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 Furtado e os limites da razão burguesa na periferia do capitalismo Plínio de Arruda Sampaio Jr. 1  <<A questão de saber se o pensamento humano pode alcançar a verdade objetiva não é uma que stão teórica, mas uma que stã o prática. Na  prática, o Homem deve provar a verdade, isto é, a realidad e, a objetividade de seu pensamento. A discussão sobre a realidade ou a não-realidade do pensamento – isolada da prática – é uma questão  puramente escolástic a>>, K. M arx, 2a. T ese de Mar x sobre F euerbach 1. Introdução O pensamento de Celso Furtado sobre os dilemas do desenvolvimento na América Latina é uma severa crítica às mazelas do subdesenvolvimento e uma obstinada defesa da poss ibilidade de compati bilizar capitalismo, democracia e soberania nacional na periferia do sistema capitalista mundial. Suas idéias refletem as esperanças e as frustrações de uma época histórica marcada pela derrota de todas as tentativas “reformistas” de superar o duplo condicionamento responsável pelo caráter particularmente perverso do capitalismo nas regiões periféricas – o regime de segregação social e a dependência externa. Até o final da década de 60, Furtado acreditou que o subdesenvolvimento pudesse ser substituído pelo desenvolvimento capitalista nacional. 2  A partir de então, com a constatação de que a emergência de um “capitalismo posnacional” solapava as bases do regime central 1  . Plínio de Arruda Sampaio Jr., professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas – IE/UNICAMP. Artigo preparado para a Revista da Universidade Federal de Uberlândia – UFU, julho 2002. 2 . O diagnóstico e o receituário que levam Furtado a advogar a necessidade do capitalismo nacional encontram-se sistematizados em seus livros A Pré- Revolução Brasileira e Um Projeto para o Brasil.

Arruda Sampaio Jr. (2002) Furtado e Os Limites Da Razão Burguesa Na Periferia Do Capitalismo

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  • Furtado e os limites da razo burguesa na periferia do capitalismo

    Plnio de Arruda Sampaio Jr.1

    , K. Marx, 2a. Tese de Marx sobre Feuerbach

    1. Introduo

    O pensamento de Celso Furtado sobre os dilemas do desenvolvimento na Amrica Latina uma severa crtica s mazelas do subdesenvolvimento e uma obstinada defesa da possibilidade de compatibilizar capitalismo, democracia e soberania nacional na periferia do sistema capitalista mundial. Suas idias refletem as esperanas e as frustraes de uma poca histrica marcada pela derrota de todas as tentativas reformistas de superar o duplo condicionamento responsvel pelo carter particularmente perverso do capitalismo nas regies perifricas o regime de segregao social e a dependncia externa. At o final da dcada de 60, Furtado acreditou que o subdesenvolvimento pudesse ser substitudo pelo desenvolvimento capitalista nacional.2 A partir de ento, com a constatao de que a emergncia de um capitalismo posnacional solapava as bases do regime central 1 . Plnio de Arruda Sampaio Jr., professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas IE/UNICAMP. Artigo preparado para a Revista da Universidade Federal de Uberlndia UFU, julho 2002.2. O diagnstico e o receiturio que levam Furtado a advogar a necessidade do capitalismo nacional encontram-se sistematizados em seus livros A Pr-Revoluo Brasileira e Um Projeto para o Brasil.

  • de acumulao, passou a propugnar a viabilidade do desenvolvimento nos marcos de uma economia mundial interdependente. O objetivo deste artigo compreender como Furtado, um autor particularmente rigoroso, compatibiliza teoricamente a enorme discrepncia entre a gravidade e a contundncia de seu diagnstico sobre o impacto devastador da transnacionalizao do capitalismo sobre as economias latino-americanas e, em aparente contradio com as concluses de sua investigao, a sua renitente insistncia na viabilidade de uma soluo para o impasse do subdesenvolvimento nos marcos do regime capitalista.

    A exposio ser desdobrada em quatro movimentos. Em primeiro lugar, na seo 2, apresentaremos uma sntese de seu arcabouo analtico, resumindo sua concepo de desenvolvimento e seu modo de caracterizar o subdesenvolvimento. Neste momento, destacaremos sua forma de conceber a relao entre estrutura centro-periferia, modernizao dos padres de consumo e heterogeneidade estrutural as categorias angulares que organizam a sua crtica ao subdesenvolvimento. Em seguida, na seo 3, mostraremos sua interpretao sobre a natureza do e seus reflexos sobre o marco histrico que condiciona o desenvolvimento das economias latino-americanas. Nosso propsito explicitar como ele entende as conexes entre integrao da economia mundial, expanso das empresas transnacionais, liberalismo e emergncia de uma nova dependncia. Na parte 4, apresentaremos uma breve sntese de sua concepo do processo de superao do subdesenvolvimento. Identificaremos aqui os princpios epistemolgicos que permitem a Furtado, independentemente da adversidade do momento histrico,

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  • defender uma sada para o impasse do subdesenvolvimento nos marcos do regime capitalista. Por fim, na seo 5, concluiremos com breves observaes sobre o papel de Furtado no pensamento latino-americano e o significado da disputa ideolgica em torno do rico legado de sua Economia Poltica. Apontaremos, ento, os desafios tericos que se colocam para a superao dos limites de sua crtica ao subdesenvolvimento.

    2. Desenvolvimento e subdesenvolvimento como configuraes histricas

    Interpretando o desenvolvimento como a luta do Homem pelo controle do prprio destino e a acumulao como o vetor material que impulsiona o desenvolvimento, o pensamento de Furtado crtica o progresso como valor absoluto capaz de abrir novos horizontes para a realizao das potencialidades criativas dos ser humano. Sua reflexo sobre as causas e as conseqncias do processo de incorporao de progresso tcnico tem por objetivo estabelecer as condies objetivas e subjetivas que permitem sociedade burguesa controlar os fins e os meios das transformaes econmicas, sociais e culturais que caracterizam o capitalismo. Dada a ausncia de critrios ticos na lgica que comanda a busca do lucro, a problemtica do desenvolvimento se traduz na necessidade de restaurar a relao de adequao entre a busca da eficincia produtiva o meio de aumentar o controle do Homem sobre a natureza - e o aumento da riqueza das naes o objetivo que deve presidir o processo de incorporao de progresso tcnico, ou seja, trata-se de recompor a relao de subordinao da vida econmica aos desgnios da sociedade,

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  • relao pervertida pela transformao da produtividade econmica em um fim em si.3

    Com uma metodologia baseada na construo de tipos ideais, de evidente inspirao weberiana, Furtado associa o desenvolvimento capitalista autodeterminado presena de uma configurao histrica muito particular, de acordo com a qual a concorrncia econmica e a luta de classes do lugar a uma dialtica de inovao e de difuso de progresso tcnico que combina movimentos sincrnicos e diacrnicos de aumento da eficincia econmica com processos de distribuio do excedente social que asseguram a socializao dos benefcios do progresso pelo conjunto da sociedade, ampliando cada vez mais a capacidade de consumo da sociedade. A essncia de seu modelo de desenvolvimento econmico foi sintetizada em Pequena Introduo ao Desenvolvimento nos seguintes termos: A presso no sentido de reduzir a importncia relativa do excedente decorrncia da crescente organizao das massas assalariadas opera como acicate do progresso da tcnica ao mesmo tempo em que orienta a tecnologia para poupar mo-de-obra. Dessa forma, a manipulao da criatividade tcnica tende a ser o mais importante instrumento dos agentes que controlam o sistema produtivo, em sua luta pela preservao das estruturas sociais. Por outro lado, as foras que pressionam no sentido de elevar o custo de reproduo da populao conduzem ampliao de certos segmentos do mercado de bens finais, exatamente aqueles cujo crescimento se apia

    3 . A concepo de desenvolvimento de Furtado examinada com detalhe nos seus livros, Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, Teoria e Poltica do Desenvolvimento Econmico, Prefcio Nova Economia Poltica, Criatividade e Dependncia na Civilizao Industrial e Pequena Introduo ao Desenvolvimento.

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  • em tcnicas j comprovadas e abrem a porta para a economia de escala4.

    O tipo ideal construdo por Furtado pressupe a existncia de foras produtivas portadoras de uma composio tcnica do capital condizente com a conformao de um relativo equilbrio na correlao de foras entre o capital e o trabalho que define a diviso do excedente social entre lucro e salrio. a relao de adequao entre as bases tcnicas do aparelho produtivo e as estruturas sociais que moldam o mercado de trabalho que permite que a busca do lucro seja compatibilizada com a elevao sistemtica dos salrios reais e que a introduo de tcnicas cada vez mais produtivas, que economizam trabalho e exigem crescentes escalas mnimas de produo, seja acompanhada de uma dinmica de acumulao que difunde as inovaes at o limite de suas potencialidades tcnicas e econmicas, gerando escassez relativa de trabalho e progressiva expanso do mercado nacional. Assim, Furtado concilia, para o benefcio de todos, o objetivo dos capitalistas de perseguir lucros crescentes e a luta dos trabalhadores por maiores salrios reais. A concorrncia econmica e a luta de classes entre o capital e o trabalho pela diviso do excedente social condicionam-se mutuamente para impulsionar o desenvolvimento econmico. Nas suas palavras: (...) as presses, tanto para manter a estrutura de privilgios inerentes sociedade capitalista como para modific-la, operam convergentemente no sentido de impulsionar o desenvolvimento das foras produtivas. Essa convergncia, contudo, no impede que haja perodos em que prevalecem as presses no sentido de concentrar a renda e outros em que sejam mais fortes os impulsos em sentido 4 . Furtado, C. - Pequena Introduo ao Desenvolvimento, pp. 67-68.

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  • contrrio. As contradies entre os interesses dos dois grupos de agentes que equipam o sistema produtivo traduzem-se de um lado na dialtica da luta de classes, de outro no desenvolvimento das foras produtivas.5

    No arcabouo analtico de Furtado, a dialtica que condiciona a relao de mtua determinao entre inovao difuso do progresso tcnico constitui a referncia heurstica fundamental que organiza a sua crtica ao processo de modernizao desencadeado pela revoluo industrial no final do sculo XVIII. O desenvolvimento supe uma perfeita simetria entre as estruturas produtivas e as estruturas sociais, o grau de desenvolvimento das foras produtivas e o padro de mercantilizao que condiciona a capacidade de consumo da sociedade. O processo de desenvolvimento econmico concebido como o movimento de aproximao ao tipo ideal, cujo desafio primordial reside em vencer os obstculos existentes entre a realidade concreta e o modelo ideal que se pretende alcanar. A pressuposto de tal modelo que as mudanas econmicas, sociais e culturais devem refletir prioridades sobre o modo de utilizar o excedente econmico que sejam compatveis com as possibilidades da sociedade de gerar excedentes e com o atendimento das necessidades e aspiraes materiais do conjunto da sociedade. Qualquer desvio deste tipo ideal tido como uma distoro que afasta a sociedade do desenvolvimento. Tendo como referncia a dialtica inovao-difuso das tcnicas, Furtado diferencia desenvolvimento e subdesenvolvimento, duas modalidades qualitativamente distintas do processo de modernizao capitalista. Ele sintetizou a questo nos seguintes termos:

    5 . Furtado, C. Pequena ..., p. 68. Para uma anlise detalhada sobre a dialtica inovao-difuso ver captulo 5.

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  • A formao do sistema econmico mundial apoiou-se, tanto na transformao das estruturas sociais como no processo de modernizao do estilo de vida. Desenvolvimento e subdesenvolvimento, como expresso de estruturas sociais, viriam a ser as resultantes da prevalncia de um ou outro desses dois processos. Cabe, portanto, consider-los como situaes histricas distintas, mas derivadas de um mesmo impulso inicial e tendendo a reforar-se mutuamente. Quanto mais ampla fosse a diviso internacional do trabalho, mais profundas seriam as transformaes sociais no centro do sistema e mais intensa a modernizao das formas de vida em sua periferia. Portanto, para compreender as causas da persistncia histrica do subdesenvolvimento, faz-se necessrio observ-lo como parte que de um todo em movimento, como expresso da dinmica do sistema econmico mundial engendrado pelo capitalismo industrial6.

    Sem questionar a importncia estratgica da iniciativa privada como fora motriz do processo de incorporao de progresso tcnico, Furtado parte do princpio de que nenhuma organizao empresarial, por mais poderosa que seja, indmita ao poder poltico, no havendo nada que a priori possa impedir a submisso das transformaes capitalistas aos desgnios da sociedade. Dentro deste enfoque, o desenvolvimento depende da capacidade de o poder pblico estabelecer parmetros institucionais que, ao cristalizar uma determinada situao de mercado, delimitam o campo de atuao da concorrncia econmica e da luta de classes, assegurando que a busca do lucro seja compatvel com a realizao da vontade coletiva. Donde a importncia decisiva do Estado nacional como instrumento necessrio - ainda que insuficiente 6 . Furtado, C. Pequena ..., p. 23.

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  • para a civilizao do capitalismo. a convico de que o capital pode ser sujeito a uma regulao, preventiva ou a posteriori, que permite conceber o desenvolvimento como a subordinao do avano do progresso tcnico s aspiraes da sociedade nacional. O pressuposto do desenvolvimento a presena de centros internos de deciso capazes de recompor, sempre que necessrio, as condies para que o processo de incorporao de progresso tcnico concilie a valorizao do capital com o atendimento das necessidades bsicas da sociedade nacional. Um sistema econmico afirma Furtado em Transformaes e Crise na Economia Mundial bem mais do que uma constelao de mercados; pressupe a existncia de um quadro institucional, dentro do qual atua uma estrutura de poder capaz de regular as atividades que qualificamos de econmicas. Entre a chamada soberania do consumidor e a planificao autoritria, muitos so os critrios em que se pode fundar a ordenao das chamadas atividades econmicas. Mas sempre ser necessrio, para que se d essa ordenao e a fortiori exista um sistema econmico, que as decises individuais e coletivas dos utilizadores finais do produto social guardem um certo grau de coerncia, tanto sincrnica como diacronicamente, o que somente se obtm numa sociedade politicamente organizada7.

    Dentro desta perspectiva, a problemtica do desenvolvimento envolve no apenas o avano do capitalismo, mas tambm a sua obedincia aos desgnios da sociedade nacional. Quando examinada do ponto de vista estritamente econmico, a questo se coloca em termos da possibilidade de subjugar a incorporao de progresso tcnico a um objetivo que transcende o mbito estrito do clculo econmico do capital. 7. Furtado, C. Transformaes e Crise na Economia Mundial, p. 220.

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  • Como expresso da vontade coletiva, cumpre ao planejamento econmico determinar o sentido, o ritmo e a intensidade das transformaes capitalistas, compatibilizando-as com as necessidades e as possibilidades da sociedade nacional. Furtado explicita o seu conceito de desenvolvimento de maneira bem precisa: A rigor, a idia de desenvolvimento possui pelo menos trs dimenses: a do incremento da eficcia do sistema social de produo, a da satisfao de necessidades elementares da populao e a da consecuo de objetivos a que almejam grupos dominantes de uma sociedade e que competem na utilizao de recursos escassos. A terceira dimenso , certamente, a mais ambgua, pois aquilo a que aspira um grupo social pode parecer simples desperdcio de recursos a outros. Da que essa terceira dimenso somente chegue a ser percebida como tal como parte de um discurso ideolgico. Assim, a concepo de desenvolvimento de uma sociedade no alheia a sua estrutura social, e tampouco a formulao de uma poltica de desenvolvimento e sua implantao so concebveis sem preparao ideolgica8.

    Na viso de Furtado, em sociedades de origem colonial, atrasadas no desenvolvimento das foras produtivas e portadoras de estruturas sociais tpicas de regimes de segregao social, o repto do desenvolvimento envolve um duplo desafio. Trata-se no apenas de fomentar o aparecimento e a expanso de foras produtivas e de relaes de produo tipicamente capitalistas como tambm de promover as condies para que o processo de acumulao de capital gere escassez relativa de trabalho o elemento-chave para o funcionamento da dialtica inovao-difuso das tcnicas. O pr-requisito deste processo a cristalizao de centros internos de 8 . Furtado, C. Pequena ..., p. 16.

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  • deciso capazes de introduzir reformas que aproximem a realidade concreta das exigncias do tipo ideal idealizado na dialtica inovao-difuso das tcnicas. Nestas regies, o desenvolvimento confunde-se com a problemtica da formao, entendida como o processo de gnese das bases materiais, sociais, estatais e culturais de um Estado nacional com relativa autonomia econmica e poltica dentro do sistema capitalista mundial. Em Furtado, tal estudo organizado em torno dos dilemas da construo de um sistema econmico nacional. A reflexo articula-se tendo como referncia fundamental a oposio entre as exigncias do processo de formao e a dura realidade do subdesenvolvimento uma forma de absorver o progresso que no coaduna com o interesse nacional. Por um lado, o subdesenvolvimento perpetua relaes de dependncia externa que comprometem a autonomia da sociedade nacional, impedindo-a de controlar o seu tempo histrico. Por outro lado, o subdesenvolvimento implica a perpetuao da fratura social que bloqueia a plena integrao da sociedade e do territrio nacional.

    Visto por Furtado como produto de uma circunstncia histrica e de uma vontade poltica, o fenmeno do subdesenvolvimento associado conformao de uma estrutura centro-periferia e deciso de elites aculturadas de priorizar a modernizao dos padres de consumo como norte do processo de incorporao de progresso tcnico.

    A estrutura assimtrica da economia mundial condiciona o subdesenvolvimento medida que integra num mesmo padro de transformao produtiva e mercantil formaes sociais que possuem fortes disparidades no grau de desenvolvimento das foras produtivas e nas formas de organizao das relaes de

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  • produo. Ao abrir espao para a ampliao do excedente social, a economia mundial permite que as economias perifricas participem dos fluxos de progresso gerados nas economias centrais. Ao cristalizar diferenas insuperveis no ritmo de elevao da produtividade do trabalho e dos salrios reais, a difuso desigual do progresso tcnico impede que o padro de eficincia econmica e o estilo de consumo das economias centrais possam ser replicados nas economias perifricas sem provocar grandes distores no seu aparelho produtivo, nas suas estruturas sociais e na sua capacidade de afirmar a identidade nacional. A segmentao da economia mundial em uma estrutura centro-periferia gera, assim, constrangimentos objetivos que limitam o campo de oportunidades das economias perifricas, impedindo-as de reproduzir as faanhas das economias centrais. Nesse sentido, o subdesenvolvimento deve ser visto como parte de um todo, condicionado historicamente pelo padro de desenvolvimento capitalista e no como uma fase do desenvolvimento cujos determinantes dependem nica e exclusivamente da sociedade nacional. Furtado explicita o problema: (...) a civilizao surgida da revoluo industrial europia conduz inevitavelmente a humanidade a uma dicotomia de ricos e pobres, dicotomia que se manifesta entre pases e dentro de cada pas de forma pouco ou muito acentuada. Segundo a lgica dessa civilizao, somente uma parcela minoritria da humanidade pode alcanar a homogeneidade social ao nvel da abundncia. A grande maioria dos povos ter que escolher entre a homogeneidade a nveis modestos e um dualismo social de grau maior ou menor9.

    9 . Furtado, C. A Teoria do Subdesenvolvimento Revisitada, In: Economia e Sociedade, n.1., 1992, p.13.

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  • O subdesenvolvimento surge quando, ignorando tais constrangimentos, elites aculturadas, descomprometidas com o destino da Nao, do primazia modernizao dos padres de consumo como forma dominante de incorporao das tcnicas. Ao estabelecer prioridades materiais em absoluto descompasso com o grau de desenvolvimento das foras produtivas, a opo pela cpia dos estilos de vida das economias centrais marginaliza parcela expressiva da populao das benesses do progresso, condenando-as a sobreviver em condies precrias, vinculadas a formas anacrnicas de produo. A tendncia concentrao de renda e riqueza da decorrente d lugar ao fenmeno da heterogeneidade estrutural que se manifesta nos gritantes desequilbrios setoriais, sociais e regionais que caracterizam o subdesenvolvimento. A relao de causalidade entre modernizao dos padres de consumo e dualismo estrutural foi resumida por Furtado nos seguintes termos: Realizando em grande parte sua reproduo no quadro de um sistema informal de produo, as populaes ditas marginais so a expresso de uma estratificao social que tem suas razes na modernizao. A inadequao da tecnologia, a que se referiram alguns economistas, de um ngulo de vista sociolgico traduziu-se na polaridade modernizao-marginalidade10.

    Assim, estrutura centro-periferia, colonialismo cultural, inadequao tecnolgica e excedente estrutural de mo-de-obra aparecem no arcabouo analtico de Furtado como uma unidade - faces necessrias de um processo perverso de incorporao de progresso tcnico que, ao inviabilizar a dialtica inovao-difuso, compromete o controle sobre os fins e os meios do desenvolvimento nacional, perpetuando nexos de explorao 10 . Furtado, C. Pequena ..., pp. 24-25.

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  • econmica e dominao poltica em relao s economias centrais. Foi o esforo visando a unificar o quadro conceitual dessa problemtica afirma Furtado resumindo a sua teoria do subdesenvolvimento que produziu a teoria da dependncia. Esta se funda numa viso global do capitalismo enfocado como um sistema econmico em expanso vertical e horizontal e como uma constelao de formas sociais heterogneas que permite captar a diversidade no tempo e no espao do processo de acumulao e as projees dessa diversidade no comportamento dos segmentos perifricos. Graas a esse enfoque, foi possvel aprofundar a anlise das vinculaes entre as relaes externas e as formas internas de dominao social nos pases que se instalaram no subdesenvolvimento, bem como projetar luz sobre outros temas de no pequena significao, tais como a natureza do Estado e o papel das firmas transnacionais nos pases de economia dependente11.

    Furtado no oculta o efeito perverso do desenvolvimento capitalista impulsionado pela modernizao dos padres de consumo sobre as condies que regem a explorao do trabalho. Reconhecendo que a correlao de foras entre o capital e o trabalho no mercado de trabalho no podem ser desvinculada do modo de participao da economia no sistema capitalista mundial, ele admite a existncia de um nexo inescapvel entre dependncia externa e super-explorao do trabalho, cuja base social repousa na reproduo de uma enorme massa de mo-de-obra permanentemente marginalizada do mercado de trabalho. No seu livro O Mito do Desenvolvimento Econmico a questo foi resumida assim: O subdesenvolvimento tem suas razes numa conexo precisa, surgida em certas 11 . Furtado, C. Pequena ..., p. 25.

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  • condies histricas, entre o processo interno de explorao e o processo externo de dependncia. Quanto mais intenso o influxo de novos padres de consumo, mais concentrada ter que ser a renda. Portanto, se aumenta a dependncia externa, tambm ter que aumentar a taxa interna de explorao. Mais ainda: a elevao da taxa de crescimento tende a acarretar agravao tanto da dependncia externa como da explorao interna. Assim, as taxas mais altas de crescimento, longe de reduzir o subdesenvolvimento, tendem a agrav-lo, no sentido de que tendem a aumentar as desigualdades sociais12.

    3. Capitalismo posnacional e a nova dependncia

    Atento s mudanas que revolucionaram as bases tcnicas, econmicas, empresariais e institucionais do capitalismo na segunda metade do sculo XX, desde meados da dcada de 70, Furtado alerta para a emergncia de uma nova configurao histrica o capitalismo posnacional - que subverte as premissas histricas que sustentavam o padro de acumulao ancorado no espao econmico nacional. Sua anlise enfatiza a relao de mtuo condicionamento entre o processo de integrao dos mercados centrais, a difuso do padro de produo e consumo norte-americano e a tendncia concentrao de capital que alimenta a internacionalizao do capital. A questo fundamental reside no aparecimento de empresas transnacionais, produtivas e financeiras, com um horizonte de acumulao que ultrapassa as fronteiras nacionais e com um grau de autonomia financeira que foge ao controle das autoridades monetrias nacionais. A integrao

    12 . Furtado, C. O Mito do Desenvolvimento Econmico, p. 94.

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  • dos mercados dos pases centrais diz Furtado constitui seguramente poderosa alavanca de acelerao do crescimento, porquanto abriu novas possibilidades s economias de escala e intensificou a concorrncia. Contudo, sua mais duradoura conseqncia foi criar condies para que as atividades produtivas se organizassem transnacionalmente. A concentrao do poder econmico ia, por essa via, tomar novo flego13.

    Para Furtado, o papel preponderante das empresas transnacionais como fora motriz do dinamismo capitalista tem srias implicaes sobre os fatores que condicionam as decises econmicas, com reflexos de grande envergadura no plano institucional. Isto porque, no af de ampliar o circuito mercantil, encontrar novas oportunidades de negcios e sobrepujar todos os obstculos acumulao de capital, os conglomerados que operam em escala global lanam mo de todos os expedientes imaginveis para integrar seus circuitos de produo, comrcio e financiamento e para aumentar a sua autonomia face ao poder poltico, criando estruturas operacionais que transbordam as fronteiras dos Estados nacionais. No por outra razo que o liberalismo surge como a ideologia por excelncia do capitalismo posnacional. As relaes de mtuo condicionamento entre integrao das economias centrais, fortalecimento das empresas transnacionais e hegemonia do neoliberalismo levam ao paroxismo o processo de unificao produtiva, comercial, financeira e monetria que caracteriza a tendncia globalizao dos negcios inerente ao processo de transnacionalizao do capital. No escapou a Furtado o papel protagonista do Estado norte-americano na reconfigurao da economia mundial: A reconstruo do sistema capitalista, sob 13 . Furtado, C. Crise e Transformao na Economia Mundial, p. 188.

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  • a tutela dos Estados Unidos, no terceiro quartel do sculo atual, fez-se no sentido da integrao dos mercados nacionais dos pases centrais. Os sistemas nacionais, cujas rivalidades conduziram aos dois conflitos mundiais, foram progressivamente desmantelados, passando as suas grandes empresas a estruturar-se globalmente. Esse processo de unificao do espao econmico no centro seria o fator determinante da extraordinria acumulao que a ocorreria no perodo referido. A nova orientao tomada pelo capitalismo privilegiou a tecnologia que se havia desenvolvido nos Estados Unidos. E tambm acicatou a concentrao do poder econmico favorecendo as empresas com capacidade de ao global. Do ponto de vista da periferia, essas modificaes adquiriram uma grande significao, pois, enquanto o capitalismo dos sistemas nacionais, tutelados por estados rivais, era por definio nacionalista, voltado para a integrao interna, o capitalismo das grandes firmas naturalmente cosmopolita, orientado para o livre-cambismo e a livre transferncia de recursos entre pases14.

    Furtado adverte que a discrepncia entre as condies ideais prescritas na dialtica inovao-difuso das tcnicas e a dura realidade de um capitalismo posnacional comandado pelas empresas transnacionais gera um divrcio insustentvel entre as necessidades da sociedade nacional de submeter a racionalidade instrumental racionalidade substantiva e a lgica de valorizao do capital que preside os interesses das empresas transnacionais.15 Ao desarticular os centros 14 . Furtado, C. Pequena ..., pp. 131-132.15 . Tudo leva a crer que o avano no processo de complexificao das relaes entre as economias capitalistas mais avanadas j produziu uma estrutura com certo grau de autonomia, embrio de um possvel sistema econmico mais abrangente do que os atualmente existentes. Ora, essa evoluo no correspondeu a um avano no plano institucional, o que explica a forma inadequada como vem sendo praticada a regulao no mbito

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  • internos de deciso e solapar o poder das foras sociais que se antepem ao capital, a fratura entre meios e fins provocada pelo af de aumentar o lucro a qualquer custo no pode ser reparada por uma interveno do poder pblico destinada a recompor as condies que permitem compatibilizar a acumulao de capital com a preservao de um relativo equilbrio na correlao de foras entre o capital e o trabalho.16 A avaria nos mecanismos de regulao da concorrncia no permite que a racionalidade econmica seja subordinada a uma racionalidade substantiva baseada na preservao da solidariedade orgnica entre as classes sociais. A falncia das polticas econmicas e sociais de inspirao keynesiana vista, assim, como um fenmeno estrutural cujas razes derivam da ausncia de condies objetivas e subjetivas para a promoo do desenvolvimento capitalista em bases nacionais. Neste aspecto, Furtado no deixa nenhuma margem a dvidas: A forma (...) assumida pelo desenvolvimento [nas economias centrais], sob a influncia crescente da tecnologia originada nos Estados Unidos e sob a tutela desse pas, produziu estruturas econmicas cuja coordenao interna tende a escapar aos centros nacionais de poder. Os Estados nacionais j no dispem dos meios necessrios para assegurar a consecuo simultnea de objetivos como o pleno emprego, a estabilidade interna e externa, o aumento regular dos nveis de consumo. Aquilo que a revoluo keynesiana admitiu como sendo uma conquista da nova estrutura, Furtado, C. Crise e ..., p. 221.16 . A suposta racionalidade instrumental, mais abrangente, que emerge no quadro de uma empresa transnacionalizada, no somente de natureza estritamente instrumental, como tambm ignora custos de vrias ordens internalizados pelos sistemas nacionais em que ele se insere. Em realidade, a empresa transnacional no passa de um corte horizontal nas estruturas nacionais de poder, cuja capacidade de auto-regulao , conseqncia, reduzida, Sua nica legitimidade se funda no fato de que os servios que ela presta aumentam a eficincia dos sistemas nacionais em que opera, Furtado, C. Transformao e ..., p. 256.

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  • permanente ao nvel da poltica econmica, hoje se afigura como algo inalcanvel. Foram de tal ordem as mudanas estruturais que a viso keynesiana, fundada na observao de sistemas nacionais com ampla autonomia de deciso no plano internacional, fez-se totalmente obsoleta17.

    A impossibilidade de estabelecer parmetros ticos para restringir o mbito de atuao das grandes empresas transnacionais compromete toda e qualquer propriedade civilizadora do processo de modernizao impulsionado pela globalizao dos negcios. Ao conceber a irracionalidade, a instabilidade e a injustia social como caractersticas inerentes ao capitalismo posnacional, Furtado adverte para o risco de uma crise de civilizao que ameaa os prprios fundamentos da vida humana. Destacando o carter particularmente anti-social e anti-nacional do capitalismo contemporneo, em um de seus ltimos escritos, Furtado alerta para os problemas gerados pela incapacidade de controlar o sentido a ser dado pelas novas tecnologias. Os avanos espetaculares da biotecnologia tambm esto exigindo um reexame profundo das relaes entre fins e meios no que concerne criao cientfica, pois o impacto desta no mundo real cada vez mais imprevisvel. notrio o caso das experincias de clonagem de clulas animais e das que se anunciam de seres humanos. Os investimentos que se orientam nessa direo so de grande monta. Ora, o avano das cincias naturais, que tantos benefcios j trouxeram humanidade, na fase atual ameaa a prpria sobrevivncia desta. Reproduz-se de forma insidiosa a saga das conquistas espetaculares da

    17 . Furtado, C. Crise e ..., p. 130.

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  • fsica nuclear, cujo saldo uma ameaa potencial de destruio em escala desconhecida18.

    Expostas a um marco histrico particularmente adverso, as sociedades perifricas que ainda no afirmaram a sua identidade nacional ficaram particularmente vulnerveis aos efeitos nefastos do novo marco histrico. Acentuando o carter assimtrico da economia mundial e reforando os mecanismos de explorao econmica e dominao poltica, a transnacionalizao do capitalismo agravou o hiato que separa desenvolvimento e subdesenvolvimento. Em meados da dcada de 70, muitos antes das mutaes do processo de integrao do sistema capitalista mundial alcanarem as dimenses hoje conhecidas, Furtado j prenunciava os perigos que a nova ordem representava para os povos latino-americanos: A enorme concentrao de poder que caracteriza o mundo contemporneo poder que se manifesta sob a forma de superestados nacionais e ciclpicas empresas transnacionais, uns e outros apoiados em imensos recursos financeiros, no controle da tcnica e da informao e em instrumentos de interveno aberta ou disfarada em mbito planetrio coloca a Amrica Latina em posio de flagrante inferioridade, dado o atraso que acumularam as economias da regio e as exguas dimenses dos mercados nacionais19.

    A profundidade das mudanas provocadas pela transnacionalizao do capital fez Furtado redefinir radicalmente sua interpretao sobre as condies objetivas que determinam o desenvolvimento das economias perifricas. Diferentemente da situao anterior, marcada pela

    18 . Furtado, C. Em Busca de Novo Modelo, p. 51.19 . Furtado, C. Prefcio Nova Economia Poltica, p. 136.

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  • internacionalizao dos mercados internos, na qual ele imaginava que a dependncia pudesse ser compatibilizada o desenvolvimento, a nova dependncia, ps em xeque a capacidade de as economias latino-americanas subordinarem o rumo das transformaes capitalistas aos desgnios da sociedade nacional.20 Sua interpretao enfatiza basicamente dois aspectos: o efeito perverso da globalizao dos negcios sobre os centros internos de deciso e seu impacto regressivo sobre as estruturas sociais. A atrofia dos mecanismos de comando dos sistemas econmicos nacionais escreve Furtado em Brasil: A Construo Interrompida no outra coisa seno a prevalncia de estruturas de decises transnacionais, voltadas para a planetarizao dos circuitos de decises. A questo maior que se coloca diz respeito ao futuro das reas em que o processo de formao do Estado nacional se interrompe precocemente, isto , quando ainda no se h realizado a homogeneizao nos nveis de produtividade e nas tcnicas produtivas que caracterizam as regies desenvolvidas21.

    Ao contrrio daqueles que vislumbraram no novo contexto histrico janelas de oportunidades que abriam horizontes promissores para as economias perifricas, a anlise de Furtado destaca a mudana qualitativa no carter da dependncia econmica e cultural que passava a condicionar a vida das sociedades latino-americanas.

    20 . Na medida em que a propagao da tcnica moderna busca o caminho da transnacionalizao, maiores so as dificuldades que se apresentam aos pases em desenvolvimento para conciliar o acesso a essa tcnica com a autonomia de deciso de que necessitam ao enfrentar os graves problemas sociais que os afligem. Muitos desses problemas surgem do prprio desenvolvimento tardio, que combina um consumismo exacerbado com uma insuficincia estrutural de criao de emprego, Furtado, C. Crise e ..., p. 25721 . Furtado, C. Brasil: A Construo Interrompida, p. 9.

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  • Num contexto em que as economias perifricas ficam sujeitas a processos de liberalizao radicais, a integrao do sistema produtivo internacional exacerba a dependncia comercial e tecnolgica. Expostas s tendncias que levam especializao das foras produtivas, as economias da regio, sem a menor capacidade de competir com as tecnologias de ltima gerao das economias centrais, so empurradas a assumir um papel subalterno na diviso internacional do trabalho. O ajuste ao novo marco histrico inviabiliza a continuidade do processo de industrializao por substituio de importaes e incentiva a expanso de atividades exportadoras em que o pas detm vantagens comparativas no comrcio internacional, revitalizando as atividades caractersticas de economias de tipo colonial. A ruptura dos elos de articulao da cadeia industrial que acompanha o aumento do coeficiente de importao provoca a desarticulao dos nexos causais entre gasto e renda responsveis pela expanso do mercado interno, deslocando o centro dinmico do crescimento para o exterior. Furtado resumiu o sentido da nova diviso internacional do trabalho assim: Independentemente das mudanas na configurao da estrutura de poder poltico mundial, deve prosseguir a realocao de atividades produtivas provocada pelo impacto das novas tcnicas de comunicao e da informao, o que tende a concentrar em reas privilegiadas do Primeiro Mundo as atividades criativas, inovadoras ou simplesmente aquelas que so instrumento de poder22.22 . Furtado, C. Globalizao das estruturas econmicas e identidade nacional, In: Estudos Avanados 6(16), 1992. A avaliao de que a transnacionalizao do capital desarticula as bases do processo de industrializao por substituio de importaes no contraditria com a sua interpretao sobre a possibilidade de deslocamento de unidades industriais para a periferia. Donde a conjectura sobre a possibilidade de conciliar capitalismo posnacional, modernizao dos padres de consumo e

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  • Numa situao em que a tendncia estrutural a desequilbrios externos exacerbada e a liberdade de movimento de capitais alcana os pncaros, o aprofundamento da integrao do sistema monetrio e financeiro internacional leva a dependncia financeira das economias latino-americanas a nveis extremos, elevando sua vulnerabilidade presso da comunidade econmica internacional. Nessas condies, as economias da regio ficam sujeitas a formas, mais ou menos explcitas, de tutela sobre a poltica econmica. Escrevendo no incio dos anos oitenta sobre o significado do monitoramento da poltica econmica brasileira pelo FMI, Furtado adverte para o risco que significa a renncia de um projeto nacional: O Brasil vive atualmente uma fase de sua histria similar dos anos 90 do sculo passado, quando, sob a presso de desequilbrios financeiros externos, renunciou a ter uma poltica de industrializao e acomodou-se na situao de economia exportadora de produtos primrios e importadora de manufaturas. Perderam, em conseqncia, quarenta anos e a fisionomia do pas foi marcada de forma indelvel23.

    Se no bastasse a paralisia dos centros internos de deciso, o avano da transnacionalizao do capital deixa o desenvolvimento das foras produtivas merc das estratgias

    industrializao perifrica. A avassaladora ofensiva do neoliberalismo nos anos 80 parece ter arrefecido o otimismo em relao importncia dos pases de industrializao recente os chamados NICs como atores capazes de contrabalanar o crescente poder das economias centrais, otimismo que tinha levado Furtado a aventar a possibilidade de uma reforma progressista da Ordem Econmica Internacional. A retirada do captulo XII das ltimas edies de Pequena Introduo Economia, no qual Furtado expe a sua interpretao sobre a possibilidade de uma ordem internacional menos desfavorvel aos pases perifricos, parece confirmar a sua mudana de opinio.23 . Furtado, C. A Nova Dependncia, p.63.

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  • de concorrncia oligopolista das empresas transnacionais em escala planetria, comprometendo a possibilidade de polticas de investimentos que levem em considerao as exigncias do processo de integrao do territrio nacional. Nessas circunstncias, a expanso do aparelho produtivo fica sujeita a um duplo movimento: o estmulo ao regionalismo aberto, que permite uma maior racionalizao da presena das empresas transnacionais no mbito das economias regionais, e o incentivo ao livre comrcio, que atua no sentido da racionalizao de sua operao em escala global. Referindo-se novamente ao caso brasileiro, Furtado alerta para o risco de fragmentao do territrio nacional que esta situao representa (tendncia, diga-se de passagem, presente em praticamente todos os pases da Amrica Latina). Em um pas ainda em formao, como o Brasil, a predominncia da lgica das empresas transnacionais na ordenao das atividades econmicas conduzir quase que necessariamente a tenses inter-regionais, exacerbao de rivalidades corporativas e formao de bolses de misria, tudo apontando para a inviabilizao do pas como projeto nacional24.

    Por fim, Furtado destaca a presena de processos que atuam no plano dos valores e que exacerbam a dependncia cultural, levando-a ao paroxismo. A difuso acelerada dos padres de consumo, potencializada pelas transformaes revolucionrias nas reas de transporte e comunicao, acirra a tendncia das classes mdias e altas a mimetizar os padres de consumo das economias centrais. A absoluta hegemonia do neoliberalismo como doutrina que orienta a ao do Estado, num contexto de falncia do projeto desenvolvimentista e de profunda crise de identidade nacional, implica pura e simplesmente a 24 . Furtado, C. Brasil: A ..., p.35.

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  • inviabilidade prtica de qualquer tipo de poltica pblica de carter republicano, tudo convergindo para a inviabilizao do processo de formao de economias nacionais. Donde a urgncia de Furtado de denunciar o neoliberalismo a ideologia do capitalismo posnacional como a ideologia do desmonte da Nao. A luta contra as ambigidades da doutrina monetarista afirma Furtado no incio dos anos 80 exige uma crtica da prtica do desenvolvimento perifrico na fase de transnacionalizao. O que est em jogo mais do que um problema de desmistificao ideolgica. Temos que interrogar-nos se os povos da Periferia vo desempenhar um papel central na construo da prpria histria, ou se permanecero como espectadores enquanto o processo de transnacionalizao define o lugar que a cada um cabe ocupar na imensa engrenagem que promete ser a economia globalizada do futuro. A nova ortodoxia doutrinria, ao pretender tudo reduzir racionalidade formal, oblitera a conscincia dessa opo. Se pretendemos reaviv-la, devemos comear por restituir idia de desenvolvimento o seu contedo poltico-valorativo25.

    Em suma, da viso abrangente de Furtado surge uma devastadora crtica da globalizao dos negcios que associa capitalismo posnacional, nova dependncia e tendncia reverso neocolonial. Sua anlise explicita as relaes inextrincveis entre integrao da economia mundial, emergncia da empresa transnacional como fora motriz do capitalismo e liberalismo como doutrina econmica dominante processos constitutivos do capitalismo contemporneo com um conjunto de tendncias que, se no forem superadas, colocam em questo a prpria sobrevivncia das sociedades latino-americanas como Estados nacionais capazes de impor um sentido civilizador 25 . Furtado, C. A Nova ..., p. 132.

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  • modernizao capitalista a insero hierrquica na diviso internacional do trabalho, a crise da industrializao por substituio de importaes, a revitalizao da economia colonial, o deslocamento do centro dinmico da economia para o exterior, o aprofundamento do desequilbrio estrutural no balano de pagamentos, a mudana de qualidade na instabilidade cambial, a tutela da comunidade financeira internacional sobre a poltica econmica, a adoo de programas de ajuste regressivos que subordinam todos os aspectos da vida nacional s exigncias da ordem global, a acelerada desnacionalizao da economia, o aumento das rivalidades inter-regionais que ameaam a unidade territorial da nao, o acirramento do mimetismo cultural que impulsiona a modernizao dos padres de consumo, a alarmante ampliao do excedente estrutural de mo-de-obra que alimenta a crise social, a hegemonia do neoliberalismo, a desarticulao dos centros internos de deciso, a americanizao dos estilos de vida e a crise de identidade nacional. Em poucas palavras, a globalizao dos negcios quebra as sinergias econmicas, sociais e polticas que haviam dado coerncia aos regimes de acumulao ancorados nos sistemas econmicos nacionais. Com o avano da internacionalizao dos circuitos econmicos, financeiros e tecnolgicos, debilitam-se os sistemas econmicos nacionais. As atividades estatais tendem a circunscrever-se s reas sociais e culturais. Os pases marcados por acentuada heterogeneidade cultural e econmica sero submetidos a crescentes presses desarticuladoras. A contrapartida da internacionalizao avassaladora o afrouxamento dos vnculos de solidariedade histrica que unem, no quadro de certas nacionalidades, populaes marcadas por acentuadas disparidades de nvel de vida, diz Furtado.26

    26 . Furtado, C. Brasil: A ..., p. 57.

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  • 4. As vias para o desenvolvimento nacional e os limites da teoria do subdesenvolvimento

    Furtado concebe a superao do subdesenvolvimento como um ato soberano de vontade poltica, cuja essncia reside em vencer os obstculos tcnicos, econmicos, sociais e culturais que bloqueiam o pleno controle das sociedades latino-americanas sobre os fins e os meios do desenvolvimento nacional. O desafio romper a dupla articulao que distancia o subdesenvolvimento do modelo capitalista ideal, baseado na dialtica inovao-difuso das tcnicas. O n da questo consiste em enfrentar a situao de dependncia externa e o problema do excedente estrutural de mo-de-obra. Na sua viso, a mudana decisiva, que desencadeia uma nova dinmica de incorporao de progresso tcnico, origina-se no plano cultural. Visto como um processo de longa durao, o crucial abandonar a modernizao dos padres de consumo a causa ltima do subdesenvolvimento como prioridade que orienta a organizao da vida econmica.

    A convico de que o capitalismo posnacional tornara-se uma realidade irreversvel e a avaliao de que uma opo pela desconexo com a economia mundial provocaria custos econmicos indesejveis levaram Furtado a abandonar a bandeira do desenvolvimento capitalista nacional como alternativa capaz de abrir novos horizontes para as sociedades subdesenvolvidas.27 Descartada a viabilidade de um 27 . O impacto especfico do novo contexto histrico sobre as economias que fazem parte da periferia do sistema econmico mundial discutido em Dependncia num mundo unificado, In: Furtado, C. Criatividade e Desenvolvimento.

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  • regime de acumulao centrado no espao econmico nacional e afastada a convenincia de uma soluo socialista, Furtado, em aparente contradio com a gravidade de sua interpretao sobre o carter da nova dependncia, prega uma sada para o impasse do subdesenvolvimento nos marcos do prprio capitalismo posnacional, propugnando a alternativa de um desenvolvimento endgeno, cuja essncia consiste no controle dos fins que orientam a incorporao de progresso tcnico (e no mais dos fins e nos meios). Escrevendo no incio da dcada de 80, quando a virulncia da contra-revoluo liberal ainda no havia se delineado claramente, no fecho de seu livro, Brasil: A Construo Interrompida, ele explicita suas esperanas: Condies se esto reunindo para que os pases do Terceiro Mundo realizem efetivos progressos em seu empenho de modificar as regras do jogo, com vistas a romper a tutela tecnolgica e financeira que atualmente lhes imposta. Mas os ganhos que se obtenham somente sero definitivos se um esforo simultneo for realizado para modificar o atual modo de desenvolvimento, cuja lgica interna engendra no Terceiro Mundo sociedades elitistas e predatrias28.

    Ao contrrio do que se poderia imaginar quando se leva em considerao as dificuldades apontadas pelo seu diagnstico, os supostos que fundamentam a sua crena no desenvolvimento endgeno a partir de uma situao perifrica a criao de formas supranacionais de regulao da concorrncia econmica, a possibilidade de uma economia mundial baseada em relaes de interdependncia e o controle das sociedades perifricas sobre seus centros internos de deciso so perfeitamente consistentes com as bases tericas e metodolgicas que fundamentam o pensamento de Furtado. A coerncia analtica 28 . Furtado, C. Pequena ..., p. 161.

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  • entre o diagnstico e o receiturio dada pelo seu modo de interpretar a realidade como uma contingncia histrica, malevel a diferentes configuraes, e no como uma necessidade histrica com sentido imanente, decorrente de contradies irredutveis que regem o movimento do capitalismo. Nesta divergncia, o que est em questo a magnitude do raio de manobra da sociedade burguesa para modelar o desenvolvimento capitalista conforme as suas convenincias.

    Mesmo admitindo a presena de grandes assimetrias na economia mundial, reconhecendo a cristalizao de relaes de explorao econmica e dominao poltica entre o centro e a periferia e interpretando o subdesenvolvimento como uma forma possvel da modernizao capitalista, Furtado rejeita a idia de que exista uma conexo necessria entre a prosperidade das economias centrais e a necessidade de mecanismos de transferncia de renda das economias perifricas que repousam em ltima instncia na super-explorao do trabalho; no aceita a noo de que o desenvolvimento capitalista leve necessariamente ao aparecimento do imperialismo como superestrutura do capitalismo; e refuta a suposio de que a condio perifrica constitua um determinante inescapvel do subdesenvolvimento. Comentando a formao da estrutura centro-periferia, Furtado explicita sua viso contingencial da realidade histrica: Impe-se, (...), uma viso global do sistema capitalista que tenha em conta o que invariante em suas estruturas e o que surge da Histria e est em permanente transformao. A forma de apropriao do excedente mediante transaes mercantis e com base no controle de um excedente preexistente, invariante. Os reflexos dessa forma de apropriao do excedente no sistema de dominao social

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  • produzem-se historicamente, em funo da relao de foras vis--vis de outras formas de apropriao do excedente e do grau de integrao dos grupos sociais afetados. Que o sistema capitalista se haja estruturado na polaridade centro-periferia, desenvolvimento-subdesenvolvimento, dominao-dependncia essencialmente um fato histrico, que a ningum ocorreria considerar como uma necessidade, conseqncia inelutvel da expanso do modo capitalista de produo29.

    Antes de representar falta de rigor terico, inconsistncia metodolgica, contradio com a sua interpretao histrica ou puro e simples abandono da razo como guia da ao, o nexo entre diagnstico e receiturio, perfeitamente coerente quando avaliado em seus prprios termos, pe em evidncia o limite de sua crtica do subdesenvolvimento e o horizonte reformista que orienta a sua utopia de um desenvolvimento capitalista civilizado na periferia da economia mundial.

    Preocupado em estabelecer os desafios que se colocam para vencer a situao de subdesenvolvimento, Furtado combina o mtodo histrico-estrutural latino-americano com a construo

    29 . Furtado, C. Pequena ..., p. 82. A convico de que o imperialismo no intrnseco ao capitalismo se baseia na idia de que a economia industrial possui dinamismo endgeno que dispensa a necessidade da conquista de mercados externos. A essncia de seu argumento sobre a viabilidade de um capitalismo em s pas foi exposta com clareza em Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, um de seus primeiros trabalhos: (...) indicamos que esse avano da tecnologia abriu oportunidades aos capitais, em permanente acumulao, de reincorporar-se ao processo produtivo. Dessas observaes depreende-se que a economia industrial, ao contrrio do que ocorria com as economias comerciais, no necessita de uma fronteira geogrfica em expanso para crescer. O seu desenvolvimento opera-se, basicamente, em profundidade, isto , traduz a intensificao da capitalizao no processo produtivo. Demais, o crescimento, na economia industrial, imanente ao sistema e no contingente, como ocorre com a economia comercial, pp. 153-153. Em As teorias marxistas do capitalismo imperialista, Furtado sistematiza sua crtica teoria marxista do imperialismo, In: Teoria e Poltica do Desenvolvimento Econmico, pp. 257-262.

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  • de tipos ideais de inspirao weberiana, para estabelecer o marco histrico mais geral que define a especificidade dos parmetros que condicionam o desenvolvimento nacional na periferia da economia mundial. Ao alar o bem-estar da Nao como objetivo ltimo do desenvolvimento, sua viso assume o capitalismo regulado como a mais alta expresso da civilizao contempornea. A naturalizao do Estado nacional burgus, definido como um fim em si, associado aos valores do pesquisador, oculta os antagonismos de classe inerentes ao regime capitalista. Quando a realidade estivesse prxima do modelo ideal representado pela dialtica inovao-difuso das tcnicas, a sociedade teria se adequado aos princpios da razo e seu arcabouo analtico perderia toda a fora crtica para se transformar no seu contrrio: a apologia do capitalismo como fora motriz do desenvolvimento. Donde a mitificao do Estado de Bem Estar como uma espcie de situao histrica ideal que concilia de maneira duradoura os interesses da burguesia e do proletariado.

    Ao camuflar o fato de que numa sociedade polarizada entre o capital e o trabalho nem todos os homens tm a mesma capacidade de controlar o seu destino, o alcance parcial e arbitrrio da abstrao de Furtado ignora que a situao concreta da classe trabalhadora implica necessariamente a sua explorao e a sua alienao.30 tal procedimento que lhe permite desvincular a lei de movimento do capitalismo e a luta de classes dos antagonismos gerados pelo processo de extrao de mais valia, associando o dinamismo econmico s

    30 . A propsito convm lembrar a observao de Herbert Marcuse a respeito dos efeitos do despotismo do capital na vida dos operrios: si el ejerccio del espiritu absouto, el arte, la religion y la filosofia constituyen la esencia del hombre, el proletariado est excluido definitivamente de esta esencia, pues su existncia no le permite tener tiempo para dedicarse a estas actividades, Razon y Revolucin, p. 257.

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  • decises tomadas no mbito do processo de circulao que tm como pano de fundo o brao de ferro entre o capital e o trabalho pela diviso de um excedente econmico (cuja origem, diga-se de passagem, fica desvinculada do processo de produo).31 Afastado o fantasma da revoluo social, o futuro do capitalismo torna-se um problema eminentemente poltico associado capacidade de acomodar as tenses entre o capital e o trabalho pelo crescimento econmico e pela distribuio dos frutos do desenvolvimento econmico. O acesso da massa trabalhadora a formas de consumo antes privativas das classes que se apropriam do excedente, criou para aquela um horizonte de expectativas que condicionaria o seu comportamento no sentido de ver, na confrontao de classes, mais do que um antagonismo irredutvel, uma srie de operaes tticas em que os interesses comuns no devem ser perdidos de vista32.

    A utilizao de uma teoria do excedente que estabelece as relaes causais entre a gerao, a distribuio e a utilizao do produto social como marco analtico para organizar a reflexo sobre o desenvolvimento nacional permite a Furtado associar o dinamismo do capitalismo a determinantes tcnicos e culturais subordinados ao livre arbtrio da sociedade nacional. A desvinculao do excedente econmico do 31 . Ao circunscrever a contradio entre o capital e o trabalho ao mbito das lutas econmicas, Furtado acaba transformando a luta de classes no motor do capitalismo. Em Dialtica do Desenvolvimento, ele colocou a questo nos seguintes termos: O desenvolvimento do capitalismo, na sua fase mais avanada, deriva o seu principal impulso dinmico da agressividade da massa trabalhadora, que luta para aumentar sua participao no produto social. Essa agressividade, pondo em risco a taxa de lucro da classe capitalista, suscita como reao o interesse pelas inovaes tecnolgicas que tendem a reduzir a demanda de mo-de-obra por unidade de produto, Furtado, C. Dialtica do ..., p. 64.32 . Furtado, C. O Mito ..., p. 85. Em Prefcio Nova Economia Poltica, ele define o capitalismo nos seguintes termos: O uso de um excedente como instrumento para captao de outro excedente, decorrncia natural das operaes de intercmbio, a base das formaes sociais que chamamos genericamente de capitalismo, p. 36. Seu modo de compreender o capitalismo est resumido nas pginas 36 a 44.

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  • processo de gerao de mais valia desloca o centro da anlise do processo de produo para o processo de distribuio. Deste modo, o carter do desenvolvimento capitalista deixa de estar regido pela lei do valor. Ao rejeitar a existncia de regularidades naturais que funcionam como leis imanentes, o arcabouo conceitual de Furtado afasta a possibilidade de que as transformaes que caracterizam o desenvolvimento capitalista fiquem subordinadas a necessidades histricas inexorveis, determinadas pelas contradies que brotam como foras tectnicas da prpria realidade. Na ausncia de uma teoria do valor, o carter alienante do processo de valorizao do capital e seus efeitos contraditrios sobre a sociedade passam a ser vistos como contingncias e no como necessidades histricas.

    Ao rejeitar a idia de que as taras do capital possam derivar do prprio metabolismo do regime capitalista e ao destacar as potencialidades progressistas da iniciativa privada como veculo de progresso tcnico, Furtado abre espao para a edulcorao da sociedade burguesa. tal construo que lhe permite conciliar a extraordinria capacidade de criticar a realidade quando ela se afasta do tipo ideal e a defesa do regime capitalista regulado como alternativa civilizadora. So inmeras as afirmaes de Furtado reiterando a ausncia de leis de movimento que condicionam o formato do capitalismo e a sua grande maleabilidade a diferentes formas de combinaes entre centro e periferia, Estado e mercado, moderno e atraso. exemplar desta sua viso a crena na possibilidade de uma configurao diferente, com carter construtivo, para o prprio capitalismo posnacional: (...) a internacionalizao do sistema produtivo, na forma assumida nos ltimos decnios, traduz muito mais os interesses das

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  • grandes empresas e do capital financeiro do que uma necessidade engendrada pela prpria lgica do sistema33.

    Elevando a criatividade cultural condio de categoria transcendental responsvel pela transformao da sociedade, Furtado desvincula as decises cruciais que definem o futuro da sociedade das contradies que impulsionam a luta de classes e que condicionam o seu devenir. Com este procedimento, a fora motriz da histria desloca-se da luta entre sujeitos histricos com interesses estratgicos irreconciliveis para a luta entre atores sociais que se batem por valores discrepantes. A definio da situao histrica que condiciona a ao do homem como uma estrutura composta de nexos parciais e provveis, unidos por relaes de causa e efeito, exclui totalidades dialticas que expressem conexes orgnicas entre opostos. Assim, o campo de oportunidades que define as possveis alternativas da sociedade para enfrentar seus dilemas deixa de estar relacionado a necessidades histricas, geradas pelo acirramento das contradies, para vincular-se aos valores que regem as decises da sociedade, materializando-se na forma de uma reao de insatisfao pela distncia entre os modelos ideais que orientam a ao do homem e a sua realidade concreta.3433 . Furtado, C. Pequena ..., p. 154.34 . A importncia crucial da criatividade, de reconhecida inspirao em Nietzche, como mola propulsora do desenvolvimento foi sintetizada por Furtado nos seguintes termos: Os conceitos de estrutura (forma) e de processo (causalidade) so ingredientes fundamentais no trabalho cognoscitivo. A nossa viso do mundo tem a os seus pontos de apoio bsicos. O enfoque estrutural, porque permanece no plano das descries morfolgicas e exclui a noo de causalidade, encurta o horizonte cognoscitivo. Por outro lado, o enfoque analtico conduz a um determinismo localizado e oculta o qualitativo. Aristteles pretendeu integrar esses dois conceitos a partir do princpio de finalidade. Na metodologia das cincias sociais concebvel obter essa integrao a partir da noo de criatividade, admitida esta como a faculdade humana de

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  • Dentro desta perspectiva, o sentido da mudana social fica indeterminado, pois ainda que se admita a inegvel influncia do passado no condicionamento do futuro, no se descartam surpresas histrica que no estavam inscritas no movimento anterior da sociedade. Como o novo no concebido como uma diferenciao do velho, mas como o resultado de uma inovao cultural, o passado condiciona o futuro, mas no se impe como determinante histrico inescapvel, deixando em aberto um amplo leque de possibilidades histricas. Tal procedimento permite a Furtado explicitar as contradies do subdesenvolvimento (e do prprio capitalismo) sem ter de consider-las como realidades histricas que implicam a necessidade inexorvel de negar o capitalismo. Na ausncia de contradies que reflitam a unidade de contrrios, este marco analtico fica livre para imaginar solues por meio de mudanas nos termos da problemtica, jogando toda a responsabilidade pelo futuro do capitalismo na capacidade de inovao da sociedade burguesa. A recusa em aceitar a idia de que o processo histrico portador de um sentido imanente explicitada na sua forma de conceber o futuro das sociedades subdesenvolvidas: O subdesenvolvimento, como o deus Janus, afirma Furtado em seu artigo O Subdesenvolvimento Revisitado tanto olha para frente como para trs, no tem orientao definida. um impasse histrico que espontaneamente no pode levar seno a alguma forma de catstrofe social.35

    interferir no determinismo causal, enriquecendo de novos elementos um qualquer processo social. Quando alcana certa ponderao, ou quando converge a ao de vrios deles, os atos inovadores provocam descontinuidade estrutural. A faculdade inovadora (criatividade) da qual existe plena evidncia no plano sociolgico, assumiria assim estatuto no plano lgico, Furtado, C. Criatividade e ..., p. 172.35 . Furtado, C. O Subdesenvolvimento Revisitado, in: Economia e Sociedade, n.1. 1992, p.19.

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  • A ausncia de nexos orgnicos necessrios entre as partes que compem o todo abre espao para que Furtado trabalhe com a noo de sociedade industrial, entendida como um padro de civilizao que d primazia absoluta ao desenvolvimento das foras produtivas. Ao transformar o imprio da racionalidade instrumental na organizao da produo como denominador comum que unifica todas as formas de organizao da sociedade moderna, esta abordagem dilui a oposio dialtica entre capitalismo e socialismo. A desconexo entre o desenvolvimento capitalista e o processo histrico que prepara as bases objetivas e subjetivas para o advento do socialismo um regime de transio para o comunismo - deixa o caminho livre para transformar a alternativa entre capitalismo e socialismo num problema moral, que depende das preferncias e dos valores de cada um, completamente desvinculado das contradies e dos antagonismos ineludveis que brotam inexoravelmente do desenvolvimento capitalista.

    Tal procedimento permite a Furtado distinguir as diferentes vias para a superao do subdesenvolvimento em funo das vrias formas de combinar mercado e Estado, maior ou menor desigualdade social, maior ou menor exposio concorrncia internacional. As estratgias para a endogeneizao do desenvolvimento passam, assim, a diferenciar-se pela prioridade relativa dada s seguintes alternativas: distribuio de renda ou aumento da riqueza nacional; centralizao ou descentralizao do sistema econmico; e maior ou menor integrao comercial, produtiva e financeira no sistema econmico mundial. Explicitando a sua preferncia por uma sada reformista do subdesenvolvimento, Furtado resumiu as vantagens de uma soluo baseada no capitalismo

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  • civilizado: As experincias (...) ensinam que a homogeneizao social condio necessria mas no suficiente para alcanar a superao do subdesenvolvimento. Segunda condio necessria a criao de um sistema produtivo eficaz dotado de relativa autonomia tecnolgica, o que requer: (a) descentralizao de decises que somente os mercados asseguram; (b) ao orientadora do Estado dentro de uma estratgia adrede concebida; (c) exposio concorrncia internacional. Tambm apreendemos que para vencer a barreira do subdesenvolvimento no se necessita alcanar os altos nveis de renda por pessoa dos atuais pases desenvolvidos36.

    Sob reconhecida influencia de Karl Mannheim, Furtado atribui um papel decisivo ao intelectual crtico como artfice da ruptura com o crculo vicioso do subdesenvolvimento. A seu ver, a inexistncia de uma burguesia nacional e o estado de anomia das massas trabalhadoras transformam a intelligentsia nacional em uma espcie de demiurgo da nao, responsvel - por cima dos interesses particularistas que a cercam - pela identificao dos problemas do pas, pela definio de um receiturio para resolv-los e pela sua materializao em vontade poltica. Ao enfatizar os valores que devem reger o desenvolvimento nacional e a importncia crucial de uma relao de adequao entre meios a fins, Furtado transforma a razo em parteira da Nao.

    O equacionamento da luta poltica a partir da contraposio entre elites dirigentes e massas dominadas descarta o papel da luta de classes e da violncia revolucionria na histria. O receiturio para a superao do subdesenvolvimento fica, assim, circunscrito aos marcos das solues institucionais, 36 . Furtado, C. O Subdesenvolvimento ..., p.15.

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  • atendo-se ao horizonte republicano que orienta a sua viso de mundo. Escrevendo no calor dos acontecimentos que antecederam o golpe militar de 1964, em Dialtica e Desenvolvimento, Furtado afirma: A responsabilidade dos intelectuais em nenhuma poca foi to grande como no presente. E essa responsabilidade vem sendo trada pela ao de uns e a omisso de outros. (...) No se pretende que exista uma moral dos intelectuais por cima de quaisquer escalas de valores, as quais esto necessariamente inseridas nalgum contexto social. Mas, no se pode desconhecer que o intelectual tem uma responsabilidade social particular, sendo como o nico elemento dentro de uma sociedade que no somente pode, mas deve, sobrepor-se aos condicionantes sociais mais imediatos do comportamento individual. Isto lhe faculta mover-se num plano de racionalidade mais elevado e lhe outorga uma responsabilidade toda especial: a da inteligncia. Porque tem essa responsabilidade, o intelectual no se pode negar a ver mais longe de que lhe facultam as lealdades de grupo e as vinculaes de cultura. Seu compromisso supremo com a dignidade da pessoa humana atributo inalienvel do ser do intelectual37.

    A inexistncia de vnculos orgnicos necessrios entre a conscincia dos sujeitos histricos e suas condies concretas de existncia, assim como entre o contedo das polticas pblicas e o carter das classes sociais que controlam o processo produtivo d lugar a uma concepo instrumental do Estado. A idia de um poder pblico que paira sobre a sociedade, desvinculado da luta de classes, deixa o futuro merc da vontade poltica das elites dominantes. A idia de que perfeitamente possvel conceber uma 37 . Furtado, C. Dialtica do ..., p. 9.

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  • racionalidade substantiva baseada na busca do bem comum faz a auto-superao do subdesenvolvimento depender, em ltima instncia, da coragem dos governantes para enfrentar os desafios histricos e de sua criatividade para vislumbrar novos horizontes.38 Ao considerar a possibilidade de um Estado dotado de racionalidade tcnica, capacidade operacional e autonomia poltica para pautar as suas aes por um Projeto Nacional, Furtado oculta o carter classista do padro de dominao burgus e a sua limitada capacidade para regular e reformar o capitalismo. Em seu livro Um Projeto para o Brasil, Furtado explicita a essncia de sua viso de Estado, de inconfundvel inspirao weberiana: Se se admite como, como doutrina pacfica, que a pequena minoria que controla a maior parte da capacidade produtiva de nosso pas dispe do poder e dos meios para opor-se com xito a uma poltica de desenvolvimento que implica reduzir sua participao na renda nacional, a discusso do problema nos termos em que a fazemos aqui no tem sentido prtico. Partiremos, entretanto, de uma hiptese diferente, ou seja, que o sistema de poder em nosso pas no se confunde, exatamente, com a estrutura social que controla o sistema produtivo (...)39.

    Em suma, ao negar a existncia de nexos necessrios entre as foras produtivas, as relaes de produo e as complexas dimenses que compem a superestrutura de cada formao social, a teoria do subdesenvolvimento de Furtado oferece uma interpretao idealista do subdesenvolvimento. Recusando explicitamente a perspectiva do materialismo histrico, 38 . No outro o motivo que levou Furtado a escolher uma inspiradora exaltao de Pricles como epgrafe de seu livro Dialtica do Desenvolvimento: .39 . Furtado, C. Um Projeto..., p. 47.

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  • Furtado rejeita a idia de que existam relaes necessrias entre produo e circulao, valores de troca e valores de uso, valorizao do capital e antagonismos de classe, expanso do capitalismo e seu carter desigual e combinado, gerao de mais valia e alienao, capitalismo e socialismo. Dando primazia aos determinantes tcnicos e culturais que impulsionam o processo de incorporao de progresso tcnico, a critica ao subdesenvolvimento se restringe a questionar os valores de uso gerados pelo processo de modernizao dos padres de consumo e seus impactos nefastos sobre a coeso social, a distribuio de renda e soberania nacional. A mediao entre a causa e o efeito destaca os efeitos da cpia dos estilos de vida e de consumo das economias centrais sobre a composio tcnica do capital, o desenvolvimento das foras produtivas e a autonomia dos centros internos de deciso. Em Dialtico do Desenvolvimento, Furtado explicita sua crtica ao materialismo: Uma hiptese simplificadora como a que formulou Marx, grupando os elementos que compem a estrutura social em infra-estrutura (relacionados com o processo produtivo) e superestrutura (valores ideolgicos) teve extraordinria importncia como ponto de partida para o estudo da dinmica social. At o momento presente essa hiptese no foi substituda por outra de maior eficcia explicativa, ao nvel de generalidade a que foi formulada. Contudo, necessrio reconhecer que a esse nvel de generalidade quase nenhum valor apresenta um modelo analtico como instrumento de orientao prtica. E o objetivo da cincia produzir guias para a ao prtica40.

    A concepo idealista do processo histrico abre brechas para solues utpicas, completamente descoladas das condies 40 . Furtado, C. Dialtica do ..., p. 22.

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  • objetivas e subjetivas que determinam as tendncias efetivas da luta de classes. A esperana de um capitalismo civilizado, que est sempre alm da linha do horizonte, alimenta um possibilismo que nunca se cumpre e que no encontra condies para se tornar fora poltica real. Visto com o privilgio da experincia histrica, a f na via capitalista de superao do subdesenvolvimento faz lembrar o personagem da literatura infantil alem que apregoa ter sado da areia movedia puxando-se pelo prprio cabelo. H muito tempo, em seu livro Misria da Filosofia, Marx apontou os limites do utopismo como resposta aos problemas da sociedade capitalista: O ideal corretivo que gostariam de aplicar ao mundo no seno o reflexo do mundo atual. totalmente impossvel reconstituir a sociedade sobre a base de uma sombra embelezada da mesma. medida que a sombra vira corpo, percebe-se que o corpo, longe de ser o sonho imaginado, apenas o corpo da sociedade atual.

    A comparao entre a convico do jovem Furtado em relao ao futuro do Brasil e o ceticismo de seus ltimos escritos, patente nas metforas hericas utilizadas para exaltar os homens de bem ao, indica que ele prprio no desconhecia a baixa viabilidade de uma sada reformista para a tragdia do subdesenvolvimento (comparando-a, em certo momento, ao desafio de trocar as rodas do trem em pleno movimento). Em respeito absoluta integridade intelectual e moral de Furtado, cabe advertir, no entanto, que a sua insistncia em encontrar uma soluo para o subdesenvolvimento dentro dos marcos do regime burgus, longe de representar um sintoma de irracionalidade, que estaria em aberta contradio com a sua interpretao histrica, trata-se, na realidade, de uma

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  • concluso perfeitamente coerente com a sua perspectiva weberiana de conceber a ao com respeito a um valor.41

    5. O que fazer como o rico legado de Furtado?

    Intelectual voltado para a prxis, Celso Furtado viveu numa poca de profundas transformaes e grandes turbulncias econmicas, sociais e polticas. Em sua trajetria atravessou momentos histricos bem distintos. At a consolidao da revoluo burguesa como uma contra-revoluo permanente, Furtado foi um dos principais arquitetos do projeto reformista A Fantasia Organizada - que empolgou as lutas sociais e polticas nas dcadas de 50 e 60. Refletindo em uma conjuntura marcada por um intenso debate intelectual sobre os desafios da sociedade latino-americana, em suas primeiras formulaes Furtado defende a superao do subdesenvolvimento pela via do desenvolvimento nacional.

    O aborto do processo de formao de Estados nacionais democrticos e soberanos afastou-o dos meios acadmicos latino-americanos. A falta de base social para impulsionar o projeto reformista impediu que suas idias fossem convertidas em fora material concreta capaz de condicionar o curso dos acontecimentos. Banido da vida pblica, suas reflexes se transformaram em uma espcie de resduo crtico que anunciava o espectro de uma tragdia social. No obstante a adversidade 41 . A propsito no custa lembrar a observao de Raymond Aron: El acto es racional, no porque tienda a alcanzar un fin definido y exterior, sino porque no aceptar el desafo o abandonar un navo que se hunde sera considerado cosa deshonrosa. El actor acta racionalmente al aceptar todos los riesgos, no para obtener un resultado extrnseco, sino para permancer fiel a la idea que se forja del honor, Raymond A. - Las Etapas del Pensamiento Sociolgico, vol. 2., p. 224.

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  • do contexto histrico, Furtado no perdeu a f na possibilidade de uma soluo civilizada para os terrveis impasses do subdesenvolvimento. Consciente de que a emergncia do capitalismo posnacional no deixava margem para o desenvolvimento nacional, passou a advogar a possibilidade de combinar dependncia e desenvolvimento.

    Ao contrrio do que se poderia supor, a substituio dos governos militares por democracias formais no implicou a volta de Furtado ao centro do debate pblico. A institucionalizao da contra-revoluo permanente manteve o veto ao pensamento crtico. Renegado pelo establishment, medida que sua crtica radicaliza, denunciando o carter particularmente perverso da nova dependncia, aumenta o seu isolamento poltico e seu aleijamento dos centros de deciso da poltica econmica. Nos seus ltimos anos de vida, seu prestgio intelectual e moral era inversamente proporcional sua real influncia sobre a opinio publica.

    A rejeio das idias reformistas de Furtado pelas classes dominantes e sua marginalizao do debate nacional revelam os estreitos limites da razo burguesa na periferia do sistema capitalista mundial. Sem tem a quem dirigir sua pregao, Furtado amarga um longo ostracismo. De intelectual orgnico das foras que lutavam pelas reformas de base, torna-se uma espcie de cavaleiro andante que, solitrio, combate o absurdo de uma modernidade frvola que condena a sociedade ao crculo vicioso do subdesenvolvimento. Na epgrafe de seu livro, Brasil: A Construo Interrompida, escrito no incio da dcada de 90, quando o vendaval neoliberal apenas comeava sua devastao, ele reconhece no sem uma elevada dose de auto-ironia a extraordinria adversidade dos novos tempos:

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  • Resistir viso ideolgica dominante seria um gesto quixotesco, que serviria apenas para suscitar o riso da platia, quando no o desprezo de seu silncio. Mas como desconhecer que h situaes histricas to imprevistas que requerem a pureza de alma de um Dom Quixote para enfrent-las com alguma lucidez? E como a Histria ainda no terminou, ningum pode estar seguro de quem ser o ltimo a rir ou a chorar.

    A economia poltica uma cincia fundamentalmente histrica. Compreender o papel e o significado de Furtado no pensamento latino-americano esclarecer as potencialidades e os limites de sua teoria do subdesenvolvimento como interpretao dos problemas e dos desafios de um determinado momento histrico. A fora de sua interpretao sobre as causas e as conseqncias do subdesenvolvimento reside na crtica de uma modernizao elitista que compromete toda e qualquer possibilidade de conciliar capitalismo, democracia e soberania nacional. O limite de sua formulao acreditar na viabilidade de auto-superao do subdesenvolvimento, na v suposio de que existem bases objetivas e subjetivas para um capitalismo civilizado na periferia da economia mundial.

    Ausente da bibliografia dos cursos de economia e marginalizado do debate intelectual, nos ltimos anos o pensamento de Furtado tem sido reivindicado por muitos que no se conformam com o avano da barbrie e buscam uma alternativa asfixiante hegemonia do pensamento nico. Desvinculada de uma reflexo que supere seus limites, no entanto, a reafirmao pura e simples de suas idias corre o risco de se transformar num simulacro de crtica. Sem condies histricas para converter-se em fora poltica

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  • real, a utopia de um capitalismo civilizado perde todo seu carter progressista e passa a cumprir o inglrio papel de camuflar a impotncia de um pensamento que incapaz de ir alm dos parmetros da ordem, bem como de dar um verniz de legitimidade e credibilidade a um melhorismo, perfeitamente enquadrado na ordem neoliberal, que acena com a possibilidade de deter o avano da barbrie sem questionar as causas estruturais que a determinam.

    Aps dcadas de iluso na possibilidade de uma sada para o drama latino-americano dentro da ordem burguesa, que resultaram em grandes derrotas polticas e no avano descontrolado do processo de reverso neocolonial, uma sucesso de oportunidades perdidas e atores frustrados pe em evidncia que o espao de reforma do capitalismo latino-americano inexistente. Para honrar a tradio intelectual de Furtado e seu compromisso com a construo de uma sociedade democrtica dona de seu destino, preciso ir alm da razo burguesa e equacionar a necessidade inescapvel de superao do capitalismo. O grande desafio consiste em pensar a questo nacional como um problema de classe que extrapola as fronteiras nacionais. Para tanto indispensvel recuperar a teoria do imperialismo como ponto de partida para a compreenso dos problemas dos povos que vivem no elo fraco do sistema capitalista mundial. Sem colocar em questo o papel central desempenhado pelo capital financeiro como mola propulsora do capitalismo contemporneo e seu modo particularmente perverso de operar na periferia da economia mundial, no h como subordinar a vida econmica aos desgnios da sociedade.

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