Arquivos Literários Cadernos Viva Voz

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Cadernos Viva Voz, organizados pelo Laboratório de Edição, da FALE, UFMG.

Citation preview

  • Organizador

    Reinaldo Marques

    Literatura e arquivos literrios

    Belo Horizonte

    FALE/UFMG

    2008

    Diretor da Faculdade de Letras

    Jacyntho Jos Lins Brando

    Vice-Diretor

    Wander Emediato de Souza

    Comisso editorial

    Eliana Loureno de Lima Reis Elisa Amorim Vieira Lucia Castello Branco Maria Cndida Trindade Costa de Seabra Maria Ins de Almeida Snia Queiroz

    Reviso e normalizao

    Aline Sobreira

    Formatao

    Aline Sobreira

    Reviso de provas

    Mrio Vincius Flvia Fidelis

    Capa e projeto grfico

    Mang Ilustrao e Design Grfico

    Endereo para correspondncia

    FALE/UFMG Setor de Publicaes Av. Antnio Carlos, 6627 sala 2015A 31270-901 Belo Horizonte/MG Telefax: (31) 3409-6007 e-mail: [email protected]

  • Sumrio

    Apresentao . 5

    Reinaldo Marques

    O leitor de dirios em O amanuense Belmiro . 7

    Ananda Nehmy de Almeida

    A escrita epistolar e o Suplemento Literrio (1966-69): outras leituras . 22

    Maraza Labanca

    O espao exterior do arquivo . 32

    Rodrigo Santos de Oliveira

  • 5

    Apresentao

    Reinaldo Martiniano Marques

    Em seus dezesseis anos de existncia, o Acervo de Escritores Mineiros da Faculdade de Letras da UFMG j se consolidou como importante espao de produo de conhecimento sobre literatura e cultura. Atestam-no as pesquisas j desenvolvidas e em andamento, as inmeras publicaes e o envolvimento de pesquisadores e estudantes bolsistas, que sempre contaram com o apoio do CNPq e da FAPEMIG. Mas, de modo particular, cabe destacar as novas abordagens e leituras dos textos literrios viabilizadas pelo trabalho com os arquivos dos escritores abrigados no Acervo: Henriqueta Lisboa, Murilo Rubio, Oswaldo Frana Jnior, Abgar Renault, Cyro dos Anjos, Octvio Dias Leite, Wander Piroli, alm das colees especiais.

    Este nmero do Viva Voz apresenta aos professores e estudantes da Faculdade de Letras uma pequena amostra dessas abordagens, selecionando trs estudos de jovens pesquisadores que vm construindo uma trajetria acadmica vinculada ao trabalho nesses laboratrios do escritor que so os arquivos literrios. Os autores participaram do Acervo de Escritores Mineiros como bolsistas de Iniciao Cientfica, durante a graduao, e deram prosseguimento aos seus estudos ingressando no Mestrado em Teoria da Literatura do Programa de Ps-Graduao em Letras Estudos Literrios da FALE, com projetos ligados aos escritores Henriqueta Lisboa, Cyro dos Anjos e Murilo Rubio.

    Os textos aqui publicados evidenciam sobremaneira as potencialidades das pesquisas com os arquivos de escritores para os estudos, seja da recepo crtica das obras dos escritores, seja da correspondncia dos ficcionistas com editores de suplementos literrios, seja ainda da construo da imagem do escritor a partir de seu arquivo, monumentalizada em praa pblica pelo trabalho de um escultor. No primeiro caso, situa-se o texto de Ananda Nehmy de Almeida, ao

    6

    elaborar o dilogo travado entre o escritor Cyro dos Anjos e a recepo crtica de seu romance O amanuense Belmiro, gestado na redao de um jornal, poca de seu lanamento. No caso da correspondncia, desponta a anlise de Maraza Labanca de cartas dos escritores Autran Dourado, Silviano Santiago, Guimares Rosa, Pedro Nava e Nlida Pion endereadas a Murilo Rubio, responsvel pelo Suplemento Literrio do Minas Gerais. Na medida em que tratam do movimento do texto ainda em construo no espao do jornal, essas cartas propiciam outros modos de leitura dos bastidores da criao do texto literrio, destitudas do peso da publicao. Por fim, o artigo de Rodrigo Santos de Oliveira fornece uma leitura instigante da construo da imagem pblica do escritor, valendo-se do exemplo da esttua em homenagem a Henriqueta Lisboa localizada na Praa da Savassi. Leitura que articula a anlise textual, de poemas de Flor da morte, a elementos extratextuais, relacionados ao arquivo literrio e sua exterioridade.

    Nesses artigos vislumbram-se alguns impactos das pesquisas em arquivos de escritores para o campo dos estudos literrios: a relativizao da autonomia e auto-suficincia do texto literrio; a problematizao de categorias como autor e obra, to importantes para uma crtica textual, esttica; o dilogo transdisciplinar, estimulado pelo exame das fontes primrias da pesquisa literria. Apontam para uma produtiva articulao entre elementos textuais e contextuais, entre vida e obra na abordagem da literatura. No mais, fica o nosso convite leitura desses trabalhos, suplementando-os com outras possibilidades de sentido.

  • 7

    O leitor de dirios em O amanuense Belmiro

    Ananda Nehmy de Almeida

    Cyro dos Anjos iniciou a escrita de O amanuense Belmiro com uma srie de crnicas que foram publicadas no jornal A Tribuna sob o pseudnimo de Belmiro Borba. Segundo Newton Prates, essas crnicas teriam desvinculado a figura do escritor do personagem. Na coluna diria do Estado de Minas, assinada por W., Prates critica uma das crnicas de Cyro dos Anjos, que transforma Belmiro em dentista, com consultrio na Serra:

    Dentista, ocupao muito prtica, no era a vocao de Belmiro,

    protestamos exigindo do cronista maior respeito pelas tendncias do

    seu personagem, advertindo-o de que Belmiro Borba j adquiria

    personalidade autnoma, independente, que no podia se submeter

    aos caprichos, s liberdades do seu criador.1

    Seguindo as sugestes, Cyro dos Anjos reconhece a autonomia de seu personagem, retira a placa de dentista da porta de Belmiro e o faz retornar aos contratempos sentimentais e divagaes poticas. Na poca em que o livro comeou a ser esboado, Newton Prates afirma que influenciou outras alteraes no romance, como o envelhecimento de Belmiro para dez anos e o transporte da ao romanesca do Rio de Janeiro para Belo Horizonte.

    O jornalista relata tambm uma situao curiosa. Estudantes cariocas da Faculdade de Filosofia em vsperas de excurso capital mineira o procuraram para que, na sua condio de mineiro, respondesse onde ficava a Rua re, lugar habitado no romance de Cyro dos Anjos pelo personagem Belmiro Borba. Segundo Newton Prates, esse fato teve como conseqncia a incorporao dos lugares onde viveu Belmiro geografia sentimental de Belo Horizonte.

    Philipe Lejeune concebe a autobiografia como um gnero textual que funciona a partir da noo de contrato de

    1 PRATES. Ciro, sessenta anos, p. 2.

    8

    leitura. Revendo a concepo do discurso em Benveniste, Lejeune prope que o leitor utilize o nome prprio como operador de leitura que permite associar a pessoa ao discurso. O nome prprio do autor reenvia o leitor figura de uma pessoa real (escritor), estabelecendo o contrato de leitura j explcito nos elementos pr-textuais do livro.

    O pacto autobiogrfico pressupe a identidade entre o nome prprio do autor, do narrador e do personagem. J o pacto romanesco diferencia o nome prprio dessas trs figuras, ou torna idnticos apenas os nomes prprios do narrador e da personagem. Contudo, o pacto fantasmtico, que consiste na forma indireta do pacto autobiogrfico, retoma os contratos e os pactos de leitura da autobiografia e do romance. Para Lejeune, o espao autobiogrfico delineado a partir do contraste e da aproximao entre o texto autobiogrfico e o romanesco, possibilitando leituras duplas do texto ficcional. Na percepo desse espao, o leitor no l os romances apenas como gnero que mostra a verdade da natureza humana, mas tambm como fantasma revelador de um indivduo, o escritor.2

    Ao escolher o nome prprio do personagem, Cyro dos Anjos produz tambm o espao autobiogrfico no jornal e no livro. O escritor comenta o processo de gestao do personagem: O pseudnimo virou personagem, e personagem-autor, no qual se projetava, em parte, o autor verdadeiro. De pseudnimo converteu-se, assim, em heternimo.3 Inicialmente, nas crnicas de jornal assinadas sob o pseudnimo Belmiro Borba, a composio desse nome prprio configura o pacto autobiogrfico no texto, j que, nesse caso, a funo do nome esconder, do pblico, a figura do autor. Aps a publicao do livro, o pseudnimo se torna o nome do personagem-narrador ou heternimo, desvinculado do nome prprio do autor.

    2 LEJEUNE. Le pacte autobiographique, p. 42.

    3 STEEN. Viver & escrever, p. 16.

  • 9

    O uso da definio de heternimo pelo autor mineiro retoma a posio de Newton Prates, segundo a qual o personagem Belmiro Borba se tornara independente do seu criador. Entretanto, difcil desfazer a associao das figuras do narrador e do autor porque ambos exercem a atividade de escrita, seja no plano ficcional ou na realidade. Para Wander Melo Miranda, o pacto fantasmtico, que reala

    o desdobramento do autor em figuras e personagens diversos,

    permite entrever, j em processo, a noo de autor como um ser de papel, e da autobiografia [...] como uma forma de encenao ilusria de um eu exclusivo.4

    Ao rever Lejeune, Wander Melo Miranda prope que a autobiografia seja caracterizada como um ato de discurso literariamente intencionado, que se define atravs dos mecanismos internos de organizao textual em articulao com a sociedade e a literatura. Cada autobiografia apresenta uma noo de indivduo, que elaborada pelos atos de discurso. Nessa perspectiva, a forma particular de definir a noo de indivduo contribui para o endosso ou desmascaramento da iluso autobiogrfica.

    A composio do personagem-narrador, tanto no jornal como no livro, rompe com a noo de autoria como exclusividade de um escritor, na medida em que outros escritores interferem na criao sugerindo alteraes. Paradoxalmente, o romance retoma a experincia vivida do contexto histrico de Cyro dos Anjos, configurando a iluso autobiogrfica, no gnero romanesco, atravs do pacto fantasmtico.

    Seguindo o conceito de pacto fantasmtico, observa-se que o nome prprio do autor (Cyro) ressoa no pseudnimo (heternimo) Belmiro, mesmo o autor fazendo aluso ao nome do poeta mineiro Belmiro Braga. Cyro dos Anjos afirma, em entrevista Edla Van Steen,5 que a aliterao dos dois

    4 MIRANDA. Corpos escritos, p. 38.

    5 STEEN. Viver & escrever, p. 16.

    10

    bs nasceu da simpatia que lhe inspirou a figura do poeta Belmiro Braga. A aliterao, que um processo comum do autor para elaborar os nomes prprios dos personagens, surge intencionalmente no nome prprio e no sobrenome do narrador.

    A filiao literria de Belmiro est marcada pelo sobrenome Borba, retirado de Quincas Borba, personagem machadiano, assim como possvel perceber a sombra do autor mineiro na escolha do nome prprio do narrador. No caso da filiao literria, Cyro dos Anjos se revela um leitor da tradio seguida por Machado de Assis, que a incorpora ao compor o personagem Belmiro Borba.

    A recepo crtica de O amanuense Belmiro, que, assim como o livro, inicia-se no jornal, lida com o tema da diferena e (ou) da semelhana das escritas de Machado de Assis e Cyro dos Anjos. Ao mesmo tempo, a recepo j esboava uma leitura do pacto fantasmtico ao abordar elementos biogrficos do romance em seus artigos. As influncias literrias, o estilo, a oposio entre os romances psicolgico e social so temas retomados nessas crticas de jornal.

    O artigo Elogio da obra bem escrita, de Eduardo Frieiro, sintetiza os problemas na concepo do conceito de estilo elaborado pelas crticas de jornal. O ttulo do artigo j indica que a obra bem escrita o valor literrio dessa concepo de estilo. Se escrever bem significa ter valor literrio para o crtico Eduardo Frieiro, a mesma caracterstica mal vista por parte da crtica:

    Dizer que algum escreve como Machado de Assis, soa como vituprio,

    na opinio de muitos. Na de outros vale como um grande elogio. Para

    outros, ainda, significa um louvor mitigado.6

    Contudo, Frieiro no se limita a elevar o nome de Cyro dos Anjos categoria de criador j que afirma que a sua escrita segue a obra de Machado de Assis como modelo. Ambos os autores se encaixariam na linhagem que, sem

    6 FRIEIRO. Elogio da obra bem escrita. No paginado.

  • 11

    eliminar o estilo, apresentam uma escrita harmnica e elegante, ou seja, seguem o modelo normativo de escrita proveniente de autores antigos ou at alguns modernos, linhagem oposta a de escritores que, ao romperem com a norma, so classificados como criativos. Ao defender o estilo de Cyro dos Anjos, Frieiro trata do conflito dos intelectuais modernos com a tradio e os valores literrios, defendidos pelos partidrios ou no das inovaes estticas do Modernismo, expondo tambm a sua oposio literatura de carter social:

    Os modernistas brasileiros da revoluo literria de 1922 insurgiram-

    se contra os escritores apurados e as obras bem escritas. Os escritores

    populistas ou proletarizantes, vindos depois, erigiram em princpios de

    arte e linguagem rasteira e a forma desordenada. Os escritores

    acadmicos ou simplesmente corretos foram desprezados e injuriados

    como passadistas.7

    O artigo de Rubem Braga8 segue outra perspectiva referente influncia machadiana e ao romance social. Logo na primeira frase do artigo, Braga apresenta o romance de Cyro dos Anjos como memorial machadiano de um funcionrio pblico de Belo Horizonte envenenado de literatura, e vivendo em um crculo muito estreito de relaes e afetos.9 A semelhana desses autores o gnero memrias, mas a diferena essencial a profisso do narrador em Cyro dos Anjos. Braga marca as diferenas entre os autores a partir do contexto histrico, que avaliado pelo crtico como mais aflito em O amanuense Belmiro; mesmo que o narrador seja indiferente e fuja das aflies sociais, elas invadem a sua toca e conquistam um lugar no seu drama.10

    Assim, o romance de Cyro dos Anjos no apenas psicolgico, mas apresenta aspectos sociais que so esboados pela retomada de elementos do contexto histrico:

    7 FRIEIRO. Elogio da obra bem escrita. No paginado.

    8 BRAGA. O amanuense Belmiro.

    9 BRAGA. O amanuense Belmiro. No paginado.

    10 BRAGA. O amanuense Belmiro. No paginado.

    12

    as aflies tratadas no romance so de um funcionrio pblico que vive s voltas com uma roda de literatos. A descrio desse meio literrio familiar para Rubem Braga, que compe o seu estudo crtico sugerindo o espao autobiogrfico de leitura do romance ao tratar das figuras do livro. Na perspectiva do crtico, os personagens do romance seriam fixados em tipos artificiais como Glicrio, que representa a humanidade banal; Silviano, o homem complicado; Florncio, que conta anedotas; e Redelvim, encarregado de ser comunista.

    O ponto fraco do livro, segundo Rubem Braga, o excesso de explicao dos personagens. Porm, faz a ressalva de que seu estudo foi feito ataboalhadamente e perturbado, porque conhece o meio e as pessoas reais que serviram de modelo e, mais ainda, de sugesto para o livro. Rubem Braga l o espao autobiogrfico do romance, contrastando a escrita de Cyro dos Anjos s figuras reais que compunham o cenrio cultural da roda de intelectuais freqentada tanto pelo prprio crtico como pelo escritor mineiro. Dessa forma, sua leitura crtica exige o pacto autobiogrfico, mas constata a presena do pacto fantasmtico na no verossimilhana dos personagens frente s figuras reais.

    comum a recepo crtica de Cyro dos Anjos apresentar classificaes que diferenciam a produo do Norte, caracterizada como literatura social, da produo do Sudeste e do Sul, mais introspectiva. Mrio de Andrade contrape-se a essa perspectiva, revendo a rgida classificao dos romances. No ttulo de seu artigo, Psicologia em anlise, Andrade discute o critrio de definio do que um romance psicolgico, que ser revisto em suas contradies, ou melhor, seguindo o prprio jargo da Psicologia, ser analisado pelo crtico. Assim, a anlise est presente em romances do norte e do Sul/Sudeste, em Machado de Assis e nos comediantes.

  • 13

    A crtica, ao descrever a psicologia dos personagens, classifica os romancistas em duas categorias: de um lado os autores que preferem fazer psicologia em ao, frases e gestos dos seus personagens, de outro, os que preferem a anlise direta e introspeco, o registro da dinmica fsica independente da ao. Para Mrio de Andrade, que no concebe essas distines como intransponveis, os romances de Rachel de Queiroz e Thelmo Vergara tm momentos de anlise, assim como Jos Lins do Rego, com uma narrativa mais analtica, no deixa de apresentar ao.

    Outro exemplo dos limites da classificao romanesca a comparao, em primeiro lugar, entre Cyro dos Anjos e Graciliano Ramos, que voltam suas escritas para a vida interior, e, em segundo lugar, entre o autor mineiro e a suposta influncia machadiana. A anlise, entretanto, mais caracterstica em Angstia, de Graciliano Ramos, do que em Cyro dos Anjos, que foi influenciado pelo humorismo. Mrio de Andrade questiona a tendncia da crtica literria que identifica a influncia de Machado de Assis apenas fazendo referncia ao humorismo de Cyro dos Anjos. Essa tendncia parte do pressuposto de que ser humorista sinnimo de ser machadiano. Para Andrade, essas caractersticas, ditas machadianas, j se encontravam nos humoristas ingleses e franceses.

    A escrita de Rachel de Queiroz, segundo Mrio de Andrade, mais prxima de Machado de Assis do que a de Cyro dos Anjos. No romance Trs Marias, a autora apresenta a lapidao cristalina da frase e o prprio mecanismo de pensar que so caractersticas da escrita machadiana.11 A perspectiva crtica de Andrade, de carter etnogrfico, revela quais so os valores literrios da crtica ao estipular classificaes que nem sempre se prendem aos aspectos lingsticos que caracterizariam as diferenas ou semelhanas dos escritores.

    11 ANDRADE. Psicologia em anlise. No paginado.

    14

    Para Helena Bomeny, a necessidade de inovao dos intelectuais modernos vem acompanhada dos conflitos gerados pela busca de uma identidade e de um projeto nacionais que apresentem tambm uma feio universalista. Diferenciando-se do grupo de So Paulo, que seguia a influncia do nacionalismo romntico, o grupo mineiro tendia para a tradio machadiana e a literatura francesa (Anatole France). Contudo, esses grupos de intelectuais, simultaneamente, aproximavam-se e rompiam com a tradio. Ainda, buscavam registrar a cultura nacional, mas faziam ressalvas quanto representao do social na literatura regionalista.12

    Assim, a crtica de rodap retoma as questes que fizeram parte do contexto histrico desses grupos intelectuais ao identificar, valorizando ou no, as influncias literrias de Cyro dos Anjos e ao definir o gnero do livro como romance psicolgico, confrontando-o ao romance social, ou pondo em dvida essa distino de gneros. As entrevistas de Cyro dos Anjos apresentam tambm o julgamento do autor em relao influncia da escrita machadiana. Mas, nas entrevistas, o autor foca a questo da influncia em ngulos diversos que, quando confrontados, indicam as tendncias culturais predominantes na poca de cada entrevista.

    Em entrevista referente dcada de 40, Otto Lara Resende provoca Cyro dos Anjos ao perguntar o que o autor pensa a respeito de grande parte da crtica indgena classific-lo como um Machadiano.13 Para o autor mineiro, sua escrita no se situa sob esse meridiano, que se caracterizaria pelo elemento intelectual, pela ausncia de lirismo, o jogo de conceitos e a forma barroca, porque O amanuense Belmiro fundamentalmente um livro sentimental.14

    Cyro dos Anjos explica que os crticos fazem essa aproximao baseando-se em critrios puramente formais,

    12 BOMENY. Guardies da razo.

    13 RESENDE. Abdias, novo romance de Cyro dos Anjos. P. 3.

    14 RESENDE. Abdias, novo romance de Cyro dos Anjos. P. 3.

  • 15

    isto , pela analogia entre processos tcnicos empregados no Amanuense e em alguns livros de Machado de Assis. Esses processos, que foram avaliados pelos crticos pela sua materialidade, no seriam criaes exclusivas de Machado de Assis, pois tm sido utilizados por escritores de todas as literaturas. Essa concepo de estilo da crtica, segundo analisou o autor na entrevista, parte da separao entre forma e fundo (ou expresso), ou matria. O modelo de escrita , segundo a crtica, Machado de Assis, mas, para o autor, a forma classificada como machadiana pertence Literatura Europia.

    Separando forma e contedo, Cyro dos Anjos afirma o carter sentimental de seu romance como desvio da norma. A desconfiana de Cyro dos Anjos quanto s comparaes do seu estilo com o machadiano so justificveis na medida em que o conceito de estilo da crtica no explica a origem da forma de escrita utilizada por ambos os autores, sem os inserir em uma tradio universal. Contudo, essa insatisfao momentnea.

    Em entrevista a Giovanni Ricciardi, referente dcada de 90, Cyro dos Anjos afirma que foi leitor de Machado de Assis e recebeu influncia muito forte de seu estilo.15 Nesse contexto, o autor assume o uso da tradio machadiana. Na entrevista da data de publicao do livro (1937), os escritores experimentavam os conflitos e as dualidades da segunda fase do Modernismo, que fazia a crtica da tradio, incorporando a prpria tradio.

    Na entrevista a Ricciardi, Cyro dos Anjos j se firmou como escritor moderno. A fala do entrevistado intencional e persuasiva porque pretende atingir ao terceiro interlocutor. Nela se encontra a imagem de autor que o prprio entrevistado deseja configurar para o seu pblico-alvo. Na primeira entrevista, o autor nega a influncia machadiana para inserir ambos os autores na literatura universal; na

    15 RICCIARD. Auto-retratos, p. 21.

    16

    segunda entrevista, ele j afirma a influncia de Machado de Assis e se insere no ramo de uma tradio literria nacional.

    As entrevistas apresentam tambm a posio do autor quanto presena ou no de elementos sociais na sua obra. Para Otto Lara Resende, Cyro dos Anjos afirma que um escritor no pode viver fora de sua poca, pois a questo social um tema de todos os tempos.16 Entretanto, o autor critica o uso artificial dos problemas sociais nas obras literrias, que deveriam abord-los de forma espontnea, quando a situao no livro assim exigisse.

    Na entrevista Edla Van Steen, Cyro dos Anjos afirma que no seu romance procurou retratar um indivduo, no uma classe.17 Na classe, o indivduo se perde e a sua preocupao o homem em sua solido. A posio do autor contrria crtica de Rubem Braga. O crtico avalia os personagens do romance como figuras vazias encarregadas de fazerem justamente o contrrio do que o autor mineiro quer, ou seja, representam uma classe, mas de forma limitada.

    A contradio entre aquilo que o personagem no seu cotidiano burgus, fascista, comunista, feminista, homem comum e as suas idias produz no leitor o efeito de desconfiana na prpria ideologia. Dispostos em discursos ideolgicos diversos, o conflito entre os amigos levaria desagregao e solido do indivduo que no se adapta ou no incorpora o discurso do outro ao seu prprio discurso. Belmiro se ope ao confronto, que levaria conseqente dissoluo do grupo de amigos: De que valem esses choques entre amigos? Cada um continua onde est, aferrado s suas idias. Tanto mais aferrado se as contraditamos.18

    O captulo Choques do romance apresenta uma das constantes discusses do narrador com o personagem

    16 RESENDE. Abdias, novo romance de Cyro dos Anjos, p. 3.

    17 STEEN. Viver & escrever, p. 14.

    18 ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 139.

  • 17

    Redelvim. Os amigos se olham com estranhamento: para Belmiro, Redelvim um comunista romntico, inofensivo, enquanto o amigo v o narrador como um pequeno burgus ctico. O dilogo se inicia com uma provocao de Redelvim: Ento, continua nessa vidinha srdida de pequeno burgus?. Belmiro no assume a identidade e ironiza: Tem cem mil ris para me emprestar? (realmente estava precisando). O personagem Redelvim ainda prossegue a discusso, observando que ser burgus um estado de esprito.

    Nessa perspectiva, o estado de esprito do sujeito definido por mais um campo discursivo que se volta para a ideologia capitalista. Trata-se de um campo contraditrio na medida em que no vincula necessariamente o sujeito classificado como burgus posse material do dinheiro. Mais contraditria ainda a prpria definio poltica de Belmiro, que se autodenomina um individual-socialista. uma tentativa de incorporar o discurso do outro na sua prpria definio poltica, atenuando a imagem de pequeno burgus, mas isso no significa que o amigo comunista aceita a retrica do amanuense.

    Redelvim e Belmiro, apesar das diferenas, tm semelhanas importantes que instigam mais ainda o conflito dos amigos. No captulo Onde se apresenta um revolucionrio, a visita de Redelvim a Belmiro trata das dvidas mtuas dos personagens e de uma confidncia. Segundo o narrador, Redelvim o visitara para colher um duplo aval. O primeiro consiste em reformar a promissria com o amanuense, e o segundo confessar que participa de um movimento poltico cujo desfecho seria a revoluo proletria. Comenta tambm que a polcia invadira o partido e tomara os documentos com a relao dos membros, entre eles, Redelvim. Durante a conversa, Belmiro se mostra preocupado com o amigo, contudo, Redelvim avalia essa preocupao como pequeno burguesa para, em seguida, afirmar que os indivduos nada significam, segundo o seu modo de pensar. Mais prximo do discurso marxista

    18

    referente s classes sociais, Redelvim rejeita o individualismo, que se filiaria ao capitalismo.

    Esse fato relatado pelo narrador com o uso de palavras que retomam o sistema financeiro de forma direta, como promissria, ou indireta, na palavra aval, que tem sentido duplo, referindo-se tanto a apoio moral e intelectual como a termo comercial ou ordem de pagamento. A visita de Redelvim se finaliza com sua sada para o banco. Mesmo a conversa fluindo atravessada por conflitos ideolgicos e pelo tema da revoluo proletria, os personagens ainda se prendem s aes cotidianas que fluem com o uso do dinheiro.

    Da a ironia no ttulo citado: o revolucionrio Redelvim se apresenta na casa do amanuense, pequeno burgus, para refazer uma promissria, o que significa que at as ditas aes polticas dependeriam do financiamento burgus. Assim como a Revoluo Francesa foi fomentada pela burguesia, a atividade poltica de Redelvim tambm tem um sustentculo financeiro semelhante ao do amanuense burgus. Trata-se do Estado, afinal, como relata o narrador, Redelvim fora seu companheiro nas aperturas financeiras e na burocracia. Mesmo tendo deixado o funcionalismo, porque se desentendeu com o diretor da repartio, Redelvim trabalhava em jornais, que, no contexto histrico do autor na dcada de 30, tambm se associavam ao Estado, defendendo os interesses do governo.

    As figuras de Belmiro e Redelvim constituem um duplo que permite leituras baseadas no pacto fantasmtico porque retomam a figura do intelectual moderno, dividida entre a atividade literria e a funo pblica, seja como pequeno funcionrio de seo ou na tarefa de jornalista. Inserido no mesmo contexto histrico de Cyro dos Anjos, exercendo tambm a atividade jornalstica, Rubem Braga desconfia justamente da inteno do autor de retratar os indivduos.

    O narrador antev a impossibilidade do sujeito, seja filiado ao socialismo ou ao capitalismo, de manter a coerncia

  • 19

    entre a ideologia que defende e a sua prpria existncia material no mundo. Mas Redelvim insiste em ser coerente; entretanto, nas questes cotidianas, como observa o amanuense, no consegue coerncia com a sua ideologia e no se conscientiza das suas prprias contradies, fato que explica o artificialismo do personagem. Belmiro um personagem que aceita e vivencia suas contradies e, talvez por isso, seja tambm aceito por Rubem Braga como o nico literato que de fato interessa no livro.

    O dirio ntimo o gnero trabalhado na escrita fictcia de Belmiro Borba, que serve para reflexes sobre a leitura e tema para a literatura personalista do narrador. Antes de ser um autor do seu dirio, Belmiro Borba leitor do dirio de seus amigos Redelvim e Silviano: Redelvim tambm tem o seu Dirio... Li pginas dele, h tempos, pelo mesmo processo clandestino por que conheci o do Silviano.19 O dirio, gnero de origem burguesa, o meio de escrita utilizado por Redelvim que no traz anotaes explicitando o seu perfil poltico, mas, segundo Belmiro, trata da sua individualidade:

    Como todos os documentos dessa natureza, contm histrias muito

    ntimas, amores (inclusive o caso de sua amante espanhola, que o

    torturou bastante) e versos de adolescncia. Redelvim no permite

    que se lhe fale dos amores nem dos poemas.20

    Descrito como literato, filsofo, fascista, mitmano, Silviano um personagem mltiplo para o narrador e seus amigos. Belmiro tambm faz leituras clandestinas do dirio de Silviano, contudo, cita trechos desse dirio, incorporando-os sua prpria escrita. O contedo do dirio de Redelvim apenas apropriado no discurso indireto do narrador em um pequeno pargrafo. A narrativa no apresenta uma explicao para a escolha, mas o que pode ficar como questo que a escrita de Redelvim

    19 ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 151.

    20 ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 151.

    20

    silenciada pelo narrador, que prefere citar na ntegra, para, em alguns momentos, ridicularizar a escrita de Silviano.

    A escrita de Belmiro Borba, que se apropria dos dirios alheios, tem os seus momentos de silncio, ocasionados ou no pelos interesses do autor emprico. Contando com o contexto histrico do Estado Novo, provvel que as figuras de Belmiro e de Silviano fossem mais bem acolhidas pelos meios de publicao do que a de Redelvim.

    O memorialista Belmiro configura a multiplicidade de sua voz narrativa, que ora cindida no par escritor/funcionrio pblico, ora elaborada a partir das vozes e textos de outros personagens. No jornal, que sujeita o texto literrio a vrios tipos de leitores, Cyro dos Anjos convive com a pluralidade da recepo que esse veculo permite. Na escrita do romance, o autor multiplica a figura do leitor modelo, que vai desde o vago leitor, que pode ser qualquer um, at o leitor par, que a me-souer, ou o leitor futuro, que ler o dirio publicado.

    A observao dos arquivos que trazem informaes sobre o contexto histrico e cultural da produo literria amplia as possibilidades de leitura do romance memorialista como objeto que se configura a partir da relao entre o intelectual e os meios de divulgao do texto. Assim, os contrastes entre as leituras de Newton Prates, Rubem Braga e Mrio de Andrade confirmam as reflexes do personagem Belmiro sobre a prpria composio do dirio, que, antes de revelar a unicidade do escritor e do leitor de memrias, delineia a fragmentao e as contradies do sujeito nos planos de produo e recepo do texto literrio.

  • 21

    Referncias

    ANDRADE, Mrio de. Psicologia em anlise. O Estado de So Paulo, no paginando, So Paulo, 29 nov. 1939.

    ANJOS, Cyro. O amanuense Belmiro. Edio fac-similada. Belo Horizonte: Os Amigos do Livro, 1937.

    BOMENY, Helena. Guardies da razo: modernistas mineiros. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Tempo Brasileiro, 1994.

    BRAGA, Rubem. O amanuense Belmiro. Folha da Manh, no paginado, So Paulo, 1938.

    FRIEIRO, Eduardo. O elogio da obra bem escrita. Folha de Minas, Belo Horizonte, no paginado, 8 set. 1938.

    LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: ditions du Seuil, 1975.

    MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. So Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1992.

    PRATES, Newton. Ciro, sessenta anos. Minas Gerais, Belo Horizonte, dez. 1966. Suplemento literrio, p. 2.

    RESENDE, Otto Lara. Abdias, novo romance de Cyro dos Anjos. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 16 abr. 1944.

    RICCIARD, Giovanni. Auto-retratos. So Paulo: Martins Fontes, 1991.

    STEEN, Edla Van. Viver & escrever. Porto Alegre: L&PM, 1982.

    22

    A escrita epistolar e o Suplemento Literrio (1966-69): outras leituras

    Maraza Labanca

    Neste trabalho, a pesquisa com as correspondncias dos ficcionistas destinadas a Murilo Rubio foi acompanhada da busca e leitura das publicaes dos mesmos no Suplemento Literrio do Minas Gerais entre 1966-69, recorte de tempo que determina os anos em que o autor mineiro mantinha a funo de diretor do jornal em questo. A pesquisa previu, pois, um dilogo entre dois veculos distintos de escrita: a carta e o jornal, a fim de construir sentidos que auxiliem a compreenso da relao mantida entre os autores analisados e a literatura.

    Concepes literrias reveladas no estudo comparativo dos gneros as cartas e as publicaes ficcionais e crticas no jornal vm provar modos diversos de se posicionar frente literatura, uma vez que, enquanto a correspondncia dirige-se apenas ao seu destinatrio, Murilo Rubio sendo, por isso, uma escrita que mistura assuntos relativos literatura a assuntos de natureza geral , a colaborao no Suplemento Literrio destina-se a um pblico amplo, alm das fronteiras de Minas Gerais e, algumas vezes, do Brasil. No processo de ouvir essas escritas, o pesquisador quer fazer com que elas se comuniquem, agenciando-as.

    A colaborao em jornais (em torno da literatura), em meados do sculo XX, segundo Joo Alexandre Barbosa,

    Era como um experimento de linguagem que, se libertando do

    enclausuramento das paredes apertadas do livro, encontrasse no

    espao pblico e arejado do jornal um motivo a mais para o exerccio

    da comunicao literria que, com freqncia, voltava depois ao livro,

    mas agora, j tendo passado por aquela experincia de ar renovado

    pela linguagem partilhada com o pblico mais amplo da leitura do

    jornal.1

    1 BARBOSA. Variaes sobre suplementos literrios, p. 3.

  • 23

    Se o jornalismo permitia o exerccio de uma literatura, conforme Barbosa, de certa forma experimental, o gnero epistolar caracterizava-se por seu teor de informalidade, em que se diluam comentrios pessoais e afetivos da relao entre remetente e destinatrio, como se verifica nas cartas a Rubio. Nelas, v-se um contedo voltado para assuntos gerais geralmente a respeito de viagens internacionais e possveis encontros em Belo Horizonte , algumas rememoraes sobre um passado comum como no caso das cartas do remetente Silviano Santiago , e o que mais interessa neste trabalho: comentrios acerca da literatura, sobretudo sobre a literatura impressa no Suplemento Literrio do Minas Gerais.

    Nesses comentrios, j se observa, a princpio, uma distino do que seria publicvel ou no em jornal, diferenciando esse tipo de divulgao daquela costumamente empregada em livro. Assim, l-se no comentrio de Autran Dourado numa de suas cartas a respeito de sua colaborao: mando-lhe tambm um pequeno conto. Tenho muita coisa de fico indita, mas so grandes ou obscenas demais, no servem para jornal, s para livro.2 matria publicvel em jornal s o que no for obsceno, o texto deve ser curto e fazer sentido isoladamente.

    Outro problema que surge, desta vez graas velocidade de publicao de jornais semanais, a pressa na finalizao dos textos, impressos, algumas vezes, em desacordo com a vontade do autor. Sobre isso, tambm Autran Dourado quem comenta:

    Me desculpe a trapalhada que fiz, mas que se a minha colaborao

    sasse do jeito que estava, ia me desagradar muito. As mudanas no

    so tantas, voc ver comparando (no faa isso, por favor, no se

    aborrea, voc no nenhum laboratorista para ficar fazendo exame

    de fezes), mas que tinha certos tiques, repeties e coisas

    imprecisas, que numa reviso mais demorada depois eu reparei

    melhor. A culpa foi minha, e em parte sua, por lhe mandar trecho da

    histria ainda em processo de escrevinhao: mas ambos estamos

    relevados, voc por querer matria minha para o seu timo

    2 DOURADO. Carta a Murilo Rubio. Rio de Janeiro, 19 mar. 1967.

    24

    suplemento (tem gente aqui no Rio que anda colecionando) e eu pela

    pressa em atender voc, sempre to atencioso comigo, dando

    destaque minha torturada literatura.3

    Sobre o mesmo problema, explica Nlida Pion a Murilo:

    No se preocupe quanto ao que aconteceu ao conto, logo corrigido na

    edio comum. Estas coisas so assim mesmo. O importante que o

    Suplemento de Aniversrio foi uma beleza, do mais alto nvel.4

    O trabalho de colaborao no jornal, se favorece certa dose de experimentao, concebido com pouco tempo de edio, tornando-o sujeito a falhas, equvocos e correes. uma prtica que precede a configurao em livro daquele registro que se exibe, no jornal, inconcluso, em processo:

    Tenho conto indito para o Suplemento, mas de repente me deu

    vontade de dizer que gosto mais ainda de vocs enviando, contra

    meus prprios hbitos [ ] tudo de Fundador, romance no publicado. Voc compreende o que significo com isto?5

    escreve Nlida Pion em 69. Dois meses depois, sai publicado trecho do romance indito.

    Alm de possuir uma ateno que destinada a um momento de criao mais suscetvel a modificaes at que se chegue a uma verso final que precede a publicao em livro , o Suplemento era um veculo de acesso a escritas que jamais seriam editadas em livro, e, portanto, de divulgao nica, conforme evidencia o missivista Pedro Nava:

    muito e muito obrigado pela sada do Suplemento do Minas que te

    ocupou do velho desordeiro que sou eu. Fiquei pasmo com o fato de

    vocs terem conseguido dois poemas meus, [...] que estavam

    relegados ao fundo de velhas gavetas. Coitados! Vieram luz e

    mesmo sequinhos e aleijados tenho de reconhec-los como filhos.

    Todo o trabalho prtico e a diagramao excelentes.6

    O Suplemento Literrio foi, dessa maneira, um espao que permitia aos seus leitores o contato com textos inditos

    3 DOURADO. Carta a Murilo Rubio. Rio de Janeiro, 3 jun. 1968.

    4 PION. Carta a Murilo Rubio. Rio de Janeiro, 12 out. 1968.

    5 PION. Carta a Murilo Rubio. Rio de Janeiro, 17 jun. 1969.

    6 NAVA. Carta a Murilo Rubio. Rio de Janeiro, 14 abr. 1973.

  • 25

    (literrios ou crticos), textos em processo (sujeitos a futuras mudanas antes da edio final) e textos que jamais seriam publicados, de autores que surgiam na cena literria brasileira naquele momento, como Luiz Vilela ou o prprio Murilo Rubio, e de autores que j haviam alcanado repercusso nacional, como Guimares Rosa e poetas como Carlos Drummond de Andrade e Joo Cabral de Melo Neto.

    Leituras escritas

    Silviano Santiago, ao refletir sobre o papel da correspondncia,7 cujo exame pode colocar em questo mtodos de pesquisa e teorias literrias do incio do sculo XX, demonstra que as cartas de grandes escritores, que podem servir como suporte de divulgao de idias em voga em determinado momento histrico, devem ser violadas; essa invaso, que funciona a princpio como um gesto transgressor, tornou-se, na contemporaneidade, um dos modos de entrever obra e sujeito, uma brecha, uma fenda a mais que se abre aos olhos do pesquisador em seu exerccio de remexer e dinamizar os dados aparentemente estticos do arquivo.

    nesse sentido que as cartas analisadas podem funcionar como lugar de elaborao de sentidos possveis acerca dos textos enviados para publicao a partir da leitura do autor sobre sua prpria criao. Essa leitura da leitura prope indcios de interpretao que apontam para a construo de novos nexos possivelmente diferentes daqueles produzidos com a leitura exclusiva do texto publicado no jornal. Para melhor observar esse fato, uma carta de Silviano Santiago a Murilo Rubio ilustrativa. Em 1966, a respeito de alguns poemas seus recm-enviados a Murilo Rubio para publicao, esclarece: Resolvo lhe enviar este jogo de quatro glosas, feitas dentro da mesma atmosfera que possibilitou as grandes gozaes dos anos 20.

    7 SANTIAGO. Suas cartas, nossas cartas.

    26

    O precedente poder ser invocado como justificativa para a aspereza

    de ironia jocosa contra os mestres do passado usando a expresso

    de Mrio.

    Se puder, publique as quatro irmanadas, no deixando de lado o

    ttulo, pois se trata de uma aluso aos alguns toureiros de Joo

    Cabral. Grato.8

    Murilo Rubio segue risca as orientaes do remetente-colaborador, publicando os poemas logo no incio de 67.

    Verifica-se ainda, com a leitura das cartas, que se torna possvel identificar tcnicas de escrita de um autor, observando, atravs delas, alguns de seus procedimentos inventivos. No caso de Autran Dourado, na sua torturada literatura, a sua relao com o tempo de escrita se mostra peculiar, auxiliada por um mtodo prprio de registro:

    H mais tempo estou para lhe escrever e enviar-lhe a minha modesta

    colaborao. Tenho comigo muitas notas de leitura, observaes e

    filosofanas que venho fazendo, mas tenho de pass-las a mquina e

    corrigi-las, pois esto em taquigrafia, que como escrevo no pela

    pressa (curioso: o tempo que levo a escrever o mesmo, tanto faz

    seja a mquina, a mo ou a taquigrafia; fao agora uma descoberta

    a demora que a gente tem para escrever a demora em encontrar a

    palavra!), mas porque a minha caligrafia est cada vez pior, tem hora

    que eu mesmo no consigo ler, o que no acontece com o meu

    taquigrama, que perfeito, claro, legvel.9

    Na mesma carta, v-se, alm do mtodo, uma pulso pela reescrita de seus trabalhos:

    Mas o que tem mesmo dificultado a remessa de minha colaborao

    que fiz, h dois meses, uma verdadeira loucura: os originais de meu

    romance pera dos Mortos, j entregues Civilizao, pedi-os de volta para uma simples reviso e acabei quase louco de tanto que

    neles mexi, retoquei, reescrevi; voc sabe como isso, voc que um

    escritor por demais, excessivamente at acho, cuidadoso e limpo.10

    A ateno que Autran Dourado concede ao ato da escrita (e da reescrita) sinaliza para uma preocupao que mais

    8 SANTIAGO. Carta a Murilo Rubio. New Brunswick, 22 dez. 1966.

    9 DOURADO. Carta a Murilo Rubio. Rio de Janeiro, 19 mar. 1967.

    10 DOURADO. Carta a Murilo Rubio. Rio de Janeiro, 19 mar. 1967.

  • 27

    tarde ganhar corpo num pequeno ensaio11 publicado no prprio Suplemento Literrio, em outubro de 1988 em defesa da nova tendncia crtica que surgia: a crtica gentica, em combate quilo que ele chama de anlise impressionista da literatura. Segundo o autor, com o estudo dos manuscritos, ou com a comparao entre diferentes edies de uma mesma obra conforme fez com a Tentao de Santo Agostinho, de Flaubert , torna-se possvel compreender muitos aspectos obscuros do romance ou da narrativa. a partir dessas reflexes sobre a gentica do texto que Autran Dourado compor Uma potica do romance: matria de carpintaria, anos depois.

    Discutir a crtica em anos de Suplemento (dcadas de 60 e 70) explicitar a polmica existente entre a crtica no especializada e a crtica proveniente das Faculdades de Letras do pas. Segundo Luiz Vilela, no artigo de 5 de novembro de 1985, publicado no Suplemento Literrio do Minas Gerais, a crtica, nesse perodo da segunda metade do sculo, se dividia entre leviandade jornalstica e empolao universitria.12 Para Silviano Santiago, no uma questo de recusar esses extremos a crtica acadmica contra a crtica autodidata , o que s acentuaria o equvoco, mas de se reconhecer os ganhos que ambos os lados trouxeram aos leitores daquela poca, ainda que o surgimento da Teoria da Literatura nas universidades brasileiras colaborasse para silenciar o papel dos grandes crticos que comunicavam, em estilo elegante e opinativo, com leitores curiosos das coisas literrias.13 Ao contrrio do que pensava Luiz Vilela e a Universidade, o valor da discusso literria no jornal antes do surgimento da Teoria ultrapassava a determinao excessiva que a definia como imprudncia jornalstica, conforme demonstrou Santiago.

    11 DOURADO. Gentica do texto, p. 7.

    12 VILELA. Por que escrevo fico?, p. 5.

    13 SANTIAGO. A crtica literria no jornal, p. 166.

    28

    Havia, desse modo, no Suplemento, ficcionistas que transitavam por espaos fora da narrativa, como nos casos dos escritores Autran Dourado e Guimares Rosa. O primeiro publicar, at 69, apenas um artigo, chamado Duas Faces, em que discutir a formao de mitos e seu lugar no imaginrio humano. Entretanto, numa das muitas cartas a Rubio, Autran confessar:

    Pra artigo no tenho muita vontade, acho que tempo roubado ao

    meu essencial. Tenho muitas notas de leitura, mas iam demandar um

    trabalho para o qual me sinto sem disposio, concentrado que me

    acho em outros escritos.14

    Para o autor, seu essencial repousaria na fico. Guimares Rosa, em novembro de 67, publicar um texto

    no-ficcional dedicado a Minas e mineiridade, caracterizando geograficamente, psicologicamente e ideologicamente esse estado como um ponto de dentro, a raiz do assunto, e o povo dele nascido, exposto ao encontro: Minas,

    a junta de tudo, os extremos, delimita, aproxima, prope transio, une ou

    mistura [...] Sua orbe uma pequena sntese, uma encruzilhada; pois

    Minas Gerais muitas. So, pelo menos, vrias Minas.15

    Este texto enviado a Murilo ser publicado no Suplemento quase um ano aps a ltima colaborao. Numa carta enviada alguns meses antes, confidencia Rosa uma dificuldade de criao:

    Perdoe-me, muito, o atraso em responder sua, de 22 de maio. E,

    mais ainda, no poder trazer artigo ou conto Comisso de Redao.

    Debato-me. Nada sai. Os astros desajudam-me. Os tempos so de

    aspereza.16

    Se os tempos pareciam de aspereza para Guimares Rosa, o mesmo no acontecia com o Suplemento Literrio, que conhecia seus anos de maior xito sob a direo de Murilo Rubio, fato que comprovado pelo prprio Rosa, que reitera

    14 DOURADO. Carta a Murilo Rubio. Rio de Janeiro, 16 abr. 1968.

    15 ROSA. A est Minas: a mineiridade, p. 3.

    16 ROSA. Carta a Murilo Rubio. Rio de Janeiro, 9 ago. 1967.

  • 29

    a boa execuo do projeto do Suplemento Literrio nas mos do contista mineiro:

    E eu mesmo me culpo quase de ingratido; porque o contentamento e

    interesse que tenho, de receber o SUPLEMENTO, so para mim a verdade.

    Acho-o sem falhas. Digo que est redondamente esplendidamente

    expressando a literatura de Minas, a cultura. Pode algum, sem susto e

    protesto, imaginar que acaso ele viesse, por infortnio, desaparecer?!

    Nem mesmo compreendo que no tivesse havido antes esse mensageiro

    da altura. Parabns, pois, aos brados. Deus o mantenha sempre! para

    alegrar-nos e orgulhar-nos e nos enriquecer.17

    Luiz Claudio Vieira de Oliveira, ao estudar a recepo crtica da obra de Guimares Rosa no Suplemento Literrio do Minas Gerais, avalia que este veculo funcionou como uma sntese da cultura mineira, ponto de convergncia para que convergiram autores antigos, consagrados ou no, e autores novos.18 O jornal estava, dessa forma, consonante com um esprito mineiro que o prprio autor de Primeiras Estrias havia identificado no citado artigo sobre a mineiridade: L [em Minas] se do encontros, concordemente, as diferentes partes do Brasil.19 Para Oliveira, desse modo,

    A importncia do Suplemento reside em seu ecletismo. Durante anos

    publicou o que havia de mais respeitvel na crtica nacional, ao mesmo

    tempo em que abria espao pra os novos autores mineiros que vinham

    surgindo, e para a novidade, quela poca um tanto hermtica, da

    crtica universitria dos anos setenta, ento no auge do

    Estruturalismo.20

    Acolhendo o surgimento desses novos escritores, o Suplemento Literrio abarcava a literatura de Minas e a projetava para um nvel nacional num perodo conturbado, quando a crtica comeava a se dividir com a recente chegada da Teoria da Literatura nas universidades brasileiras.

    O que se mostra mais relevante, porm, que, percorrendo a correspondncia do organizador do Suplemento

    17 ROSA. Carta a Murilo Rubio. Rio de Janeiro, 9 ago. 1967.

    18 OLIVEIRA. Guimares Rosa no Suplemento, p. 12.

    19 ROSA. A est Minas: a mineiridade, p. 3.

    20 OLIVEIRA. Guimares Rosa no Suplemento, p. 12.

    30

    Literrio, acendem-se descobertas que iluminam fatos concernentes concepo do jornal, linguagem prpria que este exige, ao processo de escrita de certos colaboradores, uma vez que permite a verificao da leitura (de acesso privilegiado do pesquisador) dos autores remetentes sobre a sua prpria obra ou mesmo sobre o projeto do Suplemento. A correspondncia se revela, desse modo, um lugar de enunciao a princpio secundrio, mas capaz de exibir, pelo agenciamento a outros registros e ao contexto enunciativo em que foi produzido, uma trama cuja urdidura escondia os fios das memrias crticas dos sujeitos envolvidos no dilogo epistolar, formuladas em fragmentos, diludas num discurso de amenidades e delicadezas.

    Essas pequenas escritas crticas, antes semi-ocultas pelo lacre aparentemente estanque do arquivo, servem como uma rede de pesquisa que desloca o olhar para outras direes. Esse olhar desacostumado v-se diante de um gnero que aponta modos de leitura que no so oficiais, ainda livres do peso da publicao, e que revela, ainda, num processo inverso, o autor, contextualizado em tempo e espao, deslizando-se instncia de leitor, concebendo no apenas a sua leitura sobre a obra, mas sobre o jornal e o mundo; so filosofanas que tangem a literatura, que trazem tona projetos, idias e incmodos dos remetentes, formando uma rede de pensamento mltiplo que o pesquisador impelido a reorganizar, tecendo novas ordenaes.

  • 31

    Referncias

    BARBOSA, Joo Alexandre. Variaes sobre suplementos literrios. Suplemento Literrio, Belo Horizonte, n. 1278, p. 3-7, mai. 2005.

    DOURADO, Autran. Gentica do texto. Minas Gerais, Belo Horizonte, out. 1988. Suplemento literrio, p. 7.

    OLIVEIRA, Luiz Claudio Vieira de. Guimares Rosa no Suplemento: a recepo crtica da obra de Guimares Rosa no Suplemento Literrio do Minas Gerais. Belo Horizonte: Pos-Lit Programa de Ps-Graduao em Letras: Estudos Literrios da UFMG, 2002.

    ROSA, Guimares. A est Minas: a mineiridade. Minas Gerais, Belo Horizonte, nov. 1967. Suplemento literrio, p. 3.

    SANTIAGO, Silviano. A crtica literria no jornal. In: SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre: crtica literria e crtica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p.157-167.

    SANTIAGO, Silviano. Suas cartas, nossas cartas. (Prefcio) In: SANTIAGO, Silviano (Org.). Carlos & Mrio: correspondncia entre Carlos Drummond de Andrade e Mrio de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-te-vi, 2002. p. 7-33.

    VILELA, Luis. Por que escrevo fico? Minas Gerais, Belo Horizonte, nov. 1985. Suplemento literrio, p. 5.

    Foram utilizadas tambm as cartas remetidas a Murilo Rubio presentes em seu arquivo, instalado no Acervo dos Escritores Mineiros da Biblioteca Central da UFMG.

    As publicaes do Suplemento Literrio do Minas Gerais esto disponveis no site: http://www.letras.ufmg.br/websuplit/.

    32

    O espao exterior do arquivo

    Rodrigo Santos de Oliveira

    Flor da morte uma expresso utilizada para traduzir

    uma experincia dolorosamente sensvel.

    Henriqueta Lisboa

    E se eu ficasse eterna?

    Demonstrvel

    Axioma de pedra.

    E lvida

    Em organdi

    Entre os escombros?

    Indefinvel como criatura.

    Eternamente viva.

    Hilda Hilst

    Flor da morte: interiores

    O estudo de fontes primrias, oriundas de acervos literrios, articulado produo literria dos escritores possibilita ao pesquisador a construo de mltiplos discursos entre vida e obra, alm de proporcionar a conservao memorialstica da imagem autoral. Para Eneida Maria de Souza, a crtica biogrfica permite o estudo da literatura alm de seus limites intrnsecos e exclusivos, por meio da construo de pontes metafricas entre o fato e a fico.1

    Louis Hay, ao traar um panorama histrico sobre a origem e consolidao da crtica gentica e de sua importncia na anlise literria, afirma que a literatura sai dos arquivos.2 Em contrapartida, Jacques Derrida, ao estudar a pulso de morte freudiana relacionada ao arquivo, postula que todo arquivo guarda intrinsecamente certo princpio de consignao que promove a comunicabilidade entre espao interior e exterior: No h arquivo sem um lugar de

    1 SOUZA. Notas sobre a crtica biogrfica, p. 111.

    2 HAY. A literatura sai dos Archivos, p. 81.

  • 33

    consignao, sem uma tcnica de repetio e sem uma certa exterioridade. No h arquivo sem exterior.3

    Durante a leitura da poesia de Henriqueta Lisboa percebe-se que a morte um tema recorrente; por essa razo, muitas vezes a escritora foi nomeada poeta da morte. Essa temtica apresenta-se reunida em A face lvida (1945) e, substancialmente, em Flor da morte (1949), coletnea de poemas escritos entre 1945 e 1949.

    A recepo crtica desse livro, divulgada em jornais e arquivada por Henriqueta Lisboa, questionou se a experincia da escritora em relao morte perda do amigo Mrio de Andrade e de alguns entes queridos influenciou ou no seu projeto literrio. A morte como unidade estrutural tambm foi apontada pela crtica como item diferencial no cenrio da poesia brasileira.

    Maria Luiza Ramos, ao estudar essa poesia, identificou certa negatividade em sua concepo, que constituda pelo culto da perda, melancolia e recordao dolorosa. Segundo Ramos, existe [...] nessa evoluo literria algo que resiste, do mesmo modo que insiste no texto algo que rejeita, traduzindo-se pela elaborao do negativo.4 Esse conceito, jogo paradoxal entre expresso e resistncia, enunciao e silncio, apontado nesse estudo, pode ser identificado nos poemas Diante da morte e O mistrio. No primeiro poema, a noo de negativo se d de maneira visvel, bastante ilustrativa, como podemos observar a partir dos seguintes versos: Diante da morte no sou de gua/ nem sou de vento, mas de pedra./ rbitas frgidas de esttua,/ boca cerrada de quem nega.5 Observa-se que o eu-potico busca de forma orgnica e discursiva, a partir da negao, uma travessia de resistncia aceitao da morte.

    3 DERRIDA. Mal de arquivo, p. 22.

    4 RAMOS. A elaborao do negativo na poesia de Henriqueta Lisboa, p. 74.

    5 LISBOA. Flor da morte, p. 12.

    34

    Em O mistrio, o eu-potico embaralha a noo de negativo ao construir sentenas assertivas sobre vida e morte, quando afirma que

    Na morte, no. Na vida, Est na vida o mistrio. Em cada afirmao ou abstinncia. Na malcia das plausveis revelaes, no suborno das silenciosas palavras. Tu que ests morto esgotaste o mistrio.6

    Tais versos podem ser lidos como metforas operacionais, subsdios discursivos que contribuem para possveis interpretaes dos smbolos com os quais Henriqueta Lisboa trabalha. Os elementos naturais pedra e gua, recorrentes nesse poema e tambm em Diante da morte, so equivalentes, de forma ambgua, s noes de resistncia e totalidade, permanncia e mobilidade, respectivamente.

    O poema Flor da morte, texto de abertura que d nome ao livro, compara, inicialmente, o nascimento de uma flor ao processo de metamorfose de uma borboleta e, tambm, implicitamente, ao nascimento da palavra potica. O verso como se a alma se desprendesse da matria pode ser lido como: como se o significante se desprendesse do significado. Tal concepo nos possibilita pensar no processo concomitante de esvaziamento e ressemantizao do significante morte ocasionado pela elaborao potica que se d de maneira intensamente paradoxal, ao trazer como matria-prima antteses e oxmoros que contribuem para a ressonncia conotativa e denotativa de significados, como observamos nos seguintes versos h uma proximidade de flor e abismo,/ com vertigem cerceando espessa os sentidos.7 Tais consideraes apontam para certa pluralidade imagtica de morte construda j na introduo/justificativa do projeto literrio de Henriqueta Lisboa.

    6 LISBOA. Flor da morte, p. 10.

    7 LISBOA. Flor da morte, p. 7.

  • 35

    A noo de negatividade suscitada por Maria Luiza Ramos, relacionada perda e melancolia, est presente em poemas que retratam, sobretudo, a falta e a memria, como Tua memria, Comunho e Passarinho. Tais poemas abordam a materializao da ausncia, falta que se faz presente no plano enunciativo. Em Passarinho, o canto no somente tema, mas estrutura oferecida pela cadncia dos versos. Observa-se o canto relacionado negatividade, pois o passarinho silencia-se devido perda do companheiro. Poemas como Acalanto do morto e Cano apresentam-se como elo entre msica e morte. Acalanto do morto como uma cantiga de ninar, a qual apresenta o sono como metfora da morte; j em Cano, a idia de msica est contida no movimento do pssaro que transita entre a paisagem e o abismo. A imagem do pssaro tambm recorrente em Passro de fogo; nele, o eu-potico reconhece a figura do pssaro como disseminador da morte, apesar de atribuir ao seu vo o estatuto de beleza/leveza.

    talo Calvino, ao elaborar suas Seis propostas para o prximo milnio, que em verdade so cinco porque o escritor faleceu antes de escrever a ltima, considerou o paradoxo peso-leveza como operador estrutural para se analisar obras de escritores cannicos. Para o autor, a leveza est associada preciso e determinao, nunca ao que vago ou aleatrio. Paul Valry foi quem disse [...] preciso ser leve como o pssaro, e no como a pluma.8 A metfora do vo atrelada leveza elaborada pelo escritor pode ser observada na construo estilstica de alguns poemas do livro analisado.

    Alm das representaes de morte como canto, observam-se outros matizes. No poema uma criana, novamente utilizada a metfora da morte como sono contnuo. Nesse poema, o eu-potico admira a beleza de uma criana que dorme, efeito eufemista, e descreve o ritual de celebrao de outras crianas que contemplam a criana

    8 CALVINO. Leveza, p. 28.

    36

    morta. Em Vem, doce morte, a aceitao que aparece como recusa em Diante da morte, se faz de maneira lrica, explcita, convidativa, como esses versos ilustram: Tenho o corpo to leve (quando queiras)/ que a teu primeiro sopro cederei distrada.9 Em estranho, o eu-potico questiona a cada estrofe certas noes de serenidade adquiridas a partir da experincia com a morte. A ltima delas ressalta o carter de grandeza dessa. estranho que, depois de morto,/ rompidos os esteios da alma/ e descaminhado o corpo,/ homem, tenhas reino mais alto.10

    A aceitao da morte contida no poema Vem, doce morte, aparece de maneira concisa no poema Sofrimento. Durante sua leitura, observa-se que a materialidade do significado perda sobreposta estrutura do significante morte: Ficou o esprito,/ mais livre que o corpo./ A msica, muito alm/ do instrumento.11 Os ltimos versos O que se perdeu foi pouco./ Mas era o que eu mais amava. apresentam, por uma estratgia discursiva de expresso melanclica, uma tentativa de minimizar a perda, apesar de considerar a ausncia como uma sada potica para rimar amor e dor.

    Sigmund Freud, ao tratar das relaes entre luto e melancolia como perdas relacionadas a um determinado objeto, aborda o primeiro como perda insubstituvel de um ente querido e afastamento do mundo. J a melancolia estaria relacionada a uma perda no demarcada, no definida. O autor ressalta como conceito diferencial entre luto e melancolia a noo de inibio melanclica. Para Freud,

    Na melancolia, a perda desconhecida resultar num trabalho interno, e

    ser, portanto responsvel pela inibio melanclica. A diferena

    consiste em que a inibio do melanclico nos parece enigmtica

    porque no podemos ver o que que o est absorvendo to

    completamente.12

    9 LISBOA. Flor da morte, p. 28.

    10 LISBOA. Flor da morte, p. 30.

    11 LISBOA. Flor da morte, p. 23.

    12 FREUD. Luto e melancolia, p. 251.

  • 37

    O que apontado por Freud como inibio pode ser lido no mbito da poesia de Henriqueta Lisboa como conteno. No poema Sofrimento, a melancolia exposta como signo condensado/reelaborado. Para Calvino, a melancolia a tristeza que se tornou leve.13 Tais consideraes evidenciam o trabalho elaborativo e transformador da poeta em relao concepo da morte enquanto perda vivenciada e grafada, como esses versos justificam Ficou o selo, o remate/ da obra.14

    Assim, nota-se que a negatividade abordada por Maria Luiza Ramos suscita outras ramificaes sobre a morte, tais como: canto, beleza, celebrao, memria e grandeza. E confere, a partir da conteno e da leveza, o estatuto de unidade Flor da morte. Portanto, o tema revela-se como ptalas-pginas de uma mesma obra, nuances de uma mesma cor.

    O espao exterior do arquivo

    Alm do deslocamento semntico do significante morte, observado na anlise anterior dos poemas, a leitura do livro tambm possibilita a reflexo sobre certa dimenso espacial do tema. Poemas como Residncia do morto, A paisagem do morto e O cortejo abordam possveis lugares de enunciao da morte. Em Residncia do morto h uma diluio do espao legitimado da morte, como estes versos ilustram: No h letreiro, no h nmero./ Um quadriltero, dizeis, de mrmore/ com anjos dbios, direita?/ Bem se v que no conheceis o morto.15 Assim, observa-se que o lugar de enunciao da morte tambm nmade.

    O poema O vu, alm de abordar a discusso espacial acima, explicita que a fronteira entre vida e morte algo sutil, tnue. Sua metfora tambm pode ser lida como mscara, memria herdada e engendrada de parmetros sociais que

    13 CALVINO. Leveza, p. 32.

    14 LISBOA. Flor da morte, p. 23.

    15 LISBOA. Flor da morte, p. 20.

    38

    aderimos ao nos inscrevermos no mundo, ao nos arquivarmos. A noo de arquivamento tambm pode ser observada no poema As colees, do qual cada estrofe ilustra um estgio da vida (da infncia morte). Para Philippe Artires, um dos princpios do arquivamento do eu e dessa coleo de si certa injuno social, pois vivemos numa sociedade grafocntrica que nos exige a memria/lembrana e catalogao de nossas vidas, seu passar a limpo.16

    Jacques Derrida, ao estudar a etimologia da palavra arquivo a partir da raiz grega ark, que representa comeo e comando, define trs princpios que atuam em sua constituio: o princpio topolgico (relacionado ao comeo e origem), o princpio nomolgico (relacionado ordem e lei) e o princpio de consignao que se refere reunio, interligao e disseminao de dados. O primeiro, se o relacionamos aos arquivos literrios, representa a casa do escritor, casa da palavra, lugar (supostamente) de origem. J o segundo representa o poder, a intencionalidade organizacional do escritor, o que deve ser selecionado e exposto ao pblico.17

    Quanto ao ato de arquivar, nota-se que Henriqueta Lisboa conservava certa prtica compulsiva de armazenamento de informaes sobre si, sobretudo no que se refere sua imagem veiculada nos jornais (recepo crtica de suas obras e convvio social). Chegava a arquivar at 15 exemplares de uma mesma notcia e sempre circulava seu nome nessas reportagens, o que denota certa preocupao com sua imagem intelectual.

    O princpio topolgico derridiano permite considerar um quadro pertencente ao Fundo Henriqueta Lisboa, talvez o nico pintado pela poeta. Tal obra artstica composta de rosas vermelhas contidas num vaso com gua. As flores apresentam-se em estado de decomposio, apesar das

    16 ARTIRES. Arquivar a prpria vida.

    17 DERRIDA. Mal de arquivo.

  • 39

    tonalidades fortes utilizadas pela escritora. Tais observaes possibilitam ler o quadro como transposio pictrica do conceito Flor da morte, pois as flores representadas encontram-se no estgio fronteirio e processual de vida e morte, e as cores fortes esboam o fulgor desse evento.

    Ulpiano de Meneses, ao elaborar algumas consideraes sobre a crise da memria na sociedade ocidental, demonstra que a memria possui certa dimenso tcnica, ao ser externalizada com a inveno da imprensa e o aparecimento de registros eletrnicos. Para o historiador, h tambm a ocorrncia concomitante de uma dimenso existencial que aponta para mltiplos lugares da memria, pois por no existir a memria espontnea que seria preciso criar, fora das prticas, a memria vicria e seus artificialismos, como os arquivos, museus e monumentos.18 Tal opinio coincide com o princpio de consignao ressaltado por Derrida e com a relao entre arquivo e memria concebido pelo filsofo, pois o arquivo tem lugar em lugar da falta originria e estrutural da chamada memria.19

    O princpio de consignao elaborado por Derrida, associado concepo de memria exterior nos dias de hoje, oferece subsdios tericos para se pensar numa possvel monumentalizao da imagem de intelectual da autora de Flor da morte, j que em 2006 a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, a partir de uma iniciativa de homenagear escritores e intelectuais em praas pblicas, implantou o monumento Henriqueta Lisboa na Praa da Savassi.

    A esttua de bronze criada pelo artista Lo Santana (que tambm confeccionou as esttuas de Carlos Drummond, Pedro Nava, Hlio Pellegrino, Roberto Drummond, Fernando Sabino e Otto Lara Resende) encontra-se em frente Livraria Travessa e prxima ao apartamento onde Henriqueta Lisboa viveu durante alguns anos. A poeta petrificada aparece de

    18 MENESES. A crise da memria, histria e documento, p. 16.

    19 DERRIDA. Mal de arquivo, p. 22.

    40

    culos, com coque e vestida em traje que faz referncia a roupas de supervisoras/inspetoras de ensino da poca.

    Jacques Le Goff, ao demonstrar como ao longo do sculo XX documentos converteram-se em monumentos, afirma:

    O documento resultado de uma montagem, consciente ou

    inconsciente, da histria, da poca, da sociedade que o produziram,

    mas tambm das pocas sucessivas durante as quais continuou a

    viver, talvez esquecido, durante as quais continou a ser manipulado,

    ainda que pelo silncio. [...] Documento monumento pois resulta do

    esforo das socidades histricas para impor ao futuro voluntria ou

    involutariamente determinada imagem de si prpria.20

    Um elemento interessante a este estudo o livro aberto que Henriqueta traz em suas mos. Na capa aparece grafado somente o nome da poeta. Tal recurso possibilita pensar numa transposio exterior da prtica exercida pela escritora que selecionava, nas reportagens que lia e carimbava em seus livros, a sua assinatura, grife autoral. Portanto, Henriqueta Lisboa, lvida, em praa pblica e prximo sua casa, casa da palavra (livraria e habitao), l sua prpria (auto)biografia, inscreve-se no espao memorialstico literrio da cidade como poeta-cidad. Cabe ressaltar que a escritora recebeu em 1969 o ttulo de cidad honorria de Belo Horizonte, no mesmo ano em que tomou posse na Academia Mineira de Letras. A escritora tambm publicou em 1972 Belo Horizonte bem querer, livro de poemas em homenagem capital mineira.

    A prtica arquivstica e a exibio monumental permitem refletir sobre o princpio nomolgico derridiano, j que a seleo arquivstica e a homenagem prestada pela Prefeitura de Belo Horizonte escritora legitimam a dimenso de controle e lei do que deve ser dito/preservado.

    Assim, observa-se que a perpetuao memorialstica da imagem de Henriqueta Lisboa configura-se de maneira fragmentada e multiforme, a partir do deslocamento espacial e semntico de morte contido intrinsecamente em Flor da

    20 LE GOFF. Documento/monumento, p. 538.

  • 41

    morte e nas dimenses interior e, sobretudo, exterior do arquivo. Ao se tornar patrimnio pblico e memria cultural, a poeta inscreve-se num grande arquivo que a literatura.

    Referncias

    ARTIRES, Philippe. Arquivar a prpria vida. Estudos histricos: arquivos pessoais. Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.

    CALVINO, talo. Leveza. In: CALVINO, talo. Seis propostas para o prximo milnio: lies americanas. 2. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 15-41.

    DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impresso freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2001.

    FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: FREUD, Sigmund. Edio Standard Brasileira das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XIV (1914-1915), p. 245-263.

    HAY, Louis. A literatura sai dos Archivos. In: SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA, Wander Melo (Org.). Arquivos literrios. So Paulo: Ateli Editorial, 2003. p. 65-81.

    HILST, Hilda. Da morte. Odes mnimas. So Paulo: Globo, 2003.

    LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: LE GOFF, Jacques. Histria e memria. Campinas: Editora Unicamp, 2003. p. 525-541.

    LISBOA, Henriqueta. Flor da morte. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

    MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A crise da memria, histria e documento: reflexes para um tempo de transformaes. In: SILVA, Zlia Lopes (Org.). Arquivos, patrimnio e memria: trajetrias e perspectivas. So Paulo: Editora Unesp, 2000. p. 11-29.

    RAMOS, Maria Luiza. A elaborao do negativo na poesia de Henriqueta Lisboa. In: CARVALHO, Abigail de Oliveira; SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA, Wander Melo (Org.). Presena de Henriqueta. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1992. p. 71-84.

    SOUZA, Eneida Maria de. Notas sobre a crtica biogrfica. In: SOUZA, Eneida Maria de. Crtica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 111-120.

    42

    Esttua de Henriqueta Lisboa feita pelo escultor Lo Santana situada na praa da Savassi, em Belo Horizonte.