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Artevismo Negro: a resistência dos sujeitos subalternos Wynne Borges Carneiro 1 Neste trabalho abordarei as formas de resistência encontradas por artistas negrodescendentes para expor a sua arte, em contrapartida a mesmice estereotipada sobre a representação de negros nos museus convencionais. Para tanto utilizo o termo Artevismo Negro. O termo Artevismo se deve a junção da palavra arte com a palavra ativismo denominando o trocadilho, que significa expressão artística como meio de empoderamento, questionamento e resistência da cultura afro-brasileira. Esse artevismo que ressalto é um movimento de artistas visuais contemporâneos que por meio de sua arte, expõem, re-presentam no sentido teórico dado por Spivak, de re-presentar no âmbito da estética, da encenação e ressignificam a cultura da Diáspora Africana entremeada à cultura afro-brasileira. Esse movimento é formado por artistas visuais, e é importante ressaltar que o termo Artes Visuais é uma transformação do termo Artes Plásticas, como o próprio Plano Nacional de Artes Visuais aponta essa necessidade de expansão de critérios pré- estabelecidos do que é ou não arte fez com que esse campo das artes ganhasse uma amplitude abarcando assim novos conceitos e novas estratégias na arte contemporânea brasileira. De acordo com o Plano Nacional de Artes Visuais (2010), As Artes Plásticas - como foram até há pouco tempo conhecidas - ganharam nova dimensão. Passam a ser conhecidas como Artes Visuais. Integram o círculo das Artes Visuais aquelas formas de expressão artística que, tendo como centro a visualidade, gerem - por quaisquer instrumentos e técnicas - imagens, objetos e ações (materiais ou virtuais) apreensíveis, necessariamente, através do sentido da visão, podendo ser ampliado a outros sentidos. Partindo desse centro, o círculo se expande, agregando suas diversas manifestações, até que a circunferência das Artes Visuais alcance (e interpenetre) outros círculos das artes, centrados por outros valores, gerando zonas de intersecção que abrigam manifestações mistas, que não deixam de ser “visuais”, mas obedecem, com igual ou maior ênfase, a outras lógicas. Este círculo e suas intersecções 1 Wynne Borges Carneiro mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiás

Artevismo Negro: a resistência dos sujeitos subalternos · diversos artistas e aqui vale ressaltar artistas negros que por meio de sua obra buscam a renegociação de significados,

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Page 1: Artevismo Negro: a resistência dos sujeitos subalternos · diversos artistas e aqui vale ressaltar artistas negros que por meio de sua obra buscam a renegociação de significados,

Artevismo Negro: a resistência dos sujeitos subalternos

Wynne Borges Carneiro1

Neste trabalho abordarei as formas de resistência encontradas por artistas

negrodescendentes para expor a sua arte, em contrapartida a mesmice estereotipada

sobre a representação de negros nos museus convencionais. Para tanto utilizo o termo

Artevismo Negro. O termo Artevismo se deve a junção da palavra arte com a palavra

ativismo denominando o trocadilho, que significa expressão artística como meio de

empoderamento, questionamento e resistência da cultura afro-brasileira. Esse artevismo

que ressalto é um movimento de artistas visuais contemporâneos que por meio de sua

arte, expõem, re-presentam no sentido teórico dado por Spivak, de re-presentar no

âmbito da estética, da encenação e ressignificam a cultura da Diáspora Africana

entremeada à cultura afro-brasileira.

Esse movimento é formado por artistas visuais, e é importante ressaltar que o

termo Artes Visuais é uma transformação do termo Artes Plásticas, como o próprio

Plano Nacional de Artes Visuais aponta essa necessidade de expansão de critérios pré-

estabelecidos do que é ou não arte fez com que esse campo das artes ganhasse uma

amplitude abarcando assim novos conceitos e novas estratégias na arte contemporânea

brasileira. De acordo com o Plano Nacional de Artes Visuais (2010),

As Artes Plásticas - como foram até há pouco tempo

conhecidas - ganharam nova dimensão. Passam a ser conhecidas

como Artes Visuais. Integram o círculo das Artes Visuais

aquelas formas de expressão artística que, tendo como centro a

visualidade, gerem - por quaisquer instrumentos e técnicas -

imagens, objetos e ações (materiais ou virtuais) apreensíveis,

necessariamente, através do sentido da visão, podendo ser

ampliado a outros sentidos. Partindo desse centro, o círculo se

expande, agregando suas diversas manifestações, até que a

circunferência das Artes Visuais alcance (e interpenetre) outros

círculos das artes, centrados por outros valores, gerando zonas

de intersecção que abrigam manifestações mistas, que não

deixam de ser “visuais”, mas obedecem, com igual ou maior

ênfase, a outras lógicas. Este círculo e suas intersecções

1 Wynne Borges Carneiro mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiás

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compõem o campo das Artes Visuais. A definição sobre os

campos das Artes Visuais tem sido matéria de reflexão e debates

sofisticados devido à sua amplitude e à agregação de questões

filosóficas. É necessário, antes de qualquer diagnóstico,

redefinir as Artes Visuais como um território que incorpora hoje

diversas áreas de expressão, além das Artes Plásticas

consideradas convencionais (pintura, escultura, desenho,

gravura, objeto). (Ministério da Cultura/Funarte, 2010).

Esse enfrentamento artístico, uma nova leitura para as questões negras se dá em

locos que permitem essa ressignificação como, por exemplo, os museus de Arte

Contemporânea, que são espaços que denunciam as narrativas hegemônicas que

continuam a marcar os museus históricos. Esse movimento de resistência e luta é

conhecido também por Quilombismo. O quilombismo é movimento de luta e

resistência e autonomida da comunidade negra e da cultura afro-brasileira. Esse

movimento negro ressalta a importância histórica do negro escravizado como

participante do processo contraditório de lutas que caracterizou o sistema escravista.

Esse símbolo de resistência deriva-se de quilombo. Segundo Clóvis Moura

(1987) quilombo é toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte

despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele. A

historiografia brasileira não permitiu que os Quilombos e dentre eles o Quilombo de

Palmares obtivesse o êxito que ele realmente teve. É mais um componente que foi

apagado para que a população negrodescendente não soubesse da luta de seus

ancestrais, da resistência. Palmares contou com vinte mil habitantes, ora imaginem nos

dias de hoje uma cidade do interior do Brasil com esse contingente, como deixar esse

quilombo, essa comunidade que também acolhia brancos pobres e indígenas passar

desapercebida pela historiografia dita oficial.

Ainda segundo Clóvis Moura (1987), esse quilombo teve status de Estado e

estabelecia relações pacíficas com outros grupos da sociedade da época, relações

inclusive econômicas. Então por meio deste trabalho e com ousadia me proponho a

ajudar a reescrever e assim pontuar todo o movimento de resistência que vem sendo

articulado desde o século XVII por meio do quilombo. Então quando eu aponto e falo

sobre Artevismo Negro eu estou falando sobre Quilombismo também.

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O Artevismo Negro tem sido pautado em locais que permitem e dão espaço para

a desconstrução de uma arte e cultura branca, superior e ocidental, pois permitem que

diversos artistas e aqui vale ressaltar artistas negros que por meio de sua obra buscam

a renegociação de significados, a exposição da cultura não estereotipada das

representações das artes diaspóricas africanas, exponham uma nova construção da

herança cultural dos povos africanos que vieram pra cá. Esses artistas buscam recontar

uma nova história, por meio de narrativas que são suas por direito e por legado. Eles

estão em busca de recontar a história do seu próprio povo. De acordo com Rita Laura

Segato

Afinal o que é um povo? Um povo é o projeto de ser uma

história. Quando a história tecida coletivamente, como os pontos

de uma tapeçaria onde os fios desenham figuras, às vezes

aproximando-se e convergindo, às vezes distanciando-se e

seguindo em direções opostas, é interceptada, interrompida pela

força de uma intervenção externa, este sujeito coletivo pretende

retomar os fios, fazer pequenos nós, suturar a memória e

continuar. Nesse caso, deve ocorrer o que podemos chamar uma

devolução da história, uma restituição da capacidade de tecer

seu próprio caminho histórico, retomando o tramado das figuras

interrompidas, tecendo-as até ao presente da urdidura,

projetando-as em direção ao futuro. (SEGATO, 2012, p.112)

Esses artistas que mencionarei em seguida produzem trabalhos com o viés da

cultura da Diáspora Africana desconstruindo a história hegemônica e projetando-a

para o futuro pelo olhar do subalterno, pois enxergam através da arte, um movimento

de renegociação histórica, pois a arte é também instrumento de enfrentamento,

resistência e ressignificação de conceitos e ideologias impostas. E é por meio da arte

que artistas negros como a paulistana Rosana Paulino e Dalton Paula nascido em

Brasília, mas que se autodenomina goiano ressignificam, negociam e colocam em

evidência a arte negra. Sobre o seu trabalho, o artista Dalton Paula afirma,

O meu trabalho artístico: o corpo. O corpo negro, corpo

silenciado pelo medo, pela insegurança, pela individualidade e

pela efemeridade. As referências nas quais busco esse corpo –

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aliás, esses corpos negros – são os subúrbios, as congadas e os

terreiros e ritos das religiões de matriz africana.2

Dalton Paula é formado em Artes Visuais pela Universidade Federal de Goiás,

mas antes de artista foi bombeiro, experiência esta que fez com que tivesse a certeza

que aquela não era a carreira que queria seguir. Já na graduação em Artes Visuais,

Dalton se destacou entre os alunos tendo posteriormente em seu currículo várias

exposições e premiações pelo Brasil e internacionalmente também. O trabalho do

artista não se limita a pintura, ele utiliza-se também da performance, da fotografia e de

vídeos para a produção dos seus trabalhos que são em sua maioria provocativos.

Segundo Dalton “uso o silêncio para comunicar, para despertar o que me incomoda,

para repensar as imagens que aprisionam e abrir imagens para representar esses corpos

negros em outras histórias, em outras estruturas, capazes de reconhecer o

protagonismo de sujeitos que historicamente são silenciados3”.

A série de fotopintura “Retratos Silenciados” aborda a temática dos corpos

silenciados. A inspiração e técnica são das fotografias que eram pintadas antigamente e

foram substituídas pela fotografia digital. Segundo Dalton “refotografo os retratos

pintados encontrados nas salas de milagres, peças de ex-votos, onde estão depositadas

devoções, fé, agradecimentos, pedidos, curas, sonhos... Minha produção perpassa

basicamente a temática do corpo silenciado, e acredito que esse silenciamento seja uma

enfermidade”.

Os personagens das fotopinturas são pessoas negras, bem trajadas pintadas sobre

livros antigos de capa dura que possuem marcados traços de negritude, mas possuem

também narizes de cor bege e pálpebras de mesma cor. O interessante sobre esses traços

é exatamente contrapor essas marcações pela cor do embranquecimento. E a

característica comum a todos, os olhos fechados é exatamente representar o

silenciamento desses corpos negros.

O artista utiliza-se de enciclopédias como suporte para suas pinturas, vide

imagem abaixo Segundo Dalton a ideia do uso das mesmas, parte da sistematização e

2 Trecho retirado do site pessoal do artista https://daltonpaula.com/biografia/ acesso em: 06/12/2016 3 Trecho retirado do site pessoal do artista https://daltonpaula.com/biografia/ acesso em: 06/12/2016

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materialização do conhecimento científico presentes em cada livro da coletânea. Desse

modo ele cria para cada personagem, uma história de protagonismo e autoria,

reelaborada nas capas dessas publicações universais.

Figura 1 Retrato Silenciado. Oléo sobre livro 425 x 28.5 cm Foto: Paulo

Rezende. Sé Galeria

Dalton Paula foi o único artista goiano e negro selecionado para a 32º Bienal de

São Paulo que aconteceu de setembro a dezembro de 2016. E essa escolha tem um peso

muito grande. A Bienal de São Paulo é uma exposição de grandes expoentes da arte

contemporânea brasileira. Ter uma representatividade negra entre os expositores cuja

obra é instrumento para tensionar questões tão relevantes para a população

negrodescendente é poder dar visibilidade as questões tão invisibilizadas, é representar e

expor imagens e narrativas que ainda incomodam a sociedade que nega e esconde suas

raízes. E por raízes Dalton reflete em seu trabalho a fé e a religiosidade afro-brasileira, a

música e a dança e o protagonismo dos corpos negros.

Também expoente desse movimento e aqui protagonista da minha pesquisa,

Rosana Paulino, artista negra é doutora em artes visuais pela Escola de Comunicações e

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Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP, especialista em gravura pela London

Print Studio e bacharel em gravura pela ECA/USP. Rosana através de sua arte procura

rememorar, ressignificar a população negra brasileira e como artista vem se destacando

por sua produção ligada a questões sociais, étnicas e principalmente de gênero. Seus

trabalhos têm como foco principal a posição da mulher negra na sociedade brasileira e

os diversos tipos de violência sofridos por essa população decorrente do racismo e das

marcas deixadas pela escravidão.

Em sua tese de doutorado e como pontuado anteriormente, para nomear o seu

sujeito decide descartar termos já tão conhecidos e emprega o neologismo

negrodescendente, ao qual me aproprio em identificação e deferência. É interessante

usar o termo negrodescendente porque em se tratando de Brasil, nem todo pessoa cuja

cor da pele é negra possui ascendência apenas africana. Há uma miscigenação latente

que por vezes já foi teorizado, cujo resultado pode ser tanto um fenótipo cujo fototipo –

classificação para a coloração da pele vai ser mais claro ou mais escuro.

Uma das pontas do trabalho artístico, aquela ligada

diretamente a um pensar político, pode ser localizada no fato de

ser uma artista negrodescendente. Desde criança, não me

encontrar representada por imagens que, quase sempre, insistiam

em colocar os/as negrodescendentes em posição inferior e/ou

estereotipada são elementos que chamaram minha atenção.

Olhar e não me ver representada nos livros escolares, sempre

com seus modelos de família branca e feliz, cabendo aos negros

os papéis de serviçais, ver as novelas e anúncios de televisão

que em quase todos os casos reservavam aos negros sempre o

mesmo tratamento estereotipado são fatores que, sem dúvida,

contribuíram para uma atuação artística na qual o viés político

se encontra fortemente marcado. Isto já se faz notar nas

primeiras obras realizadas ainda como aluna, como é o caso da

instalação Parede da Memória (PAULINO, Rosana, 2011, p.23)

As obras de Rosana são conhecidas mundialmente e possuem relevância ímpar

para a compreensão e estudo das relações étnico-raciais brasileiras, e dentro dessas

relações entenderem a questão da mulher negra. A artista é uma premiada gravadora,

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desenhista e pintora que teve notoriedade a partir de sua obra “Parede de Memória”de

1994 vide imagem abaixo, mural de serigrafia gravada em almofadas, cujas fotos são

pertencentes à sua família. Esse trabalho suscitou questionamentos sobre as mulheres

expostas, o desgaste, e a opressão dos trabalhos manuais aos quais foram submetidas.

“Olhar no espelho e me localizar em um mundo que muitas

vezes se mostra preconceituoso e hostil é um desafio diário.

Aceitar as regras impostas por um padrão de beleza ou de

comportamento que traz preconceito, velado ou não, ou discutir

esses padrões, eis a questão” 4

Rosana Paulino utiliza-se da sua arte para falar de sua condição como mulher e

como mulher negra, como também usa sua arte como instrumento de enfrentamento,

motivação para recontar a história dos descendentes da diáspora africana, sobretudo as

mulheres, cuja reflexão permite compreender Paulino (2011) como a mulher negra é

vista na sociedade brasileira atual e o modo pelo qual as sombras lançadas pela

escravidão sobre esta população se refletem nas negrodescendentes ainda hoje, criando

e perpetuando locais simbólicos e sociais para este grupo.

4 Trecho retirado de entrevista para o site Afreaka. Disponível em : http://www.afreaka.com.br/notas/tramas-de-rosana-paulino/ acesso: 06/12/2016

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Figura 2 Instalação Parede da Memória por Rosana Paulino 1994/2005 -

exposição territórios - Pinacoteca

Pude ver in loco o trabalho de Rosana Paulino e de Dalton Paula na Exposição

“Vozes do Silêncio”, cujo cartaz de apresentação da exposição é uma performance de

Dalton. A exposição aconteceu no Centro Cultural UFG entre os meses de agosto e

setembro, sob a curadoria de Paulo Henrique Silva com um coletivo de artistas afro-

brasileiros tais como; Antônio Obá, Dalton Paula, Helô Sanvoy, Rosana Paulino, Paulo

Nazareth, Moisés Patrício e Janaína Barros. Segue a nota de abertura feita pelo curador

da exposição em que ele explica a premência de mais iniciativas como essa.

Vozes do Silêncio surge da necessidade de promover os

debates e reflexões que têm acontecido no estado de Goiás nos

últimos tempos acerca da presença – ainda muito tímida – e do

papel dos artistas negros da arte contemporânea brasileira. Nessa

perspectiva, a mostra apresenta trabalhos de sete artistas afro-

brasileiros que estão inseridos no circuito institucional das artes:

Antônio Obá, Dalton Paula, Helô Sanvoy, Rosana Paulino,

Paulo Nazzareth, Moisés Patrício e Janaína Barros. Os artistas se

dedicam a produções que dialogam entre si, não só porque

buscam discutir as experiências socioculturais dos afro-

brasileiros, mas também, por voltarem seus olhares críticos para

inúmeras questões que inquietam a sociedade. Suas narrativas,

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geradoras de sentidos poéticos e políticos, fornecem ao fruidor

inúmeras possibilidades de leitura e apontamentos para um

movimento de resistência a uma história escravista, marcada

pela opressão e dominação. Cada um, à sua maneira, traz à tona

em seus trabalhos temas como discussão de gênero, racismo,

violência, religiosidade, que são comuns aos negros, mas que

permeiam também as relações humanas em outras organizações

sociais. O uso do próprio corpo dos artistas, representações ou

situações e vestígios que remetem ao seu uso para a produção

dos trabalhos conduziram a concepção curatorial da mostra. As

obras apresentam o corpo em situações diversas, ora trabalhos

que geram questionamentos e se referem diretamente ao uso do

corpo, ora sobre as marcas, traços e indícios de sua existência.

Mais do que a representação figural do corpo, as obras que

integram a exposição colocam em evidência o corpo e suas

ações que passam a ser explorados como suportes para

experimentos de diferentes linguagens midiáticas, utilizando-os,

de diversas vezes de forma incisiva, como mecanismos para

questionar o próprio lugar desse corpo em uma sociedade

contemporânea e multicultural. As diversas formas de

apresentação e representação do corpo negro no conjunto de

obras que integram a mostra dão voz a milhões de corpos que

são silenciados diariamente por meio de uma invisibilidade

imposta e perversa, que sutilmente é capaz de violentar. Os

trabalhos instigam a refletir sobre esse corpo negro e seu

potencial de expressão, compartilhando com o público toda dor

gerada por um discurso racial que nega sua existência. (Texto de

apresentação da exposição “Vozes do Siêncio”, pelo curador

Paulo Henrique Silva)

A mostra traz muitas reflexões sobre a arte contemporânea, sobre diversidade,

sobre o papel do negro na sociedade e principalmente na arte. E como essa

representação cultural dos negrosdescendentes é importante, pois a contra-narrativa

criada por meio da arte faz com que uma nova historiografia seja formada, pois segundo

Hall (2016) historicizar é desnaturalizar ou desmistificar, é justamente reconhecer a

historicidade de algo.

As obras dos artistas provocam muitas reflexões em quem as recebe. A obra de

Rosana Paulino intitulada “Atlântico Vermelho” (imagem abaixo) remete diretamente

ao livro de Paul Gilroy – Atlântico Negro, que refere-se à travessia compulsória de

milhares de africanos rumo ao continente americano pela rota do oceano Atlântico. A

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obra é composta por imagens fortes que buscam provocar a reflexão no interlocutor. As

embarcações, os corpos negros femininos e os corações manchados de tinta vermelha

podem sugerir que muitos africanos morreram durante a travessia devido as péssimas

condições em que eram transportados, e sabe-se que isso de fato aconteceu, como

também pode sugerir que os africanos morreram em vida, já que ao deixarem o seu

território deixaram também sua identidade cultural, mas não o seu pertencimento étnico.

Conhecendo um pouco do trabalho de Rosana Paulino e mesmo sabendo que

arte contemporânea é uma arte de livre expressão, que depois de pronta, a obra e o

significado que o público dará a ela, nem sempre será o significado pretendido pela

autora. Aqui tomo o a liberdade de dizer que para mim Atlântico Vermelho é uma obra

que fala de mulheres, de mulheres negras africanas, que derramaram o seu sangue

durante a travessia, fala de dor e sofrimento dessas mulheres que não tiveram escolhas,

nem antes, nem durante e nem depois da travessia do Atlântico, fala de minhas mais

velhas. A interpretação da obra, o sigo compreendido é devido a uma leitura cultural de

significante e significado. Isso explica a interpretação pessoal sobre a obra de Rosana

Paulino.

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Figura 3 Atlântico Vermelho, Rosana Paulino - exposição Vozes do Silêncio.

Foto por Wynne Carneiro agosto/2017

Dalton Paula além do cartaz de apresentação da exposição participa da mostra

com um vídeo performance e com uma obra intitulada “Sons Velados” de 2017

(imagens abaixo). Essa obra me chamou muito atenção particularmente depois de ouvir

uma fala do próprio autor. Dalton disse que em sua pesquisa de campo ele busca

desvelar o “negro sertanejo”, logo essa pintura a óleo sobre cerâmica me diz muito

sobre esse personagem criado por ele. O questionamento fica se esse negro sertanejo é

contemporâneo ou o é o negro sertanejo do período colonial?

O negro sertanejo do período colonial muitas vezes silenciado pode ser

representado pela figura do sino, que remete aos sinos da época da escravidão. Sinos

que dividiam a casa grande e a senzala, que marcavam os toques de recolher e acordar,

o horário de se alimentar, um símbolo de opressão. O negro sertanejo contemporâneo

também é silenciado, ele vive em meio a região interior do país, o interior que último a

ser povoado, ainda guarda reminiscências de um passado provinciano, esse negro

sertanejo também é oprimido pelo resquício de racismo e proconceito.

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Figura 4 Sons Velados Óleo e folha de ouro 22k sobre cerâmica. 47x47x13 cm;

19x19x4 cm Edição PA, 2017

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HALL, Stuart. Cultura e Representação. Rio de Janeiro. Editora PUC-RIO, 2016.

https://daltonpaula.com/biografia/ acesso em: 06/12/2016

http://www2.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2007/10/relatorio-pnc-das-artes-

visuais.pdf acesso em: 04/12/2016

FERREIRA, Débora A. As tramas de Rosa Paulino. Afreaka. São Paulo. 2016

Disponível em: http://www.afreaka.com.br/notas/tramas-de-rosana-paulino/ acesso:

06/12/2016

MOURA, Clóvis. Os Quilombos e a rebelião negra. Brasília. Editora Brasiliense. 1987

PAULINO, Rosana. Imagens de sombras. (Tese de Doutorado) – Universidade de São

Paulo. São Paulo, 2011.

SEGATO, Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um

vocabulário estratégico descolonial. E-Cadernos Ces 18, Epistemologias feministas: ao

encontro da crítica radical, 2012, pp.105-131.