Arthur Nestrovski - Adorno Beethoven e Teoria Musical

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  • 7/24/2019 Arthur Nestrovski - Adorno Beethoven e Teoria Musical

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    Universidade do Estado de Santa Catarina UdescCentro de Artes CeartDepartamento de MsicaLaboratrio de Ensino da rea de Fundamentos da Linguagem Musical

    Anlise musical

    Professor: Srgio Paulo Ribeiro de Freitas1 semestre de 2006

    Adorno, Beethoven e a Teoria MusicalUm ensaio de Arthur Nestrovski

    Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 11 de maro de 1988

    Adorno formulou a mais abrangente, a mais estimulante e amais frustrante reflexo sobre a msica neste sculo

    O primeiro volume das "Obras Completas" de Theodor Adorno(1903-1969) foi publicado em1970. Desde ento, j foram publicados mais dezoito volumes e outros quatro estoprometidos para breve (1). Destes vinte e trs livros, nada menos que onze praticamente ametade so dedicados exclusivamente msica. uma revelao surpreendente: TheodorAdorno, um dos pensadores mais influentes da modernidade, autor da "Dialtica Negativa", do"Jargo da Autenticidade", das "Minima Moralia" e da monumental "Teoria da Esttica", entreoutras obras seminais, se revela tambm como um musiclogo prolfico, autor de monografiassobre Mahler, Berg e Wagner, criador de uma primeira "Sociologia da Msica", palestrante ecrtico da msica nova e da antiga, compositor e pianista, e terico da "Filosofia da NovaMsica". uma revelao surpreendente porque a despeito desta vasta produo e a despeito

    do impacto inicial de um ensaio como o "Fetichismo na Msica", ou de uma coletnea como"Dissonncias", a obra musical de Adorno permanece margem dos currculos correntes deteoria musical. A despeito de referncias obrigatrias aqui e ali, ou de algum comentrioperdido num rodap de pgina, a teoria musical de Adorno tida, de maneira geral, como umacontribuio secundria secundria no contexto de sua obra como um todo e secundria aosinteresses primrios da educao musical de hoje. A teoria musical de Adorno permanecealojada no quarto de hspedes do conservatrio, onde tratada com aquela impacinciadiscreta de quem no v a hora do visitante ir embora.

    Do ponto de vista da filosofia, o pensamento musical de Adorno fascinante, mas incompreensvel, j que precisobem mais do que um conhecimento superficial de histria da msica e noes bsicas de harmonia para compreender doque se trata. Do ponto de vista da teoria musical, a obra de Adorno representa, de uma s vez, a mais abrangente,estimulante e mais frustrante reflexo sobre a msica neste sculo. Ningum antes dele fora capaz de dissecar com amesma agudez os mecanismos modernos de produo, reproduo e consumo da msica. Ningum depois dele jdemonstrou semelhante vocao analtica, resultado de uma mistura explosiva entre a composio e a dialtica. Mas ateoria musical de Adorno, ou melhor, suas vrias verses de uma teoria musical convergem todas numa promessa queele jamais cumpriu: a elaborao de uma tcnica analtica capaz de fazer jus a seu pensamento esttico e poltico. Isto, uma tcnica de anlise que nos permita expor a economia interna da partitura em suas relaes para com aeconomia externa do capital. Oscilando entre a filosofia e a msica, as anlises musicais de Adorno desembocam comfreqncia num beco sem sada, incapazes de articular mediaes entre a dialtica social e a da partitura. Este umproblema do qual o prprio Adorno tinha viva conscincia, mas para o qual jamais encontrou solues. possvel seperceber a raiz e a runa de seu inacabado livro sobre Beethoven, e dos fragmentos e notas para trs outros projetos:uma "Teoria da Reproduo Musical", uma crtica das "Correntes Musicais", e uma "Teoria do Rdio". Acossados entrea sntese e a fragmentao, um a um cada volume foi se deixando vencer pelo silncio.

    Musiclogo

    Dentre os fragmentos de seu livro sobre Beethoven, conta-se uma descrio relativamente longa do projeto como umtodo. Em verso traduzida para o francs, esta descrio foi publicada por Mac Jimenez e Marc de Launay na "Revued'Esthtique", n. 8, 1985 (volume inteiramentente dedicado a Adorno). Trs anos antes, a revista inglesa "MusicAnalysis" (volume 1, n. 2) j publicara uma conferncia proferida por Adorno em 1969, gravada, transcrita e traduzidapor Max Paddison. O contraponto entre os dois textos, fragmentados e improvisados como so, pode revelar muito daspreocupaes do Adorno musiclogo, face s objees de sua cara-metade de filsofo. Uma leitura polifnica dessestextos pode demonstrar a extenso do problema, bem como sugerir possibilidades de resposta para o impasse da anlisemusical. Antes do impasse, contudo, uma dvida clssica, e a soluo da crise de conscincia do analista. "Anlise" uma palavra fria. Vem do grego (ana-lysis) e significa "quebra" ou "dissoluo".1A anlise parente da "anatomia"que "corta em pedaos". O analista musical, como o anatomista, tambm se prope a cortar em pedaos para melhor

    1 [Houaiss]Anlise: Etimologia: gr. anlusis,es'dissoluo; mtodo de resoluo (por opos. a sntese)', do v. anal'desligar, dissolver, soltar,separar, libertar, analisar, examinar'.

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    compreender o todo. Marcado pelo estigma da faca e do frio, no h analista que no se veja perseguido, mais cedo oumais tarde, pelo demnio da dvida, sussurrando verdades e inverdades sobre a futilidade da anlise. "A msica", diz odiabo, diz o pblico, e dizem o jornal e os msicos, "a msica no se analisa. No preciso entender nada de msicapara se gostar de msica. A msica fala diretamente ao corao."

    Esta forma comum de resistncia teoria reproduz uma das modalidades mais antigas de conservadorismo. Analfabetos

    de d a d anunciam, rancorosos, que os brbaros chegaram para destruir e salgar o jardim da audio original. De certamaneira, tm razo: a iluso de uma escuta inocente, de uma escuta imediata e divina, desaparece to logo se perceba asleis de construo do objeto musical, que vem de oficina humana (demasiado humana). A anlise nos conduz de volta arte, em sua primeira acepo: a tcnica, a habilidade de combinar, construir. Ars (arte), como ordo (ordem), ratio(razo) e res (objeto; realidade), vem da raiz indo-europia "ar-", que significa conectar, ou combinar, e uma vez face face com esta arte isto , uma vez que se analisa os menores elementos de uma obra e o princpio de suas conexes uma vez dissolvida a totalidade do objeto, j se est praticamente beira de uma desmistificao da obra musical. neste sentido que se deve compreender o comentrio de Adorno sobre a relao entre a obra e sua anlise: "A anlise uma dessas formas, como a traduo ou crtica, que permite prpria obra se desenvolver. A obra musical necessita

    da anlise, para que possa revelar seu contedo de verdade" (MA, 176) (2). A obra de arte, para Adorno, uma formaparticular do conhecimento. Como tal, obedece s leis de formao de qualquer outro aparato ideolgico. A anlisemusical, segundo Adorno, deve partir do objeto (compreendido como forma de produo) para chegar ao objeto(compreendido como o resultado de um "campo de foras" que se estende da potica poltica). A anlise perseguida

    por Adorno uma filosofia do sujeito, mas calcada na exposio de uma falsa conscincia do objeto. A anlise, paraAdorno, s faz sentido quando integrada a um projeto mais ambicioso e mais amplo: a crtica da ideologia espontneada vida cotidiana.

    Tapearia

    A escolha de Beethoven como tema de um ensaio analtico est diretamente ligada a esteprojeto. Por um lado, Beethoven representa hoje a prpria imagem do compositor, em suaverso mais sentimental e trivializada. No se trata apenas da adorao e das fbulas queenvolvem a memria do Grande Surdo. Suas obras mesmo se estabeleceram como smbolo detudo que a msica dita (e maldita) clssica representa: profundidade, intangibilidade,humanidade. Mar de lgrimas. Afogar-se acima das estrelas. Beethoven a figura chave que se

    deve estudar para a dessecao das estratgias individuais e institucionais da recepo musical.Por outro lado o de dentro, o da produo musical a msica de Beethoven oferece aoanalista uma tapearia de temas, motivos e inter-relaes harmnicas que bem representa o quede mais complexo j foi produzido com sons, silncio e pentagrama. E a msica de Beethovenrepresenta ainda, para Adorno, a reunio de duas outras qualidades essenciais: oprofissionalismo e a inteligibilidade. Aconscincia profissional de Beethoven transparece a cada colcheia, cada compasso, cada frase. Figuras de linguagem semultiplicam a olhos vistos na partitura totalmente livre de ingenuidade. A imagem do surdo no bosque, psicografado a"Sinfonia Pastoral", no se sustenta por mais de duas linhas de anlise. Mas este profissionalismo de Beethoven no outra coisa seno o resultado da proximidade entre a anlise e a composio: "uma espcie de convergncia entre oprocesso analtico e o processo composicional" (MA, 176). A anlise da msica de Beethoven servir, portanto, parareafirmar a primeira lei da psicodinmica da composio: as distncias entre o diletante e o compositor diretamenteproporcional razo de suas capacidades analticas. Vale dizer: a qualidade da composio cresce e decresce de

    acordo com a conscincia crtica do compositor.Neste ponto preciso fazer uma ressalva. Theodor Adorno foi aluno

    Retrato de Alban Berg

    por A. Schoenberg

    deAlban Berg (1885 1935),que foi aluno de Arnold Schoenberg(1871 1951).Este fato, porsi s, j explica muitas coisas. Explica, por exemplo, de onde vem o slido conhecimentomusical de Adorno. Dois volumes de composies do jovem Adorno, publicados em 1970,incluem um quarteto de cordas, trs peas para orquestra e vrios ciclos de canes para voz epiano. No so obras-primas, mas no so piores que as composies juvenis de outrostalentosos alunos de Berg ou de Schoenberg. Como Ernst Krenek ou Roberto Gerhard,tambm Adorno aprendeu com Berg o significado do artesanato na composio aprendeuanlise e aprendeu a fundamental lio de esttica do mestre Schoenberg: "o verdadeiropropsito da construo musical no beleza, mas sim a inteligibilidade". uma posiofuriosamente "germnica", que tem sua justificativa terica na "Crtica do Juzo" de Kant. uma posio difcil, discutvel, parcial e comprometedora. Uma vez livres da beleza, Adorno eSchoenberg se vem conduzidos idia da msica como teoria, composio comoestabelecimento de um "campo de foras", obra musical como "problema" (MA, 181). Uma

    vez livres da beleza, livres de um ornamento de um belo que so suas marcas de batismo,Adorno e Schoenberg se vem comprometidos com uma tradio musical especfica, que temsua origem justamente em Beethoven. Desenvolvem da uma lucidez e uma cegueiracomplementares e opostas.

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    Cada texto de Adorno carrega consigo um outro texto, seu outro texto, ausente epresente nas entrelinhas. o elogio do belo, que nem Adorno nem Schoenberg jamaispuderam contemplar.A beleza, para Schoenberg, sinnimo de complacncia. A beleza,para Adorno, mentira, manipulao.

    A msica de Beethoven, cuja superfcie nunca "bela", nunca "boa de se ouvir",

    oferece a Schoenberg uma lio monumental sobre o significado da composio comoconstruo e sacrifcio, e oferece a Adorno nada mais nada menos do que uma filosofia.

    CombinatriaArnold Schoenberg

    1871 1951

    Percebe-se agora a importncia da anlisepara a filosofia musical de Adorno. Se a msica, a msica de Beethoven,mas no s a dele (cf. as monografias sobre Mahler, Berg e Wagner, e os ensaios sobre Bach, Schoenberg e Webern,entre outros) constitui propriamente uma reflexo filosfica, ento o que preciso se ganhar acesso s suas formas deleitura. E o que a leitura seno uma "arte", Ars, uma tcnica de combinaes? Leitura, como inteligncia, lgica,

    lxico ou lei, vem de uma raiz indo-europia "leg-" que significa selecionar ou combinar. A escuta analtica, para

    Adorno, ser aquela escuta capaz de identificar os elementos selecionados pelo compositor e organizados pelo

    engenho do artista ser aquela escuta que reproduz ela mesma a constituio da obra, se afirmando como uma "arte

    da leitura". A escuta analtica ser aquela escuta que recupera a arte da arte, numa poca em que a arte jdesapareceu, consumida pela voracidade de um pblico sentimental. A escuta analtica ser aquela que persegue o

    objeto, o encara sem medo, e se arrisca difcil fortuna do pensamento.

    Trabalho

    Da obra musical tida como objeto, "ordem e conexo das coisas", a anlise desvela a obra como trabalho, produo deuma "ordem e conexo das idias das coisas". A anlise servir, por tanto, para desfazer a falsa separao entre oconhecimento e o objeto do conhecimento. Atravs da anlise, a msica nos deixa ouvir o conhecimento como aprpria produo do objeto do conhecimento.

    Hugo Riemann1849 1919

    Em sua palestra de 1969, Adorno passa em revista algumas das formas correntes de

    anlise musical, dos "guias temticos" a anlise motvica "a la" Riemann2 e anlise schenkeriana. Dessa resenha no sobra pedra sobre pedra, mas muito seaprende sobre o que est espera do analista. Os "guias de viagem" temticos, maneira das contracapas de disco ou dos programas de concerto so dispensados comuma s palavra: reificao.3 Sua nica virtude foi ter conduzido analistas comoRiemannou Rtia um estudo dos menores elementos isolados da composio. Masas anlises de veia motvica sofrem, por sua parte, de outro problema agudo.Ocupados com a montagem de seus quebra-cabeas, os analistas desprezam o tempo eo movimento em favor de um esquema de papel. um problema antigo, um drama deduas cabeas: "todo o vir-a-ser da msica , fato, ilusrio, posto que a msica,enquanto texto, verdadeiramente fixa e no 'vem-a-ser' coisa alguma..." (MA 179). Oanalista que se concentra exclusivamente na relao formal entre motivos musicais seprofessa cientfico praticante, pousando a mo esquerda sobre a partitura.

    2[Grove, ed. Cons.] Karl Wilhelm Julius Hugo Riemann (1849 1919). Escritor, terico da msica, professor e compositor alemo.Um dos eruditos mais originais e criativos de sua poca, estabeleceu sistematicamente uma teoria de contraponto, fraseado eharmonia funcional, na monumental Grosse Kompositionslehre (trs volumes, 1902-13) e iniciou a anlise da msica baseada emprincpios de gnero e estilo histrico, isso levou-o a descobrir compositores e fontes esquecidas, cuja msica ele transcreveu, editoue analisou, incluindo manuscritos bizantinos do sculo X ao XV, John Dunstable, os sinfonistas de Mannheim e Johann Schobert.Sua contribuio reflete-se nos cerca de 60 livros (ver bibliografia no Analysis, Bent), entre eles o famoso Musik-Lexicon(1882,8/1916), 70 composies e mais de 200 outras publicaes que produziu. [Nt _Udesc2006].3 [Houaiss] Reificao (coisificao): segundo Georg Lukcs (1885-1971), alargando e enriquecendo um conceito de Karl Marx

    (1818-1883), processo histrico inerente s sociedades capitalistas, caracterizado por uma transformao experimentada pelaatividade produtiva, pelas relaes sociais e pela prpria subjetividade humana, sujeitadas e identificadas cada vez mais ao carterinanimado, quantitativo e automtico dos objetos ou mercadorias circulantes no mercado. (Obs.: cf. alienao). Derivao: porextenso de sentido. Qualquer processo em que uma realidade social ou subjetiva de natureza dinmica e criativa passa a apresentardeterminadas caractersticas - fixidez, automatismo, passividade de um objeto inorgnico, perdendo sua autonomia eautoconscincia.

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    Mas ignorar a partitura em favor dos sons no menos absurdo que abdicar dos sons em favor do texto escrito. "Amsica s ganha coerncia quando percebida como um vir-a-ser. Eis a o paradoxo da anlise: por um lado, a

    anlise limitada pelo que fixo e est ao alcance da mo; por outro, deve traduzir o que aprendeu em termos de

    movimento, um movimento coagulado pelo texto musical" (MA, 179).

    Heinrich Schenker se sai um pouco melhor neste confronto. A anlise schenkeriana se

    prope a demonstrar o princpio de unidade da msica tonal. De acordo com Schenker, aonvel mais profundo de toda obra tonal se distingue uma linha bsica, que desce doterceiro grau tnica da escala. Esta linha, combinada com a linha fundamental do baixo(1-5-1) constitui o "Ursatz": a base contapuntstica de toda linguagem tonal. Partindo do"Ursatz", possvel conceber a composio que, para Schenker, sempre sinnimo decomposio tonal como um processo gradual de ornamentao desta cadncia. A anlisepercorreria o caminho inverso, destacando os ornamentos da superfcie, penetrando osnveis mdios, mais sbrios, e descobrindo finalmente o "Ursatz", a estrutura arquetpicada obra, uma espcie de Id4 da tonalidade Desta idia derivam dois corolrios. Se o"Ursatz" realmente, como quer Schenker, a base de toda msica tonal, ento sernecessrio pensar cada nota de uma obra em relao a esta cadncia-me. E o que istosignifica que a idia de dissonncia deve se projetar do momento individual ao nvel daobra como um todo. esta a grande descoberta de Schenker. Uma vez apreendida sua

    noo de dissonncia, a anlise schenkeriana nos leva inevitavelmente a uma escutaestrutural. Heinrich Schenker1868 - 1935

    Ilustrao: Grfico de anlise Shenkeriana

    Para Adorno, como para Schenker, a composio um processo sistemtico e passvel de representao. No poracaso que tanto Adorno quanto Schenker consideram Beethoven o mais sistemtico de todos os compositores comoo maior de todos os compositores. Todavia, ao contrrio de Schenker, que postula o "Ursatz" e transforma a anlise

    num mtodo redutor, Adorno v na reduo um dos maiores perigos para o analista. "Ao reduzir a msica a suasestruturas mais fundamentais, Schenker interpreta como casual e fortuito precisamente o que, em certo sentido, aprpria essncia da msica" (MA, 174). Isto : Schenker parte da superfcie, chega ao fundo e fica por l. Descobre oque comum a toda obra tonal; ignora o que faz de cada obra uma outra obra, de cada compositor um outro compositor.De um ponto de vista schenkeriano, as diferenas entre, digamos, Haydn e Mozart, so menos importantes do que suasemelhana primal no "Ursatz". Mas as diferenas entre Haydn e Mozart so justamente o que fazem de Haydn Haydn ede Mozart Mozart. O mtodo analtico de Schenker nos permite avaliar o que Schenker mesmo desprezou. precisopartir da superfcie, descer at o fundo e retornar. Do explcito ao implcito e de volta ao explcito: uma teoriamaterialista da tonalidade deve percorrer cada caminho e cada idia em pelo menos duas direes simultaneamente.

    Discurso

    Os fragmentos de Adorno sugerem o teor de at, em certos casos, a substncia de suas anlises da msica de Beethoven.

    So trs as questes analticas por ele abordadas:(1) identificao e crtica, a um nvel tcnico, dos elementos e normas

    4[Houaiss]Id(psicanlise): sistema bsico da personalidade, que possui um contedo inconsciente, por um lado hereditrio e inatoe, por outro, recalcado e adquirido, de acordo com a segunda teoria freudiana do aparelho psquico.

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    de cada obra estudada; (2) formulao do "problema" da msica de Beethoven; e (3) criao de um discurso analtico

    apropriado.

    As trs questes so interdependentes, de modo que no se pode definir uma seqncia de operaes conduzindo deuma a outra. Como falar do problema da msica de Beethoven se ainda no foi analisada? Mas como possvel analis-la sem formular previamente um princpio de anlise? Uma vez que se percebe o conhecimento como forma de

    produo (e no de descoberta), como possvel confiar numa anlise tcnica, "objetiva" e "neutra"?

    "Objetiva" a lente do fotgrafo, que s fotografa o que quer ver. "Neutra" a rede bancria da Suia, que administra(igualmente) riquezas de vida ou de morte (desigualmente). E como fazer e falar da anlise sem palavras palavras ques podem vir da prpria anlise? o que se chama de "crculo hermenutico". A obra de Adorno como um todo oferecemais de uma resposta a este problema. Seus fragmentos de uma filosofia da anlise sugerem um modo musical de sechegar quadratura do crculo.

    Fragmentos

    Se, para Adorno, possvelfalar de anlise, fazer anlise e teorizar a anlise, justamente porque a fala, a fbrica e ateoria coincidem na anlise. No h um ponto de partida, como no h um ponto de chegada se parte e se chega de

    todo e qualquer ponto, e ao mesmo tempo. No h um ponto de partida porque no h uma tabula rasa da pesquisa.Como no h objeto sem o objeto do conhecimento. A iluso de causa e efeito que move o crculo hermenutico seconfunde com a causa e o efeito deste movimento que nos precipita da esquerda para a direita, linha aps linha e decima abaixo at o fim. Da esquerda para a direita,o pensamento que foge da simultaneidade, o pensamento que rejeitaa contradio a imagem intelectual do que Adorno chamava, com desprezo, de "mundo administrado", um mundoque esse mesmo pensamento administrou.

    A dialtica musical de Adorno, pelo contrrio, uma aplicao do pensamento formalizado na "Teoria da Esttica". um pensamento que faz da runa, do fragmento, seu princpio de articulao. O fragmento, como os casos de obra doanalista, s pode ser interpretado com a viso do todo presente. Mas este um todo que no equivale a uma simplessoma das partes, posto que cada parte contm o todo alm de si. Face iluso de totalidade, face totalidade que s seconquista fora de reduo, o pensamento de Adorno se multiplica em cacos de idia, pedaos de prismas refletindo edifratando um obscuro objeto musical.

    Auto-reflexiva quase ao nvel do exagero, a msica de Beethoven bem se presta ao projeto de anlise imaginado porAdorno. A msica de Beethoven a msica do artifcio. Sua marca social a espontaneidade, mas essa umaespontaneidade composta, construda. Em termos talvez mais prximos de Adorno, uma "espontaneidade negativa".O artifcio em Beethoven sinal de uma arte consciente de si, e "uma arte consciente de si uma arte que se analisou"(MA, 176). A anlise de Adorno visa recuperao desta anlise que se confunde com a composio.

    E esta anlise composta, esta arte da combinao, reflete e difrata o "problema" que lhe deu origem e que se originanovamente com ela: a tonalidade. "Compreender Beethoven compreender a tonalidade" (B). A tonalidade o"princpio regulador das relaes", o problema capital da msica de Beethoven, e o problema do capital: "atonalidade situa-se nos prprios fundamentos da sociedade burguesa" (B). A anlise de Adorno busca justamente oentendimento do "problema" da composio como um problema que tanto imanente msica quanto diretamenteligado s formas de produo e do trabalho.

    A anlise de Adorno busca refletir a tonalidade como forma de composio e como forma de pensamento, e buscarefletir a tonalidade como pensamento e composio da forma, onde "a forma representa a relao entre a obra de artee a sociedade(Teoria da Esttica", 12. 18). A forma, a constituio de cada momento individual da obra, o prpriodomnio do trabalho do artista, o "entusiasmo", "enthusiasmos", inspirao como produo, "en-theos", deus de dentro,o artfice, a cultura: nas palavras de Beethoven, "o fogo que consome o fogo, consome a natureza" (B). Uma vezcompreendida a forma, isto , a relao entre o trabalho e a obra uma relao que pertence ela mesma estruturasocial do trabalho a anlise est prxima da revelao de um "excesso" da arte, um "contedo de verdade" que smesmo a anlise capaz de reconstituir (MA 177).

    Para tanto, contudo, seria preciso encontrar formas de mediao. Os desconfortveis saltos, que se pode ler em algunsdos fragmentos, entre a filosofia e a msica, ou pior, entre epifanias "poticas" e detalhes da composio, so a marca

    mais clara da ausncia de mediaes. Mas para construir uma anlise mediata, para construir uma "teoria material damsica" (MA 185), seria preciso mais tempo e mais tempo de escrita, seria preciso chegar ao livro, seriam precisos maisanos, que a morte levou.

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    assim que a filosofia analtica de Adorno aparece e desaparece aos nossos olhos. Entre fragmentos pessoais detrabalho e uma palestra improvisada, mal se pode distinguir a anatomia precria desta anlise. Mas aqui e ali brilha a"leve luz, como um pequeno lume", ausente e presente como uma promessa e uma dvida e um pouco como esteensaio. Uma prtica analtica a partir da viso de Adorno corresponderia a uma politizao da anlise. Vinte anos maistarde com os erros de Adorno e de outros s nossas costas possvel, agora, retornar aos fragmentos, e fazer obalano das contas que vamos saldar.

    Notas

    (1) "Gesammelte schrifen", Suhrkamp, 1970.

    (2) As referncias no texto esto abreviadas: MA corresponde a "Musical Analysis", volume 1, n. 2, 1982; Bcorresponde traduo da traduo francesa de fragmentos de um texto original de Adorno, descrevendo seu projetadolivro sobre Beethoven. A traduo francesa foi publicada na "Revue d'Esthtique", n. 8, 1985.

    (3) "Kompositionen", 1980.

    (4) Captulo 6 de "Fundamentals of Musical Composition", Faber & Faber, 1967.

    Fragmentos sobre Beethoven por Theodor Adorno

    (...) Como dar vida forma problema agudo ao se tratar das ltimas obras de Beethoven e... como darforma ao que vivo, reduzi-lo a seu conceito.

    (...) O entendimento da obra de Beethoven depende da maneira como se interpreta a dialtica do elementomtico... a reunio do que humano com o que vem do mundo dos mortos, dos deuses e demnios... Numuniverso de predestinao e de domnio, s humano no homem o demnio.

    (...) Encerrar o livro invocando a doutrina mstica judaica dos "anjos da relva", destinados a desaparecer numrio de fogo. O carter da msica nascida como forma de louvao divina, mesmo e justamente quando seope ao mundo semelhante ao carter desses anjos efmeros. (E a efemeridade que a transforma emlouvao isto , numa destruio permanente da natureza). Beethoven faz desta imagem a prpriaconscincia que a msica tem de si mesma. A verdade de Beethoven reside na aniquilao de todo detalhe.Com Beethoven, a composio se transforma de modo a revelar o carter efmero da msica. Segundo suasprprias palavras, o fogo que deve acender a msica no corao do homem - o entusiasmo - "o fogo queconsome o fogo, consome a natureza".