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Rua Sarmento Leite, 320/518 - Campus Centro UFRGS, Porto Alegre/RS, BRASIL CEP 90050-170 Telefone: + 55 (51) 3308-3263 Website: www.ufrgs.br/gpit E-mail: [email protected] (Artigo publicado em: I Seminário Arte e Cidade, 23-26 de maio de 2006, Salvador: EDUFBA, 2006.) Arquitetura do descartável: estética do consumo, estética dos excluídos Daniela Mendes Cidade Graduada em Artes Plásticas pelo Instituto de Artes – UFRGS, mestre em Arquitetura pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura UFRGS e Doutoranda em Teoria, História e Crítica da Arquitetura – PROPAR – UFRGS. Professora e pesquisadora nos cursos de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Caxias do Sul e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Arquitetura descartável: o lixo da sociedade de consumo no espaço de morar Partindo da expressão “outros tempos, outros costumes”, Paul Virilio, ao abordar a questão da habitação na sociedade contemporânea, nos diz que hoje vivemos um outro tempo e um outro espaço. Ele refere-se ao tempo real e ao espaço virtual, que com certeza nos leva a outros costumes, mas também nos encaminha para vivenciar uma outra habitação. Fala da “miniaturização da habitação, sua decomposição arquitetônica e seu divórcio com o lugar social tradicional das sociedades anteriormente sedentárias”. 1 Segundo ele, estamos hoje na era da cidade portátil - o telefone, o computador, etc. Os equipamentos portáteis, no cotidiano estabelecem uma mudança na relação com o espaço topológico indicando a mudança da relação física e geográfica com o 1 VIRILIO, Paul. Un habitat exorbitant. In: L’Architecture d’aujour’hui. Junho 2000, p.113

Arquitetura do descartável: estética do consumo, estética ... · estética do consumo, estética dos excluídos Daniela Mendes Cidade Graduada em Artes Plásticas pelo Instituto

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Rua Sarmento Leite, 320/518 - Campus Centro UFRGS, Porto Alegre/RS, BRASIL CEP 90050-170 Telefone: + 55 (51) 3308-3263 Website: www.ufrgs.br/gpit E-mail: [email protected]

(Artigo publicado em: I Seminário Arte e Cidade, 23-26 de maio de 2006, Salvador: EDUFBA, 2006.)

Arquitetura do descartável: estética do consumo, estética dos excluídos Daniela Mendes Cidade Graduada em Artes Plásticas pelo Instituto de Artes – UFRGS, mestre em Arquitetura pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura UFRGS e Doutoranda em Teoria, História e Crítica da Arquitetura – PROPAR – UFRGS. Professora e pesquisadora nos cursos de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Caxias do Sul e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Arquitetura descartável: o l ixo da sociedade de consumo no espaço de morar

Partindo da expressão “outros tempos, outros costumes”, Paul Virilio, ao abordar a questão da

habitação na sociedade contemporânea, nos diz que hoje vivemos um outro tempo e um outro

espaço. Ele refere-se ao tempo real e ao espaço virtual, que com certeza nos leva a outros costumes,

mas também nos encaminha para vivenciar uma outra habitação. Fala da “miniaturização da

habitação, sua decomposição arquitetônica e seu divórcio com o lugar social tradicional das

sociedades anteriormente sedentárias”.1 Segundo ele, estamos hoje na era da cidade portátil - o

telefone, o computador, etc. Os equipamentos portáteis, no cotidiano estabelecem uma mudança

na relação com o espaço topológico indicando a mudança da relação física e geográfica com o

1 VIRILIO, Paul. Un habitat exorbitant. In: L’Architecture d’aujour’hui. Junho 2000, p.113

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espaço construído. Neste sentido, o homem deixa de ter uma relação sedentária com o lugar para

tornar-se nômade.

Segundo Virilio, a arte, assim como a performance atual da moda caracterizam uma crítica à

questão do lugar e da posição fixa de um objeto. A globalização, e a conseqüente falta de fronteiras,

coloca o homem tanto num universo livre e móvel como o coloca em uma superfície territorial

onde não se identifica mais o que é interior e exterior, o que está dentro ou fora. Neste sentido,

também perdemos a referência de lugar como espaço de identificação com características

específicas e distintas ou que tenham bordas definidas.

A questão da mobilidade já fora abordada no início do século XX pelas vanguardas artísticas,

através das propostas de incorporação da velocidade no cotidiano humano e urbano, idéia que foi

retomada num outro momento da história com uma crítica em relação à sociedade de consumo

dos anos 60. Montaner ressalta que a arte das vanguardas no início do século XX caracterizava-se

também pela mudança e pelo apelo ao novo. No período de afirmação do moderno, influenciado

pela tecnologia da máquina, a experiência do tempo tornou as coisas transitórias e fugidias, como

disse Marx e Berman, “tudo que é sólido desmancha no ar”. A idéia do efêmero e da

transitoriedade rompe com a idéia de continuidade histórica. Conforme David Harvey, “se há

algum sentido na história, há que descobri-lo e defini-lo dentro do turbilhão da mudança”2. A

idéia de mudança ocorre em relação ao período anterior referenciado na história. No entanto, o

período moderno caracterizou-se por uma visão homogênea. Já o período posterior a ele, o

chamado pós-moderno, foi marcado pelo pluralismo e pela descontinuidade. Este período, para

Jean-François Lyotard3, caracteriza-se também pelas crises do saber e da noção de ordem, levando

a uma rediscussão da noção de desordem. Para isso, segundo Lyotard, o filósofo pós-moderno, ao

encarar a problemática o novo mundo, deve abandonar a subjetividade e utopia modernas para

buscar o conhecimento baseado na realidade, conceitos mais próximos do concreto, do cotidiano.

A partir dos anos 60, o mito do novo é substituído pela volta à valorização histórica, pelo senso do

comum, do cotidiano e da vida real, pela proliferação da indústria, do consumo e da tecnologia.

Porém, à idéia da fragmentação, do efêmero e do transitório se acrescenta a idéia do consumo. Os

Smithson e o grupo Archigram, a partir da crítica à sociedade capitalista, buscam a diluição das

2 HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as mudanças da origem cultural. São Paulo: Loyola,1993. p. 22 3 LYOTARD, François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.

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hierarquias culturais. Existia um ideal de modificar as antigas estruturas urbanas em ambientes

móveis e mutantes, assim como o ato de refletir sobre a velocidade do cotidiano urbano, já

incorporado pela máquina.

A arquitetura, assim como a arte, deve ter um caráter efêmero, pois deve ser consumida como

qualquer outro produto. Warren Clark em 1967 escreve A arquitetura como produto de consumo,

propondo uma arquitetura intercambiável e produzida como objeto de consumo. Pretende essa

idéia defender uma estética dos desperdícios, assim como “um novo idioma vernáculo, algo que

nos aproxime das cápsulas espaciais, dos computadores e das garrafas descartáveis desta era

atômica-eletrônica”4. As propostas do Archigram se baseiam na liberdade de escolha associada ao

consumo, sendo a arquitetura um produto substituível e transportável. Claudia Cabral5 em sua

reflexão teórica sobre o grupo Archigram, ressalta que a mudança estética dos anos 20 para os anos

60 representou a passagem da estética da máquina à estética do consumo.

Na arquitetura, as idéias dos anos sessenta se converteram em uma busca de novas formas à partir

de novas possibilidades tecnológicas, influenciando a produção dos anos seguintes, onde se situam

os metabolistas e as megaestruturas. Neste ensaio, proponho uma reflexão à partir das idéias de

“arquitetura descartável” ou “arquitetura como produto de consumo” começando pela crítica de

David Greene: “As perguntas de Archigram sobre a técnica permanecem sem responder, se alguma

vez foram formuladas, mas parece que os nômades eletrônicos do sistema financeiro global

demandam uma permanência em sua arquitetura que não requerem em seus negócios.”6

Seguindo a afirmação de David Greene, quais aspectos da arquitetura encontraríamos uma relação

com as características contemporâneas relacionadas à mobilidade discutidas em outras disciplinas

teóricas como a filosofia, estética, antropologia? Não seria a arquitetura informal a mais próxima

de uma condição contemporânea estética? Poderia ser a estética do consumo uma estética

também dos excluídos?

Este ensaio tem como objetivo refletir aspectos da vida contemporânea no que diz respeito a

habitar em uma sociedade de consumo e, conseqüentemente, de um mundo descartável. Outra

referência abordada será a filosofia da estética neo-realista, coincidente historicamente com as 4 Warren Chalk, In: MONTANER, Josep Maria. Después del movimiento moderno. Arquitetura de la segunda mitad el siglo XX. Barcelona: Gustavo Gili, 1993. p.113. 5 CABRAL,Claudia. Grupo Archigram, 1961-1974: Uma fábula da técnica. Barcelona: UPC. Tese de Doutorad, 2001. 6 David Greene, A Prologue, In: CABRAL, op. cit. p.14.

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propostas do grupo Archigram para uma arquitetura descartável, assim como com a arte pop e as

propostas de expansão da pintura para o plano tridimensional. Este conjunto de referenciais

associado a Arquitetura descartável tem o propósito de revelar através do lugar de morar de um

grupo humano pertencente ao mundo dos excluídos.

O conceito arquitetura descartável, neste trabalho, tem um significado metafórico: aquilo que

deixa de ser utilizado por uma determinada camada da sociedade e passa a ser matéria prima para

outra. Nesse processo de reutilização, o descartável passa a ter um sentido de precário. Perde o seu

status de produto de consumo para virar lixo. No entanto, a forma de apropriação do “lixo” gera

um produto que esteticamente revela o sistema da vida contemporânea no que diz respeito aos

acúmulos e excessos e a tudo que é descartável, efêmero, produto de uma sociedade cada vez mais

“vazia” de conteúdo: a estética do lixo, a estética dos excluídos. A vida real se revelaria a partir da

apropriação do descartável. (Figura 1)

Anos 60: do novo-reali smo à arquitetura descartável

A pluralidade de propostas a partir da metade do século XX resultou de críticas ou posturas a uma

realidade que estava baseada principalmente em três aspectos: a destruição pós-guerra, a

tecnologia, e o consumo em massa. Junto a isso, a partir da segunda guerra mundial, nas diversas

áreas do conhecimento e pensamento, o existencialismo e a fenomenologia surgiram como forma

de percepção e reinterpretação da vida real. Na realidade destruída pela guerra, surge uma

revalorização das questões humanas, da realidade e do sujeito comum. Neste período, marcado

pela diversidade, existe uma vontade de interagir tecnologia e elementos do real, da realidade

européia crua e sombria do cotidiano pós-guerra.

Neste período, arte e arquitetura deixam de se reconhecer nas propostas abstratas do modernismo

e voltam o olhar para um outro sentido: o do novo realismo e da aproximação da realidade bruta.

Segundo Pierre Restany, na década de 60 surge uma vanguarda que quer se inserir no mundo

contemporâneo sem recusá-lo, mas com “uma visão das coisas que se inspira no senso da natureza

moderna, que é a da fábrica e da cidade, da publicidade e do mass media, da ciência e da

tecnologia.”7

7 RESTANY, Pierre. Os novos realistas. São Paulo: Perspectiva, 1979. p.24.

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O neo-realismo, movimento fundado em 1960, representou a ruptura a arte abstrata, subvertendo

o período anterior ao retomar ao realismo. Ao mesmo tempo, manteve o mesmo debate teórico

baseado na consciência de uma natureza moderna, industrial e urbana. Desta vez, através de um

olhar para o mundo que retomasse a forma figurativa. “Desde que o novo realismo soou o dobre

da arte abstrata, assistimos à convergência de dois fenômenos evolutivos: por um lado a

generalidade de um senso moderno da natureza e, por outro, a generalização de um senso

moderno de ligação. É na transição da filosofia para a linguagem que se diversificaram as opções

principais do realismo contemporâneo: a aventura do objeto e da tecnologia; a pretensa nova

figuração e a crítica social; a arte visual e a pesquisa operacional; a escultura-arquitetura e o

urbanismo espacial”.8

A resposta da arte e da arquitetura como crítica social inclui de forma otimista uma ligação com a

tecnologia. Para Pierre Restany, o homem não sofre mais coma alienação da técnica e a arte deixa

de ser uma manifestação de revolta tornando-se uma arte de participação popular que tira partido

da comunicação de massa e da apropriação da realidade de forma direta. Um marco dessa

transição entre abstracionismo e figuração foi a exposição “Cheio” de Arman numa galeria de

Paris em 1960, dois anos depois da exposição “Vazio” de Ives Klein que deixou as paredes da

mesma galeria completamente vazias. Arman, ao contrário de Klein, acumulou na vitrine e no

espaço da galeria até a saída da sala objetos usados catados nos lixos do Les Halles e artigos de série,

um verdadeiro “despejo-lata de lixo em escala arquitetônica.”9 (Figuras 2 e 3)

Sua intenção era a de expandir a obra de arte à escala arquitetônica ultrapassando a noção de

objeto. O monte de entulho, objetos inúteis até mesmo para um colecionador, trazia a intenção do

artista sua busca pela liberdade total em arte. Mas, esta exposição significava também, de forma

irônica, uma crítica à nossa sociedade industrial e tecnológica.

As proposições na arte a partir dos 60 partem da retomada realista de caráter social atingindo

escala mundial, assim como várias outras proposições em arte. A pop art foi uma contribuição

americana que possuiu um caráter mais publicitário e industrial. A retomada realista, segundo

Restany, não consiste na volta ao figurativo apenas, mas na reestruturação da imagem

bidimensional obtida por processos industriais, fruto das técnicas modernas de comunicação de

8 Ibid, p.110. 9 Ibid, p.113.

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massa e das assemblagens. As pesquisas com assemblage dos novos realistas, inicialmente marcam a

transição para uma expansão da pintura bidimensional. Os artistas passam a buscar uma dimensão

espacial e com isso uma maior relação entre espaço físico/obra de arte/expectador. Nesta linha de

trabalho surgem os neo-construtivistas com atualização das propostas da Bauhaus e crítica à

efemeridade da pop art. Eles tratam o tema social à partir de uma experiência piscossensorial e de

síntese da obra de arte.

Depois dessa experiência dos neo-construtivistas, o caráter sintético da abra de arte culminou em

experiências ligadas à arquitetura de forma crítica em relação à sua forma e destino. O interesse da

arte pela arquitetura e cidade torna-se cada vez maior, assim como os limites tornam-se cada vez

mais difusos. Os artistas rompem com o plano bidimensional da pintura, encaminhando-se para

uma dimensão espacial. Ao mesmo tempo em que existe uma ligação com a arquitetura, como algo

estático, essa mesma condição direciona a arte para a mobilidade com caráter experimental.

A partir da década de 60 do século passado, a tendência da sociedade em todas as áreas estava

voltada à mobilidade. Com o pensamento arquitetônico acontece o mesmo. Surgem as propostas

para um espaço de habitar móvel, assim como uma cidade além dos limites da cidade tradicional

com propostas de construção modular pré-fabricada ou cidade pontes e cidades caminhantes.

As proposições estéticas, tanto na arte quanto na arquitetura, de acordo com o pensamento de

Pierre Restany, buscaram “arranjar o comportamento coletivo em função das relações pessoais,

garantir a transição, o recortamento, a osmose entre o mundo psicosensorial do indivíduo e o da

multidão. É então que nossas utopias se tornarão necessidades vitais.”

A critica à sociedade de consumo e a busca de um caráter social na arquitetura traz implícitas duas

idéias relevantes para este trabalho: uma ligada ao acúmulo de dejetos provenientes da

industrialização e do consumo em massa vinculados à estética neo-realista; a outra relacionada à

mobilidade e caráter de mudança presente nas propostas da arquitetura descartável do grupo

Archigram.

Conforme a revisão de Montaner10, a arquitetura com compromisso social foi um dos temas

dominantes no período do movimento moderno na primeira fase dos CIAM (1928-1932),

retomado com o fim da guerra. Como crítica à rigidez e repetição racionalista, ele salienta as

10 MONTANER, Josep Maria. Las formas del siglo XX. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.

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propostas dos Smithisons nas décadas de 50 a 70, com preocupação social e busca de novas

morfologias urbanas já com um conceito orgânico.

Tecnologia e mobilidade foram um dos aspectos desenvolvidos pelo grupo britânico Archigram

composto por Peter Cook, Warren Chalk, David Greene, Ron Herron, Michael Webb e Denis

Crompton. Eles propuseram um novo conceito de habitar retomando as idéias de incorporação da

tecnologia dos futuristas italianos. No entanto, os participantes do grupo Archigram viveram

numa sociedade diferente do período anterior: uma sociedade do consumo, do excesso e,

conseqüentemente, do desperdício. A partir disso, suas propostas, que iam desde unidades

mínimas de habitação, como cápsulas, à cidades como megaestruturas, havia a intenção de uma

arquitetura intercambiável e descartável com referência na ficção científica e influenciada pela pop

art. Para Montaner, aí se situa uma contradição do grupo: “expressar a cientificidade dos avanços

tecnológicos recorrendo a superficialidade do imaginário pop.”11 No entanto, o pop também

significava uma estética coletiva e de socialização da arte com caráter humanista.

Conforme Claudia Cabral12, a flexibilidade, a reprodutibilidade técnica, a produção em massa, a

tecnologia no cotidiano urbano e doméstico a partir da reestruturação do fordismo permitiu um

caráter individual ao que antes era coletivo. No âmbito da arquitetura, esta intenção foi

apresentada pelo grupo Archigram. Desta forma, traz implícita uma idéia de participação do

sujeito na estrutura do espaço de morar, o caráter móvel e a expressão do indivíduo.

O número 3 da revista do Archigram abordou o tema da arquitetura como bem de consumo, ou

seja, ”uma discussão sobre o tempo de vida útil dos objetos de uso cotidiano, e - por que não? -

também dos edifícios. Se procurava reunir evidências não apenas desta arquitetura pop descartável,

como o de um entorno social crescentemente envolvido com o problema da substituição através

de toda a gama de artefatos produzidos industrialmente para consumir e dispensar; uma “primeira

geração de descartáveis” à qual logo poderia somar-se a construção arquitetônica.“13

Chalk, neste número da revista ainda firma que: “em uma sociedade tecnológica mais gente irá

jogar um papel ativo na determinação de seu entorno individual, na auto-determinação de uma

forma de vida. Nós não podemos pretender retirar este direito fundamental de suas mãos e

continuar tratando-os como imbecis do ponto de vista criativo e cultural. Devemos abordar isto 11 Ibid, p.94. 12 CABRAL, op. cit. 13 CABRAL, op. cit. p.45

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por outro lado, de maneira positiva. As qualidades inerentes à produção em massa para uma

sociedade orientada para o consumo são a repetição e a estandardização, mas partes podem ser

trocadas ou intercambiadas dependendo das necessidades e preferências individuais, e dado um

mercado mundial, isso seguiria sendo economicamente factível.”14

Estéti ca do consumo, est éti ca dos excluídos

Esteticamente o trabalho “Cheio” e as caixas com acúmulos de dejetos de Arman, assim como a

sua atitude em busca destes dejetos está muito próxima das atividades dos papeleiros – pessoas que

vivem da coleta, seleção e venda de lixo, construtores dos “seus” espaços de morar e trabalhar.

(Figuras 4 e 5)

Por outro lado, as construções dos papeleiros também trazem uma ligação com a proposta de

arquitetura descartável do grupo Archigram num sentido mais literal da expressão. Pois, para o

Archigram, a arquitetura deveria ter a mesma mobilidade tanto no sentido de deslocamento,

quanto no aspecto efêmero. Como produto de consumo, deveria ser usada, constantemente

modificada e após, descartada. Um exemplo atual destas características aliado à área de moradia é a

“Vila do Chocolatão”, como é conhecida a área ocupada pelos papeleiros atrás do Edifício da

Receita Federal de Porto Alegre. Ela torna-se produto da sociedade de consumo, pois é construída

a partir dos seus dejetos. Uma construção constituída por acúmulos e sobreposições, numa atitude

bicroleur, que nunca cessa, portanto em constante transformação. (Figura 6)

O espaço da Vila do Chocolatão apresenta uma diversidade dentro de uma estrutura fechada e

protegida pelos edifícios institucionais que a cercam. O espaço onde se encontram estes dois pólos

opostos apresenta também um contraste dos elementos que compõem estas estruturas: uma mais

pura e limpa, a outra, complexa e suja. Esta última se caracteriza pelo caráter de exceção dentro de

uma estrutura maior que é a cidade com suas edificações tradicionais, legais e confortáveis.

A vila e o costume dos papeleiros caracterizam-se, portanto, em uma estética dos excluídos, por

configurar uma estrutura que é a exceção dentro da regra geral urbana. Giorgio Agamben, ao tratar

das relações entre poder e vida, fala do sentido paradoxal da estado de exceção à partir do

14 Warren Chalk, Housing as a consumer product, em Archigram, Magazine n.3 Expendability, Lodres, agosto de 1963. citado por CABRAL, op. cit.

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entendimento do paradoxo da soberania. Uma de suas hipóteses é a de que a normalidade, como

estudo de caso, não prova nada, enquanto que a exceção explica a si mesma e o geral. A relação de

exceção é “a forma extrema da relação que inclui alguma coisa unicamente através de sua

exclusão.”15 Ou seja,o que está fora, paradoxalmente está dentro.

No entanto, a vila dos papeleiros caracteriza-se com uma estrutura que, ao se apropriar daquilo

que é excluído pela sociedade consumo, gera uma área de riqueza estética proveniente destes dois

campos distintos de morar. Desta forma, podemos aproximar esta área o conceito de Ecótono:

“zona de passagem de um bioma e outro; por exemplo, entre floresta e campo há uma zona de

passagem: a mata de arbustos. Neste local, normalmente a diversidade de espécies é muito maior

do que as espécies de cada bioma separadamente. É nesta zona de contato que as trocas e embate

entre espécies diferentes ocorrem na tentativa de partilhar o mesmo espaço. É da relação entre

biomas e da adaptação e este local de contato que nasce o ecótono como interface entre as duas

comunidades. A tendência ao aumento da diversidade e o aparecimento de organismos resultantes

desta zona de passagem é chamada de efeito de borda.”16

O resultado estético é algo similar ao que se verificou na história da arte à partir dos anos sessenta,

e ainda ao que se verificou durante os anos oitenta do século anterior: a pesquisa de um novo

academicismo como um retorno às expressões do passado surgiu na arte e na arquitetura como um

novo método experimental de investigação através da revisão e manipulação de elementos

anteriores. Tratava-se de uma apropriação de outros tempos. Desta forma, a pós-modernidade

instaurou o direito à citação. “Reapropriação de estilos, prática da citação, maneirismo, utilização

do kitsh: é claro que de certa maneira o pós-modernismo joga o jogo do ecletismo, do gosto dos

sabores misturados, reciclando os usos, integrando e se apropriando sem jamais inventar.

Recusando hierarquias, ele mantém a confusão entre arte e kitsch, entre cultura e comunicação

mediática.”17 Há, numa revisão, uma atitude diferente daquilo que acontece no modernismo: esse

sempre negou o movimento que o precedeu. No pós-modernismo ao contrário admiti-se a revisão

dos períodos anteriores como releitura e reapropriação de estilos.

15 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer : o poder soberano e vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p.26. 16 citado em: Efeitos de borda subjetividade e espaço público In: Perdidos no espaço. www.6.ufrgs/escultura/ acessado em 07.10.2005. Edição III do Jornal do grupo de pesquisa Perdidos no Espaço. 17 BAQUÉ, Dominique. La photographie plasticienne. Paris: Regard, 1998. p. 178.

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Segundo Dominique Baqué, o pós-modernismo nos Estados Unidos adquire uma postura crítica e

descontrutivista. “Podemos identificar três critérios eminentemente pós-modernos nesta cultura

de citações e de apropriações: depreciação da obra inicialmente escolhida, efeito de sobreposição e

reorientação da leitura da obra.“18

Se uma obra no campo da arte pode ter uma reorientação passando a dar outro valor aquilo que

foi apropriado pelo artista, porque não podemos encarar as construções que também tem um

caráter apropriativo de forma positiva. Isso somente não acontece pelo fato de suas construções ao

apresentarem dois aspectos importantes no campo da arquitetura: a tecnologia e a legitimação.

Interrogações f inais

Em relação à crítica dos anos sessenta à dominação da máquina, hoje, a história se repete, ou

melhor, continua, porém com uma crítica mais feroz em relação ao sedentarismo devido à

mecanização em nossas tarefas diárias, como aborda Paul Virilio.

Primeiro, nos tornamos sedentários. Neste sentido, penso que ainda a arquitetura móvel tal qual

foi proposta pelos metabolistas, ainda não se concretizou como forma do habitar. A arquitetura,

no sentido da mobilidade, está mais restrita à arquitetura de eventos. Existem, sim, estruturas

móveis. E a tecnologia nos permite isso cada vez mais, porém não voltada para o problema da

habitação. O problema da habitação existe. E os sem teto é que estão se aproximando cada vez

mais de um conceito de arquitetura móvel, pela sua própria condição: em suspensão, pela condição

nômade e de excluídos. E a tecnologia ainda não é acessível a este sujeito sem casa.

Tendo em vista a tecnologia voltada para a mobilidade, que nos permite falar e trabalhar em

qualquer lugar, poderíamos dizer que nesse particular haveria uma retomada dos ideais nômades

propostos pelos Situacionaistas e pelo grupo Archigram. Mas isso caracteriza mais um

sedentarismo cibernético do que uma retomada do nomadismo. Paul Virilio vê uma mutação

comportamental à partir da influência do mundo virtual no cotidiano humano, onde existe uma

renovação das noções de nomadismo e sedentarismo. O mundo virtual e móvel, hoje renova nas

manifestações mais distantes da arquitetura dita erudita, como é o caso particular aqui citado da

“Vila dos Chocolatão” em Porto Alegre.

18 Ibid, p. 179.

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A estética dos excluídos, como uma estética popular, coloca duas questões: uma a da

espontaneidade e da autenticidade de suas produções; a outra, sobre o valor estético. Dufrenne19

questiona em que medida manifestações populares, como essa dos excluídos, assim com as danças

regionais, são produtos da grande arte ou se devem ser julgadas para ter valor estético: não

deveríamos deixar o prazer inspirar esse julgamento? Na verdade se são produtos da arte, isso não

importa, pois nunca existiu a intenção da arte por parte dos seus construtores. Como também não

existe a intenção de colocar estas habitações no patamar de valor arquitetônico. No entanto,

podemos deixar de reconhecer o seu valor estético independente da intenção e do reconhecimento

institucional?

Poderia a arte popular nos convidar a uma revisão do conceito da arte ou da arquitetura, de sua

extensão, e de sua compreensão? Poderia, no sentido político esclarecer a arte e sua praticas através

da apropriação e da liberdade da arte?

O caráter transitório da sociedade contemporânea envolve todos os domínios, assim como

desmaterializa o espaço concreto do morar. Lyotar diz que “o contrato temporário está

suplantando na prática as instituições permanentes nos domínios profissionais, emocionais,

sexuais, culturais, familiares, internacionais, bem como nos assuntos políticos”.20 Um certo

individualismo no campo político e da arquitetura justificaria o esquecimento aos excluídos?

A pluralidade e sobreposição da contemporaneidade, como nos lembra David Harvey, geram uma

falta de comunicação entre mundos diferentes que coexistem no mesmo espaço, com é o caso da

Vila do Chocolatão junto ao edifício da Receita Federal e tantos outros edifícios institucionais.

Estes dois mundos caracterizam uma justaposição na qual se articulam noções opostas, como

observa Piedad Solans a partir da idéia de Jameson sobre corpo e tecnologia: “modelo difuso de

espacialidade se converteu em uma realidade múltipla e fragmentária que atua desde a nova

reconstrução temporal e espacial a numerosos âmbitos da percepção. Uma percepção que se

constrói no tecido transparente da tecnologia.”21 A critica pós-moderna em relação ao

modernismo, como sugeriu Robert Ventury, não consiste na retomada de elementos históricos,

mas a uma aproximação da realidade, do cotidiano, e daquilo que se aproxima da estética popular e

19 Mikel Dufrenne, In: SOURIAU, Ethienne. Vocabulaire d’esthetique. Paris: PUF, 1990. 20 LYOTARD, op. cit. p.81. 21 Solans, Lo sublime tecnológico. Cuerpo, pantlla e identidad em la estética posmoderna. In: PÉREZ, David. La certeza vulnerable: cuerpo y fotografia en el siglo XXI. Barclona: Gustavo Gili, 2004. p.282.

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não de uma imposição elitista, abstrata e desvinculada do homem “real”, assim como, na

valorização da justaposição, da apropriação e da diversidade.

A reflexão sobre estas manifestações nos traz uma interrogação sobre os espaços que construímos

hoje na qualidade de “arquitetura”: em que sentido a arquitetura contemporânea incorpora a

mobilidade e os elementos do cotidiano tecnológico? Em que sentido a arquitetura cumpre o seu

papel social?

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Figura 1: “Vila do Chocolatão”, Porto Alegre.

Figura 3: Arman montando a exposição “Le Plein” (Cheio), outubro, 1960.

Figura 2: Vitrine da Galeria Iris Clert, durante a Exposição “Le Plein” (Cheio), outubro, 1960.

Figura 4: Arman em seu processo de trabalho.

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Figura 6: “Vila do Chocolatão”, Porto Alegre.

Figura 5: Seleção de materiais realizada por moradores da “Vila do Chocolatão”, Porto Alegre.

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