Articulação Política e Mobilização Social

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articulação Política e DH

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  • PONTIFCIA UNIVERSID ADE CATLICA DE SO PAULO

    Programa de Estudos Ps-Graduados em Comunicao e Semitica

    Mestrado

    REDES GLOCAIS

    Articulao poltica e mobilizao social na civilizao meditica contempornea

    Michelle Prazeres Cunha

    Orientador: Prof. Dr. Eugnio Trivinho

    So Paulo

    2005

  • M ICHELLE PRAZERES CUNHA

    REDES GLOCAIS

    Articulao poltica e mobilizao social na civilizao meditica contempornea

    Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de MESTRE em Comunicao e Semitica Sistemas semiticos em ambientes miditicos / Signo e significao nas mdias, sob a orientao do Prof. Doutor Eugnio Trivinho.

    So Paulo

    2005

  • BANCA EXAMINADORA

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  • RESUMO

    Identificao Autor: Michelle Prazeres Cunha CPF: 07570927729 Ano de nascimento: 1978 Nvel: Mestrado E-mail: [email protected]; [email protected] Ttulo da dissertao: Redes glocais: articulao poltica e mobilizao social na civilizao meditica contempornea. Linha de pesquisa: Sistemas semiticos em ambientes miditicos. rea de concentrao: Signo e significao nas mdias. Orientador: Prof. Dr. Eugnio Trivinho. Financiadores Agncia: Capes. Natureza do auxlio: bolsa parcial. Perodo de vigncia: janeiro de 2004 a dezembro de 2005. Resumo da dissertao A mobilizao das redes sociais na civilizao meditica pressupe produo de articulao poltica mediada pelas redes tecnolgicas. Estas representam a potncia de articulao ou o recipiente no interior do qual se do as articulaes, porque so capazes de enredar, permitem a concentrao, o encontro, via voz, texto, imaginrio ou fala. O plasma entre ambas conforma uma nova rede, que atua estrategicamente em contraes e expanses, visibilidade e recuos, subvertendo a lgica da modernidade e envolvendo o establishment pela micropoltica, reescrevendo as lgicas da resistncia e da disputa pelo poder. Trata-se de uma rede-produto da hibridao indissocivel entre redes sociais e redes tecnolgicas: um terceiro elemento que a presente pesquisa define como redes sociotcnicas, comunicacionalmente estruturadas, regradas pela informao e historicamente determinadas; ou, numa palavra, redes glocais. A fenomenologia dessas redes s se tornou factvel a partir da segunda metade do sculo XX, com a melhor definio social e cultural da civilizao meditica, quando as redes tecnolgicas propenderam, mais fortemente, para uma forma de mediao fincada no lastro da proliferao social das tecnologias comunicacionais, na mundializao mercadolgica da cultura, na globalizao econmica e financeira e na reescritura do espao urbano. O enredamento dos dois vetores carrega um significado relacional marcado por paradoxos e fragilidades que demandam anlise, na medida em que as redes sociais, a despeito de seu comportamento supostamente politizado, podem, no contexto dinmico em que se desenvolvem e no qual fatalmente atuam, desenvolver, aprofundar e reproduzir a civilizao meditica, por contriburem para a afirmao dos mecanismos tecnolgicos e para a alimentao dos fluxos simblicos e imagticos baseados na lgica operacional do mercado. Esse contexto pode ser analisado tomando-se por base processo chamado Frum Social Mundial, cujas estratgias de articulao e mobilizao manifestam essa lgica e, portanto, permitem classific-lo como rede glocal. Palavras-chave: redes, articulao, civilizao meditica, visibilidade, glocal.

  • ABSTRACT Title: Glocal Networks: political interlinking and social mobilization in contemporary media civilization. Abstract The social networks call for action in media civilization supposes the production of political interlinking mediated by technological networks. The latter represent either an interlinking power or the recipient within which interlinkage takes place, because they are able to intertwined, make concentration possible, and encounter through voice, text, imagination or speech. The plasma between them shapes a new network, which works strategically in contractions and expansions, visibility and climbdown, subverting the logic of modernity and involving the establishment by micro-politics, shaking the logics of resistance and of fight for power. It is about networks-product of an indissoluble hybridization among social networks and technological networks, which shapes a third element, that this research defines as socio-technical networks, structured on a communication basis, ruled by information and historically determined; that is, in one word, glocal networks. The phenomenology of these networks has become feasible from the second half of the 20th century on, thanks to the best social and cultural definition of the media civilization, when technological networks tended more strongly towards a mediation manner embedded in the ballast of social proliferation of communicational technologies, in the commodificated mundialization of culture, in the economic and financial globalization and in the rewriting of urban space. The intertwining of the two above mentioned vectors carries a relational meaning marked by paradoxes and fragilities that demands analysis, as social networks, despite their supposedly politicized behavior, in the dynamic context in which they have developed and in which they fatally work, may develop, deepen and reproduce the media civilization in the way it wants, by contributing to affirm technological mechanisms and to nourish symbolic and imagetic streams based on the markets operational logics. This context can be analyzed taking as an example the process named World Social Forum, witch call for action and interlinking strategies are manifestations of this logic and so offer elements to call it a glocal network. Key words: Networks, political interlinking, media civilization, visibility, glocal.

  • SUMRIO REDES GLOCAIS Articulao poltica e mobilizao social na civilizao meditica contempornea

    Agradecimentos ......................................................................................................... 7 Apresentao ............................................................................................................. 9 Introduo ................................................................................................................. 12 1. A centralidade descentrada da comunicao ........................................................ 12 2. O desafio de renovao terica e epistemolgica ................................................. 17 3. A incorporao da categoria da crtica ................................................................. 22 4. A constituio de um novo repertrio terico e conceitual .................................. 25 Captulo I Civilizao meditica contempornea ............................................... 31 1. O glocal como vetor modulador da existncia ..................................................... 39 2. Redes tecnolgicas: ambiente e instrumento ........................................................ 42 3. Capital cultural informacional e ciberaculturao ................................................ 50 Captulo II Movimentos sociais e a noo de redes ............................................ 53 1. Articulao dos movimentos sociais em redes ..................................................... 53 2. A hibridizao irreversvel com as redes tecnolgicas ......................................... 61 Captulo III Redes glocais ..................................................................................... 65 1. Prticas glocais e o deslocamento do conflito armado ao meditico .................... 65 2. Frum Social Mundial: do evento ao processo ..................................................... 67 3. FSM: princpio de mutao histrica ..................................................................... 71 4. Visibilidade, invisibilidade e subverso da lgica de poder ................................. 82 5. Metodologia do FSM: uma estratgia glocal .......................................................... 84 Concluso Novas formas polticas e possibilidades de tenso com o glocal ............................... 86 Bibliografia ................................................................................................................ 95 Anexos ................................................................................................................... 98

  • 7

    AGRADECIMENTOS

    Qualquer agradecimento ser sempre insuficiente para retornar algum gesto, atitude ou

    contribuio, que tenha vindo com a autenticidade e a pureza de quem ajuda s ao estar por perto,

    ao servir de exemplo, ao se colocar disposio ou mesmo ao contribuir definitiva e diretamente

    para a construo de um sonho. Estas palavras que seguem seriam desnecessrias, porque quem

    me ajudou a tornar este projeto possvel o fez sem desejar qualquer retorno, que no seu xito.

    Explico, ento, por que optei por escrev-las mesmo assim.

    A experincia do Mestrado se constituiu em um enriquecedor processo de

    autoconhecimento e de auto-anlise. Fez-me perceber com mais clareza e assumir com leveza

    a vocao de problematizar e no de tentar encontrar respostas. Por isso, tenho a tranqilidade de

    afirmar que este trabalho no uma tentativa de chegar a alguma verdade, mas sim de oferecer

    elementos para que se (re)pensem os objetos analisados, sob uma nova tica, que no exclui as

    demais, mas sim se junta a elas, na tentativa de construo de um projeto maior. uma tentativa

    de politizar e de tensionar este presente em que vivemos: um tempo que bajula o mercado e

    despreza a crtica.

    Na apresentao que segue, cito importantes e recentes momentos de minha vida como

    pesquisadora, como profissional e como militante, de encontros com pessoas e espaos, que me

    permitiram vislumbrar que estas vrias mscaras podem conviver plena e contraditoriamente

    bem num mesmo rosto.

    Estes agradecimentos, ento, so menos uma tentativa de retribuir algo que

    reconhecidamente no retribuvel , mas uma forma de dizer a estas pessoas o quanto foram

    importantes para a construo deste processo, que segue com a concluso desta etapa.

  • 8

    Agradeo ento, ao professor Eugnio Trivinho, pela aposta no potencial do projeto,

    confiana na minha competncia e ajuda no aguar da minha capacidade crtica, pela dedicao

    de tempo e de idias ao meu percurso. Foi mestre, amigo e referncia. A Edilson Cazeloto,

    Henrique Parra, Marcio Monteiro e demais colegas do CENCIB Centro Interdisciplinar de

    Pesquisas em Comunicao e Cibercultura, pelas contribuies sempre pertinentes e preciosas.

    famlia nos nomes de Elinalde, Victor, Emanoelle, Danilo, Cinthya e Vitinho, pela

    incondicionalidade e pelo afeto. A Mamita, Graziela, Eliane e caro pela acolhida, pela ajuda e

    pela motivao. A Maringela Graciano e Carolina Gil, pelo ombro, pela fora e pelo exemplo. A

    Chiara Quinto, Diego Azzi, Isabel Pato, Lorena Vieira, Marcela Moraes, Michelle Ohl, Regina

    Egger, Tnia Portella e Thais Chita, pelo carinho e pelos ouvidos, pela alegria de suas

    companhias e pela pacincia e brao forte nos momentos de refluxo. Aos amigos e amigas da

    Ao Educativa. A Hel, Helda, Denize, Neusa, Marcos, Denise e aos amigos e amigas da

    ABONG. A Sergio Haddad, Jose Antnio Moroni e aos colegas da Inter-Redes, pelo acolhimento

    e pela inspirao. Aos colegas do Grupo de Trabalho de Comunicao do Frum Social Mundial.

    Aos professores e funcionrios do Programa de Estudos Ps-Graduados em Comunicao e

    Semitica da PUC-SP.

    A Adriano de Angelis e Bia Barbosa, pela dedicao e carinho, pelos ouvidos atentos,

    crticas pertinentes e ombros amigos. s incondicionais e queridas irms Carolina Ribeiro,

    Marina Gonzalez e Tatiana Lotierzo e a Antonio Biondi, Daniel Merli, Diogo Moyses, Joo

    Brant, Jonas Valente, Marcio Kameoka e Wellington Costa em nome do Intervozes Coletivo

    Brasil de Comunicao Social, que me proporcionou momentos especiais de amadurecimento,

    em que foi possvel enxergar vida e pulsao em mim e no meu objeto de estudo.

    A todos e todas que me mostraram que lutas e sonhos fazem sentido e que possvel,

    simultaneamente, criticar e acreditar.

  • 9

    APRESENTAO

    "H pelo menos dois tipos de jogos. Um pode ser chamado de finito, outro de infinito. Um jogo finito jogado com o

    propsito de se ganhar, mas joga-se um jogo infinito com o propsito de continuar o jogo [...] o jogador infinito est apto

    a ser surpreendido pelo futuro, joga em completa abertura. Abertura, que no significa candura [...] No se trata de expor

    a sua identidade imutvel, [...] o verdadeiro self, mas de se expor a um crescimento contnuo, de expor o self dinmico

    que ainda no self. O jogador infinito [..] espera ser transformado.

    James Carse

    Em maio de 2003, o Governo Federal brasileiro por intermdio da sub-secretaria de

    articulao social da Secretaria-Geral da Presidncia da Repblica convocou um grupo de

    organizaes, redes e fruns da sociedade civil para discutir o processo de participao social na

    elaborao do Plano Plurianual de Investimentos PPA 2004-2007. Entre estas organizaes,

    estavam a Associao Brasileira de Organizaes No-Governamentais ABONG1 e a Inter-

    Redes Direitos e Poltica2, instncia de articulao nacional criada no processo eleitoral brasileiro

    de 2002.

    Neste perodo, quando esta pesquisadora esteve frente da secretaria executiva da Inter-

    Redes, teve a oportunidade de aprofundar estudos e prticas de articulao poltica e mobilizao

    social de redes e fruns no Brasil. Nesse mesmo perodo, teve aprovado pela Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo (PUC/SP) o Projeto de Pesquisa com o qual pretendia

    estudar a relao comunicacional entre as redes tecnolgicas e as redes sociais.

    O processo de consultas pblicas construdo para a elaborao do PPA e os contatos com

    diversas redes e fruns nacionais e internacionais subsidiaram a pesquisa e apontaram caminhos

    1 Veja-se www.abong.org.br. 2 Veja-se www.inter-redes.org.br.

  • 10

    que deveriam ser aprofundados na experincia de Mestrado. A pesquisa oferecia alicerces para o

    trabalho cotidiano e este, por sua vez, justificava e alimentava o percurso acadmico.

    Ao final do ciclo de consultas pblicas, em agosto de 2003, o processo de interveno da

    sociedade civil no PPA prosseguiu, conduzido pela Inter-Redes e pela ABONG, e esta

    pesquisadora foi convidada para coordenar o departamento de comunicao do Observatrio da

    Educao3, programa da Organizao No-Governamental Ao Educativa, cujo objetivo

    produzir informao pelo controle social das polticas pblicas em educao4.

    Mesmo assumindo novas tarefas e outra funo, esta pesquisadora seguiu acompanhando o

    processo da participao social na elaborao do PPA e comeou a ter contato com outras redes e

    fruns e outras dinmicas de mobilizao e articulao. Como representante da Ao Educativa,

    passou a integrar a Articulao CRIS Brasil5 pelo Direito Humano Comunicao e a Campanha

    Nacional pelo Direito Educao, espaos que diariamente comprovam a glocalidade6 dos

    movimentos sociais7 na civilizao meditica contempornea.

    3 Veja-se www.acaoeducativa.org.br/observatorio. 4 Referncia ao slogan do projeto. 5 O nome da articulao brasileira deriva do da campanha internacional Communication Rights in the Information Society CRIS (Direito Comunicao na Sociedade da Informao). Veja-se www.crisbrasil.org.br 6 Na Introduo, detalha-se o conceito de glocal, suas variaes e flexes e a forma com que estas so tratadas na presente pesquisa. 7 Cabe aqui uma meno ao tratamento a ser dado ao termo movimentos sociais na presente pesquisa. A sociedade civil organizada (entendida aqui como o conjunto de organizaes, redes, fruns e grupos articulados, no necessariamente de forma institucional, mas via todo movimento que parte reconhecidamente de estruturas organizacionais no vinculadas ao governo, ao Estado ou a instituies com fins lucrativos) geralmente classifica como movimentos sociais aqueles que tm um carter e dinmica de articulao e organizao no institucional e que, portanto, no podem ser classificados como ONGs, Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico (Oscips) ou mesmo redes. Um exemplo do que se entende no mbito da sociedade civil - como movimento social hoje seria o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Na presente Dissertao, no entanto, trata-se como movimentos sociais todos aqueles que partem da sociedade civil portanto, redes, fruns e espaos de articulao organizados sob a forma de movimento, no sentido de que exercem algum tipo de presso ou interveno poltica (excludos aqueles articulados por instituies privadas ou com fins lucrativos, como fundaes e institutos). Esta concepo inspirada na idia de ator em Latour (1992): qualquer pessoa, instituio ou coisa que tenha agncia isto , produza efeitos no mundo e sobre ele , caracterizado pela heterogeneidade de sua composio; antes, uma dupla articulao entre humanos e no-humanos e sua construo se faz em rede. Na introduo, detalha-se de que maneira empregam-se este e outros conceitos-chave da pesquisa, como o prprio conceito de sociedade civil.

  • 11

    Trabalho, militncia e pesquisa se mesclaram durante o percurso acadmico, e os limites

    entre uns e outros se tornaram ainda mais tnues em setembro de 2004, quando a autora da

    presente pesquisa passou a participar ativamente da construo de uma proposta de poltica de

    comunicao para a quinta edio do Frum Social Mundial realizado em Porto Alegre em

    janeiro de 2005 como integrante do Grupo de Trabalho de Comunicao do Comit

    Organizador Brasileiro (COB).

    As fronteiras entre atividades polticas e de pesquisa se tornaram sutis quando, em

    dezembro de 2004, a pesquisadora se tornou integrante do Intervozes Coletivo Brasil de

    Comunicao Social8, grupo de comunicadores ativistas que luta pela efetivao e garantia do

    direito humano comunicao. Ao mesmo tempo em que a demarcao desses limites passou a

    ser frgil, as vivncias passaram a se retroalimentar. O exerccio da crtica, desafio assumido

    como meta pela experincia de Mestrado, foi contemplado no processo de pesquisa, em que

    pesem as dificuldades para se criticar um processo a partir de dentro. A construo do argumento

    central da Dissertao s foi possvel graas ao vivido no dia-a-dia da luta de redes, que so

    objeto da pesquisa. E a qualificao da participao nesses espaos, por outro lado, foi possvel

    graas tenso propiciada pelo olhar crtico adquirido no percurso acadmico.

    Ao mesclar experincias, foi possvel vislumbrar o momento de impasse analisado na

    pesquisa, caracterizado pelo dilema poltico prprio do tempo histrico atual, que parece no

    permitir que se encontrem sadas visveis. No entanto, um olhar crtico sobre tal perodo torna

    possvel apontar caminhos, pois oferece bases para se construir aes de politizao do glocal.

    So Paulo, outono de 2005.

    Michelle Prazeres

    8 Veja-se www.intervozes.org.br.

  • INTRODUO

    1. A centralidade descentrada da comunicao

    Na civilizao meditica contempornea, as lutas dos movimentos sociais9 se deslocam do

    conflito armado e localizado apenas no mbito da plis10, para o conflito comunicativo, que passa

    a se dar no espao pblico meditico. Nesse ambiente, o poder se encontra dissolvido sob a forma

    de um poder comunicacional vigente11 que no governa, mas modula, posto que media a relao

    e a interao entre produo e consumo que, por sua vez, perpassam e marcam demais fluxos

    sociais, culturais e polticos (TRIVINHO, 2004).

    O mercado e o poder comunicacional desenvolvem uma relao intrnseca de

    interdependncia e domnio, impedindo que se remonte a uma suposta origem da reproduo

    meditica. Essa relao a materializao, na forma de concatenao de zonas de interesses, de

    todas as instituies ligadas produo de tendncias mediticas na sociedade, de desejos

    confessos e inconfessos por parte de governos, instituies e mercado (TRIVINHO, 2004).

    9 Necessrio pontuar, em complemento observao que consta na Apresentao, que aqui trataremos de movimentos sociais abordando movimentos atores (LATOUR, 1992) no Brasil. Importante tambm ressaltar que a delimitao do campo de movimentos neste estudo se deu a partir da experincia profissional desta pesquisadora e do contato com organizaes especficas que, para efeito desta pesquisa, foram consideradas representativas. Reconhece-se, portanto, que em um certo momento, foi necessrio realizar um recorte de forma arbitrria. No entanto, preciso reforar que no se defende aqui uma idia de sociedade civil restritiva, reduzida e despolitizada, em que existe um aparente consenso, nem uma viso comunitarista que no considera os diferentes projetos, presentes neste espao. No Captulo III, aprofunda-se este debate. 10 Espaos e representaes dialticas e identitrias da poltica moderna, a saber: espaos pblicos (privatizados) polticos herdados: ruas, avenidas, praas, parques, campos, shopping centers, monumentos histricos; territrios, que caracterizem ambientes concretos de ocupao. 11 O poder comunicacional vigente entendido, na presente pesquisa, como categoria abstrata, no emprica e genrica, abarcadora de princpios oclusos. Essa reflexo, a ser desenvolvida no Captulo II, se funda nas discusses em aula da disciplina Crtica da civilizao meditica: glocal, visibilidade meditica e tempo real, ministrada pelo prof. Eugnio Trivinho no Programa de Estudos em Comunicao e Semitica da PUC-SP, e extrapola este mbito, na medida em que, no decorrer do processo de pesquisa, ampliada. Retoma-se a discusso sobre poder no Captulo III.

  • 13

    A ausncia de um ncleo emissor de poder (que justifica o que na presente pesquisa se

    chama de centralidade descentrada da comunicao) dificulta a luta direta contra este (o pela sua

    tomada) nas bases da poltica herdada. Para fazer frente a essa nova forma de exerccio de poder,

    ainda apreendida de maneira incipiente no interior das redes sociais, os movimentos reinventam

    prticas polticas e passam a assumir a descentralidade do poder comunicacional e absorv-la

    tambm nas estratgias de enfrentamento.

    Aes diretas, confrontos fsicos e conflitos nas ruas passam a ser momentos de espocar

    ou braos de visibilidade de articulaes que se do majoritariamente no ambiente das redes

    tecnolgicas. Processos no excludentes, mas complementares, as mobilizaes se mesclam com

    momentos de recolhimento da praa ou da cena pblica para articulao poltica.

    Esta alternncia entre momentos de visibilidade e de invisibilidade caracteriza a dinmica

    das redes sociais na contemporaneidade, regida pelo fenmeno glocal, que passou a moldar a

    existncia, incluindo a lgica operacional dos movimentos sociais.

    Para promover a discusso terica sobre a dinmica destes movimentos, toma-se por

    emprstimo o conceito de glocal idia presente com significados distintos em diversas obras a

    respeito de variados temas, mas que desenvolvida, no contexto meditico avanado, por

    Trivinho (2001) segundo a qual glocal

    o neologismo resultante da hibridao cumulativa de dois termos, global e local. O fenmeno coberto por essa fisso no plano do significante e do significado equivale a um lao sociotcnico invisvel e irreversvel entre o contexto concreto da existncia ambincia representativa do reduto da experincia de acoplamento entre ente humano e mquina, ponto de acesso/recepo/retransmisso comunicacional e o universo udio/visual da rede global [de massa ou interativa], como dimenso hodierna representativa da cultura mundial satelitizada [...] O remate dessa combusto terminolgica integraliza e encerra, por sua vez, o contexto glocal, lugar da existncia humana tecnologicamente mediado e mercadologicamente promovido, em estrita compatibilidade com as necessidades de reproduo social-histrica da

  • 14

    civilizao meditica. Trata-se de uma construo sociotcnica exclusivamente identitria a tecnologias capazes de tempo real, tempo tcnico instantneo de articulao simultnea de contextos locais socialmente fragmentrios.

    Pode-se detectar no cotidiano uma srie de derivativos culturais e econmicos do fenmeno

    glocal, na medida em que, nos pontos de juno do global com o local, se manifesta o glocal em

    seu sentido estrito. No entanto, para esta pesquisa, considera-se o glocal no como categoria

    descritiva ou terica, mas como modelo de prtica existencial, visto que a anlise do glocal no

    deve reduzi-lo hibridizao mecnica dos contextos meditico e geogrfico. necessrio

    desenvolver uma sociologia do ambiente glocalizado uma vez que o glocal, no contexto do

    capitalismo tardio imaterial, torna-se um modo privilegiado de experincia da realidade e o modo

    como se organizam as sociedades contemporneas tecnologicamente avanadas (TRIVINHO,

    2004).

    No possvel, portanto, falar em inexistncia do glocal, na medida em que este fenmeno

    se d ou existe em potncia.

    No contexto em que se d empiricamente e que, portanto, fisicamente comprovvel (na

    materialidade), strictu sensu: fuso e terceira vertente, ponto de encontro improvvel (no

    demonstrvel) entre imaterialidade da rede e materialidade do territrio geogrfico, realizando-se

    na interface. J o glocal latu sensu aquele que independe do fenmeno tecnolgico, porque j

    a absoro psquica do que acontece na sociedade glocal (TRIVINHO, 2004).

    O uso do glocal como fundao terica para o estudo da dinmica dos movimentos sociais

    se justifica na medida em que se considera que a atuao destes movimentos tem se transportado

    do ambiente da plis para o ambiente meditico. Empregar a categoria do glocal no estudo da

    articulao poltica e da mobilizao social das redes na civilizao meditica contempornea

    significa, por um lado, assumir a existncia da centralidade da comunicao nestas prticas

  • 15

    polticas. E, por outro, assumir a politizao da comunicao como nica via para se promover

    alguma tenso como o glocal, com seus efeitos e suas estruturas.

    A anlise dos movimentos sociais atuais s se realiza, na medida em que a disputa pelo

    poder passa a se dar no mbito comunicacional ou meditico. A comunicao como forma atual

    predominante da tecnologia e do social (SFEZ, 2004) est, portanto, em todos os lugares,

    recorta toda sociedade e unifica as suas partes. No entanto, no h centro direcionador ou de

    comando, e o poder comunicacional exercido de maneira aleatria, numa lgica dada pelo

    mercado (TRIVINHO, 2004).

    Para os movimentos sociais, a comunicao mesmo que de maneira inconsciente deixa

    de ser apenas instrumento e passa a ser ocupada como ambiente ou arena de disputa poltica, de

    sentidos, de valores. Por isso, importante esclarecer que se entende, no mbito desta pesquisa,

    poltica como articulao, mobilizao, sensibilizao, troca, dilogo e negociao relacionados a

    pautas sociais, culturais ou econmicas, ainda que realizados em espaos alm da plis. Ao tratar-

    se de poltica, portanto, trata-se, no fundo, de transpoltica12, considerando que a poltica passa a

    pertencer ao domnio dos fatos da percepo e que

    a abolio das distncias de tempo operada pelos diversos meios de comunicao e telecomunicao resultou em uma confuso cujos efeitos (diretos e indiretos) so sofridos pela imagem da cidade, efeitos de toro e distoro iconolgicas cujas referncias mais fundamentais desaparecem umas aps as outras: referncias simblicas e histricas [...] referncias arquitetnicas, com a perda do significado dos equipamentos

    12 Ao entender poltica como transpoltica, faz-se referncia, portanto, s possibilidades de dilogo no apenas em espaos que sustentam a democracia (aqui brasileira) em sua forma representativa, mas em qualquer ambiente criado pelas lutas que se travam na sociedade civil. Este debate ser feito no Captulo III, em que se discute a reconfigurao das categorias de espao e tempo e a resignificao da poltica, que passa a se dar no mbito dos fatos de percepo em ambientes alm da plis. A princpio, pode-se afirmar que esta concepo inspira-se na cena transpoltica definida por Baudrillard (1990): forma transparente de um espao pblico de onde foram retirados os atores. O campo da transpoltica seria aquele da ps-modernidade, da liberao em todos os domnios, da pura circulao infinita, da comutao incessante, da indeterminao crescente e do princpio de incerteza. O poder, neste campo deixa de ser troca e se desloca dos espaos institucionalmente definidos como tal para um espao fluido, flutuante, transitrio e que independe do desejo, da manipulao, da administrao e do controle dos atores. O poder algo que, por princpio, no aparece, mas s aparece em seus efeitos (MARCONDES, 1991).

  • 16

    industriais, dos monumentos, mas sobretudo, referncias geomtricas, com a desvalorizao do antigo recorte, da antiga repartio das dimenses fsicas. (VIRILIO, 1993, p. 22, grifo do autor).

    Esse agir transpoltico, vale-se dizer o fazer poltica concebendo-se espaos alm da polis,

    em virtude do desaparecimento das cidades (VIRILIO, 1993) s possvel, porque os

    movimentos sociais glocalizados assumem em grande parte de suas aes, muitas vezes de forma

    no consciente13, a centralidade da comunicao na civilizao em que querem intervir.

    A disputa pelo poder se reduz ao exerccio deste, deixando de passar pela tomada do

    mesmo.

    A ocupao dos espaos pblicos mediticos constitui a fenomenologia destas redes

    glocais e se alterna com momentos de articulao em ambientes tecnolgicos capazes de rede,

    numa estratgia que visa barganhar a ateno do poder estatal pela seduo e constrangimento, na

    luta por reconhecimento, garantia e efetivao dos direitos e pautas pelas quais essa luta se

    constri. Nesse fluxo, a tecnologia legitima a centralidade descentrada da comunicao e permite

    que a correlao de foras se d em mbito meditico. A tecnologia , portanto, instrumento e

    ambiente da transpoltica.

    Os movimentos sociais, imersos nessa lgica, reivindicam seu direito de acesso s

    linguagens, aos cdigos e ao repertrio informacional e cibercultural. De posse desses

    mecanismos, de um lado, reproduzem a lgica operacional do mercado da tecnologia

    13 preciso fazer uma ressalva em relao aos movimentos pela democratizao da comunicao que, mais recentemente avanaram tematicamente, no conjunto da sociedade, em direo luta pelo direito humano comunicao. Para tais movimentos, que comearam a se articular no Brasil a partir da dcada de 70 operando com a reivindicao de polticas democrticas de comunicao em vez de polticas nacionais de comunicao , a centralidade da comunicao na construo do modelo de desenvolvimento brasileiro reconhecidamente um fator chave. Essa discusso ser retomada no Captulo III, mas necessrio pontuar desde j que, mesmo os movimentos que operam com a lgica de incluso e democratizao de instrumentos comunicacionais, muitas vezes no o fazem com a conscincia de que, paradoxalmente, podem estar contribuindo para a proliferao da lgica perversa do mercado que se propem a combater. desta conscincia (ou ausncia dela) de que se trata aqui.

  • 17

    comunicacional ao utiliz-la para promover resistncia14, de outro, apreendem este fenmeno e

    suas implicaes, na busca de possibilidades de ocupar espaos de poder, renovao das formas

    de se construir poltica e promoo de alguma tenso com o glocal. A tecnologia revela, portanto,

    na dinmica dos movimentos sociais, suas duas faces simultneas: de agudizao da dominao e

    de possibilitao de contraponto com ela, seja tal dominao de ordem militar, seja ideolgico-

    religiosa ou seja ainda econmica.

    2. O desafio de renovao terica e epistemolgica

    O objetivo do presente estudo analisar a glocalidade dos movimentos sociais,

    incorporando bibliografia de referncia a categoria da crtica15 e inserindo transversalmente

    como fator de originalidade o vetor glocal, condicionante da existncia na civilizao meditica

    contempornea. Como fenmeno representativo desta argumentao, a meta analisar o processo

    de articulao e mobilizao do Frum Social Mundial.

    Para dar conta desses objetivos, foi necessrio desenvolver uma metodologia de pesquisa

    especfica de, inicialmente, encontrar o ponto de interseo entre as bibliografias j

    desenvolvidas sobre redes sociais e redes tecnolgicas e, em seguida, avanar em relao a esde

    contedo, mediante a aplicao das categorias do glocal e da crtica.

    Afirmar a glocalidade da dinmica de operao dos movimentos sociais na civilizao

    meditica atual constituiu o desafio de renovao epistemolgica e terica da experincia do

    14 Na concepo das redes sociais, esta resistncia se d em relao ao poder hegemnico, ao pensamento nico e totalizante, portanto, opressor. Esses temas sero tambm retomados no Captulo III, quando forem abordadas as prticas de resistncia. 15 A crtica encarada aqui conforme a caracteriza Trivinho (2001, p. 133), ao estilo de Gilles Deleuze, no tanto como rea do saber instituda na diviso social do trabalho, mas como atividade contnua do pensar voltado para a elaborao sistemtica de conceitos. Pode-se acrescentar: em adequado arranjamento numa malha terica que se pe conforme o movimento da atividade cognitiva.

  • 18

    Mestrado. Para dar conta deste desafio, foi necessrio articular diversos elementos e construir

    dilogos entre pensadores que abordam os temas em questo. A composio do objeto se deu por

    intermdio de estudos isolados sobre redes sociais, redes tecnolgicas, hibridismos entre elas, a

    categoria da crtica e a condio glocal.

    A anlise das linhas tericas em que esto inseridas as obras estudadas representativa da

    opo que se fez no processo de pesquisa. Cindiu-se, para efeitos metodolgicos e

    epistemolgicos, a categoria das redes glocais em duas outras bsicas: redes sociais e redes

    tecnolgicas, a fim de que, mapeadas as dinmicas de ambas, fosse possvel compreender a

    emergncia daquele terceiro vetor, na verdade nico, que aglutina de maneira homognea os

    outros.

    As leituras realizadas durante a experincia do Mestrado podem ser sistematizadas em quatro

    campos. Numa primeira linha, estariam aquelas relacionadas questo emprica da operao das

    redes sociais; numa segunda linha, estariam as leituras preponderantemente tcnicas, que

    ofereceram subsdios a respeito das redes tecnolgicas; numa terceira linha, estariam

    enquadradas aquelas leituras relativas ao contexto social-histrico em que se insere o objeto de

    estudo. A quarta linha diz respeito a obras que empregam a categoria da crtica em relao a

    qualquer das trs linhas anteriores ou a todas elas.

    A partir das trs primeiras vertentes de leitura fez-se notria a demanda de incorporao de

    umas s outras, empregando necessariamente a categoria da crtica, presente em algumas obras da

    terceira linha, no entanto ausente em grande parte da reflexo a respeito das redes sociais e das

    redes tecnolgicas.

  • 19

    Nas obras da primeira linha, as redes sociais so tratadas como estruturas de resistncia ou

    como espaos de cooperao e solidariedade alternativos ao capitalismo16 e globalizao17.

    Nesta linha de pensamento, recorrente no movimento social, as redes de organizaes e

    movimentos so espaos de troca coletiva e, portanto, qualificadores de informao e

    experincias; espaos de articulao poltica e mobilizao social que se constituem para otimizar

    esforos, potencializar aes, fortalecer atores unidos em torno de interesses comuns; so ainda

    entendidas como campos de construo de identidade, produo simblica e atuao poltica.

    Santos e Balln (apud ABONG, 2004), Scherer-Warren (2002) e Ortellado e Ryoky (2004)

    auxiliaram na ampliao do entendimento da dinmica de operao das redes sociais, chamando

    ateno para a necessidade de articular o pensamento interno dos movimentos sociais idia de

    que esta articulao se d em bases tecnolgicas que o movimento enxerga como

    potencializadoras de suas aes, mas s quais se faz pouca ou nenhuma crtica, como elementos

    reprodutores de mecanismos que as prprias redes sociais se propem a confrontar.

    Algumas obras tratam especificamente do processo do Frum Social Mundial, a exemplo

    daquelas publicadas por Leite (2003) e Whitaker (2005). Estas possuem um grau de construo

    histrica, anlise e classificao do processo, que permitiram construir o argumento central em

    relao a esta rede, que a sua sustentao em bases glocais, portanto, o reconhecimento de sua

    glocalidade e atuao em momentos de avanos e recuos.

    As obras da segunda linha abordam a tecnologia em espcies de manifestos mormente

    desprovidos de crtica de uma nova democracia, um novo iluminismo, um novo bom senso, que

    16 A pesquisa trata do avano, na civilizao meditica, do capitalismo materializado para o capitalismo em sua fase sgnica, um neocapitalismo, cujo significado ser detalhado a seguir. Para as redes sociais, no entanto, o termo capitalismo diz respeito forma de dominao convencional centrada nas regras do capital e numa conjuntura marcada pela mercantilizao e financeirizao dos valores, da vida e dos direitos sociais. 17 Entendida, por inspirao em Trivinho (2004), como o vetor econmico e financeiro do lastro criado para a conformao da civilizao meditica, realizada na articulao desta com a proliferao social das tecnologias comunicacionais, a mundializao mercadolgica da cultura e a reescritura do espao urbano.

  • 20

    tm como idia central a internet como espelho da realidade, espcie de releitura do mundo que

    permite a elaborao de uma nova tica, uma nova forma de inter-relacionamento e cuja principal

    arma seria o conhecimento potencializado pela criatividade humana catalisada pela rede. Cultuam

    as mquinas e a possibilidade de hibridao prtica com o humano.

    Obras como a de Costa (2002) ofereceram contribuies para a crtica a respeito da cultura

    digital e a contraposio ao que se chama aqui de digitalizao da cultura (TRIVINHO, 2001).

    De obras como a de Dimantas (2003), idias so apreendidas e trazidas luz como exemplos de

    novas formas de funcionamento nesta esttica digital, informacional e tecnolgica

    contempornea.

    Ainda que no assumam uma postura crtica diante da centralidade tecnolgica, as obras

    dessa vertente oferecem alguma contribuio ao objeto de estudo, ao constatarem a existncia de

    uma nova lgica, que molda o pensamento, reescalona relacionamentos e demanda um novo

    repertrio dos indivduos e organizaes. De maneira indireta, estas leituras contribuem tambm

    com o exerccio da crtica, necessrio para analis-las e para construir um contraponto consistente

    s vises de aceitao tcita (embutida nas obras desta linha) dos vetores impostos experincia

    na civilizao meditica.

    Portanto, as obras inseridas nas duas primeiras linhas no contemplam a condio crtica e

    tratam das redes (sociais e tecnolgicas) de forma dissociada, quando ambas esto

    instrinsecamente ligadas e se retroalimentam, na medida em que compem um terceiro e nico

    elemento: as redes glocais. Para posicionar-se criticamente s obras destas linhas, mobilizam-se

    os repertrios das obras da terceira e quarta linhas.

    A terceira srie de obras relativa ao contexto social-histrico da crise das utopias,

    modernidade e ps-modernidade e emergncia da condio glocal, pilar para a estruturao do

    contexto no qual se insere o objeto de estudo em questo.

  • 21

    Algumas leituras oferecem elementos preponderantemente polticos, econmicos e sociais

    e outras argumentos tericos. Nestas, esto includas aquelas que no necessariamente tratam

    de quaisquer dos objetos em questo, mas trazem elementos conexos importantes, cuja lgica

    pode ser empregada e aproveitada como fundamentao, a exemplo das leituras de Deleuze

    (1997) e Feyehabend (1977). Nesta linha, esto tambm obras de Negri e Hardt (2001), Bey

    (2001), Brige e Di Felice (2002), Harvey (1992), Jameson (1997) e Lyotard (1986).

    H obras que se mesclam em duas ou mais linhas - muitas parte da quarta linha - que

    tratam de crtica e comunicao, a exemplo de Prado (1996), Garcia dos Santos (2003) e

    Menezes (2001). Sfez (1994) e Virilio (1995), que oferecem subsdios para a crtica da

    comunicao e da civilizao meditica.

    Tambm compem esta linha as obras de Trivinho (1998, 2001), que oferecem toda base

    terica relacionada ao glocal e suas variaes e fundamentam o argumento central deste

    estudo. Trivinho (2003) tambm oferece um contraponto crtico s obras da segunda linha, na

    medida em que demonstra que a cibercultura realizada como poca j produziu novas

    ideologias e telos, a exemplo dos projetos genoma (noo de indivduos perfeitos) e Biosfera

    2, das utopias alien, dos clones, da inteligncia artificial ou dos ciborgs.

    Essa separao em diferentes abordagens bibliogrficas oferece uma viso do desafio em

    que se constituiu a anlise terica e epistemolgica do objeto, que se deu a partir da afirmao

    do hibridismo entre as redes sociais e as redes tecnolgicas.

  • 22

    3. A incorporao da categoria da crtica

    Tal hbrido18 se d na relao caracterizada pelo domnio (pela poltica) com dependncia (da

    tcnica) e est fincado no contexto da civilizao meditica contempornea, marcada pelo vetor

    glocal. Por isso, a este hbrido se d o nome de redes glocais.

    Trata-se de redes sociotcnicas, comunicacionalmente estruturadas, regradas pela informao

    e historicamente determinadas. Esta nova rede atua estrategicamente em contraes e

    expanses, visibilidade e recuos, o que permite relacion-las com as lgicas da resistncia e da

    disputa pelo poder.

    A crtica incide na noo do hbrido ao se constatar que este enredamento dos dois vetores

    carrega um significado relacional marcado por paradoxos e fragilidades, na medida em que as

    redes sociais, a despeito de seu comportamento supostamente politizado, podem, no contexto

    dinmico em que se desenvolvem e no qual fatalmente atuam, desenvolver, aprofundar e

    reproduzir a civilizao meditica (como deseja o poder meditico vigente), por contriburem

    para a afirmao dos mecanismos tecnolgicos e para a alimentao dos fluxos simblicos e

    imagticos baseados na lgica operacional do mercado.

    Neste sentido, o acompanhamento evolutivo do trabalho no contexto de orientao aquele

    em que mais nitidamente pode-se perceber o avano do percurso no Mestrado. Inicialmente, um

    espao de dilogo sobre inquietaes relativas ao tema do estudo, fundamentao terica,

    bibliografia de referncia e linha terica da pesquisa, o contexto de orientao se constituiu

    18 Latour (1994) sugere a noo de hibridismo para entender os fenmenos sociais, afirmando que as tecnologias no esto radicalmente separadas dos indivduos e que o hbrido um objeto simultaneamente natural e social. Aqui, concebe-se o hbrido para uma abordagem possvel do enredamento irreversvel entre as redes sociais e redes tecnolgicas, que implica assumir uma postura crtica a tal justaposio, negando a naturalizao deste hbrido e afirmando a existncia de uma tenso e uma subjetividade relativa em relao tecnologia. Desta forma, analisam-se as contradies internas do plasma formado pelas redes sociais e redes tecnolgicas, pontuando, porm que tais contradies no so excludentes, mas complementares e que, portanto, existe uma composio.

  • 23

    gradualmente em espao de discusso e apresentao de formulaes a serem apresentadas nos

    contextos das disciplinas como trabalhos de concluso, conceitos trazidos da sala de aula e

    reescalonados para serem trabalhados no projeto, bibliografia de referncia e bibliografia a ser

    considerada e criticada. Conformou-se assim, um espao essencial de trocas e referncias, a partir

    de encontros semanais e dedicao contnua.

    Disciplinas cursadas, bibliografia recomendada, outras atividades realizadas em paralelo

    atividade acadmica e demais itens de percurso apontaram para a necessidade de aporte da

    categoria da crtica para a anlise do objeto.

    A insero da categoria da crtica no processo de pesquisa permitiu uma viso menos ingnua

    do fenmeno de formao, articulao e mobilizao das redes sociais. Contaminada com a

    operao das redes sociais e com o trabalho dirio, havia inicialmente, por parte da pesquisadora,

    uma viso destas como espaos de resistncia lgica da civilizao meditica, interpretao esta

    presente e enraizada no movimento social. Tambm em relao anlise das redes tecnolgicas,

    uma concepo crtica permitiu a ampliao da discusso terica, concebendo a tecnologia no

    como mero instrumento, mas como um telos heterodoxo, inteiramente prtico, desacompanhado

    de discurso fundador unitrio, portanto distinto dos metarrelatos tradicionais e modernos, e

    passvel de contestao (TRIVINHO, 2003).

    A partir da incorporao da categoria da crtica s noes de redes sociais e redes

    tecnolgicas, conformou-se um quadro terico que reescalonou o objeto de pesquisa, inserindo-o

    no contexto glocal, que regra a existncia na civilizao meditica. As redes sociais e redes

    tecnolgicas, antes pensadas como movimento hbrido em ato permanente, passaram a ser

    tratadas como redes glocais, carregando assim todo lastro terico que caracteriza tal conceito.

    A hiptese defendida passou de um mbito emprico e carente de crtica a um mbito macro-

    social, cultural e poltico, conduzido por esta categoria.

  • 24

    O Pr-Projeto de pesquisa apontava para a tentativa de analisar a apropriao das redes

    tecnolgicas pelas redes sociais, como ferramentas de otimizao do trabalho destas. Essa viso

    no dispunha de um posicionamento crtico diante das redes sociais. Aceitava, pois, a condio

    de filtros, coletivos inteligentes, potencializadores de saber e disseminadores de conhecimento.

    Da mesma forma, concebia as redes tecnolgicas apenas como mquinas, envolvidas numa

    discusso apenas tcnica, desprovida de lastro social, cultural e poltico.

    Estas vises sofreram um revs positivo da crtica ao longo do percurso acadmico. A

    hiptese defendida passou a ser a da existncia de uma terceira e nica rede, fruto da hibridao

    irreversvel das redes sociais com as redes tecnolgicas, a saber: redes glocais.

    A fundamentao terica caudatria do fenmeno glocal implica necessariamente a anlise

    no meramente descritiva das redes sociais e redes tecnolgicas, tal como sinalizado na primeira

    verso do Projeto. A constatao deste fenmeno e a defesa desta hiptese carregam

    necessariamente a crtica considerao corrente de redes sociais e redes tecnolgicas como algo

    esttico e, portanto, apenas objetos de anlise. O percurso permitiu a visualizao destes

    segmentos como vetores, movimentos, fluxos contnuos, componentes da cena cultural, social,

    histrica no contexto glocal, marcado pela proliferao social das tecnologias comunicacionais,

    pela mundializao mercadolgica da cultura, pela globalizao econmica e financeira e pela

    reescritura do espao urbano (TRIVINHO, 2004).

    Ao tratamento do objeto da pesquisa, por certo metodologicamente incipiente quando do

    incio do processo de pesquisa, o percurso acadmico conferiu lastro terico, criticidade,

    logicidade, originalidade, coerncia e pertinncia, tornando-o objeto de crtica. Tal postura exigiu

    uma reviso mnima de conceitos para a construo de um novo instrumental terico-

    epistemolgico que considerasse a condio glocal em relao a processos centralmente culturais

    e comunicacionais de cunho poltico, social e econmico.

  • 25

    Tal renovao se constitui num desafio para pesquisadores de reas que toquem a

    Comunicao e a Cincia Poltica e sinaliza para sua necessidade, atualidade e urgncia. Para este

    estudo, no entanto, busca-se conformar um quadro conceitual possvel, tomando como referncia

    alguns conceitos herdados e buscando reescalon-los segundo o contexto da glocalizao da

    experincia.

    4. A constituio de um novo repertrio terico e conceitual

    Nesse contexto, considera-se que somente um conceito de sociedade civil que a diferencie

    do Estado e dos fluxos mercadolgicos pode exercer papel de oposio e ser centro de uma teoria

    social e poltica crtica em espaos onde a economia de mercado possui uma lgica autnoma que

    regra a experincia social, poltica e cultural na civilizao meditica.19 No entanto, reconhece-se

    que tal distino se faz impossvel, e que o campo de operao da sociedade civil est imerso na

    condio glocal da existncia. O que aqui se trata como sociedade civil, portanto, diz respeito a

    movimentos (de ocupao e esvaziamento) que exercem presso sobre uma zona de luta pblica,

    ambincia de movimentao e modulao do espao herdado, desvinculada no s metodolgico-

    teoricamente, mas tambm politicamente do Estado (aqui entendido como aparelho de Estado),

    19 Aqui, o conceito de sociedade civil se difere da concepo clssica, incluindo um conjunto de foras sociais organizadas e excluindo, por exemplo, as foras econmicas, o empresariado e a burguesia. Entende-se que tal excluso metodolgica e, em certo nvel, arbitrria, no entanto, faz-se necessria para que se talhe o termo, que designa aqui um conjunto de organizaes formadas e articuladas de variadas maneiras que, num primeiro momento da histria brasileira, lutou contra a ditadura no pas e desde a dcada de 90 ganhou novas formas e assumiu novas pautas, ao articular-se contra o predomnio das polticas chamadas neoliberais e as formas de poder hegemnico. A caracterizao deste conceito se d ao longo deste estudo, no entanto, importante entender desde j que, quando se trata de sociedade civil, usa-se tal noo no como o espao pblico de atuao dos movimentos sociais (que, portanto, inclui as foras econmicas, o empresariado e a burguesia), mas como sinnimo destes, entendidos conforme sinalizado nesta mesma Introduo e retomado no Captulo II. Afirma-se que esta concepo arbitrria, pois se reconhece que tais foras da sociedade civil, ainda que possam ser metodologicamente separadas dos fluxos mercadolgicos, na prtica, esto imersas na sua lgica (em ltima anlise, pode-se afirmar que a sociedade civil o mercado, na medida em que o constitui e o reproduz). A nota em relao metodologia, no entanto, se faz necessria para promover um melhor entendimento dos termos em questo no presente estudo, para que se possa avanar na alise destas instncias e estruturas e dos processos nos quais elas esto envolvidas.

  • 26

    no entanto, reconhecidamente plasmada na ordem prtica da existncia com as estruturas do

    mercado.

    A atuao das redes sociais espaos de articulao social organizados , se d em uma

    arena de disputa poltica marcada tambm por outras foras econmicas, polticas, sociais,

    culturais, o empresariado e a burguesia, que se entende como espao pblico, onde, na civilizao

    atual, o poder (meditico) se encontra dissolvido. As redes sociais habitam tal espao

    delimitando sua posio na correlao de foras com os demais vetores dele estruturantes,

    afirmando-se como instncias para-estatais detentoras de um esquema de potncia e produo de

    efeitos fora do campo institucional produtivo. Sua dinmica de atuao , de certa forma, uma

    operao poltica que se d fora de instncias convencionais (ainda assim previstas na legislao

    vigente), portanto, fora das instituies20.

    As redes sociais em questo neste estudo incidem sobre este espao (na luta para exercer o

    poder meditico) como forma de pressionar o Estado pela efetivao e garantia de direitos.

    Procuram agir vinculando a poltica ao presente, movimento que deriva de um contexto social-

    histrico marcado por um Estado protagonista neoliberal, que recua da cena histrica, no

    entanto, no perde o poder em seu formato herdado, como o de polcia, por exemplo, mediante a

    cobrana de impostos. Trata-se, em uma palavra, de um Estado gestor (TRIVINHO, 2004).21

    20 Mobiliza-se nesta pesquisa o repertrio de Virilio (1993) no Captulo III, para se lidar (ainda que no diretamente) com o entendimento de instituio. Abordam-se a reescritura do espao e a reconfigurao do tempo como fenmenos deflagradores de um movimento de pulverizao (questionamento e dissolvncia) do herdado. 21 O Estado entendido como aparelho de Estado passa a exercer um papel de gerenciador da correlao de foras no espao pblico meditico. Torna-se suscetvel, portanto, s formas de presso exercidas neste ambiente (como, por exemplo, mobilizaes, ocupaes, lobbies mediticos). No entanto, por conta de as estruturas de poder permanecerem as mesmas (herdadas e anteriores ao avano da civilizao para o contexto comunicacional e, portanto, incompatveis com uma nova forma de poder que emerge do espao meditico), este Estado, ainda que recuado, fragilizado e enfraquecido politicamente, quem habita as instncias decisrias e delibera sobre os rumos sociais, econmicos e polticos, por exemplo, do pas (aqui, do Brasil). Cria-se assim, um abismo entre, por exemplo, a legislao, sua aplicao e as reais demandas da sociedade. A partir desta constatao, pode-se afirmar a importncia de uma discusso acerca das formas de organizao do poder na democracia brasileira, que abrange um debate especfico sobre as suas formas: representativa, participativa e deliberativa. A idia seria chegar a um formato democrtico mais compatvel com o novo poder que se constitui na civilizao meditica, que reconhecesse via

  • 27

    Apesar de constiturem novas formas de fazer poltica discusso que ser aprofundada na

    concluso deste estudo as redes sociais so depositrias, hoje, de um poder que as faz agir

    dentro de certas regras do existente, de uma correlao de foras polticas pr-estabelecida. A

    despeito de serem reflexo de um avano22 na dinmica de atuao dos movimentos e

    organizaes sociais, sua lgica j se configura em forma de poder que referenda as estruturas

    institucionais vigentes, e este um dos seus limites de atuao que este estudo problematiza ao se

    afirmar sua glocalidade.

    possvel vislumbrar formas possveis de tenso com o glocal a partir das aes das redes

    sociais de que se tratar no Captulo II , ao se assumir este limite de atuao, caracterizado

    principalmente pelo seu hibridismo inevitvel com as redes tecnolgicas.

    preciso, ento, circunstanciar algumas ponderaes em relao caracterizao das redes

    tecnolgicas. No se trata, nesta pesquisa, de redes de massa, mas de redes interativas23. Na

    cibercultura, estas so redes glocais, posto que permitem a glocalizao das redes sociais.

    Nomeadamente, so as redes formadas na comunicao via telefones (inclusive mveis) e web

    (especificamente as ferramentas como websites, blogs, correio eletrnico, servios instantneos

    de mensagem). O uso de rdios de comunicao instantnea, transmisses em rdio-poste ou em

    freqncias especficas (como, por exemplo, de rdios comunitrias, independentes e

    alternativas), assim como o uso do aparelho de televiso em teleconferncias tambm compem o

    poder de deliberao, por exemplo, os movimentos realizados no espao pblico como instncias de interveno real na poltica e cujas prticas esto mais prximas da noo de poder difuso que hoje o Estado (em seu formato herdado) no reconhece, apesar de se deixar influenciar pelos efeitos de sua ocupao. 22 No se toma aqui o termo avano como um juzo de valor, mas seu uso se justifica por entender-se que o momento atual de atuao das redes sociais processual, de superao com acrscimo e composio em relao s formas herdadas de fazer poltica. 23 Entendidas como redes que permitem uma relao dialgica ou bi-direcional entre as partes envolvidas no processo comunicacional (aqui, cabe observar que a primeira mquina de condicionamento de interlocuo bi-direcional em tempo real a surgir foi o telefone). No se pretende discutir neste estudo os conceitos de interao e interatividade. Consideram-se aqui redes tecnolgicas como tecnologias capazes de rede ou de tempo real (TRIVINHO, 1998): aquelas que comportam um canal de retorno e que, portanto, permitem que se estabelea uma interlocuo entre o canal emissor e o receptor (estes, no fundo, no se diferenciam no referido esquema).

  • 28

    contexto da articulao poltica das redes sociais. No entanto, esta comunicao se d no glocal

    em seu sentido estrito, discusso que ser aprofundada no Captulo I, no qual se tratar tambm

    da reflexo sobre a centralidade descentrada da tecnologia na civilizao meditica, j abordada

    no item 1 da presente Introduo.

    Ao se afirmar esta centralidade da comunicao (em sua vertente tecnolgica) e o

    hibridismo das redes sociais com as redes tecnolgicas, afirma-se que a mquina no deve ser

    entendida apenas como objeto, mas sim enquanto categoria cultural, como modelo da prpria

    civilizao. Nesse contexto, a subjetividade se plasma com os fluxos da cultura comunicacional,

    e o glocal se adapta ao corpo e ao domus, impedindo aparentemente a consolidao de um campo

    de repertrio autnomo dos signos da civilizao meditica.

    O acesso est, ento, tambm em jogo, assim como a cidadania mediada pelo acesso, por

    conta da lgica da reciclagem estrutural, oriunda do autoritarismo da indstria do ramo digital24,

    alimentado por um mercado que dita as normas da cibercivilizao, composto por

    individualidades operantes que consomem sem articulao alguma. A questo do acesso ser

    discutida no Captulo I, em que o capital cultural informacional ser tratado como condio para

    a ao poltica ao se assumir a glocalidade dos movimentos sociais na civilizao meditica

    contempornea. Nela, a disputa pelo poder se d mediante a simultaneidade do domnio do

    ferramental tecnolgico e da submisso sua lgica, na medida em que se constri e se reproduz

    no espao meditico (TRIVINHO, 2004).

    24 O ramo digital do mercado possui uma lgica operacional peculiar, que constitui uma nova forma de opresso. O avano na produo de equipamentos se d em uma velocidade perversa, que renova constantemente os padres das mquinas de acesso e dita o ritmo da presso pela reciclagem. Instrumentos e acessrios em pouco tempo se tornam obsoletos e incompatveis com os novos modelos, que exigem tambm novas linguagens e repertrios a serem absorvidos. Indivduos e organizaes so forados a participar deste mecanismo, caso contrrio, se tornam excludos. No se pretende no presente estudo, detalhar a lgica da indstria da informtica, no entanto, tal discusso ser retomada ao tratarmos adiante do capital cultural prprio da cibercultura.

  • 29

    A questo especfica da disputa pelo poder nestas bases ser discutida no Captulo III, em

    que se abordam as novas formas de fazer poltica, movimentos que negam habitar espaos

    institucionais de poder e lutam fundamentalmente por democracia, liberdade e justia, disputando

    a idia de tomada de poder e operando para construir uma forma de poder, que seria praticado

    pelos que no desejam tom-lo em seu formato institucional, mas exerc-lo de maneira

    dissolvida, no espao pblico.

    Quando se afirma que as redes sociais no desejam o poder, refere-se forma de poder que

    elas afirmam e se propem a confrontar: a hegemonia do pensamento e do poder neoliberal

    totalizante. Uma das grandes questes de fundo de processos como o Frum Social Mundial

    (FSM), por exemplo, a disputa pelo poder (e dentro desta, o questionamento de que poder se

    disputa e a possibilidade de construir novas bases para relaes humanas, sociais, polticas e

    econmicas no slogan do Frum, um outro mundo possvel sem a tomada do poder). Este

    debate se d ainda sob a tica do poder hegemnico, do poder estatal e das concepes de poder

    centradas no debate sobre a globalizao.

    O poder hegemnico entendido como uma pretenso universal dos interesses de um

    conjunto de foras econmicas, em particular aquelas do capital internacional (RAMONET,

    1995 apud LEITE, 2003, p. 46), em que o econmico se impe sobre o poltico e o capitalismo

    tido como o estado natural da sociedade.

    Os outros conceitos-chave do pensamento nico seriam o mercado, a concorrncia e a

    competitividade, o livre comrcio, a globalizao, a diviso internacional do trabalho, a moeda

    forte, a desregulamentao, a privatizao e a liberalizao. Isto lhe confere uma tal fora de

    intimidao, que ele asfixia toda tentativa de reflexo livre e torna muito difcil a resistncia

    contra este novo obscurantismo (ibid, p. 47).

  • 30

    Ao propor o debate sobre o processo FSM como uma prtica glocal, avana-se quer-se

    crer na discusso, ao se apontar que o Frum um conjunto de prticas alternativas25 de

    (tentativa de promoo da) resistncia a esta lgica (glocal), na medida em que a disputa

    (trans)poltica realizada no mbito do conflito comunicativo.

    Esta dinmica (trans)poltica aparentemente contraditria e visivelmente hbrida ser

    analisada especificamente no Captulo III, mas estar presente ao longo do estudo, que traz

    resultados analticos destas prticas e experincias, do processo de formao e do trabalho de

    pesquisa organizados em trs grandes blocos: (1) Civilizao meditica contempornea, em que o

    glocal tratado como vetor modulador da existncia, das redes tecnolgicas como ambiente e

    instrumento de reproduo da lgica operacional em questo e do capital cultural informacional,

    repertrio caracterstico do fenmeno da ciberaculturao; (2) redes sociais, em que se aborda a

    articulao dos movimentos sociais em redes e a hibridizao irreversvel com as redes

    tecnolgicas; (3) redes glocais, em que se analisam as prticas glocais e o deslocamento da

    atuao dos movimentos sociais glocais do conflito armado para o meditico; o Frum Social

    Mundial como evento e processo; a dinmica operacional em momentos de visibilidade e

    invisibilidade como subverso da lgica de poder; o FSM como princpio de mutao histrica da

    metodologia de articulao e mobilizao dessa rede como estratgia glocal. A concluso uma

    ponderao sobre as novas formas de fazer poltica e as possibilidades de tenso com o glocal.

    25 No Captulo III, volta-se questo do FSM como espao de alterabilidade da sociedade, concepo que hoje, nos movimentos, superou a de prticas alternativas, que podem remeter idia de que o Frum um espao de proposio de solues, que no se pretende que seja.

  • 31

    CAPITULO I

    Civilizao meditica contempornea

    Um Frankenstein tecnolgico nos ameaa. Pelo menos o

    que cremos. Vivemos j num mundo de mquinas de transportar, de fabricar, de pensar. Frankenstein, nosso duplo, esse mundo-mquina que criamos, assume pouco a pouco sua

    autonomia e seu poder. Lucien Sfez

    A concepo de humanidade conduzida por uma grande utopia, ou um grande telos, sofreu

    uma ruptura com o fim do projeto da modernidade, que comeou a ser questionado na passagem

    dos anos 40 para os 50, quando o desenvolvimento tcnico e tecnolgico fez surgir fenmenos

    anmalos, como as duas guerras tecnolgicas, a queda da qualidade de vida, a destruio da

    camada de oznio e as armas de destruio de massa (TRIVINHO, 2004).

    Sabendo dos riscos que se corre em qualquer construo de esquemas (e no

    esquematismos)26, pode-se afirmar que aps a superao27 do projeto de modernidade quando

    a experincia esttica faz viver outros mundos possveis (MIRANDA apud SANTOS, 2003, p.

    164), servindo de modelo oscilao das categorias que lhe permitem circunscrever o ps-

    moderno [...] e ao mesmo tempo salvar a modernidade (SANTOS, 2003, p. 164) , entra em

    cena o ps-modernismo, que pode ser definido como a cultura da sociedade informatizada em

    rede, correspondendo ao que Jameson (1997) chamou de lgica cultural do capitalismo tardio,

    26 Reconhece-se que o referido perodo no poderia ser tratado de tal maneira rgida e resumidamente (isso explica o termo esquematizao), no entanto, considera-se apropriado o registro, ainda que esquemtico, deste, visto que cria bases mnimas para a argumentao central que segue, e mune a presente pesquisa de ferramentas para a anlise do contexto atual. 27 Entendida aqui como um avano em relao ao projeto anterior possvel, inclusive, haver uma mescla com alguns elementos dele que no necessariamente o finda, mas o modifica em alguma dimenso.

  • 32

    a partir da qual, segundo Harvey (1992), as noes de espacialidade e temporalidade so

    redefinidas.

    A cultura passa a ser esfera central do processo de reproduo social, deixa de se diferenciar

    da economia e caracteriza uma lgica operacional prpria de um mundo interdependente, ao

    alicerar suas aes e instituies. Esta nova ordem mundial tem como principal caracterstica o

    fenmeno da globalizao, entendido de formas bastante divergentes, mas que dialogam em um

    aspecto central: a expanso do capitalismo que, segundo Jameson (2002), ultrapassou as

    derradeiras fronteiras e colonizou a natureza e o inconsciente.

    Apesar de caracterizar um perodo histrico definido, o conceito de ps-modernismo

    encontra distintas expresses que se pretendem seus sinnimos na tentativa de classificar a

    sociedade ps-moderna, a exemplo de sociedade ps-industrial, sociedade do conhecimento,

    sociedade informtica ou capitalismo tardio.

    Garcia dos Santos (2003) afirma que o filsofo italiano Gianni Vattimo desenvolveu a

    hiptese de que a modernidade chega ao fim quando no mais possvel falar da histria como

    um fenmeno unitrio, principalmente em virtude da multiplicidade de culturas e de povos que

    adentram neste perodo a cena mundial e da multiplicidade de vises de mundo suscitada pela

    exploso fenomenal da comunicao. Instala-se um ideal de emancipao fundado na oscilao,

    na pluralidade e, sobretudo, na eroso do prprio princpio da realidade (SANTOS, 2003, p.

    162).

    O pensamento ps-moderno28 significou simultaneamente uma crtica e uma ruptura com a

    modernidade e implicou transformaes que marcaram no s a vida cotidiana, mas tambm a

    28 Entendido como a expresso terica e cultural da situao social histrica chamada de condio ps-moderna (HARVEY, 1992), que se insere na reflexo do que se entende por cultura ps-moderna ou ps-modernismo, classificados por Jameson (1997) como a lgica do capitalismo tardio, caracterizada pela inaugurao de uma nova superficialidade, um enfraquecimento da historicidade, uma nova experincia de espao e uma nova sensibilidade.

  • 33

    produo de conhecimento social. Ao se questionar o projeto da modernidade29, emerge a idia

    de que toda utopia gera barbrie30 e a noo de futuro se abala com a crise do mtodo. preciso

    que sejam propostos conceitos para designar novos fenmenos vividos. A cincia ento se rev,

    na medida em que precisaria entrar em cena desindexando-se dos metarrelatos e no deveria mais

    ser feita com objetivo de emancipar o gnero humano.

    A cincia passa ento a se auto-referenciar, altera a relao entre sua produo e a verdade e

    passa a no buscar mais o consenso, mas o dissenso, na ausncia de indexadores externos. uma

    mudana estrutural no metabolismo do desenvolvimento cientfico, em que o sujeito congnocente

    no pode mais se separar do contexto nem de seu objeto. Reconhece-se que as taxas de

    subjetividade existem, mas so regradas, no podem se desvincular da questo do valor, e

    preciso fazer uma cincia credvel, sem incorrer em ingenuidade poltica e sem se apoiar em um

    metarrelato (TRIVINHO, 2004).

    A teoria, conceito relacionado totalidade e a fluxos histricos de longas duraes, fica

    prejudicada com a concepo de que tudo que remete a um todo no credvel. Sobre esta

    questo, Trivinho (2001, p. 130) argumenta:

    Diz-se reflexo e no teoria por dois motivos. O prprio estatuto da teoria est em cheque na atualidade. Como produto secular da histria do pensamento em Humanidades, a teoria sempre apresentou quatro traos: 1. a fantasia de um alcance da totalidade dos dados do real, aliada a uma capacidade de articulao dos mesmos num quadro cognitivo lgico, coerente e de validade universal, bem como a uma

    29 Sobre este perodo histrico, Garcia dos Santos (2003, p. 127) afirma que a modernidade instaurara, como princpio supremo, a ruptura com os valores do passado e a consagrao do novo e do indito. Neste sentido, o mundo moderno significou a desvalorizao dos outros tempos, sacrificando a histria em benefcio do presente. O interesse pelo novo, pela novidade, pelo aqui e agora, e o descarte do velho, do tradicional, manifestam-se em toda parte [...] mas a acelerao tecnolgica e econmica [...] desloca o interesse pelo atual pelo presente, decretando o fim da modernidade. A ateno concentra-se no no que , mas no vir-a-ser. O olhar se volta para o futuro. 30 Realizada, a utopia sinnimo de barbrie, na medida em que reproduz novas hierarquias, desigualdades e injustias. Deveria, portanto, ser objeto da reflexo e da crtica, posto que a questo-chave no estaria em tal o qual modalidade poltica, como o socialismo, o anarquismo ou o liberalismo, mas sim no esquema do metarrelato. Para mais veja-se Trivinho (2003).

  • 34

    potncia de elucidao satisfatria desse quadro, 2. vinculao, pressuposta ou explcita, com os metarrelatos religiosos, filosficos e/ou polticos [cristianismo, liberalismo, iluminismo, historicismo, marxismo, etc.] e, portanto, incorporao de um ideal teleolgico [a qual, no final das contas, se traduz como uma] 3. adeso utopia da emancipao total da humanidade, e 4. relativa perdurabilidade, garantida pela longevidade temporal dos dados empricos abarcados e por sua prpria capacidade de ter-se preservado numa posio insupervel por outras teorias. Questiona-se hoje [...] se o discurso acadmico deve continuar buscando a totalidade e a universalidade como valores culturais do pensamento, se de fato, ele tem uma capacidade de abrangncia dos dados do real e, por fim, se ele deve incorporar uma utopia que o tempo encarregou-se de mostrar sua impossibilidade de realizao.

    A partir dos anos 70, com a fragmentao poltica e social (aqui, principalmente a

    caracterizada pela multiplicao dos partidos e grupos de lobby), as teorias passaram a perdurar

    por cerca de cinco a 10 anos e a se basear em recortes especficos (TRIVINHO, 2001, p. 130). As

    instncias nas quais a sociedade poderia depositar suas expectativas passaram tambm a se

    submeter ao mercado, que flutua, mutvel, inconstante, fragmentado e volvel (TRIVINHO,

    2004).

    Com a consagrao da aliana entre a tecnocincia e a economia, e com o fim da poltica

    que dela decorre, os includos viram cada vez mais sua condio de cidados ser reduzida de

    consumidores (SANTOS, 2003, p. 127). Para Garcia dos Santos (2003, p. 127),

    a eroso dos direitos e do Direito corri suas prerrogativas a ponto de atingir at mesmo o sacrossanto direito ligado ao consumo [...], pois o que sobrou foi o direito de consumir, no o direito do consumidor. Subordinada aos ditames do mercado, a cidadania s concedida e reconhecida para aqueles que se encontram inseridos nos circuitos de produo e consumo; os outros passam a ser exilados [...] engrossando a categoria do sem: sem-terra, sem-teto, no-pessoas sociais (grifos do autor), sujeitos monetrios sem dinheiro [...] socialmente, portanto, o direito de existir passa a coincidir com o direito de consumir.

  • 35

    Os componentes da cena cultural so convertidos em mercadorias, e o ato do consumo no

    se d mais por necessidade, mas por ansiedade, e a identidade social passa a ser afirmada na

    esfera do consumo. Consumir e sobreviver se reforam mutuamente e tanto o consumo quanto

    a sobrevivncia dependem do grau de insero do sujeito na dinmica acelerada imposta pela

    unio da tecnologia e do capital global (ibidem).

    Garcia dos Santos afirma que, para sobreviver, bem como para consumir, preciso correr

    contra a crescente obsolescncia programada que as ondas tecnolgicas e a altssima rotatividade

    do capital reservam para as pessoas, processos e produtos. Forma-se o que Leite (2003, p.10)

    classifica como a indexao da existncia a uma fora civilizatria [...] que o capitalismo

    deslancha.

    A humanidade estaria, afinal, abandonando seus particularismos e se integrando em uma sociedade mercantil planetria. Impulsionada pelo progresso tcnico, ento se materializando na revoluo da comunicao e da informtica [...]. Uma nova economia aliceraria esta sociedade [...] e as polticas neoliberais, ditas de mercado [...] seriam apresentadas como a nica orientao capaz de permitir o progresso. (LEITE, 2003, p. 10).

    A transferncia da experincia para o espectro das redes (trata-se da digitalizao da

    cultura) discutida por Trivinho (1998, p. 181), que aborda esta questo sob o aspecto da

    obliterao da memria social, afirmando que

    quando acontecimentos, eventos e vivncias so preservados com satisfatria definio de som e imagem em discos, fitas, disquetes e CDs e se tornam disponveis a qualquer momento para serem revistos, vale dizer, colocados em circulao diante dos sentidos percepcionais, de modo mais preciso do que se fossem gerados imageticamente na estrutura psquica, quando isso j se tornou possvel, no h mais motivo, culturalmente falando, para que eles se sedimentem na mente humana, como ocorria nas sociedades anteriores ao advento das mquinas eletrnicas comunicacionais.

  • 36

    neste contexto que passa a se viver, ento, sob a mediao das redes tecnolgicas, numa

    lgica fincada no lastro da proliferao social das tecnologias comunicacionais, na mundializao

    mercadolgica da cultura, na globalizao econmica e financeira e na reescritura do espao

    urbano. Isso se d a partir da segunda metade do sculo XX, quando possvel observar,

    portanto, uma melhor definio social e cultural da civilizao meditica, em que a

    fenomenologia das redes glocais se torna factvel.

    Tomando-se por inspirao a pesquisa desenvolvida por Trivinho (2001), possvel afirmar

    que a emergncia da articulao social pelo glocal como modelo de prtica existencial na

    civilizao meditica marca a configurao desta nova realidade social histrica, fincada na

    transio do capitalismo materializado para o capitalismo em sua fase sgnica.

    Todos sabem que o capitalismo passa por uma verdadeira mutao, em virtude da acelerao tecnocientfica e econmica que tomou conta do planeta e se converteu em estratgia de dominao, em escala global. Diversos termos tentam enunciar essa passagem e capturar os sinais dos novos tempos: era da informao, sociedade ps-industrial, ps-modernidade, revoluo eletrnica, sociedade do espetculo, globalizao etc. por outro lado, todos pressentem que a cultura contempornea est sendo rapidamente desmaterializada, isto , digitalizada e reelaborada na esfera da informao. (SANTOS, 2003, p. 140).

    Os valores, para Garcia dos Santos (2003, p. 120) foram transferidos de uma percepo para

    outra, na medida em que

    o capitalismo passa a privilegiar o imaterial e o que simblico como se diz, torna-se a economia sublime. E isso faz toda diferena. No toa que a caracterstica principal do mercado financeiro global a volatilidade [...] Na transferncia de valores de uma percepo para outra, a riqueza se volatilizou ao passar a ser informao. (Ibidem).

  • 37

    O deslocamento para o virtual nesta nova forma de capitalismo, ou neocapitalismo, seria

    fruto da extensa tecnologizao da sociedade e da intensa digitalizao de todos os setores e

    ramos de atividade, e a nova economia,

    economia do universo da informao, parece considerar tudo que existe na natureza e na cultura como matria-prima sem valor intrnseco, passvel de valorizao apenas atravs da reprogramao e da recombinao [...] o capitalismo que antes, colonizou o inconsciente e a natureza, passa a investir sobre toda criao, inclusive da vida; assim, a nova economia busca assenhorar-se no apenas da dimenso da realidade virtual, do ciberespao. (SANTOS, 2003, p. 129).

    O capitalismo deixa, portanto, de se ancorar no universo dos objetos (reais), para se

    referencializar em fluxos, espectros, imagens, modelos (TRIVINHO, 1998). A comunicao

    mediada tecnologicamente ocupa uma posio de centralidade nas lutas pela transformao

    social, ganha sentido e significado na dinmica de operao destas lutas.

    Para Vattimo (apud SANTOS, 2003, p. 170),

    o advento da mdia comporta maior mobilidade e superficialidade da experincia, que se ope s tendncias de generalizao da dominao na medida em que do lugar a uma espcie de enfraquecimento da noo de realidade, o que acarreta um enfraquecimento tambm de sua autoridade [...] a sociedade no apenas a das aparncias manipuladas pelo poder; tambm a sociedade na qual a realidade se apresenta sob aspectos mais frouxos e mais fluidos e na qual a experincia pode adquirir os traos da oscilao, do deslocamento, do jogo.

    Para Trivinho (1998, p. 37), as redes [aqui tecnolgicas] significam a quintessncia dessa

    tendncia, a face mais extrema da desmaterializao, o exemplo mais acabado da abolio do real

    objetal.

    A mudana de paradigma exige das organizaes e indivduos um novo repertrio, capaz de

    acompanhar a realidade resignificada e que possibilite um dilogo dentro deste novo ambiente.

  • 38

    Coloca-se um desafio ainda no superado de compor um novo campo terico e conceitual

    fechado relacionado a este novo momento. Pode-se afirmar que hoje est disponvel uma espcie

    de pr-sistema, um conjunto de vetores estruturais conexos, que podem se agrupar em uma

    espcie de diagrama a ser mobilizado para a compreenso de fenmenos da civilizao meditica

    contempornea. No entanto, no possvel afirmar que estes elementos compem novo campo

    terico e conceitual, pois este ainda est em processo de composio.

    Para Trivinho (2001, p. 181), este diagrama seria a

    reordenao do aparente caos social e econmico que se instalou no capitalismo das ltimas dcadas e diante do qual a capacidade cognitiva de nossa epistemologia cientfica parece ter-se obliterado.

    O caos a que se refere o autor aquele que caracteriza a circularidade absoluta, maneira

    segundo a qual passa a se dar a troca de informaes na civilizao meditica. Nela, o plo que

    emite as mensagens, os signos, os cdigos e os comandos tambm aquele que os recebe e, ao

    mesmo tempo, desencadeia ativamente o processo. Trata-se de alimentadores.

    A circulao de informaes passa, portanto, a se configurar sob a forma de uma

    teia complexa ou uma trama de percursos e entrecruzamentos indiscriminados totalmente impermevel a constataes empricas [...] a operacionalidade das redes imaterial. No havendo espao fsico nesse intervalo, a operao instantnea, impalpvel, espectral. Ela ocorre inteiramente no tempo: a geografia abolida enquanto as distncias so percorridas em milsimos de segundo. Abstrao do funcionamento estrutural, espectralizao dos efeitos: longe da matria, as redes podem anular seus obstculos. Liberados do territrio, imagens, sons e informaes conhecem agora uma dimenso temporal centenas de vezes menos que um lapso. A velocidade de sua circulao na cultura mxima [...] por estes motivos, imagens, sons e informaes podem fluir na invisibilidade das redes. (TRIVINHO, 1998, p. 19).

  • 39

    O glocal caracterizado por esta forma de dominao invisvel, manifestada apenas em

    seus efeitos. Este fenmeno, de difcil apreenso e impossvel negao, base conceitual

    fundamental para a existncia e compreenso do hibridismo entre redes sociais e redes

    tecnolgicas.

    1. O glocal como vetor modulador da existncia31

    Pode-se detectar no cotidiano uma srie de derivativos culturais e econmicos do fenmeno

    glocal, desde a roleta das bolsas mundiais e do mercado financeiro, at as transmisses

    esportivas. Nestes casos, existe um determinado contexto de recepo a produtos mediticos no

    espao in loco e que acontece no hic et nunc. Nele, os contedos provenientes da rede

    (representativos do fenmeno global) se mesclam com a recepo local, permitindo que o global

    se realize do contexto local e o local se perca no global. Nos pontos de juno do global com o

    local, se manifesta o glocal em seu sentido estrito.

    Aplica-se, para discorrer sobre o glocal como modulador da existncia da civilizao

    meditica e, conseqentemente, para conceber sua dinmica como aquela que regra a ao das

    redes sociais, a lgica do pensamento desenvolvido por Eugnio Trivinho (2003), destacando-se

    a originalidade do uso da lgica para analisar o modus operandi de articulao poltica e

    mobilizao social das redes de movimentos e organizaes da sociedade civil brasileira. Para

    desenvolver a pesquisa, mobiliza-se e desloca-se o repertrio referente a esta categoria terica.

    Fundamentalmente, os conceitos ativos centrais que esto em jogo so os de glocal, glocalidade,

    31 Na Introduo, abordam-se elementos que justificam a mobilizao do conceito de glocal como vetor modulador da existncia e como categoria terica fundamental para a presente pesquisa. Aqui, pontuamos outros elementos que constituem a reflexo do glocal como base para a afirmao do hibridismo indissocivel entre redes sociais e redes tecnolgicas. Apesar de localizada metodologicamente nestes dois trechos do estudo, a mobilizao da categoria do glocal se d (e se aprofunda) ao longo do volume.

  • 40

    fenmeno da glocalizao e glocalizao da experincia. Eis o continente no qual se move a

    presente pesquisa para promover um melhor entendimento do objeto em questo.

    Ao se considerar o glocal no como categoria descritiva e terica, mas como modelo de

    prtica existencial32, assume-se um contexto no qual o campo individual volatilizado pelos

    signos mediticos e satelitizado pelas redes tecnolgicas e se estabelece uma ordem da mediao

    tecnolgica da comunicao humana. Na reproduo sem tenso, os indivduos desenvolvem uma

    subjetividade conforme, permitindo que vigore uma homeostase de comportamentos (aqui,

    conservadores, que se instituem como prxis).

    Desta maneira, o nascimento do glocal coloca o fenmeno respectivo de maneira

    irreversvel na histria e traz um telos prtico (da ordem no no-telos concreto, pragmtico e sem

    discurso fundador) que quer se multiplicar, se diversificar e se unir ao tecido social. Um

    fenmeno transpoltico, cujo mapeamento, assim como seu gerenciamento e seu controle so

    impossveis pelas instituies herdadas da modernidade.

    O glocal ento irradiao (por virose e contgio), comutao (e hibridao) e imediatismo,

    que fundamenta a utopia j realizada da comunicao e realiza a cultura ps-moderna de maneira

    ultraclere. Se a comunicao se coloca como um novo metarrelato ainda que no tenha um

    discurso fundador e se realiza substituindo os metarrelatos tradicionais e modernos como

    prtese tecnolgica oculta em crebros e imaginrios porque, antes da comunicao, o glocal

    a grande utopia e o grande princpio.

    32 A categoria do glocal equivale a um diagrama metaterico estratgico. Por um lado, todo bloco social-histrico, ou melhor, todo um processo civilizatrio especfico, satelitizado, pode ser relido e melhor aprendido, em sua natureza, em seu desenvolvimento e em suas repercusses cotidianas por meio desse prisma conceitual. Por outro lado, a categoria do glocal facilita a iluminao e/ou reexame de interstcios problemticos desse processo civilizatrio, ainda pouco compreendidos ou mal avaliados e sobre cuja base faz doravante escola o ciberufanismo neo-humanista e neo-iluminista politicamente ingnuo, no raro de tipo pragmtico-utilitrio e/ou mstico. A categoria do glocal permite instruir, com maior soma de consistncia epistemolgica, por exemplo, a crtica da lgica da visibilidade meditica (TRIVINHO, 2004, p. 5, grifos do autor).

  • 41

    Esquematicamente, se, de um lado, tem-se o telos como princpio bsico estruturador da

    civilizao ocidental e isso requere o concurso da categoria do futuro , de outro, tem-se o

    glocal como princpio bsico estruturador da civilizao meditica aps a eroso e simultnea

    incorporao do tradicional e do moderno e da existncia, fundamentalmente no presente, pois

    nele que se d o consumo seja este de mercadorias ou de imagens e informaes

    (TRIVINHO, 2004).

    A economia imersa na lgica operacional mercadolgica e por ela regida a

    repercusso sgnica em matria local do fenmeno glocal. Aparentemente, no h possibilidade

    de resistncia a esta cultura impositiva, que se apropria do domus e da psiqu, porque a

    colonizao sutil, quando no h um componente externo definido (e, portanto visvel e ao qual

    se pode realizar algum enfrentamento). A atividade de barganha se d pelas conscincias e pela

    servido voluntria33, visto que no h dominao, mas sim entrega, negociao e seduo,

    segundo as quais se conforma um novo ethos, uma nova forma de relao com o si mesmo ou

    uma nova subjetividade34, marcada pela anulao do tempo35 e do espao, que traz o sujeito para

    o interior do processo.

    33 O uso do termo neste contexto inspirado na obra de Ettiene de La Botie (1982) que, no sculo XVI, mostrou que, por um lado, no por medo que se obedece vontade de um tirano, mas porque se deseja a tirania; e por outro, o desejo de tirania vem do desejo de propriedade que, por sua vez, vem do desprezo pela liberdade. A obra de La Botie se situa na tradio libertria, quando sugere possvel rompimento com a servido voluntria, ato de consentimento e obedincia aos mandos soberanos. La Botie acreditava que seria possvel tomar uma deciso corajosa contra a soberania, ignorando-a e criando condies para a afirmao da soberania individual. Quando se trata da glocalizao da experincia, afirmando o glocal como modulador da existncia, no se concebe uma forma possvel de escapar ao glocal (mas tambm no descartando a possibilidade de tension-lo e de politiz-lo). Quando se fala em servido voluntria, portanto, fala-se desta entrega inescapvel aos fluxos tecnolgicos e comunicaci