8/18/2019 ARTHUR NESTROVSKI - Saudade Da 'Saudade Da Saudade' de Zé Miguel Wisnik

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6/4/2016 ARTHUR NESTROVSKI

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Saudade da 'Saudade da Saudade' de Zé Miguel Wisnik Arthur Nestrovski - Folha de S.Paulo 19/02/2004

Eveline Hecker

PONTE AÉREA 

CD Biscoito Fino, 2004

Uma vez é pouco. Duas é pouco. Nem três bastam para se começar a dar conta desse acervoimpressionante de canções de Zé Miguel Wisnik. Gravadas pela cantora carioca Eveline Hecker,num registro de intimidade leve que é a própria alma sonhadora das vozes do Rio, o disco renovae/ou apresenta nada menos do que 15 músicas, organizadas com fino senso de quase narrativa. A 

 Ponte Aérea do título, desde logo, responde ao São Paulo Rio (2001) do próprio compositor e nos dácom isso um modelo de saudade e descoberta que vai longe no entendimento da arte de Zé Miguel.

 Antiga vocalista de Tom Jobim, depois de Beth Carvalho, ex-integrante (fundadora) do grupo desamba Arranco de Varsóvia, ativa também como professora de canto, Eveline Hecker habita o

cosmos da deusa Nara, que segue espalhando suas bênçãos. Em seus melhores momentos, elaconcretiza um ideal de canto amistoso, aconchegante, quase privado, que esconde seus esmeros comdelicadeza.

Há nisso um risco paradoxal de distanciamento, tanto maior quanto mais efusiva a canção. Mas orisco já não está na música também? A “espressão mais simples” invocada com sutilíssimas dosesde canto e poesia por Zé Miguel desde seu primeiro disco (de 1993) nunca será naturalmente simplespara ele, nem para ela. E só tem a ganhar na companhia de músicos como os violonistas Luiz Brasile Maurício Carrilho, o violoncelista Jaques Morelenbaum e o contrabaixista (e produtor) Zeca

 Assumpção, entre outros mestres da sutileza.

Um poeta que escreve versos como “Uma vez amanheceu/ Meu pai mostrou o céu/ Onde nasceuredondo o sol” (“A Olhos Nus”) vive para sempre na saudade da experiência plena, perdida e ganhaa cada canção, naquele amoroso “recomeço sem ter fim” descrito também por seu parceiro PauloNeves (esplêndido recôndito letrista porto-alegrense). Não por acaso a saudade é um de seus temas,e ganha emblemas definitivos nas músicas que fixam o arco do disco: “Ponte Aérea” e “Saudade daSaudade”.

O já consagrado “Assum Branco” (gravado por Zé Miguel e Caetano Veloso em  Pérolas aos Poucos,de 2003) nos faz compreender o quanto dessa nostalgia será dominada com potências da própriamúsica, talvez a única força capaz de inverter o sentido do apego. Não é verdade que agora a gente

lembra de “Assum Branco” sempre que escuta “Assum Preto”? “Quando ouvi o teu cantar/Me lembreinem sei do quê”, dizem os primeiros versos. E ninguém sabe mais o que lembrar: tudo se recompõena nova canção, a nosso favor.

Cada música de Zé Miguel recorta de outro jeito seus caminhos, para descer a ladeira da memória,depois subir mais rica e mais livre. “Muito além ou aquém da saudade”, a cantora acata também seusdestinos por essa “Terra Estrangeira”. A ladeira pode até ser dos infernos, como em “Orfeu” e“Viúvo”. Mas de lá, incrivelmente, vem a música.

Com tanto peso no coração, ainda bem que existe a vida regalada de “Comida e Bebida”, parceria

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dionisíaca com Zé Celso Martinez Corrêa, gravada antes por Elza Soares e regravada agora porEveline Hecker, do modo mais wisnikiano: depois.

Fazer disso uma alegria é uma sabedoria. E a sabedoria alegre de Zé Miguel – ele mesmo o maiorcomentador da gaia ciência de nossa canção popular – nos ensina a escutar esses delírios comserenidade. Seja porque são como a própria seiva da árvore da música, seja por outro sentido, maisespecífico.

O que um disco como esse comprova é o quanto sua música já se transformou, para tantos de nós,naquela arte que não tem mais dono, virou patrimônio íntimo e comum. Ela sente e não sentesaudade. Porque nossa saudade maior, nesse ponto, é pela própria música de Zé Miguel Wisnik, quea voz de Eveline sacia até a próxima vez.