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ARQUITETURA, TEMPO E LUGAR Roberto Ghione Arquiteto, Pós-graduado em História da Arquitetura, Crítica Arquitetônica e Planejamento Urbano pela Universidade Nacional e Católica de Córdoba. Texto publicado pela revista Atrium, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco, Recife, 2004. Introdução Saber descobrir e interpretar o espírito do tempo e o espírito do lugar para traduzi-los na materialização de um fato construído é uma das chaves para a obtenção de um produto arquitetônico de certa transcendência. Existem numerosas variantes que determinam o valor da arquitetura, mais certamente tempo e lugar constituem as coordenadas iniciais para superar o simples fato construtivo e assumir uma produção com significado cultural. Fazer arquitetura do lugar e representativa da cultura contemporânea é o desafio universal e transcendente das obras de todos os tempos. Uma observação ao universo das construções atuais permite detectar a escassa produção de arquitetura no sentido de objetos de transcendência e significado cultural. Periferias construídas sem arquitetos, especulação imobiliária, edifícios feitos sem o compromisso nem o aprofundamento profissional transformam e degradam, quotidianamente, a paisagem e o ambiente das nossas cidades com as construções que não possuem outro valor além do utilitário. Por outra parte, o consumo acrítico de informação faz de algumas intervenções caricaturas grotescas ou desvalorizadas de modelos do primeiros mundo. Resulta necessário promover a educação profissional no sentido de assumir o compromisso com a arquitetura e com a sociedade - cidade, assim como estimular aas análises críticas para fomentar a qualidade e o aprofundamento disciplinar. Diversas temáticas fazem a relação da arquitetura com os conceitos de tempo e lugar. Entre outras, vamos lançar linhas de pensamento relacionadas com a cidade, com a paisagem, com o patrimônio e com a tecnologia. Arquitetura e Cidade No campo das intervenções arquitetônicas e urbanísticas, existe uma corrente do pensamento contemporâneo que teve suas origens nas crises da cultura do Movimento Moderno. As reações à ideologia da "tábua rasa" para as intervenções urbanísticas e, como conseqüência, do edifício-objeto (independente e incontaminado), que marcou a cultura da primeira metade do

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ARQUITETURA, TEMPO E LUGAR

Roberto Ghione

Arquiteto, Pós-graduado em História da Arquitetura, Crítica Arquitetônica e Planejamento Urbano pela Universidade Nacional e Católica de Córdoba.

Texto publicado pela revista Atrium, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco, Recife, 2004.

Introdução

Saber descobrir e interpretar o espírito do tempo e o espírito do lugar para traduzi-los na materialização de um fato construído é uma das chaves para a obtenção de um produto arquitetônico de certa transcendência. Existem numerosas variantes que determinam o valor da arquitetura, mais certamente tempo e lugar constituem as coordenadas iniciais para superar o simples fato construtivo e assumir uma produção com significado cultural. Fazer arquitetura do lugar e representativa da cultura contemporânea é o desafio universal e transcendente das obras de todos os tempos.

Uma observação ao universo das construções atuais permite detectar a escassa produção de arquitetura no sentido de objetos de transcendência e significado cultural. Periferias construídas sem arquitetos, especulação imobiliária, edifícios feitos sem o compromisso nem o aprofundamento profissional transformam e degradam, quotidianamente, a paisagem e o ambiente das nossas cidades com as construções que não possuem outro valor além do utilitário. Por outra parte, o consumo acrítico de informação faz de algumas intervenções caricaturas grotescas ou desvalorizadas de modelos do primeiros mundo. Resulta necessário promover a educação profissional no sentido de assumir o compromisso com a arquitetura e com a sociedade - cidade, assim como estimular aas análises críticas para fomentar a qualidade e o aprofundamento disciplinar.

Diversas temáticas fazem a relação da arquitetura com os conceitos de tempo e lugar. Entre outras, vamos lançar linhas de pensamento relacionadas com a cidade, com a paisagem, com o patrimônio e com a tecnologia.

Arquitetura e Cidade

No campo das intervenções arquitetônicas e urbanísticas, existe uma corrente do pensamento contemporâneo que teve suas origens nas crises da cultura do Movimento Moderno. As reações à ideologia da "tábua rasa" para as intervenções urbanísticas e, como conseqüência, do edifício-objeto (independente e incontaminado), que marcou a cultura da primeira metade do

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Século XX, motivaram uma nova leitura da arquitetura em relação a cidade e ao ambiente.

A crise da cidade moderna (ou "modernizada) trouxe conflitos sociais e distorções físicas que alteraram a imagem, a identidade, o funcionamento e o ambiente de muitos centros urbanos, especialmente latino-americanos. Críticas ao Movimento Moderno e as novas teorias que re-valorizaram a cidade tradicional e subordinaram a arquitetura a ela (1). A consideração da estrutura urbana e de seus componentes espaciais (ruas, praças, parques, etc.), assim como a relação entre seus elementos estruturantes (monumentos) e acompanhantes (tecido urbano), determinam as pautas das intervenções arquitetônicas contemporâneas. Com esta concepção, o objeto arquitetônico deixa de atuar como peça isolada e autônoma e passa a constituir parte da trama ou tecido de cheios e vazios, que definem o organismo urbano. A idéia de que a arquitetura é cidade retoma um conceito presente na história da arquitetura e esquecido pelo Movimento Moderno. A noção de contexto urbano, as pesquisas acerca de tipologias arquitetônicas e urbanas, a re-elaboração de normas de edificação, a inserção de nova arquitetura em áreas históricas ou preexistentes, os conceitos de sustentabilidade em relação ao ambiente, determinam um novo modo de pensar a arquitetura em relação a cidade.(2)

A manipulação plástica de objetos novos inseridos em contextos consolidados e a manifestação contemporânea de técnicas construtivas, princípios de composição e resoluções espaciais em relação com as estruturas preexistentes, determinam os novos desafios das intervenções nas cidades.

A noção de contexto urbano orienta as decisões em relação ao lugar, tanto que as manifestações da tecnologia, da plástica e da espacialidade determinam a contemporaneidade dos novos objetos arquitetônicos. é possível detectar, num sentido geral, uma relação de continuidade, subordinação e harmonia nas inserções de novos edifícios na trama urbana (relação arquitetura-lugar); e uma relação de descontinuidade, ruptura e contraste na resolução específica do projeto (relação arquitetura-tempo).

Os contrapontos entre tradição e modernidade, continuidade e ruptura, harmonia e contraste, subordinação e imposição marcam, nas atuações contemporâneas, as consideração da arquitetura em relação ao lugar e ao tempo respectivamente.

Arquitetura e Paisagem

A implantação de um edifício é uma das decisões fundamentais que determina o sucesso ou o fracasso de uma intervenção arquitetônica. A consideração da

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paisagem orienta as reflexões da arquitetura em relação ao lugar, seja natural ou urbanizado.

A interação plástica entro local existente e arquitetura, e suas conseqüentes transformações morfológicas, produz impactos que alteram positiva ou negativamente a estrutura formal e ambiental de um lugar.

Não existe pior decisão que aquela na qual o terreno perde suas potencialidades e fica desvalorizado com a implantação errada de um edifício. De igual modo, não existe projeto pior que aquele que fica mal orientado, mal ventilado e desperdiçadas suas potencialidade por uma implantação errada.

O terreno ou sitio (seja urbano, suburbano ou rural) sempre comunica algo; sempre possui algum valor que poder ser potencializado para qualificar ou singularizar um edifício. Frente a universalidade de soluções arquitetônicas que possa existir para determinados programas, sempre existe alguma particularidade que possa diferenciar e personalizar o projeto. O lugar é um dos componentes que proporciona sempre argumentos que tendem a particularizar a arquitetura.

Não existe terreno neutro, nem igual ao outro. Geometria, topografia e orientação são atributos básicos que todos os terrenos possuem. é importantíssimo prestar atenção a todas suas características, descobrir suas potencialidades, procurar determinar qual é a vocação do lugar, o que o lugar está pedindo, para que o empreendimento arquitetônico resulte numa mútua valorização: a arquitetura valorizando o lugar e o lugar valorizando a arquitetura. Não existe nunca um projeto igual ao outro, pois cada lugar tem solicitação particulares. A descoberta do espírito do lugar (o genius loci), integrado ao programa arquitetônico, é ponto de partida da atividade projetual.

Podemos afirmar que uma obra pertence a um lugar quando, retirada de la, não entra em nenhum outro terreno, e ao mesmo tempo, o terreno perde qualidade sem o edifício nele implantado. A história da arquitetura tem dado excelentes exemplo a respeito e motiva a constante reflexão ante cada projeto que se empreende.

Arquitetura e Patrimônio

A preservação do patrimônio arquitetônico e a integração de arquitetura nova em edifícios de interesse patrimonial constituem um dos capítulos mais interessantes da história da arquitetura contemporânea. Os inúmero exemplos construídos nos últimos 40 anos determinam a importância e a vigência deste tipo de projetos e seu aporte a História da Arquitetura (3), e revelam um rico campo de atuação profissional, onde a reflexão acerca dos conceitos de tempo histórico e tempo presente, entre tipologia original e obra de nova planta, entre

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tecnologia passada e presente, entre significado histórico e a re-semantização contemporânea, motivam soluções ricas e criativas, que superam certos códigos projetuais das obras convencionais e induzem a novos campos de configuração morfológica e espacial. Os projetos não atuam como peças autônomas, segundo a ideologia do Movimento Moderno. Eles tem que interagir com a arquitetura existentes, e essa interação sugere particularidades que diferenciam e personalizam o novo edifício.

Diferentes estratégias são aplicadas para diferentes problemáticas: conservação (manutenção das características originais do edifício), reabilitação (volta as características originais perdidas), re-funcionalização (adaptação a novas funções), etc. Em todas elas, a arquitetura existentes define o lugar, em quanto a intervenção nova reflete o tempo, a contemporaneidade da atuação.

É importante destacar o conceito atual que considera o patrimônio como organismo vivo e dinâmico. Os critérios para sua preservação assumem essa dinamicidade, incorporando-os à vida e às necessidade atuais, somando e completando novas etapas com à rica história dos edifícios e das cidades com as intervenções contemporâneas. Atitudes estáticas e conservacionistas não conseguem adequar novas atividades a contextos ou edifícios existentes, e assumem o risco de fazer, hoje, as intervenções de imitação de linguagem e de técnicas construtivas passadas, distorcendo e falseando o normal desenvolvimento da história. Impõe-se, neste tipo de casos, a definição de acertados critérios, tanto de intervenção quanto de valorização, que dinamizem os edifícios e a cidade com a incorporação de elementos contemporâneos, que são tão históricos quanto a arquitetura preservada ou valorizada.

A consideração do patrimônio para a definição de um novo projeto coloca o projetista em uma encruzilhada entre tempos passado e futuro, entre herança e legado. O edifício histórico é testemunha ou relíquia da cultura do lugar. Cada nova construção em relação com a existente, se é assumida com critérios de transcendência e significado cultural, é o germe do patrimônio do futuro. O respeito pela herança cultural, assim como o compromisso com o legado para as outras gerações, representam um desafio que envolve o tempo presente com o lugar qualificado pelas testemunhas do passado.

A possibilidade de criar um diálogo entre tempos presente e passado através da arquitetura, assim como a oportunidade de construir um legado, uma testemunha genuína do nosso presente, são experiências ue marcam profundamente o trabalho do arquiteto. Nestas circunstâncias, os conceitos de tempo e lugar assumem um rol preponderante na definição da arquitetura como produto cultural transcendente.

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Arquitetura e Tecnologia

A tecnologia é um dos argumentos mais sólidos para representar o espírito do tempo. A manipulação de técnicas construtivas sempre tende a manifestar a contemporaneidade, e assume compromissos com o lugar quando aplicam-se essas técnicas com os materiais locais. A tecnologia aplicada nestes materiais locais e associada à criatividade na expressão plástica constitui um excelente suporte para fazer uma arquitetura fortemente imbuída do espírito do tempo e do lugar.

Existe uma constante histórica de submissão da expressão plástica da arquitetura à tecnologia. Ao longo da história, a definição dos estilos e a formalização da arquitetura foram sempre conseqüência de sua capacidade e possibilidade de ser construída. Todos os elementos da arquitetura (pilares, muros, arcos, abóbadas, cúpulas, frontões, pilastras, colunas, vigas, etc.) são, em primeira instância, soluções técnico-construtivas. As relações de proporções entre eles e a composição determinam uma ordem. A repetição e a evolução dessa ordem definem um estilo, que muda quando mudam os materiais, as técnicas ou os princípios compositivos. A essência da arquitetura está nessa manipulação de elementos construtivos com uma finalidade plástica ou estética.

Existe um universo geral de soluções construtivas para os problemas da arquitetura. Excetuando algumas correntes contemporâneas, onde a tecnologia fica subordinada à plástica (4), à viabilidade técnica é sempre determinante da estrutura formal da arquitetura. Ao assumir materiais e técnicas locais, possibilidades de relacionar a arquitetura com o lugar aumentam. Nesse caso, o espírito do tempo expressa-se na plástica, na composição desses materiais com um senso de contemporaneidade.

É possível detectar uma relação de tradição e continuidade na atitude de utilizar materiais e técnicas locais, e uma relação de ruptura e contemporaneidade ao resolvê-los com a plástica contemporânea. Do mesmo modo, podem-se utilizar técnicas e materiais atuais com os princípio de composição tradicionais. Na dialética entre continuidade e ruptura, entre tradição e contemporaneidade estão algumas chaves que permitem transferir aos projetos atuais o espírito do tempo e do lugar com a tecnologia.

Projetar e construir com o senso de transcendência não é tarefa fácil. Exige um grande vocação, assim como um firme compromisso com a cultura do lugar e com a disciplina. O conhecimento da história da arquitetura, assim como as permanentes análises críticas constituem pontos de partida essenciais para uma produção contemporânea e comprometidamente local.

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Norman Foster adverte acerca da situação paradoxal do momento atual (5) "...justamente na época da história em que a tecnologia permite que as construções sejam mais emocionantes do que nunca existam tantas que sejam tão insípidas e degradantes..." As reflexões que aqui se apresentam não são verdades absolutas. Elas são pensamentos que pretendem estimular ao leitor a refletir acerca da produção que degrada nossas cidades e paisagens e a procurar algumas chaves que conduzam ao melhoramento da qualidade de vida social.

Casa da cascataFrank Lloyd WrightPennsylvania, EUA, 1935-39

A interação entre arquitetura e lugar é tão forte que a casa, retirada do lugar, não seria possivel de ser colocada em nenhum outro lugar. De igual modo, osítio perderia valor sem a arquitetura.

Torres del ParqueRogelio SalmonaBogotá, Colombia, 1963-71

A relação espacial e geométrica entre a nova arquitetura, a praça de toros e o Parque integra os edifícios ao contexto e valoriza e singulariza a paisagem urbana

A relação entre a arquitetura nova e a arquitetura existente propõe um partido geométrico e espacial diferenciado.

Laboratório DiagnoseVera Pires, Roberto GhioneCampina Grande, Brasil, 1998-2001

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Condomínio Morada do AtlânticoVera Pires, Roberto GhioneJoão Pessoa, Brasil, 2002

A geometria do terreno localizado a beira mar propõe uma solução plástica singular para condomínio de casas e edifícios de apartamentos.

Casa de cháÁlvaro SizaLeiça da palmeira, Portugal, 1958-63

A aparente irracionalidade na resolução da planta encontra sentido quando se detecta a perfeita integração da arquitetura com o lugar

Edifício Benettivera Pires, Roberto Ghione, carmem MayrinckRecife, Brasil, 1997-99

A geometria do terreno e uma única árvore existente determinaram o partido arquitetônico deste edifício.A relação espacial e geométrica entre a nova

arquitetura, a praça de toros e o Parque integra os edifícios ao contexto e valoriza e singulariza a paisagem urbana

Pousada caravelas de PinzonVera Pires, Roberto GhionePraia de Gaibú, Brasil, 2001