Upload
others
View
0
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
ARTE SACRA AFROBRASILEIRA EM PROCESSOS CRIMINAIS DO
ARQUIVO NACIONAL DO RIO DE JANEIRO
Arthur Valle
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Email: [email protected]
Entre 1890 e 1942, período de efetiva vigência do primeiro Código Penal
republicano, as religiões afrobrasileiras foram frequentemente interpretadas e reprimidas
como “crimes contra a saúde pública”, como eram então tipificados, no código, práticas
como o espiritismo, a magia e o curandeirismo (BRASIL, 1890, Capítulo III, art. 156,
157 e 158). Durante esse período, locais de culto afrobrasileiros foram frequentemente
invadidos por agentes da polícia, que interrompiam cerimônias, prendiam religiosos e
confiscavam objetos sacros.
Levada para as delegacias, parte desses objetos foi preservada, passando a
constituir algumas das mais antigas coleções de arte sacra afrobrasileira que existem hoje
no Brasil (LODY, 2005). O caso talvez mais conhecido é o da coleção que pertencia à
Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro e que foi a primeira inscrição, em 1938, no
Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do antigo Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (MINISTÉRIO, 1938). Em 2020, essa coleção
foi muito noticiada quando líderes religiosos e parcela da sociedade civil conseguiram
que ela fosse transferida para o Museu da República (GOVERNO, 2020, p. 22), onde se
espera que venha a ser tratada com o respeito que merece.
Além de frequentemente referidas na imprensa de época, as batidas policiais em
locais de culto afrobrasileiros por vezes geravam processos criminais. Uma coleção
desses processos se encontra hoje no Arquivo Nacional, localizado na cidade do Rio de
Janeiro. Consultando os laudos que integram tais processos, encontramos listagens,
descrições e fotografias de objetos sacros apreendidos pela polícia. Os laudos também
revelam tentativas de interpretação feitas por peritos policiais que buscavam entender os
significados e as funções dos objetos. Nos laudos, livros de estudiosos como o cubano
Fernando Ortiz ou os brasileiros Artur Ramos, Edson Carneiro e Nina Rodrigues, eram
citados para legitimar as considerações - invariavelmente racistas e condenatórias - dos
peritos sobre as peças que procuravam analisar.
O objetivo desse texto é apresentar alguns dos processos criminais do Arquivo
Nacional que podem nos ajudar a compreender melhor a arte sacra afrobrasileira
produzida nas primeiras décadas da República, bem como a sua problemática recepção.
Creio que, lidos a contrapelo, esses processos podem também nos ajudar a reconhecer
plenamente a arte sacra afrobrasileira como parte do patrimônio cultural nacional.
Conteúdo e organização dos processos criminais
No Arquivo Nacional, processos criminais claramente vinculados à repressão
policial às religiões afrobrasileiras podem ser encontrados ao menos desde 1907. Embora
os processos variem bastante em extensão, alguns componentes de sua estrutura são
frequentes, como por exemplo: autuação; auto de apresentação e apreensão; auto de prisão
em flagrante; nota de culpa; ficha com dados e impressões digitais do(s) acusado(s);
mandados de intimação para as testemunhas; interrogatório do(s) acusado(s); transcrições
dos depoimentos de testemunhas; etc. Além disso, por vezes são literalmente
incorporados às páginas dos processos, como provas materiais de “crime,” documentos
apreendidos nos locais de culto, como fotos ou papeis contendo orações, pedidos feitos
pelos fieis, diagramas rituais etc.
No geral, porém, minha constatação a respeito da estrutura dos processos ratifica
aquilo que Yvonne Maggie escreveu em seu seminal livro Medo do Feitiço:
Há uma quantidade enorme de processos onde se percebe uma desorganização
burocrática. Faltam testemunhas em alguns; outros ficam inacabados; outros
duram mais tempo do que a pena prevista fazendo com que a pena prescreva. O
acusado às vezes responde em liberdade, se consegue pagar a fiança. Caso
contrário, cumpre mais do que a pena na Casa de Detenção. (MAGGIE, 1992, p.
49)
Embora o grau de detalhamento dos processos seja variado, todos
indubitavelmente fornecem informação valiosa, particularmente no que diz respeito aos
religiosos presos e aos objetos confiscados em seus locais de culto. Por exemplo, o réu
do processo CQ.0.PCR.472, datado de 1908, chamava-se João Sany, um religioso nascido
na cidade de Lagos, na atual Nigéria. Muito provavelmente, trata-se do “Sanin” que
protagoniza um dos capítulo de As Religiões no Rio, o famoso “inquérito“ publicado por
João do Rio em 1904 (RIO, [1906], p. 49-57). Entre os documentos apreendidos no local
de culto de Sany vemos, por exemplo, papeis escritos em árabe que parecem confirmar a
origem africana do religioso (PROCESSO, 1908, fo 10 e 14). Os processos criminais
fornecem, portanto, detalhes sobre religiosos cujos nomes conhecemos apenas através de
fontes jornalísticas e/ou literárias ou desconhecemos completamente.
Se todos os processos são valiosos, aqueles produzidos a partir de finais dos anos 1920
são particularmente uteis para minha discussão sobre a arte sacra afrobrasileira. Foi então que
ocorreu uma inflexão na composição dos processos que, em certa medida, remediou a
“desorganização burocrática” referida por Maggie. Minha hipótese é que isso tem relação
direta com a atuação de Coriolano de Araújo Góes Filho como chefe da Polícia Civil do Rio,
entre 1926 e 1930 (COUTINHO, [s.d.]). Em relatório enviado ao então Ministro da Justiça e
Negócios Interiores Augusto Vianna de Castello, referente a 1927, Góes Filho descrevia como
a sua administração havia iniciado uma literal "campanha" contra as “práticas procedentes das
tribos [sic] africanas, como a Macumba e o Candomblé, deturpadas pela ignorância e pela
venalidade, [que] campeavam sem maiores preocupações no [então] Distrito Federal”
(RELATÓRIO, 1930, p. 179). A “campanha” mencionada por Góes Filho foi liderada por
Antonio Augusto de Mattos Mendes, que, no final de 1926, recebeu jurisdição sobre todo o
Estado para suprimir os “crimes” descritos nos artigos 157 e 158 do Código Penal de 1890. Os
esforços de Mendes para reprimir práticas religiosas e mágicas lhe renderam fama e, no final
dos anos 1920, seu nome aparece frequentemente em notícias que relatam batidas policiais a
locais de culto afrobrasileiros, como também nos processos criminais que delas derivavam.
Para minha discussão, a parte mais importante do referido relatório de Góes Filho é o
trecho em que ele lamenta a inexistência de um "serviço de técnica policial" e propõe ao
Ministro da Justiça e Negócios Interiores a criação de uma repartição autônoma para esse fim,
que compreendesse “serviços de identificação (identificação criminal, identificação civil e
arquivos dactiloscópicos), de fotografia, de laboratório, de estatística, uma escola de polícia e
um museu policial” (Ibidem, p. 158-159).
A solicitação do Góes Filho parece ter sido, ao menos em parte, atendida. Evidências
disso seriam os próprios processos criminais referentes aos “crimes contra a saúde pública”
que, a partir de finais de 1920, passaram a ser documentados de maneira mais sistemática.
Como resume Maggie (1992, p. 49), “o exame dos objetos [sacros] acabou se tornando
uma perícia quase especializada.” Peritos eram expressamente chamados para produzir
laudos sobre a natureza e uso do material apreendido nas batidas, bem como avaliar se
eles constituiriam (ou não) prova de que, em seus locais de origem, se praticava algum
tipo de infração ao código penal. Além disso, fotografias de alguns objetos - ausentes em
processos anteriores - passaram a ser anexadas aos autos.
É justamente sobre fotografias e laudos presentes em processos criminais
produzidos no Rio entre 1928 e 1939 que se baseia a discussão das partes que se seguem.
Como procurarei demonstrar, a análise dessa documentação permite que conheçamos
melhor aspectos da arte sacra afrobrasileira produzida no período aqui delimitado.
Fotografias de objetos sacros afrobrasileiros
Em termos de evidência visual, alguns processos localizados no Arquivo Nacional
são bastante ricos. Esse é particularmente o caso do que leva o registro CS.0.PCR.5087,
datado entre 1929 e 1931. A ré desse processo se chamava Amanda Pinheiro e seu local
de culto localizado na Rua Araújo Leitão, n. 146, foi invadido pela polícia em 29 de junho
de 1929. Colados nas páginas que abrem o processo, vemos uma grande quantidade de
documentos apreendidos na casa da ré, como: um chumaço de cabelo; uma fotografia;
um cartão anunciando uma festa para Sto. Antonio no centro religioso dirigido pelo
marido de Amanda Pinheiro;1 e muitos papéis avulsos, nos quais estão inscritos nomes
de consulentes, pedidos, orações e diagramas semelhantes aos atuais pontos riscados.
1 Este se chamava Quintino Pinheiro e acabou sendo arrolado como réu no processo CS.0.PCR.5087.
Quintino era médium e dirigia o Centro S. Sebastião, localizado na Rua Laura de Araújo n. 146.
Além disso, o “auto de apresentação e apreensão” do processo lista dezenas de
objetos confiscados pela polícia (PROCESSO, 1929-31b, fo 6 ro). Entre eles, dois
mereceram registros fotográficos: “um cofre de ferro em forma de busto, com touca e
camiseta encarnado e preto, contendo a importância de mil e quinhentos reis” (Ibidem, fo
38 ro), que aparece fotografado de diferentes ângulos em duas fotografias [Fig. 1]; e um
“boneco de barro” (Ibidem, fo 38 vo), com formas muito estilizadas, que tem as feições
de uma criança negra chorando, porta uma espécie de carapuça na cabeça, e tem a frase
“QUERO PIPOCA!....” inscrita sobre seu peito [Fig. 2].
Fig. 1 - Fotos de um cofre de ferro, em forma de busto, a que se refere o Ofício n. 461, de 1. de Julho de
1929, da Repartição Central de Polícia (PROCESSO, 1929-31b, fo 42 e 43). Foto: Arthur Valle
Em seu laudo sobre os objetos apreendidos na casa de Amanda Pinheiro, os peritos
policiais Claudio de Mendonça e Octacilio Leal não se detêm na análise dessas singulares
peças que foram fotografadas. Mas eles afirmam, analisando o conjunto de objetos, que
[...] à matéria em apreço não falta um só dos utensílios empregados no cerimonial da
‘macumba’. E o culto ao qual se consagram ditos utensílios é o dedicado a Exu, divindade
maléfica, sempre apta e pronta para atender (segundo os crentes) aos pedidos que se lhe
fazem, quase sempre, para a satisfação de vinganças pessoais. (Ibidem, fo 39 ro)
Creio que o cofre figurado em forma de busto masculino, que gargalha de modo
quase caricatural e traja paramentos encarnados e pretos, poderia de fato estar ligado, por
via de complexos processos de sincretismo, a Exu, o orixá mensageiro dos iorubás. Como
fica explícito no laudo, Exu é entendido de modo muito negativo pelos peritos, que
perpetuavam, assim, a inadequada identificação entre Exu e o Diabo cristão que aparece
em escritos europeus desde o séc. XIX (VERGER, 2020, p. 76). Já o “boneco de barro,”
com seu aspecto infantil e demandando uma guloseima, poderia estar relacionado aos
Ibêjis, “orixás menores da tradição nagô, protetores dos gêmeos, no Brasil identificados
com os santos católicos Cosme e Damião” (LOPES, 2011, pos. 12784). Embora no
momento seja impossível comprovar tal hipótese, ela certamente não é anacrônica.
Aproximadamente na mesma época em que Amanda Pinheiro foi presa, o poeta francês
Benjamin Péret assistiu um culto afrobrasileiro no Rio de Janeiro no qual um médium,
incorporando “São Cosme ou São Damião,” agia e falava como uma criança, ao mesmo
temo que pedia que lhe fossem dados doces e frutas (PÉRET, 1930).
Fig. 2 - Fotografia de um boneco, feita em 5 de Julho de 1929, a requisição do Delegado Augusto Mendes
(PROCESSO, 1929-31b, fo 44). Foto: Arthur Valle
Infelizmente, o cofre e o boneco fotografados pela polícia em 1929 parecem não
ter sido preservados, o que dificulta o aprofundamento de suas análises. Existe, porém,
uma outra peça cuja foto consta em um processo criminal e cujo paradeiro é hoje
conhecido. Trata-se de uma expressiva cabeça feita de argila, na cor preta, que tem olhos
de vidro embutidos [Fig. 3]. Ela aparece já em uma das fotos que documentam a
instalação do Museu da Polícia no final dos anos 1970, tiradas pelo fotógrafo Luiz
Alphonsus, e era então aparentemente identificada como uma “cabeça de Exu”
(MAGGIE, RAFAEL, 2013, p. 321). Com a transferência da coleção do Museu da Polícia
para o Museu da República, essa peça ganhou grande visibilidade, aparecendo como um
dos ícones da campanha que reivindicava a realocação da coleção e em fotos que correram
o mundo (ALVES, 2020).
Uma fotografia dessa cabeça aparece com destaque no processo CS.0.PCR.7670
do Arquivo Nacional, datado entre 1934 e 1935. A ré desse processo se chamava Luzia
Cardoso. Em 8 de outubro de 1934, ela foi presa em flagrante em sua casa no n. 86,
fundos, da Rua Araújo Leitão (a mesma de Amanda Pinheiro). A ré foi acusada de praticar
“baixo espiritismo” e enquadrada no Art. 157 do Código Penal de 1890. Os policiais que
conduziram a batida apreenderam alguns objetos encontrados na casa da acusada, que
foram listados no “auto de apresentação e apreensão” do processo (PROCESSO, 1934-
35, fo 4 ro). A perícia desses objetos foi um dos principais elementos que fundamentaram
as acusações contra Luzia Cardoso.
Fig. 3 - Fotografia dos apetrechos a que se refere o ofício No 2797 de 3 de outubro de 1934 - da 1a.
Delegacia Auxiliar (PROCESSO, 1934-35, fo 26). Foto: Arthur Valle
No "Auto de Exame de 'Baixo Espiritismo'" que consta no processo
CS.0.PCR.7670, os elementos mostrados na foto da Fig. 3 são assim descritos: “um
alguidar de barro vidrado contendo uma cabeça feita de argamassa de barro e pó de
carvão, as falhas tomadas de cera e olhos de vidro, duas pernas de frango, uma quantidade
da chamada ‘farofa amarela’" (Ibidem, fo 33 vo). Os peritos Eugenio Lapagesse e
Makrinio Mario de Miranda, que assinaram o laudo, asseveraram que o conjunto de
elementos configuraria um "'trabalho de despacho', figurando a cabeça, como símbolo de
adoração do 'espírito protetor do cavalo’ [i.e., do médium] que estava em transe
mediúnico na ocasião em que foi apreendido o material” (Idem).
Vale notar que, no processo em questão, o “espírito protetor” presumivelmente
representado pela cabeça é identificado (inclusive pela ré) como o "’caboclo' denominado
'Lalú' da 'linha de Ubanda' [sic]" (Ibidem, fo 7 ro) - i.e., como um tipo de entidade espiritual
ameríndia que é até hoje central em muitas denominações religiosas afrobrasileiras
(PRANDI, VALLADO, SOUZA, 2011). Esse dado contradiz a documentação mais
recente, na qual a cabeça normalmente aparece identificada como sendo a de um Exu.
Com efeito, “Lalu” é usualmente conhecido como uma manifestação ou qualidade de Exu
(LOPES, 2011, pos. 14559 sg.). É possível, portanto, que Luzia Cardoso tenha declarado
aos policiais que a cabeça era a de um caboclo pois esse tipo de entidade espiritual
certamente seria encarado de modo menos negativo do que um Exu - considerado pelos
peritos, como vimos, uma “divindade maléfica.” Se assim foi, os policiais acreditaram na
ré, o que exemplifica quão malversados eles podiam ser nas práticas religiosas que se
esforçavam por reprimir.
A consulta ao processo de Luzia Cardoso também deixa claro o quanto a
musealização do despacho apreendido em 1934 reduziu-o em termos estéticos.
Aparentemente, apenas a cabeça, limpa da cera que a cobria, foi preservada, enquanto as
pernas de frango e a farofa foram descartadas. Podemos crer que os policiais não tinham
interesse, sensibilidade e nem métodos adequados para preservar a integridade da
impressionante assemblagem que sequestraram do local de culto da acusada. Mesmo
considerando a efemeridade como um traço constitutivo dos despachos enquanto
categoria artística (CONDURU, 2007, p. 85 sg.), é apenas quando cotejamos a cabeça
com o conteúdo do processo criminal que ela recupera parte da potência estética que
possuía quando foi apreendida pela polícia. Quando a peça é exibida sem a devida
contextualização, corre-se o risco de aliená-la no estado ao qual foi reduzida pela
mentalidade racista e marcadamente ocidentalizada dos agentes que a aprisionaram.
Fernando Ortiz et al.: referências teóricas nos laudos policiais
Um segundo aspecto que pode ser inferido a partir dos laudos encontrados nos
processos do Arquivo Nacional diz respeito ao fato deles nos permitirem detectar - ainda
que de maneira parcial - quais eram os autores que embasavam o juízo dos peritos a
respeito dos objetos sacros apreendidos pela polícia. Esse é um tópico importante mas
complexo, a respeito do qual vou aqui fazer apenas uma primeira aproximação.
Em finais dos anos 1920, momento em que autoridades acadêmicas começaram a
ser citadas nos laudos dos processos criminais, o nome que surge com mais frequência
parece ser uma escolha inusitada. Trata-se do famoso intelectual cubano Fernando Ortiz
Fernández (1881-1969), nascido e falecido em La Habana e hoje reconhecido, com
justiça, como um dos responsáveis pelo nascimento do afrocubanismo.
Significativamente, porém, o Ortiz referendado pelos peritos policiais cariocas não é
aquele das obras da maturidade; que cunhou, em 1940, o conceito de transculturação em
seu livro Contrapunteo cubano del tabaco y el azucar (ORTIZ, 1987); e que era um
defensor entusiasta do valor das culturas afrocubanas. Trata-se, antes, do Ortiz muito
racista que publicou, em 1906, o livro Hampa Afro-Cubana. Los Negros Brujos.2 O
subtítulo dessa obra - “apuntes para un estudio de etnologia criminal” - deixa claro que
Ortiz ali interpreta as práticas mágico-religiosas afrocubanas com os conceitos
positivistas e racialistas da antropologia criminal de seu tempo, muito inspirado por
autores como Alfredo Nicéforo, Escipion Sighele e Cesare Lombroso. Não por acaso,
Lombroso escreveu a carta-prólogo que abre a edição original de Los Negros Brujos.
Em suma, o aspecto específico da diversificada obra de Ortiz que interessou à
polícia carioca foi “o estudo [que] buscava descrever os tipos humanos da chamada mala
vida - má vida - cubana e desvendar os fatores psíquicos que inclinariam a comunidade
negra na direção do crime e das práticas antissociais” (BEIRED, 2019, p. 32-33). Em Los
Negros Brujos, a cultura religiosa afrocubana é subsumida à ideia de atavismo, i.e., “un
salto atrás del individuo con relación al estado de progreso de la especie que forma el
medio social al cual aquél debe adaptarse” (ORTIZ, [1917], p. 367, grifo no original). Tal
leitura racista e condenatória parece ter caído como uma luva para a instituição policial
carioca, que se esforçava por reprimir as manifestações culturais de matriz africana.
Não cabe aqui analisar o ambivalente livro de Ortiz, que foi discutido por outros
autores (e.g., MULLEN, 1987; CUNHA, 2015; FURIÓ, 2019). Obviamente, ele é
importantíssimo para se pensar, em uma perspectiva atlântica e comparativa, os fluxos
culturais que marcaram a diáspora africana nas Américas. Mas a distância geográfica e
temporal que separa Los Negros Brujos dos processos criminais aqui em questão indica
2 Uma segunda edição de Los Negros Brujos, consideravelmente reduzida em termos de texto e notas, foi
publicada em 1917 (MULLEN, 1987, p. 115). Julgo mais provável que os peritos cariocas tenham tido
acesso à essa segunda edição, que é a que refiro no presente artigo.
que, sem as devidas ponderações, o livro não poderia ser utilizado para entender (muito
menos julgar...) as práticas religiosas afrobrasileiras. Todavia, os peritos policiais não
pareciam preocupados com tal rigor antropológico e, a partir do final dos anos 1920,
várias vezes citaram Los Negros Brujos em seus laudos que criminalizavam os ritos
afrobrasileiros.
Em todos as ocorrências, os peritos usam passagens do livro de Ortiz para
respaldar a afirmação de que os objetos sequestrados dos locais de culto pela polícia eram
utilizados para praticar feitiçaria - uma qualificação que, nos laudos, tem sempre
conotação criminosa. Dois exemplos se acham no processo CS.0.PCR.4977 do Arquivo
Nacional, datado entre 1929 e 1931, e cujo réu se chamava Domingo Bastos. Ali, os
peritos Claudio de Mendonça e Octacílio Leal tomam o primeiro item da relação dos
objetos apreendidos pela polícia - um chifre de veado - como exemplo para afirmar que
os objetos que examinaram eram “de uso corrente no arraial da ‘macumba’”
(PROCESSO, 1929-31a, fo 33 ro). Para legitimar tal juízo, eles citam, em espanhol, uma
sessão de Los Negros Brujos que contém duas ilustrações de “fetiches” de chifres, e na
qual Ortiz ([1917], p. 84-88) postula a origem centro-africana dos mesmos:
"El empleo de cuernos como fetiches es muy corriente entre los brujos afro-cubanos y
probablemente fue introducido en Cuba por los negros del Congo" - "Los Negros Brujos"
E mais adiante, continuando a tratar desse fetiche assim se exprime o mesmo autor [Ortiz]
na sua aludida obra:
"En Cuba, donde los brujos lo hallaron antilopes, los cuernos de estos cuadrúpedes fueron
sustituidos por los del venado y mas raramente por los de otros animales". (Idem)
Logo em seguida, no mesmo laudo, os peritos discutem o segundo item da relação
- uma espada. Eles começam precisando que, nas macumbas, “esta arma, quase sempre,
costuma ser de madeira. Ultimamente, porém, empregam os feiticeiros uma espada ou
sabre de ferro ou metal, e cuja aquisição se torna mais fácil. Tal utensílio se usa nos
númens coreográficos das sessões” (Idem). Depois, os peritos voltam a citar o livro de
Ortiz para afirmar a vinculação da espada a práticas religiosas de matriz africana:
“Otra danza practican los brujos qué tiene a primera vista un carácter guerrero, por el
sable de madera que blanden aquellos en sus saltos y piruetas ante el altar. De estos sables
se encuentran en casi de todos templos brujos y salen à la luz cada vez que la Policía
penetra en dichos antros”. (Ibidem, fo 33 ro e 33 vo)
Tal passagem se encontra no final de uma sessão do capítulo III de Los Negros
Brujos na qual Ortiz ([1917], p. 139-141) discute “musica y danzas.” Ela é ilustrada por
desenhos de um machado e de uma espada feitos de madeira. Ortiz postula que o
simbolismo da referida dança de “caráter guerrero” “se reduce á una lucha contra ciertos
espitus maléficos, á los cuales procura assustar el sacerdote y hacerles huir, ya que no
consigue atraerlos y dominarlos por halagos” (Ibidem, p. 140-141). Ortiz finaliza
afirmando que a dança é performada em um rito para “Shangó.”
De fato, o uso de espadas em contextos religiosos afrobrasileiros se encontra
documentado desde as primeiras décadas do séx. XX. Muitas espadas de madeira ou metal
podem ser encontradas, por exemplo, na coleção que pertencia ao Museu da Polícia. Mas,
no Rio de Janeiro, seus usos parecem ter sentidos litúrgicos diversos daqueles que Ortiz
indica. Exemplo disso é encontrado em uma reportagem de Carlos Alberto Nóbrega da
Cunha intitulada O Mysterio da "Macumba," publicada no jornal Correio da Manhã em
setembro de 1923. Ali, o jornalista descreve longamente uma “Ronda de Ogum” na linha
de ‘Umbanda,” no curso da qual dois médiuns que incorporavam o orixá guerreiro dos
iorubás performam, com espadas, uma dança que tem o caráter de um “duelo simulado”
(CUNHA, 1923, p. 5). Nóbrega da Cunha destacou, com entusiasmo, o quão espetacular
era essa performance com espadas e, não por acaso, ela mereceu uma interessante
ilustração, que foi estampada no jornal. A diferença entre os ritos cubanos e a “ronda”
carioca nos lembra da inadequação do uso do livro de Ortiz para compreender os cultos
que os preconceituosos peritos qualificavam de criminosos.
Por falta de espaço, não discutirei aqui outras referências a Los Negros Brujos que
aparecem em processos da virada para os anos 1930 (PROCESSO, 1929-31c, fo 21 vo;
PROCESSO, 1930, fo 31 e 32). É importante salientar, porém, que ao menos desde finais
dos anos 1930, se verifica uma ampliação do leque de estudiosos citados pelos peritos
policiais, que passam a referir autores brasileiros. Um exemplo se acha no processo
CS.0.PCR.8207, produzido entre 1938 e 1939, cuja ré se chamava Iracema Magalhaes da
Silva. Ali, os peritos João Antônio Barreiros e Antonio Carlos Villanova citam Nina
Rodrigues, Artur Ramos, Edson Carneiro e Manuel Querino. Segundo os peritos, esses
autores teriam “magistralmente” explicado o sincretismo que caracterizaria o que eles
designavam como “macumbas cariocas” (PROCESSO, 1938-39, fo 42 ro).
Os peritos estavam, assim, relativamente atualizados com relação ao que se
publicou sobre religiões afrobrasileiras a partir de meados dos anos 1930. Eles
consultaram livros dos autores citados, referendando-os explicitamente. É o caso de O
animismo fetichista dos negros baianos de Nina Rodrigues, originalmente publicado em
português na Revista Brazileira, entre 1896 e 1897, mas que foi editado como livro apenas
em 1935.3 Os peritos citam também Religiões negras, livro de Edson Carneiro cuja
primeira edição, impressa no Rio de Janeiro, data de 1936. Eles citam, por fim e mais
frequentemente, O negro brasileiro, livro clássico de Artur Ramos publicado
originalmente no Rio em 1934.
A inclusão de autores brasileiros não parece, porém, ter modificado
substancialmente a visão preconceituosa dos peritos policiais a respeito das religiões
afrobrasileiras. Em todos os processos por mim consultados, eles seguem afirmando que
os objetos sacros analisados eram utilizados em práticas de feitiçaria e votam pela
condenação de seus detentores.
À guisa de conclusão, gostaria de salientar o caráter provisório das considerações
que aqui apresentei sobre os processos criminais que testemunham a perseguição contra
as religiões afrobrasileiras. Tais processos são fontes intrincadas e polifônicas, e cada um
deles demanda uma análise particular e detida. Além disso, no Arquivo Nacional e em
outras instituições do Rio de Janeiro, outros processos análogos aguardam pelo devido
levantamento e análise. Espero que esse artigo possa servir de incentivo para que outros
pesquisadores considerem o valor de tais fontes, que - embora terrivelmente racistas -
podem nos ajudar a historicizar as religiões afrobrasileiras e sua arte sacra.
Referências bibliográficas
3 Antes, porém, em 1900, foi publicada uma versão em francês sob o título L’Animisme Fétichiste des
nègres de Bahia. Marcel Mauss escreveu uma resenha breve, mas elogiosa, sobre tal tradução (cfr. L’Année
Sociologique. Paris: Félix Alcan, 1900-1901). Em Los Negros Brujos. Ortiz cita profusamente essa
tradução francesa do livro de Nina Rodrigues.
ALVES, Lise. Rio museum recovers Afro-Brazilian art works confiscated more than a
century ago as ‘black magic.' The Art Newspaper, 4 dez. 2020.
BEIRED, José Luis Bendicho. Fernando Ortiz e a rede transatlântica de intercâmbios.
Revista USP, São Paulo, n. 123, p. 29-44, out.-dez. 2019
BRASIL. DECRETO Nº 847, DE 11 DE OUTUBRO DE 1890. Promulga o Código
Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-
1899/d847.htm Acesso: 8 jun. 2021.
CONDURU, Roberto. Arte Afro-Brasileira. Belo Horizonte: C/Arte, 2007.
COUTINHO, Amélia. Coriolano de Araujo Gois Filho. FGV CPDOC, [s.d.]. Disponível
em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/coriolano-de-araujo-
gois-filho Acesso: 8 jun. 2021.
CUNHA, Nóbrega da. O Mysterio da “Macumba.” Correio da Manhã, Rio de Janeiro,
ano XXIII, n 8944, 4 set. 1923, p. 1 e 5.
CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Metamorfose infinita: sobre brujos, espíritos e apuntes
em Havana. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.22, n.2, p. 483-505, abr.-jun.
2015.
FURIÓ, María José Los negros brujos, de Fernando Ortiz, la santería bajo el prisma
positivista. Rinconete, 26 nov. 2019. Disponível em:
https://cvc.cervantes.es/el_rinconete/anteriores/noviembre_19/26112019_01.htm
Acesso: 8 jun. 2021.
GOVERNO do Estado do Rio de Janeiro. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro,
ano XLVI, n. 147, parte I, 12 ago. 2020.
LODY, Raul. O Negro no Museu Brasileiro: Construindo identidades. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2005.
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana [recurso eletrônico]. - 4.
ed. - São Paulo: Selo Negro, 2011.
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
MAGGIE, Yvonne; RAFAEL, Ulisses N. Sorcery objects under institutional tutelage:
magic and power in ethnographic collections. Vibrant, v. 10, n. 1, p. 276-342, 2013.
MINISTÉRIO da Educação e Cultura. Secretaria da Cultura. Subsecretaria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Processo No 35_T_SPHAN/38. Coleção: Museu de
Magia Negra. Rio de Janeiro, 1938.
MULLEN, Edward J.. Los negros brujos: A Reexamination of the Text. Cuban Studies,
v. 17, p. 111-129, 1987.
ORTIZ, Fernando. Hampa Afro-Cubana. Los Negros Brujos (Apuntes para un estudio
de etnologia criminal). - 2a. ed. - Madrid: Editorial-América, [1917].
ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azucar. Caracas: Biblioteca
Ayacucho, 1987.
PÉRET, Benjamin. Candomblê e Makumba. O palpite de São Cosme... ou São Damião.
Diário da Noite, São Paulo, 9 dez. 1930, página desconhecida.
PRANDI, Reginaldo; VALLADO, Armando; SOUZA, André Ricardo. Candomblé de
Caboclo em São Paulo. In: PRANDI, Reginaldo. Encantaria Brasileira: o livro dos
mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2011, p. 120-145.
RELATÓRIO apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do
Brasil pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores Dr. Augusto de Vianna do
Castello em 1928. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1930. Disponível em:
http://ddsnext.crl.edu/titles/107 Acesso: 8 jun. 2021.
RIO, João do. As religiões no Rio. - 2. ed. - Paris; Rio de Janeiro: H. Garnier Livreiro
Editor, [1906].
VALLE, Arthur. Vida e morte de uma estátua de “Exu” do Museu da Polícia Civil do
Estado do Rio de Janeiro. In: Anais do XXXVI Colóquio do Comitê Brasileiro de
História da Arte: Arte em Ação. Rio de Janeiro: CBHA, 2017, p. 337-348.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. - 6a. ed.
- Salvador: Corrupio, 2002.
Processos criminais no Arquivo Nacional/Rio de Janeiro
PROCESSO BR RJANRIO CQ.0.PCR.472 - processo criminal - código penal de 1890,
artigo 157. – Réu: João Sany. Dossiê. Produção Inicial: 1908.
PROCESSO BR RJANRIO CS.0.PCR.4977 - processo criminal - código penal de
1890, artigo 157. – Dossiê. Réu: Domingos Bastos. Produção Inicial: 1929. Produção
Final: 1931. [1929-31a]
PROCESSO BR RJANRIO CS.0.PCR.5087 - processo criminal - código penal de
1890, artigo 157 e artigo 158. – Dossiê. Réus: Amanda Pinheiro, Quintino Pinheiro.
Produção Inicial: 1929. Produção Final: 1931. [1929-31b]
PROCESSO BR RJANRIO CS.0.PCR.5526 - processo criminal - código penal de
1890, artigo 157. – Dossiê. Réu: Rômulo de Carvalho Lavra. Produção Inicial: 1929
Produção Final: 1931. [1929-31c]
BR RJANRIO 6Z.0.PCR.15149 - processo criminal - código penal de 1890, artigo 156.
- Dossiê. Ré: Virgínia Cardoso. Produção Inicial: 1930.
PROCESSO BR RJANRIO CS.0.PCR.7670 - processo criminal - consolidação das leis
penais de 1932, artigo 157. - Dossiê. Ré: Luzia Cardoso. Produção inicial: 1934. Produção
Final: 1935.
PROCESSO BR RJANRIO CS.0.PCR.8207 - processo criminal - consolidação das leis
penais de 1932, artigo 157. - Dossiê. Ré: Iracema Magalhaes da Silva. Produção Inicial:
1938. Produção Final: 1939.