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Táticas para viver da adversidade.O conceitualismo na América Latina

Devemos começar por fazer pelo menos três pergun-tas. Será que podemos classificar retrospectivamenteum movimento sob o global izante termo“conceitualismo”, quando seus fundadores nunca oconsideraram assim? É possível postular versões regio-nais autônomas daquilo que de maneira geral foi en-tendido como fenômeno da cultura dominante? E, casoa resposta seja afirmativa, que aspectos determinam aespecificidade das versões latino-americanas? O fatode, na região, as manifestações altamente divergentesque constituem essa categoria nunca terem assumidoo rótulo conceitualista torna ainda mais difícil situá-lasna história geral do termo.1 Tal tarefa só será relevan-te se a segurança que nos dá exergar retrospectivamenteajudar a esclarecer o registro heterogêneo, contraditórioaté, das práticas individuais e coletivas que nessa regiãoadotaram o paradigma conceitual.2 Além disso, investigaros objetivos dessas práticas em sua especificidade local eideológica pode ser muito mais do que um exercícioacadêmico. Na verdade, pode esclarecer aspecto crucialde um projeto subestimado, cujos objetivos eram opor-se à arte, mas também transcendê-la, isto é, o projeto defincar os pés nas margens contrárias entre cultura “nãosubordinada” e cânones centrais, metropolitanos. É doponto de vista das fronteiras movediças dessa pesquisautópica que as práticas ecléticas que constituem oconceitualismo na América Latina devem ser abordadas.

Mari Carmen Ramírez

O texto aponta, fundamentalmente, uma polêmica: é possível fazer arte conceitual na AméricaLatina? Esta dúvida se refere ao fato de os objetos, nos países colonizados, ganharem um caráterpolítico mais evidente, impossibilitando, a princípio, sua autonomia artística. Assim, a autora pro-põe, respaldada por outros teóricos, o termo “conceitualismo ideológico” para tratar de imagenscomo as de Cildo Meireles e Luiz Camnitzer.

Arte conceitual, América Latina, nova objetividade, não-objetualismo.

O que é, então, a arte senão um modo de pensar.Os fenômenos sociais também são obras de arte e dizem respeito a todas as pessoas.

Roberto Jacoby

Antes de continuar, porém, gostaria de explicar o significa-do do termo “conceitualismo”, tanto no abstrato comono contexto deste ensaio. Na minha opinião, depois darevolução artística inicial levada a cabo pelos movimentoshistóricos de vanguarda (em especial o cubismo, o futuris-mo e o dadaísmo), o conceitualismo pode ser considera-do a segunda maior mudança verificada no entendimentoe na produção de arte ao longo do século 20. Com ocancelamento do estatuto e do valor do objeto de arteautônomo, herdado do Renascimento, e a transferênciada prática artística, da estética para o domínio mais flexívelda lingüística, o conceitualismo abriu caminho a formas dearte radicalmente novas. Por essa razão, o conceitualismonão pode ser considerado um estilo ou um movimento.É, antes, uma estratégia de antidiscursos cujas táticas eva-sivas põem em causa tanto a fetichização da arte como ossistemas de produção e distribuição de arte nas socieda-des do capitalismo tardio. Como tal, o conceitualismonão se restringe a um medium em particular e podetraduzir-se numa variedade de “manifestações” (in)formais,(i)materiais ou mesmo objetuais. Além disso, em todosos casos, a ênfase não é colocada nos processos “artísti-cos”, mas, sim, em processos “estruturais” ou “ideáticos”específicos que ultrapassam meras consideraçõesperceptuais e/ou formais. Assim, em sua forma mais radi-cal, o conceitualismo pode ser interpretado como um“modo de pensar” (para evocar Jacoby) a arte e a sua

Leon FerrariA civilização ocidental ecristã,1965,poliéster, madeira, cartão egesso. 200 x 120 x 60cm

Fonte: Entre el silencio y la violencia:arte contemporáneo argentino . BuenosAires: arteBA Fundación, 2004: 53

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relação com a sociedade. Submeter a nova formulação oconceitualismo em termos tão amplos me permitirá abordaras especificidades das práticas conceituais latino-america-nas de modos que vão além do reducionismo crasso dasformulações metropolitanas ou das dicotomias comunsdo modelo centro/periferia; me permitirá, portanto, ver aobra desses artistas não como reflexos, derivações oumesmo réplicas da arte conceitual central, mas sim comorespostas locais às contradições originadas pelo fracasso,após a Segunda Guerra Mundial, dos projetos de moder-nização e dos modelos artísticos preconizados para aregião. Nessa ordem de idéias, não pretendo que esteensaio seja uma história definitiva, nem sequer parcial, doconceitualismo na América Latina. Pelo contrário, ele secircunscreve em grande medida ao desenvolvimento depráticas conceituais nos centros urbanos de Buenos Aires,Rosário e Rio de Janeiro, mencionando algumas ocorrên-cias em Bogotá, na Cidade do México e na comunidadede artistas latino-americanos em Nova York. Medianteesses casos paradigmáticos, caracterizarei certos aspectosgerais da passagem para o conceitualismo no contextolatino-americano. Esse objetivo, por sua vez, implica iralém das reclamações ingênuas (sincrônicas) de verdadedos registros historicistas, a fim de (diacronicamente) apre-ender a natureza das contribuições da América Latina paraa generalidade das realizações do conceitualismo global.

A relevância continuada dessa tarefa baseia-se em doispreconceitos predominantes. Por um lado, há na históriada arte uma teoria prevalecente extremamente redutora einstintiva que, apesar de uma década de reavaliação crítica,continua a privilegiar um grupo pequeno e iconoclásticode artistas norte-americanos e britânicos cuja obra, naforma de propostas lingüísticas ou ideáticas, começou aatrair as atenções em finais da década de 1960. Por outrolado, existem os mal-entendidos gerados em nossos pró-prios países pela herança da guerra fria, dos quais é repre-sentativa a tendenciosa “tese da resistência” da crítica Mar-ta Traba. Desde o início Marta Traba denunciou zelosa-mente as práticas conceituais como “modas importadas”,cuja emergência revelava até que ponto uma parte denossos artistas se tinha “rendido” ao imperialismo culturalnorte-americano.3 O fim da guerra fria, juntamente com aperspectiva das três últimas décadas, exige que preten-sões tão apaixonadas a uma autonomia continental sejamsubmetidas a escrutínio crítico.

Rebatendo ambos os pontos de vista, começo pordefender que os processos condutores à emergênciado conceitualismo não foram exclusivos dos artistas

norte-americanos ou britânicos, mas envolveram tam-bém produtores culturais para quem a crise ontológicada arte européia após 1945 constituía quadro de refe-rência. É essa a posição dos artistas latino-americanosque, em virtude de sua herança colonial, foram duranteséculos colocados numa relação dialógica com váriastradições artísticas da Europa e dos Estados Unidos.

Como sucede com qualquer outra tendência provenientede áreas não hegemônicas, porém, a obra desses artistasobedece a um padrão de assimilação/conversão em gran-de medida orientado pela dinâmica e pelas contradiçõesinternas do contexto local. Esse intercâmbio dialéticoresultou em versão – ou mesmo em inversão – autôno-ma de importantes princípios do modernismo europeu enorte-americano. Dessa perspectiva, a emergência doconceitualismo na América Latina não só surgiu paralela-mente a importantes desenvolvimentos da arte conceitualcentral como também, em muitos exemplos-chave, osantecipou.4 O tipo de inversão que proponho é, pois,estratégia teórica que me permite ilustrar dialeticamenteessa autonomia. Em segundo lugar, considero que, aofazer da política e da ideologia o ponto de partida para oquestionamento radical da arte enquanto instituição, osconceitualistas da América Latina produziram algumas dasrespostas mais criativas do século 20 ao problema dafunção da arte, levantado pela primeira vez por MarcelDuchamp. Compreender a origem do conceitualismo la-tino-americano nesses termos implica apreender a com-plexa articulação entre as necessidades “ex/cêntricas” lo-cais e as tendências centrais, uma interação não excêntricaou formalista, cuja dialética envolve um circuito recíprocode intercâmbio cultural e artístico. É preciso salientar, po-rém, que na América Latina o conceitualismo não foifenômeno continentalmente exuberante nem homogê-neo. A complexidade e a heterogeneidade da região,constituída por 20 países de grande diversidade política,econômica e racial, mesmo dentro de suas próprias fron-teiras, exclui a existência de desenvolvimentos artísticosuniformes nacionais ou regionais. Tais condições neces-sariamente deram origem não a uma, mas a várias históriasdistintas e a diferentes modos de conceitualismo, corres-pondentes a países e também a centros urbanos especí-ficos dentro deles.

Além disso, o fato de nenhum dos artistas ou gruposaqui considerados subscrever abertamente o termo“conceitual” sublinha a autenticidade dos impulsos lo-cais que determinaram e alimentaram as respectivasmanifestações. No Rio de Janeiro, por exemplo, o fato

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Luis Camnitzer,He practiced every day , dasérie uruguaia Torture, 1983Fonte: www.elmuseo.org

de os artistas questionarem a natureza e a função doobjeto artístico, bem como sua reformulação em ter-mos de arte baseada em ideais, levou Hélio Oiticica acunhar a expressão “nova objetividade”.5 Nas cidadesde Buenos Aires e Rosário, a apropriação anterior deteorias estruturalistas, semióticas e comunicacionais comosujeitos/temas de propostas conceituais ajudou a popu-larizar a expressão arte de los medios [arte dos meiosde comunicação de massas]. Entretanto, na Colômbia eno México o termo no-objetualismo [não-objetualismo],criado pelo crítico peruano Juan Acha, passou a ser adesignação comum a todas as formas de arte experi-mental (instalação, performance e conceitualismo) queprocuravam ver-se livres do estatuto fetichista.6 Em to-dos os casos, porém, a especificidade do local era colo-cada a serviço do objetivo mais amplo de produzir for-mas radicais de arte focada em conceitos. Em inevitávelcontraponto à espontaneidade do fenômeno que ve-nho descrevendo, verificam-se também reações deriva-das da disseminação das propostas de arte conceitual deJoseph Kosuth na imprensa internacional depois de 1969.

O grau de concentração das atividadesconceituais em todo o continente per-mite-me distinguir em termos gerais trêsmomentos cronológicos. O primeiro,cobrindo aproximadamente o períodoentre 1960 e 1974, restringe-se em gran-de medida ao Brasil (Rio de Janeiro),7 àArgentina (Rosário e Buenos Aires)8 eà comunidade de artistas sul-america-nos residentes em Nova York.9 Esseprimeiro momento, que acompanha deperto a emergência da arte conceitualna Europa, no Japão e nos EstadosUnidos, produziu vários núcleos den-sos que, na maioria, defendiam, ideoló-gica e teoricamente, a promoção demovimentos vanguardistas radicais parasociedades que lutavam contra regimesditatoriais. Na fase seguinte, mais oumenos de 1975 a 1980, surgiu concen-tração igualmente substancial de gruposconceituais no Chile,10 na Colômbia,na Venezuela e no México.11 Esse se-gundo momento, que coincide com aexplosão mundial do conceitualismo,caracterizava-se por vasta rearticulaçãodas práticas conceituais em termos da

apropriação dos espaços urbanos pelos artistas e de seusesforços no sentido de envolver a população em suaspropostas ideáticas. Um bom exemplo dessa tendência éo posterior fenômeno de Los Grupos na Cidade doMéxico. Antecipa cada um desses momentos a obra defiguras iconoclásticas como Alberto Greco, AlejandroJodorowsky (Chile/México), Rogelio Vicuña, Juan PabloLanglois (Chile), Bernardo Salcedo e Antonio Caro (Co-lômbia, ambos), que em geral trabalhavam isolados. Oterceiro momento do conceitualismo latino-americano(fora desse quadro cronológico) foi a emergência de prá-ticas neoconceituais em finais das décadas de 1980 e1990. Com notáveis exceções, esta última fasecorresponde à institucionalização do conceitualismo comocaro produto de consumo e língua franca dos circuitosartísticos globais.12

Apesar da heterogeneidade das práticas conceituais lati-no-americanas, é possível, no entanto, detectar na obrade muitos artistas da região pelo menos três aspectoscomuns que os distinguem claramente de seus pares

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anglo-americanos. O primeiro é o perfil fortemente ideo-lógico e estético desse corpo de obras. Desde suas pri-meiras manifestações, o conceitualismo nesses paísesestendeu o princípio auto-referente da arte conceitualnorte-americana a uma reinterpretação das estruturas so-ciais e políticas nas quais se inscrevia. Para esses produto-res, a procura de estratégias para criar arte já não era“questão de um grupo oriundo de uma elite isolada, masuma questão cultural ampla, de grande alçada, tendendo asoluções coletivas”.13 Assim, enquanto os artistas norte-americanos, refletindo o lema de Kosuth de que “a ausên-cia de realidade na arte é, justamente, a realidade da arte”,dirigiam suas críticas ao mundo artístico institucionalizado,os artistas latino-americanos, en sua maioria, fizeram dopúblico seu alvo. Por conseguinte, não só a obra se des-tinava a funcionar no nível ideológico, como a própriaideologia se tornou a “identidade material” fundamental daproposta conceitual.14 Nesses termos, o “conceitualismoideológico”, como Simon Marchán Fiz observou em 1972,não é “uma força produtiva pura, mas sim uma força social”– em outras palavras, uma força que não se satisfaz com ainvestigação de suas próprias condições recorrentes(tautologia), mas procura transformar ativamente o mun-do por meio da especificidade da arte.15 A substituição danatureza discursiva da arte por sua função cognitiva estáimplícita nessa transformação, que permitiu a grupos deartistas como o Tucumán Arde “postular o trabalho artís-tico como uma ação positiva e real cuja aspiração deve serproduzir um efeito modificador no meio que a engen-drou”. Transposta para a cena política de 1968, a noção dearte conceitual como veículo para entender e problematizar“o real” levou Tucumán Arde a rejeitar a estética a favor da“ação violenta e coletiva”. Na opinião do grupo, a violênciatransformara-se numa “ação criadora de novos conteú-dos”.16 Posição semelhante está implícita na comparaçãode Luis Camnitzer sobre os meios e as estratégias danova antiarte e das táticas da guerrilha. Umas e outras,segundo sua opinião, tinham um objetivo comum: “trans-mitir uma mensagem e ao mesmo tempo mudar, comesse processo, as condições em que o observador seencontra”.17 É conveniente frisar que a obra inicial dessesartistas anunciava claramente formas de conceitualismopolítico desenvolvidas nas décadas de 1970 e 1980 pormovimentos políticos feministas, multiculturais e outros,nos países centrais.

O compromisso ativo com o “real” que caracteriza aspráticas conceituais na América Latina é também res-ponsável por seu segundo aspecto de relevo: a rela-

ção paradoxal e conflituosa com o princípio fundamentalda arte conceitual da América do Norte/Grã-Bretanha, ouseja, a idéia da “desmaterialização” do objeto de arte e suasubstituição por uma proposta lingüística ou analítica. Osartistas latino-americanos inverteram esse princípio pormeio de diversas táticas inter-relacionadas. A mais contra-ditória dessas táticas consistiu na “recuperação” do objetosob a forma do produzido em massa ou readymade,enquanto veículo do programa conceitual (Oscar Bony,Artur Barrio, Waltércio Caldas, Luis Camnitzer, AntonioDias, Victor Grippo, Cildo Meireles, Hélio Oiticica e An-tonio Manuel). Esse tipo de conceitualismo – mais próxi-mo do modelo “impuro” de Robert Morris, Dan Grahame Daniel Buren do que de Kosuth ou Lawrence Weiner –baseava-se numa interpretação da herança de Duchampque ia além das questões da intencionalidade (artista) e daprodutividade (readymade). Como elemento integrantede estratégias de significação antidiscursivas mais abrangentes,freqüentemente efêmeras, a noção de readymade comoum “pacote para comunicar idéias”18 implicava importantequestionamento das funções semióticas visuais do obje-to a fim de produzir significados relacionados com suaposição estrutural num circuito ou contexto social maisamplo. Através dessa interação dialética com elementosdo “real”, os artistas procuravam uma “proximidade parti-cipante” com o espectador.

Outra tática consistia em abordagem cognitiva/perceptivaaplicada tanto a indivíduos como à sociedade em seutodo, com o fim de expor e contestar atitudes conformis-tas. Esse tipo de proposição (Lygia Clark, Barrio e Oiticica)transfere a ênfase do próprio objeto para a participação doespectador (corporal, tátil ou visual) na ação proposta.Uma abordagem desse tipo pressupõe que os sentidoshumanos são órgãos sociais através dos quais o indivíduoapreende o mundo e com ele se relaciona.19 A propostaconceitual procura, pois, transformar o modo como o“participante/receptor” reage às situações específicas querecriam nosso lugar na estrutura social e política.

A terceira tática prende-se à utilização de teorias da comu-nicação e da informação por parte dos artistas latino-americanos para investigar os mecanismos através dosquais os significados são transmitidos ao observador. Osartistas argentinos que subscrevem essa visão (Jacoby,Eduardo Costa, Raúl Escari e o coletivo Tucumán Arde)se apropriaram da estrutura existente de meios de comu-nicação de massa – quer na forma de imprensa, painéisinformativos, televisão ou qualquer outro meio tecnológico

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de informação – para produzir uma obra em que o mediumé a mensagem. Mas, ao contrário da resposta não media-da da conhecida frase de McLuhan e da reação condiciona-da ou previsível de meras propostas lingüísticas e ideáticas,a mensagem induzida por esses argentinos é o produtocrítico de um dispositivo metalingüístico que põe emcausa tanto a “validade” quanto a “verdade” da própriamensagem.

O último aspecto do conceitualismo latino-americano aser aqui discutido diz respeito à redefinição do observa-dor como parte integrante do programa conceitual. Anoção de uma arte de amplo alcance comunicativo base-ada na idéia foi sempre parte integrante dessas práticas. Oque nelas estava em jogo, porém, não era a potencial-mente limitada acessibilidade material da obra (aspectoque também se encontra implícito em muitas práticasnorte-americanas), mas sim o esforço consciente decontradivulgar mensagens ou transmitir novos valores aosobservadores. Esse aspecto importante distingue aindamais as práticas conceituais latino-americanas do modelo“telepático” prevalecente nos Estados Unidos, um mode-lo caracterizado por sua “não-disponibilidade” e por suaresistência à constituição de públicos.20 Em todos oscasos aqui considerados a telepatia é substituída por pathos(contaminação) ou pathia (participação). Para além dasaspirações metafísicas do modelo telepático, nossosartistas procuravam sistemas de comunicação alterna-tivos, participantes. Procedentes de um complexo en-tendimento crítico e da aplicação de teorias da infor-mação, comunicação e recepção, vários artistas e gru-pos latino-americanos (Barrio, Oiticica, Meireles, Ma-nuel, o Tucumán Arde, Grippo e mesmo Los Grupos)fundamentaram deliberadamente suas práticas emmatizes vernáculas de seus contextos locais. Por exem-plo, os signatários da Declaração de Princípios da Vanguar-da, que precedeu a exposição Nova objetividade brasileira(1967), proclamavam: “Além de dotar o trabalho criativode importância cultural, nosso movimento adotará todosos meios de comunicação com o público, da imprensa aodebate, da rua ao parque, do salão à fábrica, do panfleto aocinema, da rádio à televisão”.21 Com efeito, a obra dessesartistas e grupos anunciava mais uma vez perspectivasmetropolitanas, como a análise de audiências mais tardeintroduzida pelos conceitualistas norte-americanos.

No Brasil, hoje, (nisto também se assemelhariaao Dadá), para se ter uma posição cultural atu-ante, que conte, tem-se que ser contra,

visceralmente, contra tudo que seria, em suma, oconformismo cultural, político, ético, social... DAADVERSIDADE VIVEMOS!Hélio Oiticica, “Esquema Geral da Nova Obje-tividade”, 1967

Quase todos os artistas que se dedicaram a práticasconceituais atingiram a maioridade em meio aodesarrollismo do pós-guerra (desenvolvimentismo,1950-70). Além de industrialização avançada e de ní-vel mais sustentado de desenvolvimento econômi-co, esse período caracterizou-se por acelerado cres-cimento urbano, pela introdução de novas tecnologiase novos meios de comunicação de massas (em espe-cial a televisão), por significativa expansão do ensinouniversitário e pelo papel mais visível da arte e dacultura.22 Esses fatores alimentaram não só a espe-rança de libertação do jogo político e econômico dosEstados Unidos, mas também a ilusão de um papelemancipado para a América Latina no Primeiro Mun-do. A promessa do desarrollismo foi particularmenterelevante para a Argentina e o Brasil, ambos consti-tuídos por grande mistura racial de grupos europeus,africanos e indígenas. Ao contrário de muitos outrospaíses latino-americanos (à exceção do México), aArgentina e o Brasil tinham feito parte da vanguardainternacional da década de 1920, movimento para oqual contribuíram com paradigmas extremamente ori-ginais. Além disso, essa herança traduziu-se na emer-gência de movimentos de vanguarda “de exporta-ção” nos anos 40 e 50. O Grupo Madí, argentino, eos movimentos construtivistas das artes visuais e dapoesia concreta no Brasil foram experiências racio-nais ligadas à explosão do desenvolvimento do pós-guerra e aos sonhos de modernização; uma quimeraque, pelo menos no Brasil, levou à construção de umacapital prospectiva – Brasília.

Acompanhando esse impulso de atualização criou-se umainfra-estrutura cultural para apoiar e promover a arte con-temporânea. Em 1951, por exemplo, inaugurou-se a Bienalde São Paulo, e em 1958 Buenos Aires assistiu à criaçãodo centro vanguardista mais importante do período, oInstituto Torcuato Di Tella. Além disso, essas institui-ções, empunhando a bandeira do internacionalismo, inici-aram um circuito ativo de intercâmbio cultural e artísticocom os Estados Unidos, em particular Nova York. Asso-ciada a padrões de desenvolvimento econômico maiselevados, a presença de projetos de modernização cultu-ral ajudou a eliminar aquilo que Nestor Garcia Canclini

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chamou de defasagem importante entre modernismoslatino-americanos e modernização, possibilitando dessemodo a reemergência de movimentos vanguardistas ati-vos em países específicos. Isso explica, em parte, por querazão o conceitualismo, a mais contestatória das formasde arte, surgiu tão cedo na Argentina e no Brasil. Pelomenos no início, outros países da região, nos quais nãoexistiam projetos socioculturais semelhantes, permane-ceram indiferentes à reviravolta conceitual. Ainda antes determinada a primeira parte da década, a adversidade políti-ca frustrou o otimismo da geração desarrollista. Entre1964 e 1976, seis países da América do Sul caíram sob odomínio militar, incluindo o Brasil, a Argentina, o Uruguai,o Peru e o Chile. Os regimes autoritários não só aboliramos direitos e privilégios da democracia burguesa, comoinstitucionalizaram a tortura, a repressão e a censura. To-dos os artistas aqui mencionados conheceram as conse-qüências psicológicas e materiais do autoritarismo, exila-dos dentro ou fora do país. Na Argentina, as ofensivasdos artistas contra o regime do general Onganía,paradigmaticamente materializadas na experiência coletivado Tucumán Arde, exigiam “a total rearticulação das práti-cas artísticas [paralelamente a] novos quadros institucionais,novos públicos, novos meios e novas mensagens”. 2 3

Para Juan Pablo Renzi, um dos teóricos desse grupovanguardista de Rosário, a nova atitude exigia, por sua vez,“uma incorporação consciente da ação política na práticaartística”.24 No Brasil, Cildo Meireles já definira essa práti-ca como inserção em círculos políticos e culturais, oumesmo como transgressão do “real”, quer como repre-sentação ideológica ou espaço efetivo.25 Nesse contex-to, o impulso ideático do conceitualismo revelou-se pre-cioso para o desenvolvimento de inserções politicamen-te subversivas ou transgressões artísticas contraculturais.Como os casos brasileiro e argentino demonstram, asubstituição muitas vezes abrupta do objeto artístico porformas conceituais foi o resultado de um processo refle-xivo (e não auto-reflexivo) que acompanhou a transferên-cia das práticas artísticas do campo estritamenteinstitucional para o campo sociopolítico.2 6

A interação entre os êxitos e os fracassos dodesarrollismo é fundamental para a origem do nossoconceitualismo. Por sua vez, o advento do autoritarismopode também ser considerado responsável por outracaracterística da América Latina: seu tímido estatuto deconjunto de tendências políticas radicais e artísticas devanguarda caracterizadas pela inovação formal (versõeslocais da arte Op, Pop e outras). O aspecto mais impor-

tante da vanguarda conceitual foi a fusão entre arte epolítica num projeto socioartístico de emancipação, istoé, um projeto em que a criação de novas formas de arteestá de mãos dadas com a transformação hipotética davida cotidiana e a construção de sociedade alternativa. Oprincipal objetivo da “Nova Objetividade”, nas palavras deOiticica, era, portanto, “objetivar um estado criador geral,a que se chamaria de vanguarda brasileira, em consolida-ção cultural (mesmo que para isso fossem usados méto-dos especificamente anticulturais)”.27 Em Buenos Aires,Jacoby apelou para uma vanguarda que “negasse perma-nentemente a arte” enquanto “afirmasse simultânea e tam-bém permanentemente a história”.28 Essa fórmula, porsua natureza, desafiava tanto o autoritarismo como seucúmplice, o capitalismo transnacional. Para muitos des-ses art istas, só uma arte que participasse de“reformulação sociopolítica completa” poderia resol-ver o dilema que enfrentavam os produtores culturaisnesse momento preciso. “Como”, questiona Oiticica,“num país subdesenvolvido, explicar o aparecimentode uma vanguarda e justificá-la não como alienaçãosintomática, mas como fator decisivo em seu progres-so coletivo?” O esforço consciente desses artistas egrupos para contestar o mundo institucional da arte eeliminar o fosso que os separava do conjunto da soci-edade situa-os no quadro em que Peter Bürger definiaas vanguardas européias históricas.2 9

Essa característica, por sua vez, ainda distingue mais aspráticas latino-americanas do modelo de arte conceitualdominante de manifestações paralelas das chamadas van-guardas dos anos 60. Como o Tucumán Arde demons-trou, esses movimentos estavam em muitos aspectosmais próximos dos impulsos heróicos que animaram avanguarda histórica do que do fenômeno de naturezamercadológica da neovanguarda.

A origem dessa consciência vanguardista de antiarte poderemontar a meados da década de 1950, quando grupose indivíduos de diferentes países da região começaram aquestionar a função do objeto de arte e seus sistemasde circulação e distribuição nas sociedades periféricas.Ao contrário dos Estados Unidos, onde o minimalismopreparou o terreno para a emergência da arte conceitual,na América Latina a passagem da arte baseada no objetopara a arte baseada na idéia teve origem numa diversida-de de fontes procedentes do informalismo, da arte pope de modelos de abstração geométrica. No Brasil, já naprimeira metade da década de 1950, os manifestos deFerreira Gullar, bem como as experiências corpóreas/

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visuais do grupo Neoconcreto, abriram precedentes im-portantes aos conceitualistas brasileiros, aos quais deve-mos acrescentar o popcreto de Waldemar Cordeiro(1961-66), que sintetizava preocupações formais efuncionais em objetos montados nos quais a idéia jáera da maior importância.

Em outros países também cedo se registraram mani-festações de antiarte por parte de artistas previamen-te associados a tendências informalistas. Na Venezuela,por exemplo, o grupo político, literário e de artes vi-suais El Techo de la Ballena (1961-68) estimulou artis-tas radicais como Cláudio Perna, que logo se tornariaum dos expoentes máximos do conceitualismo. Na Ci-dade do México, Los Hartos [Os Enfastiados], no sentidode estarem enfadados com as galerias, irritados contra amanipulação do sistema da arte e de-saco-cheio, no Mé-xico, contra uma exposição a mais um grupo de artistas

Cildo MeirelesFísica, economia, políticaFio de ouro e fenoFonte: Tridimensionalidade: artebrasileira do século XX. São Paulo:Itaú Cultural

dirigido por Mathias Goeritz, proclamou seu descontenta-mento, tanto em relação às instituições quanto às formasde arte, em sacrílega exposição-manifesto realizada em1961. Mais cedo ainda, a obra de um emigrado chileno, orealizador e ator teatral Alejandro Jodorowsky – centradana noção de “pânico efêmero” e em seu potencial paradesencadear reações inesperadas nos espectadores –, abriuimportante via para a realização de espetáculos e a expe-rimentação. O mesmo tipo de mudança antiinstitucionalque animou os mexicanos serviu de impulso à sérieiconoclasta de Alberto Greco Vivo-Dito (1962-65),performances extemporâneas nas ruas de Madri, BuenosAires, Florença e outras cidades.

À maneira dos “certificados de arte” de Piero Manzoni,Greco ou assinava o nome em indivíduos e objetosou desenhava círculos de giz em volta deles, transforman-do-os em “obras de arte vivas”.30 Sua “arte viva” encon-

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trou mais tarde um equivalente na obra de Oscar Bony Lafamília obrera [A família proletária, 1968], que consiste emdeixar imobilizados os membros de uma família da classetrabalhadora, como se fossem uma obra de arte, receben-do por isso o dobro de seus salários normais. O estatutovanguardista dessas práticas, além do mais, envolve umasérie de paradoxos que implicam diversas continuidades erupturas com tradições de determinados países da Amé-rica Latina. Talvez a maior proeza do conceitualismo tenhasido a formulação da contratradição da “continuidade daruptura” com herança vanguardista (Duchamp, dadaísmo,o movimento brasileiro Antropofagia, por exemplo) que,apesar de ter precedentes isolados na América Latina dosanos 20 e 30, estava perdida havia várias gerações.31 Comonoção vanguardista, esse tipo de precedente radical nãoexistiu nos Estados Unidos nem na Inglaterra, falta incon-cebível nos dois países, aos quais geralmente se atribui acriação da arte conceitual. Esse fato explica a autonomiacom que o conceitualismo surgiu na América Latina – aidéia-chave deste ensaio. No entanto, a continuidade demodelos anteriores não foi determinada por uma noçãode estilo nem sequer de tradição, mas pela persistênciado tipo de operações radicais conceituais e artísticas pelasquais a arte se torna um meio de emancipação sociopolítica.Foi isso o que aconteceu em Rosário, onde a vanguardados anos 60 recuperou a tradição política de AntônioBerni e dos artistas da Mutualidade dos anos 30.32 NoBrasil, resultou na assimilação da noção de Oswald deAndrade de antropofagia (um impulso canibal de autode-terminação através da apropriação), que para os novosobjetualistas seria o modo de se “defender” docolonialismo cultural.33 O profundo sentido de rupturaque animou esses artistas e grupos nunca esteve tãoexplícito, é claro, como em sua proclamação de que aantiarte era o ponto de partida de sua prática. Assim, oque deve aqui ser sublinhado não é a idéia de vanguarda,mas a natureza radical da mudança contida na versãoconceitualista da redefinição da arte e da prática artísticaem muitos países da América Latina. Como notou JuanAcha, “o aspecto mais importante dos no-objetualismosconsistiu em destruir em nós a tradição humanista doRenascimento”.34 Quanto a isso, não se deve esquecerque em muitos países da América Latina o conceitualismocontestou as formas de arte burguesa existentes, mastambém redefiniu simultaneamente um modelo anteriorde vanguarda latino-americana. Esse modelo – exemplificadopela arte e pelas teorias de David Afonso Siqueiros eJoaquín Torres García – postulava tendências vanguardistasque se opunham ao conceito original de ruptura com o

passado que motivou a vanguarda histórica européia. Es-sas tendências defendiam antes uma forma paradoxal dearte de vanguarda baseada em nova noção de tradição,entendida como “atualização” da herança da arte ocidentalvista pela perspectiva incontaminada das sociedades doNovo Mundo.35 Com exceção do Brasil e da Argentina,a prevalência dessa conjuntura na América Latina explicaem grande medida a pouca influência que o dadaísmo eseu legado exerceram na região até essa década.

Se Marcel Duchamp interveio no nível da arte (ló-gica ou fenômeno), o que hoje se faz, pelo contrá-rio, tende a estar mais próximo da cultura do queda arte, e isso é necessariamente político.

Cildo Meireles

Apesar de suas realizações ímpares, o conceitualismo naAmérica Latina não conseguiu escapar às contradiçõesintrínsecas de seu projeto utópico. Seu êxito enquantomodo de pensar também anunciava seu fracasso. Por umlado, os aspectos positivos do conceitualismo abriramnovos territórios a artistas cuja herança continua hojemuito viva. Por outro, a idéia de que a arte podia trocarcompletamente seu “valor de uso puro” por “valor decomunicação”36 situa essas práticas num registro já nãovinculado à estética nem à esfera autônoma da arte. Nes-sas circunstâncias, a arte deixa de ser arte para se tornaruma espécie de “experiência limite” mais próxima da an-tropologia, da sociologia ou da prática cultural. Na medidaem que está associada a um projeto étnico-sociopolítico,essa transformação difere substancialmente da idéia doartista como etnógrafo, popularizada pelo multiculturalismocontemporâneo. Em vez disso, oferece à arte espaço emque ela pode implicar criticamente a conjuntura social eem que está inserida. Talvez nenhum outro artista daAmérica Latina tenha compreendido isso tão bem comoOiticica que, da perspectiva da antiarte, conseguiu identifi-car – ou refuncionalizar – formas alternativas de produçãode arte na matriz social que o rodeava. Hoje, a produçãode Oiticica continua a assinalar a capacidade do artista paratransformar elementos da experiência cotidiana individuale coletiva na base de um modo dialético de produçãoartística. Esse paradigma primordial estava também pre-sente nas realizações do Tucumán Arde e de todos osartistas representados na constelação: O crítico e o engajadodeste catálogo. Como o Tucumán Arde mostra, porém,transpor esse “limiar” era chegar a um ponto de não-retorno. Com efeito, muitos artistas envolvidos em pro-postas conceituais radicais abandonaram a arte em favor

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de outras experiências, incluindo mesmo o regresso amodos de arte tradicionais. Outros continuaram a produ-zir nas margens (rock and roll, profissões liberais, lazer,exílio) de um status quo artístico revitalizado que os igno-rava. Os restantes enfrentaram considerações éticas acercada “redoma artística” de que eram prisioneiros. Emboraessa situação não fosse exclusiva das práticas conceituaisda América Latina, aqui seu impacto foi mais forte, dada aênfase que os artistas locais colocavam na eliminação dofosso que os separava da sociedade. Essas contradiçõesainda hoje minam as práticas de base conceitual.

Com algumas exceções, o conceitualismo latino-america-no continuou a longo prazo a consistir em atividadesmarginais apreciadas e sustentadas por elites intelectuaisem seus próprios países.37 Como Marta Traba previu, oconceitualismo foi mal compreendido e, apesar de seuspraticantes nunca terem entrado no mercado, para sobre-viver eram obrigados a depender de infra-estruturas cultu-rais precárias. Nesse sentido, a avaliação retrospectiva deBenjamin Buchloh da “ingenuidade crítica” com que osartistas conceituais dominantes subscreveram a “ilusão deque a transformação da obra de arte numa intervençãolingüística e textual faria necessariamente aumentar o nú-mero de leitores, a politização da prática cultural” podetambém ser verdade para os conceitualistas latino-ameri-canos.38 A diferença, porém, reside no fato de os latino-americanos, por contarem desde o início com essa limita-ção, terem começado cedo a moldar suas práticas tendoem vista o potencial comunicacional e ideológico dassuas propostas conceituais. Aqui o conceitualismo signi-ficava reformular essas práticas, o que se traduziu por:táticas para viver na adversidade. Esse fato salvou, semdúvida, o conceitualismo latino-americano do impassetautológico e do academicismo estéril que viriam a ca-racterizar as formas anglo/norte-americanas de arteconceitual.

Para finalizar, a relação entre o conceitualismo e o autoritarismocontinua à espera de avaliação exaustiva. Se as primeiraspráticas conceituais surgiram em grande medida como for-mas de oposição aos governos repressivos do Cone Sul,estes foram também responsáveis pela dissolução dessaspráticas. Isso foi particularmente evidente na Argentina. As-sim, a maior contradição que o conceitualismo teve deenfrentar na América Latina talvez se traduza por uma dolo-rosa ironia: o advento da democracia causou sua morte. Oque me leva a fazer uma pergunta nitidamente injusta: se nãotivessem existido regimes autoritários, teria o conceitualismoatingido a mesma dimensão na América Latina? Poder-se-á

contrapor que o destino do movimento foi o mesmo emtodo o mundo, mas a verdade é que na América Latina apassagem do autoritarismo à democracia imprimiu um cará-ter especial a essas práticas, abreviando significativamente asinvestigações radicais que elas haviam iniciado. No entanto,apesar dessas dificuldades e limitações, a origem doconceitualismo na América Latina destaca-se como um doscapítulos mais brilhantes da história da arte do século 20 nocontinente. O paradigma era nada menos do que lutar paraconseguir gerar todo tipo de significados num mundo vol-tado para si mesmo.

Mari Carmen Ramírez é diretora do International Centerfor the Arts of the Americas e curadora de arte latino-americana no Museum of Fine Arts, em Houston,EUA.

Versão portuguesa inicialmente publicada no livro Arte daAmérica do Sul: Ponto de Viragem 1989, ed. JesúsFuenmayor, Colecção de Arte Contemporânea Pú-blico Serralves, Fundação de Serralves & Jornal Públi-co, Porto, 2006, pp. 151-158.

Adaptação para português do Brasil: Marcelo CamposRevisão técnica: Thais Medeiros e Héctor Olea

Notas

1 Na América Latina a palavra “conceitualismo” surgiupela primeira vez em conseqüência de uma opera-ção crítica retrospectiva cujo objetivo era determi-nar a especificidade das práticas latino-americanasem relação ao discurso corrente da arte conceitual.Os termos conceitual e conceitualismo não apare-cem em textos dos artistas ou na literatura críticaque abordou suas obras até meados ou finais dosanos 70. Na verdade, alguns artistas resistiram, cons-trangidos, ao termo, com medo de ser absorvidospela arte dominante ou de fornecer aos censoresdo Estado rótulo facilmente identificável (Conversacom Luis Camnitzer, 21 de abril de 1998). Em mui-tos países, a popularização do termo deu-se após adivulgação internacional, em revistas especializadas(Studio Internacional) ou não (Newsweek), das idéi-as de Joseph Kosuth. Algo semelhante parece teracontecido na Europa, como sugere Claude Gintzem “El arte Conceptual, una perspectiva: notas paraun proyecto de exposición”, in El Arte Conceptual,una perspectiva, ed. Claude Gintz, Fundación Cajade Pensiones, 1990: 10. O termo “conceitualismo”é usado neste ensaio para designar um fenômenocultural e artístico mais amplo, completamente in-dependente do modelo canônico tipificado pelaarte conceitual norte-americana.

2 Com exceção de alguns ensaios de caráter geral, publi-cados em catálogos de exposições recentes, não

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existe estudo amplo sobre o desenvolvimento des-se fenômeno na região. Para conhecer as primeirasincursões nesse terreno, ver Jacqueline Barnitz,“Conceptual Art and Latin América: A Natural Alliance”in Encounters/Displacements: Luis Camnitzer, AlfredoJaar, Cildo Meireles, Archer M. Huntington Art Gallery,University of Texas, Austin, 1992, 35-47; Ramírez,“Blueprint Circuits”; e Luís Camnitzer, “Uma genealogíadel arte conceptual latinoamericano”, Continente Sul/Sur, n. 6, 1997: 179-230.

3 Marta Traba, Dos décadas vulnerables em las artesplásticas latinoamericanas , Cidade do México: SigloVeintiuno Editores, 1973: 87-153.

4 Não pretendo aqui endossar um modelo deterministano desenvolvimento da história de arte, mas salientara originalidade e a autonomia da perspectiva latino-americana.

5 Como Oiticica observou, a “Nova Objetividade” erauma chegada constituída por múltiplas tendências cujacaracterística mais importante era a “falta de unidadede pensamento”, como no dadaísmo. Essas tendên-cias incluíam o grupo de artistas conceitualistas aquireferido. Ver Hélio Oiticica “Esquema Geral da NovaObjetividade”, 1967, in: Hélio Oiticica, Roterdam/Riode Janeiro: Witte de With/Projeto Hélio Oiticica, ,1992: 110-120. Para uma análise da origem contradi-tória da expressão “nova objetividade”, ver FredericoMorais, Artes Plásticas: A crise da hora atual, Rio deJaneiro: Editora Paz e Terra, 1975: 91-93 e Cronolo-gia das artes plásticas no Rio de Janeiro, 1816-1994,Rio de Janeiro: Topobooks, 1995: 294.

6 Juan Acha, “Teoria y práctica no-objetualistas en Amé-rica Latina”, in Ensayos y ponencias Latinoamericanistas ,Caracas: Ediciones Gan, 1984: 221-42.

7 No Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro,houve uma primeira fase da intervenção coletiva porparte dos artistas – marcada por exposições “Opi-nião 65, Opinião 66”, “Nova objetividade brasileira”,manifestações e eventos públicos “Arte no aterro”,“Apocalipopótese” – entre o golpe militar de 1964 eo Ato Institucional n. 5 de 1969, que suspendeudireitos políticos, anulou direitos cívicos e instituiu acensura. Um segundo período corresponde a 1969-71 (Salão da bússola, do corpo à letra [Belo Horizon-te], XIX Salão de Arte Moderna e uma série deexposições individuais organizadas pela Petite Galeriesob a designação genérica “Agnus Dei”). Em 1974,após intervalo de três anos marcado pelas ausênciase migrações dos artistas, teve início uma terceira fase,com a publicação de Malasartes, editada por CildoMeireles. Ver Francisco Bittencourt, “A vanguarda vi-sual carioca nos anos 70”, Vozes 72, n. 5, 1978: 29-42.

8 No caso da Argentina, Andréa Giunta identificou estastrês fases, que acompanham de perto os desenvolvi-mentos políticos da época: 1965-75, projeto políticode vanguarda artística; 1976-85, resistência à violentaditadura militar; 1986-à atualidade, restauração da de-mocracia. Ver Andréa Giunta, “Arte y (re) presión:Cultura crítica y prácticas conceptuales en Argentina”in Arte, historia y identidad en América: visionescomparativas , Gustavo Curiel (ed.), Cidade do Méxi-co: Unam, Instituto de Investigaciones Estéticas, 1993:875-889.

9 Em Nova York, o conceitualismo latino-americano sur-giu em 1966-67, na obra de Luis Camnitzer e doNew York Graphic Workshop, que incluía os artistasLiliana Porter e José Guilhermo Castillo. Outrosconceitualistas latino-americanos que desenvolveramsuas carreiras em Nova York foram Leandro Katz eEduardo Costa. Uma série de brasileiros (HélioOiticica, Cildo Meireles, Guilherme Vaz, RubensGerchman) também lá moraram no início dos anos70. Ver Barnitz, “Conceptual Art and Latin América”,37, e Carla Stellweg, “Magnet-New York: ConceptualPerformance, Enviroment and Installation Art”, in LuisCancel (ed.), The Latin American Spirit; art and artistsin the United States, 1920-1979, Nova York: BronxMuseum and Abrams, 1988: 284-311.

10 No Chile, à exceção de algumas obras de Juan PabloLanglois (pseudônimo de Rogelio Vicuña) e da obrapoética de Cecília Vicuña, o conceitualismo só surgeem finais dos anos 70. Joseph Kosuth, em conferên-cia na Universidade de Santiago, Chile, assumiu posi-ção política, provavelmente encorajado pelo gover-no da Unidad Popular de Allende. Essa conferência,porém, não parece ter surtido efeito na comunidadeartística local. Ver Joseph Kosuth, “Painting Versus ArtVersus Culture”, in Gabriele Guercio (ed.). Art AfterPhilosophy and After: Collected Writing, 1966-1990,Cambridge, Mass: MIT Press, 1991: 89-92.

11 Em sintonia com outras manifestações não objetuais(vídeo, performance), a forma como essas práticasdepressa se espalharam pela região foi o tema deampla exposição que acompanhou o Primeiro Coló-quio Latino-Americano de Arte Não Objetualista eUrbana. Os dois eventos realizaram-se de 17 a 21 dejunho de 1981, no Museo de Arte Moderno, emMedellín, Colômbia, e coincidiram com a IV Bienal deArte em Medellín. Ver o sumário de Juan Acha em ElColóquio, Revista de Arte y Arquitectura en AméricaLatina 2, n. 7, 1981: 26.

12 Ver Ramírez, “Rematerialization”, in Universalis: XIIIBienal Internacional de São Paulo, São Paulo: Funda-ção Bienal de São Paulo, 1996: 178-89, e “Contexturas:Lo global a partir de lo local”, ensaio apresentado nosimpósio “Globalização e Arte Latino-Americana”,Arco, Madri, fevereiro de 1997.

13 Oiticica, “Esquema Geral da Nova Objetividade”: 117-118.

14 “Quero demonstrar que os conteúdos, em especialos seus, são explicitamente ideológicos ou sociais,possuem, na consciência dos receptores, identidadematerial. Do mesmo modo que se trabalhava comdiversos materiais (tinta, gesso, madeira), é possíveltrabalhar com conteúdos ideológicos.” RobertoJacoby, Buenos Aires. Leon Ferrari observou tam-bém: “Significados claros, intervenção social e ideolo-gia constituem aquilo que [Luis Filipe] Noé conside-rou uma das antiestéticas mais resistentes. LeonFerrari, El arte de los significados, Primer EncuentroNacional de Arte de Vanguardia, Rosário, 1968, do-cumento datilografado, Documentos León Ferrari,Buenos Aires: 5.

15 Simon Marchán Fiz, Del arte objectual al arte deconcepto, 1960-1974, Madrid: Ediciones Akal, 1988:269-271.

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16 Maria Teresa Gramuglio e Nicolas Rosa, TucumánArde, manifesto, Rosário, novembro de 1968,Arquivos Maria Teresa Gramuglio, Buenos Aires.Ver também Ana Longoni, “Arte y violencia enlos últimos años 60: Entre la representación y laacción”, in Arte, sociedad, cultura y identidad: IJornadas de sociologia y antroplogía del arte,Buenos Aires: Facultad de Ciências Sociales, semdata: 17.

17 Luis Camnitzer, “Arte colonial contemporâneo”, Mar-cha, Montevidéo, 3 de julho de 1970.

18 Idem, ibidem.

19 Ver Marchán Fiz, op. cit.: 270.

20 Stephen Melville interpreta a “não-disponibilidade demuitas obras conceituais – o fato de só poderem servistas em documentação ou de não poderem servistas – como forma de resistir ou negar as condi-ções de visibilidade existentes”. Em sua opinião, essacaracterística pôs em perigo os “sonhos políticos deuma comunidade telepática, isto é, uma comunidadenão afetada nem pelo ato de observar nem por suacapacidade de agitar públicos”. Melville, “Aspects”, inAnn Goldstein e Anne Rorimer (eds.). Reconsideringthe Object of Art, 1965-1975, Los Angeles: Museumof Contemporary Art, 1995: 232.

21 Morais, Cronologia , 295. (Traduzido para o inglês pelaautora.)

22 Ver Néstor Garcia Canclini, “La Modernidad despuésde la postmodernidad”, in Culturas híbridas: Estratégi-as para entrar y salir de la modernidad, Cidade doMéxico: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes,1969: 223.

23 “A Nova Vanguarda Cultural Argentina”, declaraçãoelaborada pela Comissão Organizador da ImaginaçãoRevolucionária, distribuída na exposição do grupoTucumán Arde em novembro de 1968, em BuenosAires, Arquivos Graciela Carnevale, Rosário. (Tradu-zido para o inglês pela autora).

24 La obra de arte como producto de la relación concienciaética/conciencia estética, Primer Encuentro Nacionalde Arte de Vanguardia, Rosário, 1968; citado em AnaLongoni, “Tucumán Arde: Encuentros ydesencuentros entre vanguarda artística y política” inEnrique Oteiza (ed.), Cultura y política em los años60, Buenos Aires: Oficina de Publicaciones del CBC,1997: 318.

25 Ronaldo Brito e Eudoro Augusto Macieira de Sousa,Cildo Meireles, Rio de Janeiro: Funarte, 1981: 24.

26 Guilhermo Fantoni analisou as implicações desse pro-cesso no caso específicos da vanguarda de Rosário;ver “Rosário 1966: episodos de vanguardia y fragmen-tos de conversaciones” in Serie 10: Arte y estética,Rosário: Universidad Nacional de Rosário, FacultadHumanidades y Artes, 1993: 4-5.

27 Oiticica, “Esquema Geral da Nova Objetividade”: 110.

28 Jacoby, Mensaje en el Di Tella, s/p.

29 Peter Bürger, Theory of the Avant-Garde, Minneapolis:University of Minnesota Press, 1984. Ver tambémGuilhermo Fantoni, “Horizontes problemáticos deuna vanguardia de los años 60: uno movimiento artís-

tico entre el heroísmo y la crisis” in Anuário, Rosário:Segunda Época, n. 13, 1988: 137-148.

30 Ver Ángel Rama, Antologia de El Techo de la Ballena,Caracas: Fundarte, 1987; Los ecos de Mathiaz Goeritz:Catálogo de la exposición, Antiguo Colégio de SanIldelfonso, Cidade do México, 1997: 242; FranciscoReyes Palma, “Oratório monocromático: Los Hartos”in Los ecos de Mathias Goeritz: Ensayos ytestimonios, Cidade do México: Instituto deInvestigaciones Estéticas, 1997: 121-29; AlejandroJodorowsky, “Hacia el efímero pânico o Sacar al tea-tro del teatro!” inédito, 1963; e Alberto Greco, InstitutValencià de Art Modern , Centre Julio González,Valência, 1991.

31 Devo essa idéia a minhas conversas com Hector Oleaem Austin, no Texas, entre fevereiro e março de1998, sobre o papel e a função da vanguarda naAmérica Latina. O oximoro aqui utilizado – “conti-nuidade da ruptura” – sublinha tanto a firmeza daspropostas fracturantes como o progresso significati-vo em relação ao cânone anglo-americano, bem comoa “continuidade do desencanto” representado pelaperda da aura.

32 Ver Guilhermo Fantoni, “Rupturas en perspective:Modernismo y vanguardia en el arte de Rosário”,Cuadernos del Ciesal n. 2-3, 1994: 177-184.

33 Oiticica, “Esquema Gerald a Nova Objetividade”: 110-111.

34 Acha, “Tería y prática no-objetualistas”: 236.

35 Na minha opinião, ambas teorizam essas inovaçõessob a noção de “realização” e não “ruptura” comtradições artísticas do passado, quer se referissem àarte das culturas pré-colombianas, quer à arte euro-péia a partir do Renascimento.

36 Benjamin Buchloh, “The Political Potential of Art”in Politcs-Poetics: Documenta 10 – The Book,Cantz Verlag, Ostfildern-Ruit, 1997: 386.

37 Ver Acha, “Teoría y prática no-objetualistas”: 237.

38 Buchloh, “The Political Potential of Art”: 235.

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