Arquivologia e Pós-modernismo novas formulações para velhos conceitos Terry Cook

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  • Informao Arquivstica, Rio de Janeiro, RJ, v. 1, n. 1, p. 123-148, jul./dez. 2012

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    Arquivologia e Ps-modernismo: novas formulaes

    para velhos conceitos

    Terry Cook

    [email protected]

    University of Manitoba, Canada.

    Resumo: Processo em vez de produto, se tornando em vez de ser, mais dinmico do que

    esttico, contexto em vez de texto, refletindo tempo e lugar em vez de absolutos

    universais - estas tm se tornado as palavras de ordem ps-modernas para analisar e

    entender cincia, sociedade, organizao e negcios, entre outras. Estas deveriam

    tambm se tornar as palavras de ordem para a Arquivologia no novo sculo, bem como

    o fundamento para um novo paradigma conceitual relativo profisso. O Ps-

    modernismo no a nica razo para reformular os principais preceitos da

    Arquivologia. Mudanas significativas no objetivo dos Arquivos como instituies e a

    natureza dos documentos arquivsticos so outros fatores que, combinados com

    percepes Ps-modernas, formam a base da nova percepo dos Arquivos como

    documentos arquivsticos, instituies e profisso na sociedade. Este ensaio explora a

    natureza do Ps-modernismo e da Arquivologia e sugere ligaes entre ambos. Delineia

    duas mudanas amplas no pensamento arquivstico que sustentam o deslocamento do

    paradigma arquivstico, antes de sugerir novas formulaes para os conceitos mais

    tradicionais da Arquivologia.

    Palavras-chave: Arquivologia, governana, ps-modernismo, memria social.

    Archival Science and Postmodernism: new formulations for old concepts

    Abstract: Process rather than product, becoming rather than being, dynamic rather than

    static, context rather than text, reflecting time and place rather than universal absolutes

    these have become the postmodern watchwords for analyzing and understanding science, society, organizations, and business activity, among others. They should

    likewise become the watchwords for archival science in the new century, and thus the

    foundation for a new conceptual paradigm for the profession. Postmodernism is not the

    only reason for reformulating the main precepts of archival science. Significant changes

    in the purpose of archives as institutions and the nature of records are other factors

    which, combined with postmodern insights, form the basis of the new perception of

    archives as documents, institutions, and professions in society. This essay explores the

    nature of postmodernism and archival science, and suggest links between the two. It

    outlines two broad changes in archival thinking that underpin the archival paradigm

    shift, before suggesting new formulations for most traditional archival concepts.

    Keywords: archival science, governance, postmodernism, social memory.

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    papel da Arquivologia num

    mundo Ps-moderno desafia

    arquivistas em toda parte a

    repensar a sua disciplina e prtica1. Uma

    profisso enraizada no Positivismo do

    sculo XIX, muito mais do que em

    estudos anteriores ligados Diplomtica,

    resultou em estratgias e metodologias

    que j no so viveis num mundo ps-

    moderno e computadorizado2. At Ar-

    1 Sinto-me honrado por ter sido convidado

    pelos editores desta revista [Archival Science,

    onde o texto foi publicado originalmente.

    Nota do Revisor] a apresentar nesta edio

    inaugural a minha viso sobre o estado da

    Arquivologia, o curto espao de tempo torna

    este artigo uma reflexo pessoal em vez de

    uma pesquisa indita sustentada. Eu utilizei

    esta pesquisa como tinha feito anteriormente

    e publiquei em outro lugar, como indico em

    notas subsequentes, fontes das quais em geral

    podem ser encontradas citaes muito mais

    completas. O presente trabalho um ensaio

    sobre a Arquivologia e o Ps-modernismo;

    no h nenhuma pretenso de ter pesquisado

    exaustivamente tudo o que tem sido escrito

    sobre o assunto, mesmo em lngua inglesa.

    Eu gostaria de agradecer a Tim Cook, dos

    Arquivos Nacionais do Canad, pelos seus

    comentrios teis neste ensaio, assim como

    aos comentrios de dois revisores annimos

    da Archival Science; todos os erros e

    interpretaes continuam sendo meus.

    2 Para Positivismo e Arquivos, ver Verne

    Harris, Claiming Less, Delivering More: A

    Critique of Positivist Formulations on

    Archives in South Africa, Archivaria 44

    (outono de 1997):132-141; assim como, pelo

    menos implicitamente, todas as fontes

    escritas por arquivistas sobre a revoluo

    ps-moderna e o seu impacto na profisso,

    muitos dos quais so apresentados na nota 13.

    necessrio prestar ateno crtica

    abrangente sobre as formulaes positivistas

    da Teoria Arquivstica e da Arquivologia por

    quivologia como termo e corpo terico,

    coloca problemas conceituais, bem

    separados do impacto do ps-

    modernismo, que precisam ser es-

    clarecidos nas novas realidades em que

    vivemos e trabalhamos. Essas alteraes

    significam uma mudana paradigmtica,

    como os editores me convidaram a tratar,

    ou a profisso est apenas adaptando os

    seus princpios, como foi feito na-

    teriormente, s novas mdias e tcnicas

    de criao de documentos? Neste ensaio,

    eu confirmo minha resposta dada em

    outro lugar de que uma mudana no

    mbito paradigmtico da Arquivovologia

    est de fato ocorrendo, e vai crescer em

    intensidade no novo sculo para desafiar

    a maneira como os arquivistas pensam e

    fazem seu trabalho3.

    Preben Mortensen, The Place of Theory in

    Archival Practice, Archivaria 47 (Primavera

    de 1999): 1-26.

    3 Ver Terry Cook, What is Past is Prologue:

    A History of Archival Ideas Since 1898, and

    the Future Paradigm Shift Archivaria 43

    (primavera de 1997): 17-63 (uma verso

    menor e menos completa foi tambm

    publicada como Interaction of Archival

    Theory and Practice Since the Publication of

    the Dutch Manual, Archivum (1997) 191-

    214); o ensaio foi reimpresso em P. J.

    Horsman, F. C. J. Ketelaar e T. H. P. M.

    Thomassen (editores), Naar een nieuw

    paradigma in de archivistiek. Jaarboek 1999

    Stichting Archiefpublicaties ('s Gravenhage

    1999), 29-67. Ambos originados de um

    discurso na plenria do Dcimo Terceiro

    Congresso Internacional de Arquivos,

    sediado em Beijing, China, em 1996. Eu j

    tinha usado o termo

    paradigmaanteriormente , em um artigo

    precursor h quase duas dcadas, para sugerir

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    No corao do novo paradigma

    est a mudana que faz com que os

    documentos arquivsticos deixem de ser

    vistos como objetos fsicos estticos e

    passem a ser entendidos como conceitos

    virtuais dinmicos; uma mudana na

    viso dos documentos arquivsticos

    como produto passivo da atividade

    humana ou administrativa para serem

    considerados como agentes ativos na

    formao da memria humana e

    organizacional; ou seja, uma mudana

    igualmente distante de ver o contexto de

    criao dos documentos descansando

    dentro organizaes hierrquicas es-

    tveis, para situ-los dentro de redes de

    fluxo horizontal na funcionalidade do

    fluxo de trabalho. Para os arquivistas, a

    mudana de paradigma requer deixar de

    identificar a si mesmos como guardies

    passivos de um legado herdado, para

    celebrar o seu papel na formao ativa

    da memria coletiva (ou social). Dito de

    outra maneira, o discurso arquivstico

    terico a mudana do produto para o

    processo, da estrutura para a funo, dos

    que pesquisa renovada e estudos contnuos

    para arquivistas sobre histria e o contexto

    dos Arquivos, em oposio ao foco

    profissional centrado na poca em questes

    metodolgicas e tecnolgicas, permitiriam

    que arquivistas e, mais importante, usurios

    de arquivo descobrissem conhecimento e o

    entendimento humanista no mar de

    informao dos acervos arquivsticos; ver

    Terry Cook, From Information to

    Knowledge: An Intelectual Paradigm for

    Archives Archivaria 19 (Inverno de 1984-

    1985): 28-49.

    arquivos para o arquivamento, do

    documento para o seu contexto; do

    resduo natural ou subproduto passivo

    da atividade administrativa para a

    conscientemente construda e ativamente

    mediada arquivizao da memria

    social4.

    Em um mundo em mudana, os

    princpios fundamentais arquivsticos

    somente sero preservados descartando

    muitas das suas atuais interpretaes,

    implementaes estratgicas e aplicaes

    prticas. Pode a princpio parecer

    contraditrio afirmar uma mudana

    paradigmtica, ao mesmo tempo em que

    tambm se sugere que os arquivistas

    deveriam permanecer focados nas suas

    pesquisas eruditas e formulaes tericas

    dos princpios fundamentais tradicionais

    - aqueles centrados na origem, Respect

    des Fonds, contexto, evoluo,

    interrelaes, [e] ordem dos

    4 Para arquivizao e sua exposio por

    Jacques Derrida em Mal de Arquivo, ver Eric

    Ketelaar, Archivalisation and Archiving,

    Archives and manuscripts 27 (maio de 1999):

    54-61; e (sem o termo) Tom Nesmith, Still

    Fuzzy, But More Accurate: Some Thoughts

    on the 'Ghosts of Archival Theory,

    Archivaria 47 (primavera de 1999): 136-150;

    assim como muitas das fontes descritas na

    nota 13 sobre o Arquivo Ps-moderno. A

    mais completa anlise publicada sobre

    Derrida por um arquivista est em Brien

    Brothman, Declining Derrida: Integrity,

    Tensegrity, and the Preservation of Archives

    from deconstruction, Archivaria 48 (outono

    de 1999): 64-88.

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    documentos5. A referncia aos princpios

    fundamentais arquivsticos no soa como

    uma radical mudana de paradigma!

    Porm, os resultados de pesquisas

    realizadas por arquivistas preocupados

    com estes fundamentos tradicionais, so

    agora to diferentes das suposies que

    dominaram a profisso durante a maior

    parte dos dois sculos passados, que eu

    acredito que uma mudana de paradigma

    est realmente ocorrendo.

    Thomas Kuhn articulou a ideia de

    uma mudana de paradigma em A

    Estrutura das Revolues Cientficas, de

    1962. Ele argumentou que uma mudana

    radical ocorre no quadro interpretativo

    para qualquer teoria cientfica, que

    chamou de mudana paradigmtica,

    quando as respostas para as questes das

    pesquisas no mais explicavam

    suficientemente os fenmenos sendo

    observados (no caso da Arquivologia, a

    informao registrada e seus criadores)

    ou quando as metodologias prticas

    baseadas na teoria de tal observao no

    funcionam mais (como certamente no

    funcionam para muitas atividades

    arquivsticas, e no apenas lida com

    documentos eletrnicos). O foco nas

    perguntas e pesquisas, portanto,

    permanece tradicional numa mudana

    de paradigma, mas no as respostas. E

    assim acontece com os arquivos.

    5 Cook, From Information to Knowledge:

    An Intellectual Paradigm for Archives, 49.

    Este ensaio vai explorar a

    natureza do Ps-modernismo e da

    Arquivologia e sugerir ligaes entre

    ambos. Ir descrever brevemente duas

    amplas mudanas no pensamento

    arquivstico que sustentam o

    deslocamento paradigmtico, antes de

    sugerir novas formulaes para os

    tradicionais conceitos em Arquivologia.

    Todas as trs dimenses deste ensaio so

    perspectivas diferentes da mesma

    mudana paradigmtica na Arqui-

    vologia.

    Ps-modernismo e cincia arquivstica

    A mentalidade ps-modernista

    afeta os arquivos de duas maneiras. Ns

    vivemos numa era ps-modernista de

    discusso terica, gostemos ou no.

    Comeando numa anlise arquitetnica e

    evoluindo da crtica filosfica e literria

    francesa ps-Sartre, o ps-modernismo

    tem crescido e influenciado quase todas

    as disciplinas, desde a histria at a

    literatura, a psicanlise, a antropologia;

    da anlise cartogrfica ao filme,

    fotografia, estudos da arte, e sem falar na

    influncia do Feminismo e da Teoria

    Marxista, que por sua vez tem mudado

    muitas disciplinas. O educador-

    arquivista Terry Eastwood observou que

    necessrio entender o meio poltico,

    econmico, social e cultural de qualquer

    sociedade para entender seus arquivos,

    acrescentando que as ideias existentes

    sobre arquivo, num dado momento, no

    so, seno, uma reflexo das mais

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    amplas correntes da histria

    intelectual6. Seguindo esta lgica, a

    tendncia intelectual dominante desta era

    o ps-modernismo, e isso neces-

    sariamente afeta os arquivos. Os

    arquivistas devem comear a especular

    como e por que, e mudar adequadamente

    suas formulaes da Arquivologia.

    O segundo, e mais direto,

    impacto do ps-modernismo se baseia na

    especulao sobre a natureza de textos

    histricos e de outros textos. O maior

    pensador ps-moderno vivo, Jacques

    Derrida, publicou O Mal de Arquivo em

    1995/96 para tratar explicitamente do

    arquivo e seu significado na sociedade, e

    uma onda de estudos seguiram-se na

    6 Terence M. Eastwood, Reflections on the

    Development of Archives in Canada and

    Australia, in Sue McKemmish e Frank

    Upward, ed., Archival Documents: Providing

    Accountability Through Recordkeeping

    (Melbourne, 1993), 27. Ver tambm Barbara

    Craig, Outward Visions, Inward Glance:

    Archives History and Professional Identity,

    Archival Issues: Journal of the Middle West

    Archives Conference 17 (1992): 121. A mais

    completa argumentao sobre pesquisa,

    escrita, e leitura e conhecimento para os

    arquivistas est em Richard J. Cox, On the

    Value of Archival History in the United

    States (originalmente 1988), in Richard J.

    Cox, American Archival Analysis: The

    Recent Development of the Archival

    Profession in the United States (Metuchen,

    N. J., 1990), 182-200. Ver tambm os

    argumentos (e exemplos) em toda parte de

    Cook, What is Past is Prologue: A History

    of Archival Ideas Since 1898, and the Future

    Paradigm Shift.

    esteira de Derrida7. O ps-modernismo

    est, assim, preocupado com a criao e

    natureza dos documentos e suas

    designaes, sobrevivncia e pre-

    servao como arquivos. Muitos crticos

    ps-modernistas tambm abordaram

    explicitamente os Arquivos como

    instituies e seu rol na formao da

    memria oficial ou sancionada do

    Estado. importante distinguir aqui o

    impacto do ps-modernismo e da

    informtica nos documentos e,

    finalmente, na Arquivologia. Derrida

    certamente diria que as perguntas mais

    radicais que esto sendo feitas hoje sobre

    os Arquivos, estimuladas pelos

    documentos eletrnicos e meio-

    ambientes virtuais, so igualmente

    aplicveis a toda tradio ocidental de

    escrita e produo documental: a

    instabilidade do texto e das relaes

    autor-texto, ou a sombra fantasmagrica

    do rasto de atividades passadas, so

    talvez mais aparentes com mdia

    eletrnica, mas tm sido de fato uma

    realidade persistente desde que a

    linguagem e a escrita comearam a ser

    usadas.

    7 Jacques Derrida, Mal de Arquivo: Uma

    Impresso Freudiana (Chicago e Londres,

    1996, publicado originalmente na Frana em

    1995, sobre palestras em 1994). Duas edies

    da revista History of the Human Sciences, 11

    (Novembro de 1998) e 12 (Fevereiro de

    1999), foram dedicadas a ensaios feitos por

    quase vinte acadmicos em The Archive.

    Nenhum era arquivista e muito poucos

    artigos de arquivistas foram citados.

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    O problema com o ps-mo-

    dernismo , claro, a definio. Ele afeta

    tantos aspectos da sociedade hoje, que

    pode significar qualquer coisa de-

    pendendo da perspectiva e disciplina da

    qual fale um especialista. O campo do

    ps-modernismo est cheio de paradoxos

    e ironias, desde Michel Foucault

    ancorando textos em realidades de poder

    scio-polticos e histricas, para

    entender sistemas de conhecimento

    organizado e suas hegemonias dis-

    cursivas, at Jacques Derrida

    desconstruindo ou desmontando aqueles

    mesmos sistemas, incluindo a prpria

    linguagem sobre a qual se apoiam. A

    Teoria da Informao abrigada sob o

    ps-modernismo, fica ainda mais

    complicada, pois abrange filosofia,

    lingustica, semitica, estruturalismo,

    hermenutica e iconologia, alm do

    marxismo e o feminismo. Mesmo

    correndo o risco de fazer uma grosseira

    simplificao, eis aqui algumas

    formulaes gerais ps-modernistas,

    enfatizando, claro, para esta revista, suas

    implicaes para os arquivos, e seu

    impacto na Arquivologia.

    O ps-moderno desconfia e se

    rebela contra o moderno. A noo de

    verdade universal ou conhecimento

    objetivo baseada nos princpios do

    racionalismo cientfico do Iluminismo,

    ou no emprego do mtodo cientfico ou

    da anlise textual clssica, descartada

    como quimera. Atravs de uma anlise

    lgica impiedosa, os ps-modernistas

    revelam a ilgica de textos alegadamente

    racionais. O contexto por trs do texto,

    as relaes de poder que modelam o

    patrimnio documental, e at a estrutura

    do documento, o sistema de informao

    residente e as convenes narrativas, so

    mais importantes que a coisa objetiva em

    si ou o seu contedo. Fatos em textos

    no podem ser separados da sua atual ou

    passada interpretao, nem o autor do

    assunto ou o pblico, tampouco o autor

    da sua obra, ou obra do contexto. Nada

    neutro. Nada imparcial. Nada

    objetivo. Tudo moldado, apresentado,

    representado, reapresentado, simbo-

    lizado, significado, assinado, construdo

    pelo orador, fotgrafo, escritor, com um

    propsito definido. Nenhum texto um

    mero e inocente subproduto da ao,

    como Jenkinson afirmava; ao invs,

    trata-se de um produto conscientemente

    construdo, embora essa conscincia

    possa estar to transformada em padres

    semiconscientes ou at inconscientes de

    comportamento social, processo de

    organizao e apresentao de in-

    formao, que a conexo com a

    realidade externa e as relaes de poder

    ficam muito escondidas. Os textos

    (incluindo imagens) so todos uma

    forma de narrao muito mais

    preocupada com a construo de

    consistncia e harmonia para o autor,

    melhorando posio e ego, em

    conformidade com as normas de

    organizao e os padres de discurso

    retrico, do que com evidncias de atos e

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    fatos, ou enquadramentos jurdicos ou

    legais. E no existe apenas uma narrativa

    numa srie ou coleo de documentos,

    mas muitas narrativas e histrias,

    servindo a muitos propsitos para muitos

    pblicos, atravs do tempo e do espao.

    O tom ps-modernista de uma

    dvida irnica, de desconfiana, de

    sempre olhar sob a superfcie, de

    perturbar a sabedoria convencional. Os

    ps-modernistas tentam desnaturalizar o

    que a sociedade assume como natural, o

    que tem sido aceito durante geraes, ou

    mesmo sculos, como normal, natural,

    racional, comprovado simplesmente o

    jeito que as coisas so. O ps-

    modernismo toma tais fenmenos

    naturais- como quer o patriarcado, o

    capitalismo, os cnones ocidentais da

    boa literatura, ou os Arquivos- e declara

    que eles so antinaturais, ou

    culturais, ou construdos, ou feitos

    pelo homem (usando homem

    deliberadamente), e precisam de

    pesquisa e anlise profundas8.

    8 Parece no haver motivo para citar aqui

    uma prateleira completa de livros ps-

    modernistas. No entanto, alm da

    metodologia histrica e anlise prprias de

    Foucault, e o volume seminal de Derrida, a

    minha compreenso do ps-modernismo deve

    muita a uma precoce exposio ao trabalho

    da acadmica canadense Linda Hutcheon,

    The Politics of Postmodernism (Londres e

    Nova Iorque, 1989), e Potica do Ps-

    modernismo: Histria, Teoria e Fico

    (Nova Iorque e Londres, 1988), e claro aos

    artigos daqueles poucos arquivistas

    (felizmente crescendo em nmero) que

    Algumas dessas generalizaes

    sobre ps-modernismo so apoiadas por

    uma crescente literatura sobre a histria

    dos Arquivos - infelizmente no escrita,

    em geral, por arquivistas. Jacques

    LeGoff observa que o documento no

    objetivo, nem matria prima inocente,

    mas expressa o poder passado [ou

    presente] da sociedade sobre a memria

    e sobre o futuro: o documento o que

    fica. O que a verdade de cada

    documento a verdade dos arquivos

    coletivamente. No por acaso que os

    primeiros arquivos foram aqueles

    vinculados ao poder na antiga

    Mesopotmia, no Egito, na China e na

    Amrica pr-colombiana seja nos

    centros de poder da religio, dos templos

    e sacerdotes; dos negcios, comrcio e

    contabilidade, ou dos reis, imperadores e

    faras. A cidade capital nesta e, em

    posteriores civilizaes, se torna, nas

    palavras de LeGoff, o centro de

    polticas de memria onde o rei

    implanta, em todo o territrio que ele

    reina, um programa de lembranas onde

    ele o centro. Primeiro a criao e

    depois o controle da memria levam ao

    controle da histria, da mitologia e, em

    ltima anlise, do poder9. Estudiosas

    exploraram em vez de ignorar o ps-

    modernismo, com descritos na nota 13.

    9 Jacques Le Goff, Histria e Memria,

    traduzido [para o ingls] por Steven Rendall e

    Elizabeth Claman (Nova Iorque, 1992) p.

    Xvi-xvii, 59-60, e passim.

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    feministas, como Gerda Lerner em seus

    trabalhos pioneiros, demonstraram

    convincentemente que o poder por trs

    dos primeiros documentos, arquivos e

    memrias foi impiedosa e inten-

    cionalmente patriarcal: as mulheres

    foram deslegitimadas pelo processo de

    arquivamento no mundo antigo, um

    processo que continuou at este sculo10

    .

    Agora esto surgindo muitos exemplos

    de arquivos coletados e mais tarde

    Curiosamente, um dos mais importantes

    questionadores da arquivstica ortodoxa e

    principal defensor dos arquivos virtuais e de

    perspectivas interinstitucionais deu, como

    ttulo a sua primeira exposio importante,

    algo que lembra muito os temas de Le Goff:

    ver Helen Willa Samuels, Whio Controls the

    Past, American Archivist 49 (Primavera de

    1986): 109-124.

    10 As acadmicas feministas tm plena

    conscincia dos caminhos que o sistema de

    linguagem, a escrita, o registro de

    informaes, e a preservao dessas

    informaes so baseados na sociedade e no

    poder, tanto agora quanto em milnios

    passados. Por exemplo, ver Gerda Lerner,

    The Creation of Patriarchy (Nova Iorque e

    Oxford, 1986) p. 6-7, 57, 151, 200 e passim;

    e Riane Eisler, O Clice e a Espada (So

    Francisco, 1987) p. 71-73, 91-93. O mais

    recente estudo de Lerner, The Creation of

    Feminist Consciousness: From the Middle

    Ages to Eighteen-seventy (Nova Iorque e

    Oxford, 1993), detalha cuidadosamente a

    excluso sistemtica das mulheres da histria

    e dos arquivos, e as tentativas das mulheres,

    comeando no final do sculo dezenove, de

    corrigir isto criando arquivos de mulheres:

    ver especialmente o captulo 11, The Search

    for Womens History. Ver tambm Bonnie

    G. Smith, Gnero e Histria: Homens,

    Mulheres e a Prtica Histrica (Cambridge

    MA e Londres, 1988).

    extrados, reconstrudos, at destrudos

    , no para manter a melhor evidncia ju-

    rdica de transaes legais ou

    comerciais, mas para servir a propsitos

    histricos e sacro/simblicos, porm

    somente para aquelas figuras e eventos

    julgados merecedores de celebrao, ou

    de lembrana, dentro do contexto do seu

    tempo11

    . Mas quem merecedor? E

    quem determina o merecimento? De

    acordo com quais valores? E o que

    acontece quando os valores e o seu

    determinador mudam ao longo do

    tempo? E quem considerado no

    merecedor e esquecido, e porqu?

    Exemplos histricos, em resumo,

    sugerem que no h nada neutro,

    objetivo ou natural neste processo de

    lembrana e esquecimento.

    Em ltima instncia os ps-

    modernistas tm uma profunda

    ambivalncia sobre o documento.

    Enquanto duvidam da verdade histrica,

    enquanto percebem os arquivos como

    meros rastos de universos de registros e

    atividades, hoje perdidos ou destrudos;

    11 Ver, por exemplo, Patrick J. Geary,

    Fantasmas da Lembrana: Memria e

    Esquecimento no Fim do Primeiro Milnio

    (Princeton, 1994), p. 86-87, 177, e

    particularmente o captulo 8; Memria

    Arquivista e a Destruio do Passado e

    passim. Para outros exemplos e numerosas

    citaes, ver Cook, What is Past is

    Prologue, 18, 50. Ns temos o doloroso caso

    em nosso prprio tempo, da deliberada

    destruio de documentos em Kosovo e

    Bsnia para apagar memrias e marginalizar

    pessoas.

  • Terry Cook

    Informao Arquivstica, Rio de Janeiro, RJ, v. 1, n. 1, p. 123-148, jul./dez. 2012

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    31

    enquanto veem os documentos como

    truques de espelhos que distorcem fatos

    e realidades passadas em favor do

    objetivo narrativo do autor/pblico,

    recorrem muitas vezes historia e

    anlises histricas. Michel Foucault

    realizou estudos histricos importantes

    sobre doena mental, criminologia e

    sexualidade humana, por exemplo. Um

    ps-modernista argumenta, exibindo esta

    mesma ambivalncia paradoxal,

    que todos os documentos ou artefatos usados

    pelos historiadores so evidncias no neutras

    para a reconstruo de fenmenos, que supe-

    se, tm alguma existncia independente fora

    deles. Todos os documentos possuem

    informaes e a prpria maneira de t-las ,

    por ela mesma, um fato histrico que limita a

    concepo documentria do conhecimento

    histrico. Este o tipo de percepo que

    conduziu a uma semitica da histria, pois os

    documentos tornam-se sinais de eventos que

    os historiadores transmutam em fatos. Os

    documentos so tambm sinais dentro de

    contextos j semioticamente construdos, que

    dependem de instituies (se forem registros

    oficiais) ou indivduos (se forem narrativas de

    testemunhas oculares).a lio aqui que o

    passado j existiu, mas o nosso conhecimento

    dele transmitido semioticamente.12

    O documento um sinal, um

    significante, uma construo mediada e

    em constante mudana, no um

    receptculo vazio no qual atos e fatos

    so derramados. O modelo positivista

    baseado na integridade de uma

    ressurreio cientfica de fatos do

    passado e do documento como um

    imparcial e inocente subproduto da ao

    est completamente desacreditado. E

    alguns arquivistas esto agora

    12 Hutcheon, Poetics of Posmodernism, 122.

    comeando a explorar as implicaes

    dessas ideias ps-modernas na sua

    profisso13

    . O ps-modernismo no

    13 A primeira meno sobre o ps-

    modernismo (pelo menos em ingls) feita por

    um arquivista no ttulo de um artigo foi de

    Terry Cook, em Electronic Records, Paper

    Minds: The Revolution in Information

    Management and Archives in the Post-

    Custodial and Post-Modernist Era, Archives

    and Manuscripts 22 (Novembro de 1994):

    300-329, do qual dependem muitos dos

    poucos pargrafos anteriores. Os temas

    continuaram no seu What is Past is

    Prologue, j citado. Dois arquivistas

    pioneiros do ps-modernismo, antes de Cook,

    tambm eram canadenses, Brien Brothman e

    Richard Brown. Dentre outros trabalhos, ver

    Brien Brothman, Orders of Value: Probing

    the Theoretical Terms of Archival Practice,

    Arquivaria 32 (Vero de 1991): 78-100; The

    Limits of Limits: Derridean Deconstruction

    and the Archival Institution, Archivaria 36

    (Outono de 1993):205-220; e sua anlise de

    Mal de Arquivo de Jacques Derrida, in

    Archivaria 43 (Primavera de 1997): 189-192,

    cujas ideias so muito mais desenvolvidas no

    seu Declining Derrida: Integrity, Tensegrity

    and the Preservation of Archives from

    deconstruction, Archivaria 48 (j citada); e

    Richard Brown, The Value of 'Narrativity' in

    the Appraisal of Historical Documents:

    Foundation for a Theory of Archival

    Hermeneutics, Archivaria 32 (Vero de

    1991): 152-156; Records Acquisition

    Strategy and Its Theoretical Foundation: The

    Case for a Concept of Archival

    Hermeneutics, Archivaria 33 (Inverno de

    1991-1992):34-56; e Death of a Renaissance

    Record-Keeper: The Murder of Tomasso da

    Tortona in Ferrara, 1385, Archivaria 44

    (outono de 1997): 1-43. Alm dos artigos

    incisivos de Preben Mortensen, The Place of

    Theory in Archival Practice, e Tom

    Nesmith, Still Fuzzy, But More Accurate:

    Some Thoughts on the Ghosts of Archival

    Theory, ambos citados acima da Archivaria

    47 (primavera de 1999) outros arquivistas

  • Terry Cook

    Informao Arquivstica, Rio de Janeiro, RJ, v. 1, n. 1, p. 123-148, jul./dez. 2012

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    necessariamente antittico

    Arquivologia, e um novo tipo de

    Arquivologia ou paradigma ser

    necessrio para provocar um feliz

    casamento entre ambos. Voltemos

    primeiro Arquivologia.

    O que Arquivologia? Em

    certo nvel, o termo e seu significado so

    invisveis ou ilusrios. Em outro, so

    formulados, algumas vezes, de forma

    bastante incompatvel com o pensamento

    canadenses que mostram influncias ps-

    modernistas pelo menos em suas publicaes

    em ingls incluem Bernadine Dodge, Places

    Apart: Archives in Dissolving Space and

    Time Archivaria 44 (Outono de 1997): 118-

    131; Theresa Rowatt, The Records and the

    Repository as a Cultural Form of

    Expression, Archivaria 36 (outono de 1993):

    40 -74; e Lilly Koltun, The Promise and

    Threat of Digital Options in an Archival

    Age Archivaria 47 (primavera de 1999): 114

    135. Os arquivistas ps-modernos no

    canadenses incluem Eric Ketelaar,

    Archivalisation and Archiving, e Verne

    Harris Claiming Less, Delivering More: A

    Critique of Positivists Formulations on

    Archives in South Africa, ambos j citados

    assim como o trabalho complementar de

    Verne Harris: Redefining Archives in South

    Africa: Public Archives and Society in

    Transition, 1990 -1996, Archivaria 42

    (outono de 1996): 6 27 e implicitamente

    pelo menos alguns dos artigos dos

    americanos Margaret Hedstrom, Richard Cox

    e James OToole e dos australianos Frank

    Upward, Sue McKenmish e Brbara Reed.

    Os simpsios e publicaes programados

    para o ano que vem para pesquisar arquivos e

    a construo da memria social ajudaro

    muito a aumentar o nmero e nacionalidades

    dos arquivistas envolvidos na considerao

    das implicaes do ps-modernismo em sua

    profisso.

    ps-moderno. Ambas as questes

    interessam aos arquivistas. Eric Ketelaar

    refere-se Torre de Babel dos

    arquivistas atravs dos pases, idiomas

    e tradies arquivsticas nacionalizadas

    e de culturas arquivsticas enraizadas,

    que causam divises. Nota, ainda, que

    qualquer discurso pressupe en-

    tendimento e compreenso. Parte desse

    entendimento requer trazer essas

    diferenas luz, em vez de neg-las ou

    buscar impor uma universalidade que

    no existe, exceto, talvez, na mente de

    alguns tericos tradicionalistas14

    . Em

    nenhuma rea isso mais necessrio do

    que na Arquivologia. tambm outra

    boa razo para a existncia deste

    peridico!

    Para arquivistas australianos e

    norte-americanos, o termo Arqui-

    vologia to estranho que no tem

    lugar no seu extenso glossrio de

    publicaes. Recentemente, sob o efeito

    de ideias importadas da Europa, tem sido

    mencionado, eventualmente, nos seus

    discursos profissionais 15

    . Para muitos

    14 Eric Ketelaar, The Difference Best

    Postponed? Cultures and Comparative

    Archival Science, Archivaria 44 (outono de

    1997): 142-148, reimpresso in Horsman,

    Ketelaar e Thomassen (editores), Naar een

    nieuw paradigma in de archivistiek. Jaarboek

    1999 Stichting Archiefpublicaties, 21-27.

    15 Ver Lewis Bellardo e Lynn Lady

    Bellardo, A Glossary for Archivists,

    Manuscript Curators and Records Managers,

    Society of American Archivists (Chicago,

    1992); Glenda Acland, Glossary, in Judith

    Ellis, ed., Keeping Archives, segunda edio

  • Terry Cook

    Informao Arquivstica, Rio de Janeiro, RJ, v. 1, n. 1, p. 123-148, jul./dez. 2012

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    arquivistas europeus, em contrapartida,

    a Arquivologia est profundamente

    arraigada em sua postura profissional.

    Como exemplo, trs dos mais

    importantes arquivistas de trs pases

    europeus, que tem usado Arquivologia

    no ttulo de recentes artigos escritos para

    explorar aspectos de seu significado, no

    definem o termo, ou o explicam,

    simplesmente assumem que os seus

    leitores sabem o que eles querem dizer16

    .

    (Port Melbourne, 1993), 459-481. Enquanto

    esses so glossrios dirigidos a agentes da

    prtica, eles refletem participaes de

    tericos e o estado da literatura profissional

    nesse tempo. Arquivologia ganhou

    recentemente maior aceitao como termo na

    Amrica do Norte com base numa maior

    disponibilidade e apreciao da literatura

    arquivstica europeia da ltima dcada, e pela

    influncia de Luciana Duranti, uma

    educadora arquivista canadense da Europa, e

    alguns de seus alunos. Mesmo assim, para

    muitos, o termo ainda provoca discordncias.

    16 claro que os artigos, como um todo,

    explicam implicitamente aspectos da

    Arquivologia. Por isso que foram

    escritos, mas eles no explicitam

    propriamente o termo ou quais aspectos ele

    engloba. Ver Paola Carrucci (Itlia),

    Arquivologia hoje. Princpios, Mtodos e

    Resultados in Odo Bucci, ed., Arquivologia

    no Limiar do Ano 2000 (Macerata, 1992): 55-

    68; Bruno Delmas (France), Qual o estado

    da Arquivologia na Frana hoje, O Conceito

    de documento: relatrio da segunda

    Conferncia de Estocolmo em Arquivologia e

    o conceito de documento. 30-31 de Maio de

    1996 (Riksarkivet, Sucia, 1998): 27-35; e

    Eric Ketelaar (Holanda), The Difference

    Best Postponed? Cultures and Comparative

    Archival Science j citado. Eu adianto estes

    exemplos apenas como sugesto de trs

    escritores bem conhecidos, cujos trabalhos

    estavam na minha estante; no tempo

    Para este inexperiente olhar norte-

    americano, neste tipo de texto o termo

    parece, s vezes, abranger todo o

    conhecimento profissional que constitui

    a disciplina intelectual dos arquivos,

    incluindo teoria arquivstica, histria

    arquivstica, estratgia arquivstica,

    metodologia arquivstica e mesmo a

    diplomtica ou aspectos da gesto

    documental. Porm, a Arquivologia

    parece mais frequentemente equiparada

    por estes escritores ao que os norte-

    americanos pensam como Teoria

    Arquivstica e, mais especificamente,

    com conceitos relativos disposio e

    descrio de arquivos para proteger sua

    provenincia ou integridade contextual.

    Para Oddo Bucci, um terico

    arquivista europeu que define

    Arquivologia muito claramente, co-

    nhecimento arquivstico e Arqui-

    vologia no so a mesma coisa.

    Conhecimento arquivstico a forma

    articulada da prtica diria por vrios

    disponvel para preparar este artigo, eu no

    fiz nenhuma pesquisa sistemtica sobre os

    variados usos de Arquivologia por

    escritores europeus. O francs Bruno Delmas

    pode ser mencionado como o pai da diferena

    entre Arquivologia prtica, descritiva e

    funcional (e talvez a alem Angelika Menne-

    Haritz seja a madrasta). A mais recente

    panormica da Arquivologia europeia, que

    tanto analisa o conceito quanto rastreia seu

    desenvolvimento atravs do tempo, est em

    Theo Thomassen, The Development of

    Archival Science and its European

    Dimension, The Archivist and the Archival

    Science (Landsarkivets i Lund Skriftserie 7)

    (Lund 1999): 75-83

  • Terry Cook

    Informao Arquivstica, Rio de Janeiro, RJ, v. 1, n. 1, p. 123-148, jul./dez. 2012

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    34

    momentos, lugares, usos, mdias e

    valores de arquivos, enquanto que

    Arquivologia a construo sistemtica

    e conceitual do conhecimento

    arquivstico em integridade disciplinar.

    Bucci continua:

    ...ao realizar essa tarefa de elaborao terica,

    a Arquivologia trabalha para canalizar,

    estruturar, organizar sistematicamente e

    estabelecer ordem no conhecimento

    arquivstico. Este ltimo abre o caminho para a

    Arquivologia, mas ainda no a tem nele. Os

    termos no esto, no entanto, destinados a

    permanecer separados sem nunca se encontrar.

    Existe entre ambas uma relao dialtica.

    necessrio que o conhecimento arquivstico se

    transforme por si mesmo em Arquivologia,

    assim como necessrio que a Arquivologia

    elabore conhecimento arquivstico dentro de si.

    Esta dialtica significa que a

    Arquivologia no nem universal nem

    imutvel. Sua vertente tradicional deu

    disciplina a sua inclinao emprica, a

    construiu como cincia descritiva e a

    adaptou ao imperativo da historiografia

    positivista, que visava acumulao de

    fatos, mais do que elaborao de

    conceitos. Essa historiografia positi-

    vista e o empirismo baseado em fatos

    foram desacreditados pelo ps-

    modernismo. Ao reconhecer este fato,

    Bucci assevera que as novas mudanas

    sociais minam hbitos e normas de

    conduta, envolvendo uma quebra com

    princpios que h muito tempo regem o

    processo pelo quais os documentos

    arquivsticos so criados, transmitidos,

    conservados e explorados. Ele conclui

    dizendo que as inovaes radicais nas

    prticas arquivsticas esto se tornando

    cada vez mais incompatveis com a

    continuao de uma doutrina que

    procura permanecer encerrada nos

    baluartes de seus princpios tradicionais

    e que necessrio que a Arquivologia

    saia do seu isolamento, se abra para a

    sociedade e procure numa Teoria da

    Sociedade as garantias de unidade

    (disciplinar) que a Teoria do Estado no

    mais capaz de prover.... Uma Teoria da

    Sociedade pode alternativamente provar

    ser capaz de oferecer categorias

    unificadas em que toda a gama de

    problemas arquivsticos possa ser

    apresentada17. Vrios escritores arqui-

    vistas apoiam Bucci, vendo o contexto

    social, organizacional e funcional da

    criao de documentos e sua manuteno

    como essencial para a disciplina de

    compreenso dos Arquivos para, na

    terminologia de Bucci, informar

    conhecimento arquivstico e dirigir

    melhor a prtica arquivstica. O foco est

    externamente no que eu chamei de ato

    criativo ou inteno de autoria ou

    contexto funcional por trs dos

    17 Oddo Bucci, A Evoluo da Cincia

    Arquivstica e o seu Ensino na Universidade

    de Macerata, in Bucci, ed., Cincia

    Arquivstica no Limiar do Ano 2000, 18, 34-

    35; e Prefcio, 11.

  • Terry Cook

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    35

    documentos mais do que internamente

    nos prprios documentos18

    .

    Luciana Duranti discorda. Ela

    uma arquivista terica, com um p no

    mundo europeu e outro no norte-

    americano, que precisa na sua

    definio de Arquivologia, apesar de que

    a sua definio seja a anttese da de

    Bucci em termos de natureza e

    significncia da Arquivologia19

    .

    Arquivologia, para Duranti, o corpo

    do conhecimento sobre a natureza e as

    caractersticas dos arquivos e do trabalho

    arquivstico sistematicamente orga-

    nizado em teoria, metodologia e prtica

    Em contraste com a Diplomtica que se

    preocupa com o conhecimento

    sistemtico sobre a natureza e as

    18 Cook, What is Past is Prologue, 48.

    Outros grandes escritores da escola social

    ou de arquivizao de pensamentos

    arquivsticos, evidentemente em adio a Eric

    Ketelaar, e eu, incluem, com maior destaque,

    Hans Booms, Helen Samuels, Hugh Taylor,

    David Bearman, Margaret Hedstrom, Rick

    Brown, Brien Brothman, Tom Nesmith,

    Frank Upward, e Verne Harris. No social em

    oposio base estadista para a teoria

    arquivista, ver Cook, What is Past is

    Prologue, 30-36 e abaixo neste ensaio.

    19 Ver Luciana Duranti, Diplomtica:

    Novos usos para uma Velha Cincia [Parte

    Um], Archivaria 28 (Vero de 1989): 8-11

    para as ideias citadas; e sua Arquivologia,

    in A. Kent, Enciclopdia da Cincia da

    Biblioteca e da Informao 59 (1996), 1, 5,

    12. Para uma mais completa caracterizao e

    crtica da viso cientfica de Duranti, ver

    Mortensen, O Lugar da Teoria, 2-3, e

    passim; a sua anlise baseada numa ampla

    leitura na histria e na filosofia da cincia.

    caractersticas de documentos in-

    dividuais, a Arquivologia se aplica as

    sries e fundos, embora ela tambm a

    equipare com a histria da

    Administrao e sua documentao e a

    historia do Direito. A conexo com a

    Diplomtica ntida. A Arquivologia

    constitui a necessria mediao entre a

    teoria diplomtica e sua aplicao a

    casos concretos e reais... Duranti no

    desconsidera o meio ambiente social que

    rodeia a criao de documentos, mas

    para ela, esse contexto encontra-se

    estreitamente definido pela doutrina

    legal e por costumes jurdicos no

    contexto do produtor. Muito mais

    problemtica que essa estreiteza jurdica,

    no entanto, a viso positivista de

    Duranti da cincia, seja Arquivologia

    ou Diplomtica. Ela acredita que seus

    princpios e conceitos so univer-

    salmente vlidos e trazem objeti-

    vidade s pesquisas arquivsticas em

    contextos documentais, cujas carac-

    tersticas ela equipara a ter maior

    qualidade cientfica. Os preceitos da

    Arquivologia encontram sua validade

    em lgica e consistncia internas, mais

    do que no seu contexto histrico, legal

    ou cultural. A Arquivologia um

    sistema autorreferente, totalmente

    autnomo das influncias de concepes

    polticas, jurdicas ou culturais. Isto

    Arquivo como positivismo lgico.

    Tais noes de universalidade,

    autonomia lgica, interiorizao e anti-

    historicidade so o completo oposto do

  • Terry Cook

    Informao Arquivstica, Rio de Janeiro, RJ, v. 1, n. 1, p. 123-148, jul./dez. 2012

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    36

    ps-modernismo. Entre as vises de

    Bucci e Duranti da Arquivologia,

    encontra-se um abismo maior que o que

    separa a viso geral da Arquivologia dos

    europeus de um lado e dos norte-

    americanos e australianos do outro. o

    abismo entre pr-modernismo e ps-

    modernismo. Contudo, muitos arqui-

    vistas se agarram noo pr-modernista

    de Jenkinson, talvez sem a preciso

    consciente da articulao de Duranti,

    mas ainda acreditando (ou esperando?)

    que os arquivistas deveriam permanecer

    como uma espcie de mediador ideal

    neutro, desinteressado e imparcial entre

    criadores e usurios dos documentos20

    .

    20

    Eu reconheo que existe um debate em muitas

    disciplinas sobre o que Modernismo, assim muito importante afirmar a minha posio, que o

    que eu quero dizer por pr-modernismo (e ps-

    modernismo) faa sentido para o leitor. Para

    alguns, o modernismo se ope Idade Mdia e

    tem o seu nascimento no Renascimento; para

    outros, o modernismo est situado no

    racionalismo do Iluminismo e sua rejeio s

    paixes religiosas do sculo anterior. Eu pego a

    viso mais estreita de que Modernismo a

    mentalidade e os valores dominantes em muitas

    disciplinas e artes na primeira metade ou dois

    teros do sculo vinte, em oposio Era

    Vitoriana. Nesta distino, e para uma histria

    intelectual estimulada do Ocidente no sculo

    passado, ver Norman Cantor, The American

    Century: Varieties of Culture in Modern Times

    (Nova Iorque, 1997). Esta aproximao

    complementar distino til de Theo

    Thomassen (in The Development of Archival Science and its European Dimension, j citado) da Arquivologia pr-paradigma (Era Vitoriana),

    Arquivologia clssica desde o Manual dos

    Holandeses de 1898 at os ltimos anos

    (modernismo), e agora o prospecto de um novo

    paradigma para a Arquivologia (ps-

    modernismo). Eu acredito que as trs fases so

    um pouco diferentes: a Arquivologia pr-

    moderna envolve os valores vitorianos (como

    Cantor os define) evidentes na Diplomtica, o

    Manual dos Holandeses, at Jenkinson; a

    Tais vises tradicionais da

    cincia podem ser consideradas

    erradas em dois pontos. Primeiro,

    confundem cincia com cienti-

    ficismo. O crtico social Neil Postman

    escreve sobre pseudocincias como a

    Psicologia, Sociologia ou Administrao

    poderamos adicionar Biblio-

    teconomia, Cincia da Informao e

    Arquivologia? que tentam legitimar o

    seu trabalho aplicando os mtodos de

    pesquisa e anlise lgica da observao

    de objetos naturais (ou fenmenos) das

    cincias fsicas para os assuntos (ou

    fenmenos) sociais, humanos ou

    similares no naturais - como os

    sistemas de informao? para as quais

    eles so inapropriados21

    . Isto feito

    frequentemente, talvez inconscien-

    temente, na esperana de ganhar para

    estas novas profisses o status, respeito,

    poder e cach, antes concedido a

    qumicos, bilogos ou fsicos, par-

    modernista representada por Schellenberg e o

    impacto do pensamento organizacional/gerencial

    em arquivos; e o pensamento arquivstico ps-

    moderno , como diz Thomassen, o novo

    paradigma, a natureza e o impacto de que

    constitui o objeto do presente ensaio. Posto de

    outra forma, os pr-modernistas tinham f no

    documento como refletindo atos e fatos

    empricos, e na Histria da escola de Von Ranke,

    como capaz de interpretar tais documentos para

    chegar realidade objetiva do passado histrico;

    o Modernismo questionou a objetividade da

    Histria, percebendo que haviam diversas

    interpretaes histricas possveis de um mesmo

    conjunto de documentos descrevendo o mesmo

    assunto ou evento; o ps-modernismo questiona

    a objetividade e naturalidade desses documentos.

    21 Neil Postman, Tecnoplio (Nova Iorque,

    1993), 144-163 e passim.

  • Terry Cook

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    ticularmente no campo acadmico.

    Enquanto dois tomos de hidrognio e

    um de oxignio sob as mesmas

    condies fsicas, em qualquer lugar da

    terra em qualquer momento, iro

    produzir uma molcula de gua, dois

    criadores de documentos, na mesma

    funo, e a necessidade de registrar

    evidncias de alguma tarefa ou transao

    idntica em pases diferentes em sculos

    diferentes, nunca produziro o mesmo

    documento de arquivo. A Arquivologia

    moldada sobre as leis universais das

    cincias fsicas colocaria o humano,

    histrico e idiossincrtico fora do

    processo social (manuteno de

    documentos) com o qual est

    inexoravelmente conectada.

    E o segundo erro que as

    cincias fsicas tradicionais, desde

    Popper e Kuhn, sem falar na mais

    recente onda ps-modernista, h muito

    abandonaram as reivindicaes de

    objetividade, neutralidade, impar-

    cialidade, autonomia e universalidade,

    que alguns arquivistas acadmicos e

    muitos praticantes da arquivstica

    ainda mantm. Para qualquer cincia, as

    escolhas de projetos, mtodos e agentes

    da prtica, bem como seus critrios

    educacionais, seus padres de aceitao

    e as razes para excluso e fracasso,

    refletem necessidades e interesses e, de

    forma mais profunda, lutas de poder

    social, de gnero, lingustico, ideolgico,

    poltico e emocional.

    Nossa percepo de arranjo,

    organizao e classificao da infor-

    mao, que central para a

    Arquivologia, revela Michael Foucault,

    reflete a tradicional noo ocidental de

    racionalismo cientfico e positivismo

    lgico. Tais sistemas de organizao da

    informao confrontam os arquivistas,

    no somente nos seus escritrios durante

    as atividades de avaliao, criao de

    documentos ou uso contemporneo, mas

    so impostos pelos prprios arquivistas

    nas suas prticas descritivas internas. A

    lgica aparentemente racional da

    categorizao da informao em tais

    sistemas, explica Foucault, pode seduzir

    os observadores (incluindo os

    arquivistas) a assumir que o que est

    sendo transmitido informao ou fatos

    neutros ou a verdade. Ainda que a

    estruturao de tais sistemas possa

    ocultar ou desvalorizar a mente por trs

    da matria, a inteligncia por trs do

    fato, a funo por trs da estrutura, o rico

    contexto, que ironicamente, os

    arquivistas tm-se dedicado a proteger

    por trs do contedo superficial da

    informao. O ps-modernismo analisa a

    linguagem, metforas, e os padres de

    discurso das palavras, ou o documento,

    ou a totalidade do sistema de

    informao, no contexto do seu tempo e

    lugar, para revelar a mentalidade

    subjacente, as motivaes, e estruturas

    de poder de quem produziu os

    documentos usando estes padres. Os

    Arquivos para Foucault esto ancorados

  • Terry Cook

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    38

    numa teoria social contextual mais do

    que no positivismo cientfico22

    .

    Com a constante necessidade de

    reavaliar, desconstruir e aceitar a

    evoluo da teoria e prtica arquivstica,

    os arquivistas do novo sculo deveriam

    aceitar mais do que negar a sua prpria

    historicidade, ou seja, a sua prpria

    participao no processo histrico.

    Deveriam reintegrar o subjetivo (a

    mente, o processo, a funo) ao objetivo

    (a matria, o produto registrado, o

    sistema da informao) na sua

    22 Em Foucault suas palavras-chave para os

    arquivistas so: As Palavras e as Coisas: uma

    arqueologia das Ciencias Humanas (Nova

    Iorque, 1970, originariamente na Frana em

    1966) e A Arqueologia do Saber (Nova

    Iorque, 1972, originariamente na Frana em

    1969). Uma boa introduo para este

    pensamento Gary Gutting, Michel

    Foucaults Archaeology of Scientific Reason

    (Cambridge, 1989); ver particularmente

    pginas 231-244 para a anlise de Foucault

    sobre documentos. Para um exemplo pioneiro

    da aplicao destas percepes ps-

    modernistas no registro de documentos, ver J.

    B. Harley, Desconstructing the Map ,

    Cartographica 26 (Vero de 1989): 1-20.

    Harley explora o poderoso contexto social

    por trs do mapa, assim como v no mapa

    elementos metafricos e retricos onde antes

    os acadmicos viram somente medidas e

    topografia. Ele demonstrou que a cartografia

    menos cientfica do que o previsto, e

    reflete tanto as preferncias funcionais dos

    seus patrocinadores quanto a face da terra.

    Para anlise e concluso similares de outro

    meio arquivstico, ver Joan Schwartz, We

    make our tools and our tools make us:

    Lessons from Photographs for the Practice,

    Politics and Poetics of the Diplomatics, j

    citada.

    construo terica. E como aqueles

    cientistas contemporneos na vanguarda

    da nova fsica, deveriam abandonar a

    aproximao atomstica (focada nos

    documentos) da velha cincia por uma

    nova cincia baseada na primazia do

    processo onde a dependncia contextual

    do todo seja mais importante que a

    autonomia das partes, e onde a cincia

    esteja situada no seu contexto histrico e

    ideolgico23

    .

    23 Evelyn Fox Keller, Reflections on Gender

    and Science (New Haven e Londres, 1985) p.

    11-12, 5-9, 130 e passim. Ver tambm

    Carolyn Merchant,The Death of Nature:

    Women, Ecology, and the Scientific

    Revolution (Nova Iorque, 1980, 1990) p. xvii,

    xviii. Ela demonstra que as novas teorias da

    termodinmica e do caos tambm servem de

    base para concluses similares sobre

    pensamento contextual, independente e

    baseado em processos. Para um exame

    arquivstico destes assuntos em relao

    natureza ideolgica da cincia, que tambm

    explora as implicaes no trabalho

    arquivstico, ver Candace Loewen, From

    Human Neglect to Planetary Survival: New

    Approaches to the Appraisal of Enviromental

    Records, Archivaria 33 (Inverno de 1991-

    1992):97-98, 100 e passim. As ideias dela

    esto refletidas em parte em Hugh A. Taylor,

    Recycling thePast: The Archivist in the Age

    of Ecology, Archivaria 35 (primavera de

    1993):203-213. As ricas notas nos trabalhos

    de Loewen e Taylor podem guiar aos leitores

    interessados a muitas outras fontes de apoio.

    Dentre muitas anlises histricas mostrando

    que cincia tanto um produto da ideologia

    quanto uma observao desinteressada, ver

    David F. Noble, A World Without Women:

    The Christian Clerical Culture of Western

    Science (Nova Iorque, 1992) ou Margaret

    Wertheim, Pythagoras Trousers: God,

    Physics, and the Gender Wars (Londres,

    1997).

  • Terry Cook

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    Apesar da anlise supra, o ps-

    modernismo e a Arquivologia no

    precisam ser opostos. A preocupao do

    ps-modernismo com os contextos

    semioticamente construdos24 de

    criao de documentos reflete o interesse

    arquivstico de longa data para pela

    contextualidade, pelo mapeamento do

    inter-relacionamento entre o produtor e o

    documento, para a determinao do

    contexto ao ler atravs e por trs do

    texto. Desta forma, os arquivistas podem

    ter sido, sem saber, os primeiros ps-

    modernistas dcadas antes que o termo

    fosse sequer inventado! Alm deste nvel

    inicial de conforto, no entanto, o ps-

    modernismo deveria preocupar os

    arquivistas pelas muitas formulaes

    tradicionais sobre Arquivologia. O ps-

    modernismo, por implicao, questiona

    certas reivindicaes centrais da

    profisso: os arquivistas so neutros,

    guardies imparciais da verdade, nas

    palavras de Jenkinson25

    ; os Arquivos

    como documentos arquivsticos so

    desinteressantes ou inocentes

    subprodutos de aes administrativas; a

    procedncia est enraizada no escritrio

    ou lugar de origem mais do que no

    processo e no discurso de criao; que a

    ordem e a linguagem impostas nos

    documentos atravs do arranjo e

    descrio do arquivo so recriaes sem

    24 Ver nota 12 acima.

    25 Ver discusses e citaes em Cook, What

    is Past is Prologue, 23-26

    julgamento de valor de alguma realidade

    anterior; nossa orientao fixada, fsica,

    focada na estrutura no precisa mudar

    quando confrontada com um mundo ps-

    moderno desestabilizado, virtual,

    descentralizado. A menos que a

    Arquivologia possa se adaptar s

    realidades ps-modernas, a menos que

    ela possa ser centrada numa teoria social

    e numa contextualidade histrica, a sua

    relevncia para a profisso ser cada vez

    mais remota.

    Eu sugiro que a Arquivologia

    olhe as ideias de Arquivo, estratgias e

    metodologias ao longo dos ltimos

    sculos, e de agora em diante, nos

    sculos vindouros, como conceitos que

    esto evoluindo constantemente, at

    mudando, se adaptando continuamente,

    por causa de mudanas radicais na

    natureza dos documentos, estruturas de

    organizao de documentos, culturas

    organizacionais e de trabalho, funes

    sociais e institucionais, preferncias de

    manuteno de documentos individuais e

    pessoais, sistemas institucionais de sua

    manuteno, seus usos contemporneos,

    e as tendncias culturais, legais,

    tecnolgicas, sociais e filosficas mais

    amplas da sociedade.

    Os arquivistas devem ser capazes

    de pesquisar, reconhecer e articular todas

    essas mudanas radicais na sociedade

    para ento tratar conceitualmente do seu

    impacto na teoria, metodologia e prtica

    arquivstica. Esta articulao forma o

    nosso discurso coletivo como profisso,

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    a meta-narrativa que anima a nossa

    prtica diria e, portanto,

    adequadamente o foco da Arquivologia

    no novo sculo.

    Mudanas no pensamento

    Arquivstico

    O ps-modernismo no a nica

    razo para a reformulao dos principais

    preceitos da Arquivologia. Mudanas

    significativas no propsito dos arquivos

    como instituies e na natureza dos

    documentos so outros fatores que,

    combinados com ideias ps-modernistas,

    formam a base da nova percepo dos

    Arquivos como documentos, instituies

    e profisso na sociedade26

    .

    Houve uma mudana acentuada

    na prpria razo pela qual a instituio

    arquivstica existe ou no mnimo

    arquivos pblicos e com financiamento

    pblico, as empresas privadas ou os

    arquivos de corporaes

    reconhecidamente no compartilham

    integralmente estas mudanas. Houve

    uma mudana coletiva, durante o sculo

    passado, de uma justificao jurdico-

    administrativa para os Arquivos

    fundamentada em conceitos de Estado,

    para uma justificativa sociocultural

    fundamentada em polticas pblicas mais

    26 As seguintes discusses refletem minha

    anlise da histria das ideias arquivsticas

    desde o Manual dos Holandeses, com

    apresentado em ibid. Eu no vou repetir aqui

    as extensas notas de referncia dadas l que

    apoiam as concluses deste resumo.

    amplas e de utilidade pblica. Esta

    ampla mudana reflete em parte o

    domnio durante o sculo at muito

    recentemente dos historiadores como a

    fora motriz da profisso e no

    treinamento de arquivistas, e em parte na

    mudana de expectativa dos cidados

    sobre que deveriam ser os arquivos e

    como o passado deveria ser concebido,

    protegido e valorizado. Os arquivos

    foram tradicionalmente concebidos pelo

    Estado, para servi-lo, como parte da sua

    estrutura hierrquica e organizao

    cultural. No deve surpreender que a

    Arquivologia tivesse encontrado sua

    legitimidade inicial em teorias e modelos

    estatais e no estudo das caractersticas e

    propriedades de velhos documentos

    estatais. Os conceitos tericos resultantes

    foram desde ento adotados por

    praticamente todos os outros tipos de

    instituies arquivsticas em todo o

    mundo, incluindo at arquivos de

    colees particulares.

    No comeo do sculo XXI, as

    normas pblicas para arquivos na

    democracia tm mudado funda-

    mentalmente desde o modelo estatal

    inicial: os arquivos so agora, na

    memorvel frase de Eric Ketelaar, do

    povo, para o povo, at pelo povo27

    .

    Enquanto a manuteno da res-

    27 Eric Ketelaar, Archives of the People, By

    the people, For the People, South Africa

    Archives Journal 34 (1992): 5-16, reimpresso

    em Eric Ketellar, The Archival Image.

    Collected Essays (Hilversum, 1997): 15-26.

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    41

    ponsabilidade do governo e da

    continuidade administrativa e a proteo

    dos direitos pessoais continuem sendo

    devidamente reconhecidos como

    objetivos importantes dos Arquivos, a

    principal justificativa do arquivamento

    para a maioria dos usurios e para o

    contribuinte pblico em geral, como

    vemos tambm na maior parte da

    legislao nacional e estatal sobre

    arquivos, repousa no fato do Arquivo ser

    capaz de oferecer aos cidados um senso

    de identidade, localidade, histria,

    cultura, e memria pessoal e coletiva.

    Simplificando, no mais aceitvel

    limitar a definio da memria da

    sociedade apenas ao resduo documental

    deixado (ou escolhido) por poderosos

    produtores de documentos. A res-

    ponsabilidade pblica e histrica

    demanda mais dos Arquivos e dos

    arquivistas.

    Os arquivistas que trabalham

    principalmente em Arquivos nacionais

    ou institucionais precisam comear a

    pensar em termos de processo de

    governana, no apenas na

    administrao dos governos28

    .

    28 Ver Ian E. Wilson, Reflections on

    Archival Strategies, American Archivist 58

    (Outono de 1995): 414-429. Para os

    arquivistas que apenas (e humildemente)

    fazem o que eles pensam que seus

    patrocinadores governamentais querem em

    relao a seus prprios documentos

    institucionais, ou os arquivistas que pensam

    que iro agradar a estes patrocinadores e

    assim mostrar que os arquivistas so bons

    jogadores corporativos dignos da

    Governana inclui ser conhecedor das

    interaes dos cidados com o Estado, o

    impacto do Estado na sociedade, e as

    funes ou atividades da prpria

    sociedade tanto quanto das estruturas

    internas do governo e seus burocratas. A

    avaliao do arquivista e em todas as

    aes subsequentes deveria focar nos

    registros de governana, no somente do

    governo, quando trata com documentos

    institucionais. Esta perspectiva tambm

    complementa melhor o trabalho de

    arquivistas que lidam com Arquivos

    Pessoais ou Privados. Devo acrescentar

    aqui que este relacionamento interativo

    cidado-estado deveria estar refletido em

    outras jurisdies pela interao dos

    membros com sua igreja ou sindicato,

    estudantes com a universidade, clientes

    com uma empresa, e assim por diante

    esta perspectiva mais ampla de

    governana no somente para

    arquivistas que atuam no governo, mas

    para todos os arquivistas.

    O desafio para a Arquivologia no

    novo sculo preservar evidncias

    registradas de governana, no somente

    de governos cumprindo sua funo de

    governar. Esta tarefa agora inclui

    tambm levar os Arquivos para as

    continuidade do financiamento, isto , como

    diz Shirley Spragge, uma renncia muito fcil

    misso e s responsabilidades do arquivista.

    Ver a sua The Abdication Crisis: Are

    Archivists Giving Up Their Cultural

    Responsability?, Archivaria 40 (Outono de

    1995): 173-181.

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    pessoas, ou encoraj-las a vir us-los. Os

    Arquivos no so um parque privado

    onde uma equipe profissional pode

    saciar seu interesse na histria ou na sua

    interao pessoal com historiadores e

    outros estudiosos ou, igualmente, na sua

    inclinao de participar de polticas

    pblicas e na infraestrutura da

    informao de suas jurisdies; so um

    patrimnio pblico sagrado que

    preservam a memria da sociedade que

    devem ser amplamente compartilhados.

    Os arquivistas servem sociedade, no

    ao Estado, mesmo que trabalhem para

    um rgo da burocracia estatal.

    A segunda grande mudana

    arquivstica refere-se aos documentos

    arquivsticos, e especificamente forma

    como Arquivos e arquivistas tm tratado

    de preserv-los autnticos, confiveis,

    como evidncia de ideias e transaes.

    No seu ncleo, a Arquivologia procurou

    compreend-los esclarecendo seu

    contexto ou origem ou sua ordem dentro

    de uma srie ou sistema, mais do que seu

    contedo. Os arquivistas primeiro

    realizaram essa proteo do contexto

    preservando os documentos

    sobreviventes, no mais necessrios

    administrao, no interior do edifcio de

    arquivo, numa custdia ininterrupta, e no

    esquema original (ou restaurado) da

    ordem da sua classificao inicial. Tais

    documentos eram frequentemente

    Fundos Fechados de organizaes

    extintas, ou antigos e isolados

    documentos importantes. A avaliao

    era desconhecida ou desencorajada.

    Defender o contexto fsico original era

    considerado uma parte crtica desta

    proteo. De fato, at a metade do

    sculo, os arquivistas recriavam

    frequentemente a ordem fsica original

    do sistema departamental de registros

    documentais nas pilhas de arquivos

    [permanentes nota do supervisor],

    arquivando novos documentos no lugar

    correto entre seus predecessores j sob

    custdia dos Arquivos [como

    instituies de guarda permanente ou na

    fase de Arquivos Permanentes Nota do

    Revisor].

    O foco agora mudou, passando

    da preservao da prova para sua criao

    e avaliao. Os arquivistas tentam

    preservar documentos em contextos

    confiveis assegurando que eles sejam

    criados inicialmente de acordo com

    padres aceitveis de prova e, indo alm,

    para assegurar que todos os atos e ideias

    importantes estejam documentados

    adequadamente por essa prova confivel,

    em vez de esperar, passivamente, que

    um resduo natural aparea. (Caso

    alguma reorganizao ou integrao

    posterior vier a ser necessria, feito

    agora virtualmente, por classificao

    pelo computador em vez de reorganizar

    fisicamente os arquivos na pilha). Num

    mundo no qual as sries so grandes e

    abertas, num mundo de organizaes

    muito complexas, que mudam com

    rapidez e criam registros volumosos e

    descentralizados em papel, e num mundo

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    de registros eletrnicos com seus

    documentos virtuais e transitrios, as

    bases de dados relacionais de propsitos

    mltiplos, com redes de comunicao

    interinstitucionais, nenhum documento

    arquivstico confivel ir sobreviver para

    estar disponvel para que os arquivistas o

    preservem na maneira tradicional a

    menos que o arquivista intervenha de

    vrias formas em sua vida ativa. Tal

    interveno ir afetar comportamentos

    organizacionais, culturas de trabalho,

    polticas de manuteno dos registros

    documentais e estratgias de desenho do

    sistema, e ativamente escolher (por

    exemplo, avaliar) quais funes,

    processos e tarefas so importantes e

    assim, quais documentos relacionados

    merecem ser preservados

    indefinidamente como Arquivos da

    sociedade tudo isto feito, de

    preferncia, antes que os documentos

    sejam criados. E uma vez que tais

    documentos estejam disponveis para

    serem preservados em Arquivos, se isso

    for desejvel, a confortvel noo do

    valor permanente dos documentos

    nicos de arquivo ao longo do tempo

    tambm requer modificao,

    simplesmente porque o documento

    eletrnico vir a ser ilegvel ou

    incompreensvel a menos que seja

    recopiado e sua estrutura e

    funcionalidade reconfiguradas num novo

    software em poucos anos pelos

    Arquivos. Isto substitui a tradicional

    preservao de arquivo que foca em

    padres adequados para o reparo,

    restaurao, armazenamento e uso do

    meio fsico que era o documento. Com

    os documentos eletrnicos, o meio fsico

    para sua preservao torna-se quase que

    totalmente irrelevante num prazo de

    dcadas ou sculos, dado que os prprios

    documentos migraro adiante antes que

    o meio fsico se deteriore, e assim

    sucessivamente. O que ser importante

    a reconfigurao no novo software ao

    longo do tempo, mantendo assim a

    funcionalidade ou o contexto de prova

    do documento original, e para este

    problema a Arquivologia deve prestar

    cada vez mais ateno.

    Como resultado deste

    desenvolvimento, a Arquivologia deve

    agora encontrar inspirao nas anlises

    funcionais dos processos de criao dos

    documentos e da teoria social

    contempornea, em vez da organizao e

    descrio dos produtos registrados

    encontrados nos arquivos. Como Eric

    Ketelaar concluiu a Arquivologia

    Funcional substitui a Arquivologia

    Descritiva... Somente atravs de uma

    interpretao funcional do contexto que

    circunda a criao de documentos, pode-

    se entender a integridade dos fundos de

    arquivo e das funes dos documentos

    de arquivo no seu contexto orgnico

    original29. Como notara Oddo Bucci, o

    29 Eric Ketelaar, Archival Theory and the

    Dutch Manual, Archivaria 41 (Primavera de

    1996), 36, reimpresso em Eric Ketelaar, The

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    qual apoiou o conceito de Ketelaar, a

    Arquivologia Descritiva foi positivista,

    fsica e moderna; a Arquivologia

    Funcional ser histrica, virtual e ps-

    moderna.

    Novas formulaes para

    Arquivologia

    Para o novo sculo, baseada

    nestas mudanas nos documentos e no

    insight ps-moderno, a Arquivologia

    deveria mudar o paradigma de pesquisa

    da anlise das propriedades e

    caractersticas de documentos

    individuais ou de Sries documentais,

    para uma anlise das funes, processos

    e transaes que geram documentos ou

    as Sries a serem criadas. Com foco no

    processo de criao em vez de em

    produtos, as formulaes tericas

    nucleares sobre arquivos ir mudar. Aqui

    esto oito sugestes que resumem os

    argumentos acima:

    1. Provenincia: O Princpio da

    Provenincia muda sua forma de

    conectar os documentos diretamente

    com um nico lugar de origem, numa

    estrutura organizacional hierrquica

    tradicional, para se tornar um conceito

    virtual e mais elstico, refletindo aquelas

    funes e processos do produtor que

    causaram sua criao, dentro e atravs de

    organizaes em evoluo constante,

    Archival Image Collected Essays (Hilversum,

    1997): 62-63.

    interagindo com usurios em constante

    mudana, refletindo culturas

    organizacionais e gerenciais diferentes, e

    adotando frequentemente convenes

    idiossincrticas de interao humana e

    de trabalho, apropriadas organizaes

    planas, horizontais e (frequentemente) de

    curto prazo. A provenincia, em resumo,

    est vinculada funo e atividade em

    vez da estrutura e o lugar. Torna-se

    virtual em vez de fsica.

    2 Ordem original: A Ordem

    Original muda sua forma de manuteno

    da localizao fsica inicial dos

    documentos num sistema de registro ou

    classificao, para a interveno

    conceitual do software, onde partes dos

    documentos esto armazenadas alea-

    toriamente, sem nenhum significado

    fsico e depois so intelectual ou

    funcionalmente recombinadas, de

    maneiras diferentes, para propsitos

    diferentes, em tempo e lugares

    diferentes, em diversos tipos de ordem,

    para usurios diferentes. As ordens

    refletem usos mltiplos em processos de

    trabalho mais do que em disposies

    fsicas de objetos registrados. Uma

    simples pea de dados pode ser

    ordenada de mltiplas formas para

    refletir usos diferentes para usurios

    diferentes.

    3 Documentos Arquivsticos

    [Record]: As trs partes que compem

    qualquer Documento Arquivstico a

  • Terry Cook

    Informao Arquivstica, Rio de Janeiro, RJ, v. 1, n. 1, p. 123-148, jul./dez. 2012

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    estrutura, o contedo e o contexto que

    tradicionalmente eram assentadas num

    meio fsico nico pergaminho, papel

    ou filme esto agora divididas em

    armazenagens de dados separados e

    talvez em programas de software

    diferentes. Um documento, assim, deixa

    de ser um objeto fsico para virar um

    objeto conceitual de informao,

    controlado por metadados, que

    virtualmente combina contedo, con-

    texto e estrutura para fornecer evidncias

    de atividade ou funo de algum criador.

    Alm disso, como seu uso e o contexto

    muda ao longo do tempo (includo uso

    de arquivo), os metadados mudam e o

    documento e seu contexto so con-

    tinuamente renovados. Eles j no so

    fixos, mas dinmicos. O documento

    arquivstico no mais um objeto

    passivo, um registro de uma evidncia,

    mas um agente ativo desempenhando um

    permanente papel nas vidas dos

    indivduos, organizaes e da sociedade.

    4 Fundos Arquivsticos: Os Fundos

    Arquivsticos, analogamente, mudam de

    um reflexo de alguma ordem fsica

    esttica baseada em regras decorrentes

    da transferncia, arranjo ou acumulao

    de grupamentos de documentos, para

    uma realidade virtual de relacionamento

    que reflete um produtor mltiplo

    dinmico e uma autoria mltipla focada

    na funo e na atividade, que capture

    com maior preciso a contextualidade

    dos documentos arquivsticos no mundo

    moderno30

    .

    5 Arranjo e descrio: estaro

    menos concentradas em entidades e

    grupos de documentos fsicos, que no

    significam nada para a mdia eletrnica

    de qualquer maneira, e em vez disso

    desenvolvero (e compartilharo com os

    pesquisadores) entendimentos con-

    textuais enriquecidos pelos mltiplos

    inter-relacionamentos e usos do meio

    social de sua criao, bem como a

    incorporao de um sistema de

    documentao arquivstica relacional e

    30

    Para repensar a natureza dos Fundos

    Arquivsticos e assim a descrio arquivstica

    como envolvendo relaes virtuais de muitos

    para muitos em vez da tradicional disposio

    fsica e hierrquica das entidades de um para

    muitos, ver Terry Cook, The Concepts of the Archival Fonds in the Post-Custodial Era:

    Theory, Problems and Solutions, Archivaria 35 (Inverno de 1992-1993): 24-37. O pioneiro de tal

    pensamento trs dcadas atrs foi o australiano

    Peter Scott, como delineado no meu What is Past is Prologue, 38-39 (que tem referncias para todas as obras fundamentais de Scott); para

    a ltima atualizao no pensamento descritivo

    australiano (com muitas referncias adicionais),

    ver Sue McKemmish, Glenda Acland, Nigel

    Ward e Barbara Reed, Describing Records in Context in the Continuum: The Australian

    Refordkeeping Metadata System, Archivaria 48 (Outono de 1999): 3-43. Para uma descrio

    baseada nos metadados funcionais do criador em

    vez da disposio fsica, ver David Bearman,

    Documenting Documentation, Archivaria 34 (Vero de 1992): 33-49; e Margaret Hedstrom,

    Descriptive Practices for Electronics Records: Deciding What is Essential and Imagining What

    is Possible, Archivaria 36 (Outono de 1993): 53-62. Para um trabalho alternativo baseado no

    pensamento dos Fundos, agora operacional nos

    Arquivos de Ontrio em Toronto, ver Bob

    Krawczyk, Cross Reference Heaven: The Abandonment of the Fonds as the Primary Level

    of Arrangement for Ontario Government

    Records, Archivaria 48 (Outono de 1999): 131-153.

  • Terry Cook

    Informao Arquivstica, Rio de Janeiro, RJ, v. 1, n. 1, p. 123-148, jul./dez. 2012

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    metadados funcionais do produtor s

    ferramentas descritivas do arquivo

    [permanente. Nota do Supervisor].

    6 Avaliao: continuar a mudar

    deixando de ser uma avaliao

    documental com base no seu valor

    potencial de pesquisa, para virar uma

    anlise de macro avaliao das funes,

    programas e atividades sociais do

    produtor, e a interao cidad com elas

    e, a seguir, a seleo mais sucinta para

    preservao e acesso continuo que reflita

    essas funes, e a busca de (ou criao?)

    fontes do setor privado ou orais e visuais

    para complementar registros ins-

    titucionais oficiais, usando a mesma

    lgica funcional. A Avaliao estabelece

    valores atravs da teoria social

    baseados na narrativa contextual da cria-

    o e no no contedo. Ela prestar o

    mesmo cuidado s vozes marginalizadas

    e at silenciadas que aos textos

    poderosos e oficiais, e procurar por

    provas de governana mais do que de

    governo31

    .

    31 Para uma introduo macroavaliao

    da avaliao das funes e das atividades em

    vez dos documentos , ver Terry Cook, Mind

    Over Matter: Towards a New Theory of

    Archival Appraisal in Barbara Craig, ed.,

    The Canadian Archival Imagination: Essays

    in Honor of Hugh Taylor (Ottawa, 1992), 38-

    70, e o seu The Archival Appraisal of

    Records Containing Personal Information: A

    RAMP Study With Guidelines (Paris, 1991); e

    Richard Brown, Macro-Appraisal Theory

    and the Context of the Public Record

    Creators, Archivaria 40 (Outono de 1995),

    p. 121-172. Abordagens similares foram

    7 Preservao: ir, como dissemos

    antes, no mais focar na reparao,

    conservao e salvaguarda do meio

    fsico em que estava o documento, mas

    em vez disso se concentrar em migrar

    ou emular continuamente os conceitos e

    inter-relaes que agora definem os

    documentos virtuais e fundos virtuais

    para novos programas de software. (

    claro, a conservao e o reparo

    tradicionais continuaro para o legado

    documental de sculos passados).

    8 Arquivos [Archives]: propria-

    mente ditos como instituies iro passar

    gradualmente de lugares de

    armazenamento de documentos velhos,

    que pesquisadores precisam visitar para

    consultar, para se tornar virtuais

    Arquivos sem paredes, existentes na

    internet para facilitar o acesso ao pblico

    milhares de sistemas interligados de

    manuteno de documentos, tanto

    aqueles sob o controle dos Arquivos

    quanto aqueles deixados sob a custdia

    dos seus criadores ou outros arquivos32

    .

    adotadas pelos arquivos nacionais da Holanda

    com seu projeto PIVOT, alm de frica do

    Sul e Austrlia, entre outras jurisdies.

    32 O trabalho de David Bearman tem

    defendido com destaque esta abordagem.

    Para uma viso panormica, ver a sua

    coletnea de ensaios publicada como

    Electronic Evidence: Strategies for

    Managing Records in Contemporary

    Organizations (Pittsburgh, 1994); assim

    como Margaret Hedstrom e David Bearman,

    Reinventing Archives for Electronics

  • Terry Cook

    Informao Arquivstica, Rio de Janeiro, RJ, v. 1, n. 1, p. 123-148, jul./dez. 2012

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    Todas estas mudanas afastam o

    foco terico (e prtico) da Arquivologia

    do documento de arquivo e o empurram

    na direo do ato criativo da inteno de

    autoria ou processo ou funcionalidade

    por trs do registro. Neste mundo novo,

    portanto, o mago do trabalho intelectual

    da Arquivologia deveria estar mais

    centrado no esclarecimento do contexto

    funcional e estrutural dos documentos, e

    sua evoluo ao longo do tempo, na

    construo de sistemas de conhecimento

    capazes de capturar, recuperar, exibir e

    compartilhar esta informao de origem

    conceitual como base de toda tomada de

    decises em arquivos, a partir do projeto

    do sistema de avaliao na frente at a

    programao pblica e atividades de

    disseminao depois.

    Isto faz do arquivista um

    mediador ativo na formao da memria

    coletiva atravs dos Arquivos.

    Records: Alternative Service Delivery

    Options, in Margaret Hedstrom, ed.,

    Electronic Records Management Program

    Strategies (Pittsburgh, 1993), 82-98. A

    primeira afirmao sobre o gerenciamento

    distribudo ou a no abordagem da custdia

    para a preservao de arquivos, foi de David

    Bearman, An Indefensible Bastion: Archives

    as Repositories in the Electronic Age in

    David Bearman, ed., Archival Management

    of Electronic Records (Pittsburgh, 1991), 14-

    24, que gerou muitos arquivos tanto atacando

    quanto apoiando este conceito. No obstante,

    reconhecendo as novas realidades, os

    arquivos nacionais do Reino Unido, Canad e

    Austrlia adotaram polticas para o

    gerenciamento distribudo por outros corpos

    de algumas categorias de documentos

    eletrnicos.

    Inevitavelmente, os arquivistas injetaro

    os seus prprios valores em todas as

    pesquisas e atividades, e assim

    precisaro verificar muito cons-

    cientemente suas escolhas nos processo

    de criao de arquivos e formao de

    memria. Eles tambm precisaro deixar

    provas registradas muito claras

    explicando as suas escolhas para a

    posteridade. Fazendo isto, numa

    perspectiva histrica e sensitiva ps-

    moderna, os arquivistas podero

    equilibrar melhor quais funes,

    atividades, organizaes, e pessoas da

    sociedade, atravs de documentos,

    podem ser includas e quais podem ser

    excludas da memria coletiva do

    mundo.

    Processo em vez de produto, se

    tornando em vez de ser, dinmico em

    vez de esttico, contexto em vez de

    texto, refletindo tempo e lugar em vez de

    absolutos universais: so estas agora as

    palavras de ordem ps-modernas para

    analisar e entender cincia, sociedade,

    organizaes e atividades empresariais,

    entre outros. Elas deveriam tambm se

    tornar as palavras de ordem para a

    Arquivologia no novo sculo, e assim, o

    fundamento de um novo paradigma

    conceitual da profisso.

  • Terry Cook

    Informao Arquivstica, Rio de Janeiro, RJ, v. 1, n. 1, p. 123-148, jul./dez. 2012

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    [Nota do Revisor] Esta uma traduo livre promovida pela Associao dos

    Arquivistas do Estado do Rio de Janeiro - AAERJ, por intermdio do peridico

    Informao Arquivstica. Todos os direitos so reservados Archival Science Journal e

    Springer, que gentilmente cederam os direitos de traduo e publicao no Brasil.

    Cientes do desafio que traduzir um texto de sentido e significado complexos

    optou-se pela traduo livre, no entanto, tonou-se o cuidado de no tentar mudar o

    sentido e contexto dos termos aplicados pelo autor, considerando a tradio arquivstica

    na qual se insere. Deixa-se para o leitor atento e interessado as eventuais interpretaes,

    observao das diferenas de emprego e de sentido entre a Arquivologia brasileira e a

    Norte Americana.

    Cabe ressaltar a dificuldade de t