    margem esquerda do ribeiro do ferro, o qual se mostrou formadas por duas

    reas, identificadas durante aqueles trabalhos como rea A1 e rea A2 mostradas no Mapa da Figura 8.

    A rea A1 situada no setor norte do campo apresentou runas de uma edificao relativamente maior de produo de ferro composto por quatro setores

    identificados como Forno (setor A), Forja (setor B), espao entre a Forja e o Canal

    (setor C) e Canal (setor D), espao sul da estrutura (setor E).

    Nessa rea A1 a pesquisa arqueolgica possibilitou as seguintes principais evidncias:

    (i) ocorrncias de escrias de forma disseminada e tambm na forma de

    um amontoado junto a parede externa (sul) da Forja;

    (ii) ocorrncias de telhas na rea ao sul das paredes dos setores B,C e D;

    (iii) ocorrncias de cravo e lminas de metal tambm na rea sul da

    estrutura;

    (iv) ocorrncia de cermica neo-brasileira nos setores da forja (B) e do

    Forno (A);

    (v) ocorrncia de faiana portuguesa nos setores da Forja (B) e do Forno

    (A);

    (vi) ocorrncia de vidro na parte norte do Forno (setor A), parte externa da

    Forja (setor B) e tambm um fragmento no setor E (parte sul da estrutura);

  • 41

    (vii) ocorrncia de metal na parte interna e externa da Forja (B), na rea E,

    parte interna da rea (C) e face oeste do Canal (D).

    (viii) evidncias de esteios nas laterais do Canal (D)

    Fig 9 Detalhe da rea A 1 Sitio Afonso Sardinha

  • 42

    Fig 10 VISTA GERAL DA REA A 1 Sitio Afonso Sardinha, 1987.

    Fig 11 VISTA GERAL DA REA A 2 Stio Afonso Sardinha, 1987. Na rea A2 mostrada na figura 12, as pesquisas arqueolgicas evidenciaram a existncia de duas subreas sendo uma denominada de A2-B e a

  • 43

    outra de D, constituda de parte de um muro de pedras, cuja estrutura no foi

    possvel identificar.

    Fig. 12 DETALHE DA REA A 2 Sitio Afonso Sardinha Na rea A2-B (Morrote) foram observadas as seguintes evidncias:

    (i) ocorrncia de dois fornos soterrados sob um Morrote na rea

    designada como A2-B;

    (ii) ocorrncia de tijolos, telhas e mureta de pedra.

  • 44

    Na rea D da figura 12 foram observados:

    (i) mureta de estrutura no identificada;

    (ii) ocorrncia de duas estruturas circulares, de natureza no

    identificada.

    (iii) ocorrncias de cermicas, telhas e tijolos.

    (iv) Ao sul da rea A2-B observou-se a existncia de: um muro de

    pedra interpretado como sendo parte de um canal, tendo ao seu lado duas

    estruturas circulares com dimetro de 1,5 m. (Figura 13 e 14)

    Fig. 13 PLANTA MORROTE REA A2-B, 1987.

  • 45

    Fig 14 MORROTE COM EVIDENCIAS DE FORNO. REA A2.

  • 46

    1.2 Principais questes a serem abordadas no decorrer da Tese Os estudos histricos disponveis acima apresentados, bem como os

    resultados das pesquisas arqueolgicas realizadas, conforme descritas nos itens

    anteriores, permitem relacionar um conjunto de questes que consideramos

    importantes para esclarecimento do processo de instalao da Fbrica de ferro

    em Araoiaba (Sitio Afonso Sardinha) no perodo compreendido entre o final do

    sculo XVI ao sculo XVIII, que antecedeu a instalao da Real Fbrica de Ferro

    de Ipanema em 1810.

    Tais questes podem ser resumidas conforme seguem:

    I - Avaliao dos vestgios arqueolgicos das atividades relacionadas minerao

    e produo de ferro a partir do final do sculo XVI e anteriormente instalao

    da Real Fbrica de Ferro de Ipanema em 1810.

    II - Investigao das possveis tcnicas de produo e mtodos de fundio de

    ferro empregadas em Araoiaba no perodo de analise desta tese.

    III - Caracterizao de modelos de fornos de fundio e processos industriais

    encontrados na rea do sitio arqueolgico.

    IV Avaliao das possveis causas tcnicas e cientficas relacionadas s

    dificuldades de produo e de qualidade do ferro produzido em Araoiaba.

  • 47

    CAPITULO 2

    A TECNICA DE PRODUO DE FERRO NO PERIODO ENTRE OS SCULOS

    XVI AO XVIII

    2.1 Consideraes sobre Tcnica e Tecnologia

    Uma das primeiras questes para conceituar Tcnica refere-se s anlises

    que permitem diferenci-la do conceito moderno de Tecnologia. Ruy Gama (1986,

    p. 19) ao analisar essa questo, a partir de autores de lngua inglesa, observa que

    o conceito de tecnologia aparece ora como simplesmente sinnimo de tcnica ou

    de conjunto de tcnicas, alarga-se as vezes para incluir o produto material das

    tcnicas, e outras vezes menos freqentes, usada como sinnimo de saber

    associado as tcnicas ou como estudo das tcnicas.

    A partir de 1930, a preocupao com a Histria da Tcnica vem se

    difundido, sobretudo, por meio das anlises iniciadas por autores franceses como

    Marc Bloch, Lefevre de Nottes e Lucien Febvre e, ingleses, como Abbott Payson,

    Lynn White Jr. e Lewis Munford, que a transformaram numa nova disciplina

    historiogrfica. 15

    No Brasil, a primeira discusso sobre essa temtica foi apresentada, em

    1985, com a publicao do livro Histria da Tcnica e da Tecnologia, organizado

    por Ruy Gama. Este trabalho formado por uma coletnea de textos clssicos e

    de outros produzidos por autores estrangeiros e brasileiros sobre a Histria da

    Tcnica, da Tecnologia e da Cincia. Entre os textos escritos por autores

    brasileiros, destacam-se os trabalhos de Fernando Luis Lobo Barbosa Carneiro e

    de Julio R. Katinsky.

    15 Os Textos em que estes autores discutem o conceito de Tcnica e Tecnologia foram publicados no livro Historia da Tcnica e da Tecnologia organizado por Ruy Gama (1985).

  • 48

    No texto escrito por esse ltimo autor, est um Glossrio dos Carpinteiros

    de Moinho, onde o autor apresenta os resultados de uma pesquisa que fez sobre

    os moinhos hidralicos no Brasil, cuja utilizao bastante freqente nas reas

    rurais dos Estados de So Paulo e Sul de Minas. Alm disso, oferece um

    glossrio de termos empregados basicamente, na construo de monjolos,

    prensas de mandioca, engenhocas de acar e moinhos hidralicos de gros,

    estes ltimos geralmente preparados para produzir quirera ou fub (KATINSKY,1985, p. 216).

    Alm desses textos, a Coletnea traz dois artigos do economista alemo

    Johann Beckmann (1729-1811), considerado o pai da Tecnologia por haver

    firmado aquele conceito em fins do sculo XVIII e institudo a disciplina de

    Tecnologia no ensino da Universidade de Gttingen16. Em 1777 publica a obra

    Instruo sobre Tecnologia em que firmava o seu conceito de Tecnologia como:

    conhecimento dos ofcios, fbricas e manufaturas, especialmente daquelas que

    tem contacto estrito com a agricultura, a administrao pblica e as cincias

    cameralsticas (GAMA, 1985, p.6). Na introduo dessa mesma obra, Beckmann,

    escrevia que:

    A histria das artes pode dedicar-se a enumeraes das

    invenes, ao progresso e ao curso habitual de uma arte ou de

    um trabalho manual, mas a tecnologia que explica de maneira

    completa, clara e ordenada, todos os trabalhos, assim como seus

    fundamentos e suas conseqncias (BECKMANN Apud GAMA,

    1985 p.6).

    Serge Moscovici, em Essai sur lhistorie humaine de la Nature, referindo-se

    a Beckmann, afirma que este autor conscientemente forja o termo tecnologia

    para designar a disciplina que descreve e ordena os ofcios e as indstrias

    existentes (MOSCOVICI apud GAMA, 1985, p. 8).

    16 Gttingen era uma das mais conhecidas universidades da Europa, qual se vinculavam muitos estadistas e funcionrios administrativos da Alemanha.

  • 49

    Para Beckmann e outros autores de seu tempo, a Tecnologia estava

    intimamente ligada escola e, basicamente, unio dos sbios com os

    fabricantes, que dominavam o conhecimento tcnico, numa poca em que este

    mesmo conhecimento comeava a ser objeto de investigao de academias e

    universidades, as quais tinham como objetivo a formulao de uma linguagem

    tecnolgica por intermdio da codificao de conceitos. Ressaltamos ainda que

    as propostas de Beckmann e, esse novo olhar paras as tcnicas, estavam

    voltadas para o atendimento de demandas sociais surgidas com a Revoluo

    Industrial.

    Se a Tecnologia tem a funo de explicar, como afirma Beckmann, ela

    tambm teve seu tempo de formulao. Segundo Ruy Gama, o nascimento do

    conceito de Tecnologia pode ser situado historicamente no decorrer da Idade

    Moderna sendo difundido a partir do sculo XVII. Para este autor, tal conceito foi

    construdo,

    pari passu ao desenvolvimento do capitalismo e substituio do

    modo de produo feudal/coorporativo, e do sistema de

    transmisso do conhecimento apoiado na aprendizagem, pelo

    emprego do trabalho assalariado e pelo sistema escolarizado do

    conhecimento (GAMA, 1986, p.30).

    Dessa forma, at pelo menos antes do advento da Revoluo da Cincia

    (1789-1848), especialmente pelas descobertas proporcionadas pela Qumica 17,

    todos os processos de produo eram realizados a partir de conhecimentos

    prticos e que no eram e no poderiam ser explicados cientificamente. Assim

    trabalhavam os carpinteiros, camponeses, mineiros e fundidores de metais e

    outros artesos da Idade Mdia, associando engenhosidade, experincia e

    habilidade manual ou, em outras palavras, centrados no mais rude empirismo

    (USHER, 1994, p. 465).

    17 A Qumica, entre todas as cincias, foi a mais ntima e imediatamente ligada prtica industrial a Revoluo Industrial - especialmente integrada aos processos de tingimento de tecidos e branqueamento da industria txtil ( HOBSBAWM, 1979, p.305)

  • 50

    Para Milton Vargas, a Tecnologia s pode ter vigncia depois do

    estabelecimento da Cincia Moderna 18,

    principalmente pelo fato de essa cultura ser um saber que, apesar

    de terico, deve necessariamente ser verificado pela experincia

    cientfica. Esse aspecto experimental e, portanto, emprico da

    Cincia moderna provm da idia renascentista de que tudo

    aquilo que fora realizado pela tradio tcnica poderia s-lo

    tambm pela teoria e metodologia cientficas, o que

    evidentemente aproxima o saber terico-cientfico do fazer

    emprico da tcnica (VARGAS, 1994, p. 16).

    2.2 O conceito de Tcnica Originrio da Grcia Clssica, o conceito de Tcnica estava inserindo num tipo de saber-fazer associado a mitos como o de Hefestos (Vulcano para os

    romanos) o ferreiro - senhor do fogo e da forja que, segundo aquela mitologia,

    havia revelado o segredo desta Tcnica aos homens. Desta perspectiva

    mitolgica, o conceito de Tcnica transformou-se num outro tipo saber-fazer, o da

    techn: um conhecimento emprico que somente pode ser obtido atravs do

    aprendizado baseado na experincia ou ento a partir dos ensinamentos

    transmitidos de gerao em gerao.

    Neste sentido, a Techn no uma habilidade qualquer, mas uma

    habilidade que segue certas regras, por isso, techn significa tambm ofcio;

    pressupe a existncia de um substrato, um saber e um conhecimento na

    18 Para Hobsbawm, o progresso da cincia, no pode ser entendido como um simples avano linear, cada estgio determinando a soluo de problemas anteriormente implcitos nele, e por sua vez colocando novos problemas. Estes avanos tambm procedem pela descoberta de novos problemas, de novas maneiras de enfocar os antigos, de novas maneiras de enfrentar e solucionar velhos problemas, de campos de investigao inteiramente novos, de novos instrumentos prticos e tericos de investigao. (HOBSBAWM , 1979, p. 302).

  • 51

    execuo de uma atividade. (NADAL, 2000, p. 18). Esta forma de saber baseada

    na lgica prolongou-se atravs da Idade Mdia e chegou aos nossos dias com o

    ttulo de Tcnicas. No so teorias, so conhecimentos que tanto podem ser

    adquiridos pela prtica como pelo estudo de tratados tcnicos.

    Entre os sculos XVI e XVII, a Cincia ao romper com a tradio

    escolstica19, avana para o caminho da experimentao com a valorizao das

    artes (tcnica), as quais j vinham se transformando em objeto de preocupao e

    de estudo desde a Baixa Idade Mdia e o Renascimento at chegar constituio

    da Cincia Moderna (DANTAS, 2004).

    Contraposta ao pensamento grego e medieval, em que a

    contemplao das verdades era a meta do conhecimento, sabe-se

    que a partir do Renascimento h uma valorizao do

    conhecimento prtico, bem como uma mudana no estatuto do

    conhecimento tcnico. H uma expectativa de interveno e de

    controle da natureza, e correlativamente, um reconhecimento da

    tcnica, isto , das atividades, inventos e construes dos

    prticos, engenheiros e artesos. Da se falar em uma nova forma

    de saber e uma nova figura de douto. H, no entanto uma srie de

    dificuldades para estabelecer as razes do surgimento dessa

    dimenso ativa, e o papel que ocupa no nascimento da cincia

    moderna (OLIVEIRA,1997, p. ).

    No sculo XV, esse movimento de valorizao do trabalho tcnico dos

    artesos ligado experimentao foi, amplamente, difundido pela divulgao

    daqueles conhecimentos atravs de publicaes. A partir de 1630, surgiram os

    Tratados Tcnicos, Manuais20, como tambm dicionrios e enciclopdias, que se

    dedicavam ao levantamento da terminologia das diversas artes, das

    nomenclaturas tcnicas e da descrio dos processos e dos mtodos das artes

    19 Escolstica: movimento cultural e filosfico medieval baseado, em grande parte, em comentrios da obra do filsofo grego Aristteles e de cunho puramente contemplativo. 20 Na arquitetura, por exemplo, o estabelecimento desta prtica permitiu a difuso das teorias e desenhos imaginados pelos arquitetos renascentistas, findando assim a necessidade de construir e realizar obras para exemplificar as idias arquitetnicas.

  • 52

    mecnicas, as quais acabaram por solapar o domnio das corporaes de ofcios 21 (BARGALL, 1955, p.47).

    A publicao dos manuais tcnicos ter uma importncia decisiva

    na padronizao de unidades de medida e de representao. O

    esforo por se fazer compreender sem a equivocidade do discurso

    do senso comum e sem o hermetismo do discurso mgico-

    religioso, reservado aos iniciados, uma forma decisiva de

    objetivao da comunicao que, muito embora seja fundamental

    ao empreendimento da cincia, nasce como uma necessidade do

    desenvolvimento da tcnica. As exigncias da preciso aparecem

    na representao (desenhos, grficos etc.) e na linguagem

    daquele tipo de saber - as artes mecnicas -, em seus manuais de

    modelos de construo, nas descries dos aspectos e

    propores dos corpos ou no detalhamento do fabrico e do uso de

    instrumentos e artefatos. No difcil ver que esse interesse na

    divulgao de conhecimentos, potencializado pelo aparecimento

    da imprensa, tornava necessria a padronizao da divulgao

    com uma linguagem mais objetiva e medidas mais precisas

    (OLIVEIRA, 1997).

    Entre os Tratados Tcnicos publicados est a obra De pictura (1435),

    considerado o primeiro estudo cientfico da perspectiva, pelo italiano Leone

    Batista Alberti, arquiteto, literato e escultor (1404-1472). Para Alberti, os artistas

    deveriam aprender com todos os outros artesos. E o caminho para esse

    aprendizado, segundo ele, consistia em conseguir com os prprios artesos, os

    21 Dos sculos II (d.C.) ao XV, as Artes estavam classificadas em Artes Liberais e Artes Mecnicas. As Liberais (assim chamadas por serem consideradas dignas do homem livre), estavam associadas Gramtica, Retrica, Astronomia, Lgica, Aritmtica, Msica. Quanto s Artes Mecnicas, organizadas nas reas urbanas, eram consideradas menos honrosas mais prprias do trabalhador manual/servil, como Medicina, Arquitetura, Agricultura, Pintura, Escultura, Olaria, Carpintaria, Ferraria, Cantaria, Ofcio de pedreiros, etc. As corporaes de ofcios, at ento responsveis pelo treinamento dos artesos e pelos segredos dos ofcios (os mistrios dos misteres), tinham o sistema de aprendizado baseado na transmisso dos conhecimentos tcnicos na prtica das oficinas o aprender fazendo que encaminhava o aprendiz na sua carreira, passando pela categoria de oficial e finalmente pela de mestre, isso quando conviesse corporao ter mais mestre, vale dizer mais oficinas no mercado.

    http://gl.wikipedia.org/wiki/1435

  • 53

    saberes no divulgados ou secretos dos ofcios. Para isso, orientava os artistas

    para freqentar as oficinas e outros lugares de trabalho e fazerem perguntas aos

    ferreiros, pedreiros, construtores de barcos e at aos sapateiros. Deveriam

    tambm, freqentemente, fingir ignorncia para descobrir em que o conhecimento

    dos outros excedia aos seus (GAMA, 1983, p. 284-85).

    Esse novo caminho da Cincia, o da experimentao, encontra no

    pensamento do Filsofo ingls Francis Bacon (1561-1626), uma de suas

    expresses tericas. Considerado o fundador da cincia experimental moderna,

    foi tambm o criador do mtodo cientfico baseado na observao e

    experimentao (empirismo), que permitiram o avano das tcnicas que

    transformaram a vida do homem campesino e mineiro do sculo XVII (GAMA,

    1983, p.34).

    Em linhas gerais, Bacon, rejeitou a separao e a oposio vigentes nas

    filosofias tradicionais entre teoria e prtica, entre lgica e operaes reais, entre

    verdade e utilidade (GAMA, 1983, p. 33).

    Interpretou essas oposies como oriundas das condies

    histricas e sociais bem determinadas que valorizavam a

    contemplao a verdade em sua pureza e que desprezavam

    tudo o que fosse ligado s atividades prticas e materiais. Por

    tudo isso preocupou-se em realar tanto quanto fosse necessrio

    a importncia dos fatores materiais no desenvolvimento da

    filosofia e da cultura. E a partir da sustenta a identidade entre

    verdade e utilidade, teoria e atividade operativa, conhecer e fazer

    e afirma que qualquer separao e contraposio entre esses

    termos cria obstculos intransponveis de resultados efetivos e

    eficientes (GAMA,1983, p.33-34).

  • 54

    2.3 A valorizao do conhecimento tcnico e a cincia experimental moderna Com o nascimento da Cincia Experimental, a tcnica artesanal e os

    procedimentos tcnicos ligados s Artes Mecnicas passaram a ser os meios que

    permitiriam o progresso da cincia e o avano do saber.

    Joan Luis Vives (1492-1540), filsofo e preceptor da corte inglesa, assim

    como o italiano Leone Alberti, defendia que o homem culto no devia

    envergonhar-se de entrar nas oficinas e perguntar aos artesos pelas tcnicas

    que empregavam em suas artes. Vives, em sua obra De Tradendis Disciplinis,

    convidava os estudiosos europeus a prestar grande ateno aos problemas

    tcnicos relativos construo das mquinas, agricultura, tecelagem,

    navegao. Advertia ainda que devessem deitar os olhos sobre o trabalho dos

    artesos, para tentar saber onde e como essas artes foram inventadas, buscadas,

    desenvolvidas, conservadas, e como aplic-las. Dessa forma, segundo Vives

    (1531 apud ROSSI, 1989, p. 24), o homem venceria seu tradicional desdm por

    aquilo que considerava como conhecimento vulgar: o dos artesos22.

    Nota-se tambm que esse movimento, o de valorizao do saber tcnico,

    nasce no mbito das Academias e Associaes vinculadas a esta nova

    perspectiva de Cincia e no nas Universidades, que permaneceram at finais do

    sculo XVIII com poucas alteraes metodolgicas. Entre os novos centros de

    conhecimento estavam a Academia dei Lincei en Roma (1603), a Accademia del

    Cimento en Florena (1657), a Royal Society de Londres (1660), a Acadmie des

    Sciences de Paris (1666), alm de Escolas Artesanais ento criadas, que

    conjugavam na Cincia Emprica a aliana entre o saber (cincia) e o fazer

    22 Dentro desta mesma perspectiva, devem ser acrescentar as obras do j citado Francis Bacon, Harvey, Galileu e Boyle, que valorizavam a experimentao e a observao da natureza, reformulando as concepes cientficas e reconhecendo a importncia das tcnicas e da prtica para a Cincia.

  • 55

    (tcnica). Na Espanha, por exemplo, cria-se uma escola de mineiros exercitados

    em tcnicas, sobretudo, nas tcnicas metalrgicas. 23

    Assim, podemos afirmar que, naquele momento, entrar no mundo do

    conhecimento tcnico representava entrar no mundo das corporaes de ofcios,

    desvendando os segredos por meio da apropriao do saber tcnico e da

    linguagem utilizada pelos artesos para a realizao de seus ofcios. Para Ruy

    Gama, A que parece o domnio dos segredos da linguagem dos artesos

    foi a porta pela qual se entrou no domnio dos prprios segredos

    dos ofcios. Dentre os mistrios dos misteres, a linguagem foi a

    primeira a ser desvendada, decifrada e jogada na rua pelas portas

    e janelas arrombadas das oficinas numa espcie de ao de

    despejo para ser vista por todo mundo (GAMA, 1986, p. 48).

    Nas escolas artesanais surge a Tecnologia como disciplina curricular. A

    institucionalizao deste saber permitiu que aqueles conhecimentos tcnicos

    fossem reunidos, estruturados e sistematizados e, dessa forma, transmitidos a um

    nmero cada vez maior de pessoas (GAMA, 1994, p. 54).

    2. 4 A Tecnologia como sinnimo de Tcnica

    Apesar de toda a diferenciao j feita entre os conceitos de Tcnica e

    Tecnologia, estes termos so freqentemente utilizados como sinnimos. Autores

    da lngua ingleses no fazem esta distino, pois consideram, entre outros

    aspectos, que a Histria da Tcnica e a Histria da Tecnologia apresentam seus

    campos embaralhados e sua periodizao extremamente difcil de definir. Lynn

    White Jr., historiador econmico e medievalista americano, por exemplo, afirma

    que a Tecnologia no conhece fronteiras cronolgicas e geogrficas, pois entende

    Tecnologia como o conjunto de todas as Tcnicas e as maneiras pelas quais as

  • 56

    pessoas fazem coisas (GAMA, 1985, p. 14). Mas segundo Ruy Gama, esta

    definio no permite nem o estabelecimento de uma fronteira histrico-

    cronolgica e nem geogrfica para situar o nascimento do conceito, j que Lynn

    o emprega como sinnimo de Histria do Trabalho e, dessa forma, permite

    empregar o termo Tecnologia para todas as realizaes e obras materiais dos

    povos (GAMA, 1985, p. 14-15).

    Essa concepo de Tecnologia, como sinnimo de Tcnica, desenvolve-se

    num contexto em que, entre outros aspectos, a Arqueologia e a Histria

    passavam por reformulaes conceituais. A Arqueologia passava a revelar, nos

    anos 40 do sculo XX, novos documentos materiais relacionados a civilizaes da

    Amrica pr-colombiana que, supunha-se, no conheciam a escrita (pesquisas

    atuais comeam a demonstrar que a conheciam) e tampouco a roda, elementos

    considerados, naquele perodo, indicadores para qualificar o nvel de progresso

    tcnico de uma determinada sociedade, que poderia ser considerada como

    avanada ou atrasada. Essas descobertas levaram a uma reavaliao nas

    idias de progresso e civilizao e na forma de olhar outras sociedades, deixando

    de centrar as anlises somente no eixo tradicional etnocntrico europeu (GAMA,

    1985, p. 14-15).

    Quanto Histria, o nascimento de uma nova escola historiogrfica, a

    Histria Nova surgida na Frana, na primeira metade do sculo XX, d um novo

    enfoque terico-metodolgico pesquisa histrica voltada para a anlise do

    cotidiano. Esta nova tendncia amplia a noo de documento, aproximando a

    Histria das demais Cincias Humanas, entre elas a Arqueologia, possibilitando,

    nos anos 60 do sculo XX, uma verdadeira Revoluo Documental que permitiu,

    nas anlises historiogrficas, a incorporao dos documentos no-escritos -

    cultura material viabilizando o estudo das sociedades que no possuam a

    escrita para registrar sua Histria.

    Para a divulgao desse novo conceito de documento, Lucien Febvre

    idealizou, no perodo entre as duas primeiras guerras, uma revista de Histria que

  • 57

    seria fundada mais tarde em parceria com Marc Bloch, com o nome de Annales

    dHistorie Economique et Sociale: os Annales. Para Febvre ao analisar o

    trabalho do historiador a partir da noo ampliada de documento, afirma que:

    A Historia faz-se com documentos escritos, sem dvida. Quando

    estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos

    escritos quando no existem. Com tudo o que a habilidade do

    historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel, na falta das

    flores habituais. Logo, com palavras, signos, paisagens e telhas.

    Com as formas do campo e ervas daninhas. Com os eclipses da

    lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras

    feitos pelos gelogos e com a anlise de metais feitas pelos

    qumicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencente ao homem,

    depende do homem, serve ao homem, exprime o homem,

    demonstra a presena, a actividade, os gostos e as maneiras de

    ser do homem.

    Toda uma parte e sem dvida a mais apaixonante do nosso

    trabalho de historiadores, no consistir num esforo constante

    para fazer falar as coisas mudas, para faz-las dizer o que elas

    por si prprias no dizem sobre os homens, sobre as sociedades

    que as produziram, e para constituir, finalmente entre elas, aquela

    vasta rede de solidariedade e de entre-ajuda que supre a

    ausncia do documento escrito (FEBVRE 1953 p. 428 apud

    GOFF, 1984, p. 98).

    Para conceituar Tcnica e Tecnologia, recorremos tambm ao Dicionrio

    das Cincias Sociais de Alain Birou, segundo o qual, Tcnica significa:

    O conjunto de regras prticas para fazer coisas determinadas,

    envolvendo a habilidade do executor e transmitidas, verbalmente,

    por exemplo, no uso das mos, dos instrumentos e ferramentas e

    das mquinas. Alarga-se freqentemente o conceito para nele

    incluir o conjunto dos processos de uma cincia, arte ou ofcio,

    para obteno de um resultado determinado com o melhor

    rendimento possvel (GAMA, 1986, p. 30).

  • 58

    Para este mesmo dicionrio, Tecnologia :

    O estudo e conhecimento cientfico das operaes tcnicas ou da

    tcnica. Compreende o estudo sistemtico dos instrumentos, das

    ferramentas e das mquinas empregadas nos diversos ramos da

    tcnica, dos gestos de trabalho e dos custos, dos materiais e da

    energia empregada. A tecnologia implica na aplicao dos mtodos

    das cincias fsicas e naturais e, como assinala Alan Birou, tambm

    na comunicao desses conhecimentos pelo ensino tcnico

    (GAMA, 1986, p. 30).

    ********

    Diante dessas consideraes sobre Tcnica e Tecnologia, salientamos

    que, neste trabalho, pretendemos, a partir da Arqueologia Histrica, contribuir

    para a Histria da Tcnica no perodo colonial brasileiro, especialmente no que

    diz respeito s tcnicas relacionadas minerao e metalurgia.

    No perodo analisado, entre os sculos XVI e XVIII, todos os trabalhos

    relacionados quelas atividades estavam baseados no puro empirismo, no saber-

    fazer e nas experincias prticas daqueles trabalhadores, que sabiam realizar as

    operaes de fundio de forma prtica, mas no tinham instrumentos para

    explic-los. Somente com o advento da Cincia Moderna, especialmente com a

    Revoluo Cientfica, que aqueles mineiros e fundidores puderam compreender

    as operaes produtivas que realizavam.

    Assim, assumimos a periodizao proposta por Ruy Gama, ao considerar

    Tcnica e Tecnologia como categorias distintas e, portanto, que a Histria da

    Tcnica no coincide com a Histria da Tecnologia.

  • 59

    2.5 A tcnica de produo do ferro no perodo entre os sculo XVI ao XVIII

    Los antiguos herrreros descubrieron que, si martillaban

    repetidamente y recalentaban una y otra vez en fuego de carbn

    un trozo de mineral de hierro al rojo, obtenan un metal

    extremamente fuerte y duro hierro forjado (CARDWELL, 1994,

    p. 33).

    Antes do conhecimento dos metais eram aproveitadas treze diferentes espcies minerais, todas do grupo no-metlicos denominadas: calcednia (chert

    e slex), quartzo, cristal de rocha, jaspe, serpentina, pirita, calcita, ametista,

    fluorita, esteatita, mbar e obsidiana (GUIMARES,1981,p.22). A estes minerais

    no metlicos pode-se acrescentar a utilizao de pigmentos minerais usados

    para ornamentos e pintura, constitudos de argila e xidos metlicos coloridos,

    embora alguns objetos feitos, especialmente, de cobre tenham sido encontrados e

    datados de aproximadamente 9.000 a.C (GUIMARES, 1981, p. 22).

    Atribui-se o incio do aproveitamento dos minrios para a extrao de

    metais entre os anos de 6.000 a 5.000 a.C. Admite-se que o cobre teria sido o

    primeiro metal produzido pelo homem, depois o bronze (uma liga metlica de

    estanho e cobre). Na mesma poca, tambm se passou a utilizar o chumbo e, por

    ltimo, o ferro. Na chamada Idade do Ferro, houve tambm a difuso da

    fabricao do vidro e do mercrio.

    Pesquisas arqueolgicas em reas mineiras da Europa tem possibilitado

    revises do conhecimento relacionado a natureza das matrias-primas

    empregadas na extrao do ferro. Tradicionalmente, sustentava-se a idia de que

    a matria-prima com que se confeccionavam os primeiros objetos de ferro teria

    origem em meteoritos. Esta teoria se aplicava particularmente aos objetos

    fabricados com ferro rico em nquel. Atualmente, pesquisas na rea da

    paleometalurgia demonstram que a origem de associaes do ferro com outros

  • 60

    metais ocorre em razo da composio qumica natural dos minerais utilizados

    para a produo destes materiais (FAUS, 2000, p. 27).

    O ferro, como alguns outros metais, no encontrado na natureza em

    forma pura, sendo que nestas condies encontra-se sempre combinado com

    outros elementos, formando xidos, carbonatos, silicatos e sulfatos. Para a

    produo do ferro so utilizados minrios, sobretudo os xidos, tais como a

    hematita (Fe2O3) e a magnetita (Fe3O4) 24. Outros minrios de menor importncia

    para a produo tambm contm ferro, tais como a Siderita (FeCO3), Limonita

    (Fe3O4), Pirita (FeS2) e a (Cromita FeOCr2O3) ( LABOURIAU, 1928, p. 95-110).

    Os termos mineral, minrio e metal precisam ser esclarecidos para que

    se possa compreender a forma da produo do ferro.

    Mineral: uma substncia formada em resultado da interao de

    processos geolgicos em ambientes geolgicos naturais. Os minerais variam na

    sua composio desde elementos qumicos, em estado puro ou quase puro, e

    sais simples a silicatos complexos com milhares de formas conhecidas

    (LABOURIAU, 1928, p. 95-96).

    Minrio: toda substncia natural da qual se possa fazer a extrao de

    algum metal (como a hematita e a magnetita). Assim, um minrio sempre uma

    substncia mineral. Entretanto, nem todo mineral minrio, pois alguns minerais

    no permitem a extrao de metais, como exemplo, pode-se citar a pirita (sulfeto

    de ferro), um mineral que aproveitado para a fabricao do cido sulfrico, mas

    que no permite a extrao do metal nele contido (o ferro). Por conseguinte a

    perita um mineral til, mas no um minrio (LABOURIAU, 1928, p. 95-96).

    Metal: cada um de um grande grupo de substancias simples, obtidas a

    partir de minrios.

    24 A magnetita assim denominada devido ao seu magnetismo natural, um mineral de cor preta acinzentada ou avermelhada, com brilho metlico, de formula qumica (Fe3O4).

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Geologiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Elemento_qu%C3%ADmicohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Salhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Silicato_%28minerais%29

  • 61

    Para a extrao do ferro dos seus minrios (geralmente xidos frricos

    como a hematita) foram desenvolvidas, desde a Antigidade, tcnicas de fundio

    destes materiais por reduo, que utilizavam carvo de madeira como redutor.

    Entretanto, variava de uma regio para outra o tipo do forno e forma de colocao

    do minrio e do carvo no seu interior.

    Elena Faus, referindo ao caso da tradio basca, defende que at o sculo

    XIX, os avanos dos mtodos de fundio do ferro tm decorrido independentes

    da investigao cientfica. Para esta autora esses avanos tcnicos foram

    realizados por uma multitud annima de individuos de talento formados a la

    sombra del teller, protagoniza la Historia de la Tecnologia. Son analfabetos y no

    han conocido ningn tipo de enseanza (FAUS, 2000, p 51). O aprimoramento

    da tcnica de fundio podia, ento, ser considerado como uma sucesso de

    inventos de artesos que, na determinao em resolver as dificuldades que

    surgiam, inventaram tcnicas de fundio a partir de experincias prticas, pelo

    nico mtodo que conheciam: o da prxis do ensaio e erro (FAUS, 2000, p.51).

    Toda a produo do ferro estava fundamentada em conhecimentos

    tcnicos, baseados na prtica e que eram conhecimentos secretos, restritos aos

    membros da respectiva corporao de ofcio. At a revoluo da Qumica, no

    sculo XVIII, no havia nenhum conhecimento que pudesse explicar, de forma

    cientfica, o processo em que ocorria a reduo do minrio em metal. S a partir

    da foi possvel, por exemplo, explicar a atuao de um elemento, o Carbono,

    obtido pela queima do carvo vegetal no processo produtivo do ferro. Na Frana,

    em 1722, o cientista Ren Raumur concluiu que a diferena entre as distintas

    qualidades do ferro e do ao resultava da incorporao de uma substncia

    material. Em 1786, na Sucia, os matemticos Vandermonde e Berthollet e o

    qumico Monge, confirmaram esta hiptese e identificaram o elemento: o

    Carbono, o mesmo procedente da queima do carvo de madeira utilizado, desde

    a antiguidade, na fabricao (FAUS, 2000, p. 21-22).

  • 62

    Com o aprimoramento da tcnica de fabricao do ferro, descobriu-se

    tambm a forma de se produzir ao, sendo que sua difuso promoveu a

    emergncia de instrumentos e ferramentas completamente novas, dando prestgio

    a todos aqueles que dominavam a tcnica dos metais. Dessa forma, o ferro e,

    depois, o ao foi empregado na fabricao de uma diversificada variedade de

    instrumentos que, anteriormente, eram confeccionados com madeira ou pedra,

    transformando assim, a metalurgia, em uma tcnica extremamente estratgica.

    Para Donald Cardwel,

    la metalurga hizo posibles instrumentos y herramientas completamente nuevos y anteriormente inimaginables -. La importancia fundamental de la metalurga y el prestigio de los

    trabajadores expertos en el metal quedan confirmados, como

    sealaba Samuel Smiles, por la frecuencia del apellido Smith

    (Herrero). Adems, la palabra Smith es de origen nrdico o

    germnico, lo cual da una clave para entender la localizacin de

    los primitivos centros del trabajo del metal en el occidente

    europeo. (CARDWEL, 1994, p. 34, grifo nosso).

    A crescente demanda de objetos e utenslios feitos de ferro proporcionou o

    aprimoramento das tcnicas de fundio como tambm da especializao

    daquele trabalho.

    Na Espanha, por exemplo, os espaos destinados a produo de ferro

    foram se especializando. Um desses espaos era denominado de ferrarias

    maiores, que se especializaram na fundio dos minrios para a obteno de

    metal e, outras denominadas de ferrarias menores, dedicavam-se manufatura

    desse metal, ou seja: transformando-o em barras ou laminas para fabricar, entre

    o