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CADERNO CRH, Salvador, v. 27, n. 70, p. 201-214, Jan./Abr. 2014 201 Carlos Sávio Teixeira A ECONOMIA POLÍTICA DA TRANSFORMAÇÃO DO NORDESTE: de Furtado a Unger Carlos Sávio Teixeira * Este artigo analisa duas propostas de reorganização estrutural da sociedade nordestina, elabo- radas em momentos distintos, uma sob a liderança intelectual de Celso Furtado e a outra de Mangabeira Unger. Argumenta que ambas partem da premissa de que o enfrentamento dos graves problemas da região mais desigual do país requer ousada reconstrução institucional, assim como a adoção de políticas públicas que objetivem enfrentar os constrangimentos estru- turais da região e não apenas amenizá-los. Sustenta que a proposta que deu origem à SUDENE, capitaneada por Furtado, serviu de inspiração para a segunda empreitada mais recente, sendo as duas iniciativas baseadas em ideias que ultrapassam uma perspectiva meramente redistributivista. PALAVRAS-CHAVE: Nordeste. Mudança estrutural. Reconstrução institucional. Celso Furtado. Mangabeira Unger. RESENHA TEMÁTICA Durante anos, a região Nordeste do Brasil foi vista pelo restante do país como aquela que representava, de maneira concentrada, os princi- pais problemas da nação. A partir da última déca- da, entretanto, o Nordeste experimentou um cres- cimento econômico maior que o restante do país e uma melhora em seus péssimos indicadores soci- ais, embora continue ostentando níveis de desi- gualdade socioeconômicos elevadíssimos. A ques- tão é saber se essas mudanças são capazes de trans- formar, mesmo que progressivamente, a estrutura social da região mais desigual do Brasil, ou se ape- nas integram um movimento de redistribuição marginal de recursos que amenizam os efeitos ex- tremos da miserabilidade, incapaz de impulsionar alterações institucionais que mexam com o fundo causal dos grandes desafios da sociedade nordes- tina. Este artigo faz uma análise de dois projetos de transformação do Nordeste, propostos sob a li- derança intelectual de Celso Furtado e Mangabeira Unger, o que nos permite responder criticamente ao apelo do redistributivismo a que a região tem sido submetida recentemente. Foi em meados do século passado que o Estado brasileiro começou a enxergar o Nordeste de maneira diferente e crítica. A causa dessa alte- ração muito se deveu ao fato de, pela primeira vez, ter sido formulada uma iniciativa abrangente para diagnosticar e enfrentar os desafios estruturais da região brasileira mais pobre e desigual. Durante o governo de Juscelino Kubitschek, foi criado o Gru- po de Trabalho para o Desenvolvimento do Nor- deste (GTDN) e, mais tarde, como seu produto, a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Celso Furtado, um paraibano possuí- do por enorme sentimento de tarefa, foi o princi- pal responsável por essa mudança, que resultou, em grande medida, dos esforços de seu pensamen- to e de sua ação. Passados exatos cinquenta anos, outra empreitada intelectual e política voltada para tentar transformar o Nordeste foi novamente expe- rimentada, dessa vez sob a liderança de Mangabeira * Doutor em Ciência Política. Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF). Campus do Gragoatá. Rua: Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bl. O, Sala 313, São Domingos. Cep: 24210-201. Niterói – Rio de Janeiro – Brasil. [email protected]

Artigo a-economia-política Transformação Nordeste Furtado-A-unger Carlossalvioteixeira Pesquisavel

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A ECONOMIA POLÍTICA DA TRANSFORMAÇÃO DONORDESTE: de Furtado a Unger

Carlos Sávio Teixeira*

Este artigo analisa duas propostas de reorganização estrutural da sociedade nordestina, elabo-radas em momentos distintos, uma sob a liderança intelectual de Celso Furtado e a outra deMangabeira Unger. Argumenta que ambas partem da premissa de que o enfrentamento dosgraves problemas da região mais desigual do país requer ousada reconstrução institucional,assim como a adoção de políticas públicas que objetivem enfrentar os constrangimentos estru-turais da região e não apenas amenizá-los. Sustenta que a proposta que deu origem à SUDENE,capitaneada por Furtado, serviu de inspiração para a segunda empreitada mais recente, sendoas duas iniciativas baseadas em ideias que ultrapassam uma perspectiva meramenteredistributivista.PALAVRAS-CHAVE: Nordeste. Mudança estrutural. Reconstrução institucional. Celso Furtado.Mangabeira Unger.

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Durante anos, a região Nordeste do Brasilfoi vista pelo restante do país como aquela querepresentava, de maneira concentrada, os princi-pais problemas da nação. A partir da última déca-da, entretanto, o Nordeste experimentou um cres-cimento econômico maior que o restante do país euma melhora em seus péssimos indicadores soci-ais, embora continue ostentando níveis de desi-gualdade socioeconômicos elevadíssimos. A ques-tão é saber se essas mudanças são capazes de trans-formar, mesmo que progressivamente, a estruturasocial da região mais desigual do Brasil, ou se ape-nas integram um movimento de redistribuiçãomarginal de recursos que amenizam os efeitos ex-tremos da miserabilidade, incapaz de impulsionaralterações institucionais que mexam com o fundocausal dos grandes desafios da sociedade nordes-tina. Este artigo faz uma análise de dois projetos

de transformação do Nordeste, propostos sob a li-derança intelectual de Celso Furtado e MangabeiraUnger, o que nos permite responder criticamenteao apelo do redistributivismo a que a região temsido submetida recentemente.

Foi em meados do século passado que oEstado brasileiro começou a enxergar o Nordestede maneira diferente e crítica. A causa dessa alte-ração muito se deveu ao fato de, pela primeira vez,ter sido formulada uma iniciativa abrangente paradiagnosticar e enfrentar os desafios estruturais daregião brasileira mais pobre e desigual. Durante ogoverno de Juscelino Kubitschek, foi criado o Gru-po de Trabalho para o Desenvolvimento do Nor-deste (GTDN) e, mais tarde, como seu produto, aSuperintendência de Desenvolvimento do Nordeste(SUDENE). Celso Furtado, um paraibano possuí-do por enorme sentimento de tarefa, foi o princi-pal responsável por essa mudança, que resultou,em grande medida, dos esforços de seu pensamen-to e de sua ação. Passados exatos cinquenta anos,outra empreitada intelectual e política voltada paratentar transformar o Nordeste foi novamente expe-rimentada, dessa vez sob a liderança de Mangabeira

* Doutor em Ciência Política. Professor do Departamentode Ciência Política da Universidade Federal Fluminense(UFF). Campus do Gragoatá.Rua: Professor Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bl. O,Sala 313, São Domingos. Cep: 24210-201. Niterói – Riode Janeiro – Brasil. [email protected]

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Unger, durante o segundo governo Lula.1

Este texto tem por objetivo discutir os as-pectos centrais desses dois esforços, semelhantesem seus propósitos e distintos em seus conteú-dos, dedicando maior ênfase à iniciativa mais re-cente coordenada por Unger, tendo em vista suarelação direta com as questões e os processos pre-sentes no debate sobre as mudanças ocorridas noBrasil nas últimas duas décadas. Portanto, o obje-tivo deste texto não é avaliar os resultados dessasiniciativas, mas as suas ideias norteadoras. Paraatingir sua meta, o texto se divide em duas partes:a primeira faz uma breve recapitulação do contex-to de surgimento de cada iniciativa e de seu res-pectivo sentido político. Em seguida, ainda naprimeira parte, apresenta e discute o conteúdo daspropostas de Furtado e de Unger, procurando real-çar suas diferenças. Na segunda parte, analisam-sedois grandes eixos temáticos que orientaram as pro-posições de Unger para o Nordeste e, principalmen-te, como elas se encaixam no nosso atual debateprogramático: a questão da reorganização do Estadoe as implicações das políticas sociais para as mu-danças na estrutura da sociedade brasileira.

POLÍTICA À BASE DE IDEIAS: da luta pelaindustrialização à proposta deinstitucionalização de uma economia depequenos e médios empreendedores

Num momento histórico como o atual, mar-cado por profundo desencanto com a política epelo descrédito em ideias transformadoras, o exa-me de duas iniciativas cuja característica principalé a esperança em mudanças de longo alcance dei-xará o leitor, dependendo de sua natureza ideoló-

gica, com nostalgia ou com alívio. O fato é quetanto o projeto de Furtado quanto o de Unger têmum conjunto de aspectos que os aproximam, ape-sar do hiato de meio século separando-os. Em pri-meiro lugar, são esforços que partem da premissade que as ideias, no sentido de uma interpretaçãoteórica da realidade, contam na política. E de que atarefa de um pensador não é só diagnosticar os malesde uma dada realidade, mas também propor solu-ções e tentar organizar o futuro. Em segundo lugar,os dois esforços compartilham a premissa de que aforma paradigmática da mudança na história não énem a revolução nem o reformismo, mas a recons-trução institucional, entendida como um conjuntode passos cumulativos rumo a uma determinada di-reção. E que, portanto, não há substituto ao Estadona tarefa de conduzir a transformação institucionalde uma determinada estrutura, em especial se elafor marcada por fortes desigualdades. Em terceirolugar, coloca-se a conclusão de que não há soluçãopara os problemas da sociedade brasileira sem oenfrentamento da questão Nordeste.

Mas, por outro lado, embora os dois proje-tos se assemelhem em muito de seus objetivos ede suas premissas, há também diferenças de ênfa-ses e de substância entre eles, tanto nos diagnósti-cos como nas propostas. Furtado apostava na re-produção, no Nordeste, do tipo de industrializa-ção característica do Sudeste e era descrente napossibilidade de uma agricultura modernizada naregião do semiárido – algo compreensível para ascondições tecnológicas de meio século atrás. Unger,ao contrário, foi um crítico do que designou de“são paulismo”, o desenvolvimento baseado emgrandes indústrias de produção em massa, e de-fendeu o apoio decidido do Estado, com seus re-cursos e seu poder de estruturação, à construçãode uma economia de pequenos e médios empre-endedores, assim como vislumbrou a possibilida-de de construção, no Nordeste, de uma agricultu-ra vanguardista, beneficiária de avançostecnológicos e arranjos institucionais inovadores.

O Nordeste foi “inventado” oficialmentecomo realidade espacial durante a ditadura doEstado Novo, quando o Instituto Brasileiro de Ge-

1 Celso Furtado foi o Coordenador do GTDN e o primeiroSuperintendente da SUDENE, criada em dezembro de1959. Dessas experiências resultaram vários documen-tos. Dois, em particular, têm grande importânciaprogramática: o livro A Operação Nordeste e o texto UmaPolítica de Desenvolvimento Econômico para o Nordes-te, ambos escritos por Furtado. No caso do segundomomento analisado, sob a liderança de Mangabeira Ungerà frente da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presi-dência da República, o documento fundamental foi “ODesenvolvimento do Nordeste como Projeto Nacional”,elaborado em 2009.

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ografia e Estatística (IBGE) definiu em cinco a com-posição geográfica das regiões brasileiras, no âm-bito do esforço do governo Vargas para construir econsolidar a identidade da nação. Até então, oNordeste figurava na agenda política em funçãobasicamente dos períodos de secas que o assola-vam e dos diversos planos governamentais paracombatê-las, dentro da agenda da chamada “polí-tica hidráulica”. O seu apelo ainda era ligado auma questão da natureza (clima e solo) e, também,circunscrito ao plano regional. A partir do acelera-do processo de transformação da economia e dasociedade brasileira decorrente da industrializaçãopor substituição de importações, as consequênciasdessa modernização começaram a mudar tambéma forma de entender o problema regional. Será nessecontexto que surgirá o mais notável, em alcancesimbólico e influência política, projeto de açãogovernamental pensado e estruturado a partir dacompreensão de que a questão regional é, funda-mentalmente, uma questão nacional.

Celso Furtado reorienta decisivamente odebate sobre o Nordeste ao interpretar teoricamen-te, de maneira clara e contundente, a relação decomplexa interdependência na esfera econômicaentre os planos regional e nacional. O relatório fi-nal do GTDN se inicia com a seguinte afirmação:“A disparidade de níveis de renda existente entreo Nordeste e o Centro-Sul do país constitui, semlugar a dúvida, o mais grave problema a enfrentarna etapa presente do desenvolvimento econômiconacional”. A tese de Furtado é a de que a consoli-dação da industrialização do Sudeste, sediada prin-cipalmente em São Paulo, foi um processo que nãolevou em consideração a desigualdade regional, nemmuito menos o seu possível aumento. E mais: onão enfrentamento desse grave dualismo poderáacarretar problemas como o acirramento de rivali-dades regionais que, no limite, podem colocar emxeque o próprio desenvolvimento nacional.2

Furtado entendia que, no fundo, a questãoera, em grande parte, de racionalização dos recursosjá disponibilizados para o Nordeste pelo Estado bra-sileiro. Assim, a tarefa era tornar o montante dosinvestimentos canalizados capazes de transformarprogressivamente a economia regional que mais so-fria com a industrialização em curso, de maneira talque a questão da seca, então central no debate sobreo Nordeste, não mais se colocasse como um proble-ma estrategicamente relevante. A sua proposta eraa de que o Estado brasileiro deveria se empenharna tarefa de ajudar a constituir uma burguesia nor-destina capaz de levar a cabo a industrialização daregião, voltada para uma produção destinada aomercado da própria região, que, como decorrênciadisso, teria condições de derrotar politicamente asoligarquias rurais e abrir caminho para o processode democratização social do Nordeste.3

Além de se confrontar contra as principaisteses da época – tanto as que enxergavam, na polí-tica de substituição de importações, o único cami-nho para a nossa modernização (embora reconhe-cessem que essa política gerou acelerada industri-alização, crescimento econômico e a “internalizaçãodos centros de decisão”, ao custo do aumento dasdisparidades regionais), quanto as que criticavam

2 Muitos críticos de “esquerda” das teses de Furtado sobrea “questão regional“ nordestina assinalaram o quantoelas eram decisivamente marcadas por uma perspectivanacionalista. Por nacionalista se entende, nesses casos,a não percepção de que as determinações objetivas denatureza econômica externa restringem as possibilida-

des e a eficácia de planejamento do Estado, ou o quantoa questão regional é usada como um veículo discursivopara possibilitar a institucionalização do capitalismo. Sãoexemplos dessa visão um livro famoso de Francisco deOliveira, da década de 70 (Oliveira, 1977), e vários textosreunidos em livro organizado por Silvio Maranhão nosanos 80 (Maranhão, 1982). Aqui, como em outros casossimilares, é interessante notar como, depois dos anos90, e, em particular, do governo do sociólogo da USP,Fernando Henrique Cardoso, muitos dos críticos de “es-querda” de Furtado passaram a reabilitá-lo, senão inte-gralmente, pelo menos parcialmente.

3 Furtado também foi, anos mais tarde, um dos responsá-veis, na condição de ministro do Planejamento do go-verno João Goulart, pela síntese programática de um dosgrandes e mais originais esforços de manejo do aparatoestatal na construção de “[...] um ‘desenvolvimentismonacional, popular e igualitário’, que nasceu no campo dodebate das ideias e das mobilizações sociais, muito maisdo que no gerenciamento dos governos, nos anos 50 setangenciou o ‘desenvolvimentismo conservador’, nocampo das ideias e das alianças, e no início da década de60 propôs uma reforma do projeto que incluía, ao ladoda industrialização e do crescimento econômico acelera-do, o objetivo da democratização do acesso à terra rural eurbana, à renda, ao sistema educacional e também aosistema político. Uma alternativa que foi sintetizada, emparte, pelo Plano Trienal de Celso Furtado de 1963, e quefoi bloqueada pelo golpe militar de 1964.” (Fiori, 2004).Para uma interpretação acerca da teoria sociopolítica deFurtado e sua compreensão da relação entre democraciae desenvolvimento, ver Cepeda (2001).

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os rumos da política econômica de Kubitschek, porconsiderá-la o meio de aprofundamento do capita-lismo e de suas vicissitudes características no Bra-sil –, os diagnósticos e as propostas de Furtadotambém batiam de frente com o discurso domi-nante no interior das elites do Nordeste, que dizi-am ser a seca o problema central da região a exigircombate. “Afirmar que a seca não é a causa do pro-blema nordestino fazia Furtado se chocar com onúcleo da política regional, na época, mais impor-tante para o Nordeste – que era a política hidráuli-ca.” (Bacelar, 2000, p. 76).4

O mais importante na compreensão dadisfuncionalidade da compensação hidrológica eraque as frentes de trabalho serviam para a manu-tenção de um exército de reserva disponível para agrande propriedade. A produção do algodão era aatividade dominante, em regime de “meia”, porpequenos produtores que também produziam parasubsistência. A seca tornaria mais cara a manuten-ção dessa força de trabalho barata, não fosse a so-cialização propiciada pelas frentes de trabalho, que,pelo lado político, anestesiavam o potencial políti-co desestabilizador de elites da seca.

Nesse sentido, outro elemento importantedo projeto de Furtado para o Nordeste, portanto,tem relação direta com a sua visão sobre o proble-ma do semiárido. Ela se concentra basicamentesobre duas principais questões: uma relativa àscondições climáticas e de solo, e outra, mais im-portante e decisiva, relativa à sua organização pro-dutiva baseada em agricultura e pecuária de sub-sistência, desvinculada de relações mercantis, comose percebe na seguinte passagem: “O sistema eco-nômico que existe na região semiárida do Nordes-

te constitui um dos casos mais flagrantes de divór-cio entre o homem e o meio, entre o sistema devida da população e as características mesológicase ecológicas da região.” (Furtado, 1959, p.30). Suaprincipal proposta para o encaminhamento daquestão do semiárido era a – difícil, em sua avali-ação – reestruturação produtiva de sua agropecuáriae a expansão de sua fronteira agrícola através daincorporação do Sul do Maranhão ao Nordeste,para servir à colonização da população oriundado semiárido.

A ideia de colonização do Maranhão pormigrantes do semiárido nordestino se transformouem realidade através de um Decreto Presidencialque estabeleceu esse Estado como área sob a juris-dição da SUDENE. Mas a ideia teve de vencermuitas resistências. No bojo dessa luta, Furtadofoi acusado de confusão teórica e até de desumani-dade, por não levar em consideração o sofrimentoda população do semiárido a ser transferida. Masseus textos desmentem ambas as acusações:

É necessário frisar que, nas regiões para ondeeles se deslocam, prevalecem condições de vidaextremamente precárias. São regiões semi-iso-ladas, com grau mínimo de integração numaeconomia de mercado, com técnicas de trabalhoe formas de organização da produção extrema-mente rudimentares – de maneira geral inferio-res às que prevalecem na região semiárida. Des-locar populações nordestinas para essas regiões,sem antes modificar o sistema econômico que aíexiste, é condenar essas populações a condiçõesde vida de extremo primitivismo. Se bem nãoestejam sujeitas ao flagelo das secas, as regiõesda periferia úmida maranhense, em razão deseu isolamento, constituem um sistema econô-mico ainda mais dependente de atividades desubsistência que o da região semiárida (Furtado,1967, p. 77, Grifos nossos).

Um dos grandes temas de debate no interi-or da esquerda, nessa época, era a reforma agrária.No Nordeste, a questão teve grande impulso a par-tir do relativo impacto das Ligas Camponesas, quese desenvolveram principalmente sob a liderançado advogado e deputado socialista Francisco Julião.Mas Furtado não se deixou seduzir pelo movimentopolítico e condicionou a proposta de divisão deterras à finalidade precípua de sua agenda

4 A economista pernambucana destaca a relação entre asdimensões econômica e política da questão: “O relatóriodo GTDN mostra que a política hidráulica, em vez deatenuar as consequências econômicas e, sobretudo, asconsequências sociais da seca, as exacerbava. Na medidaem que salvava o gado e protegia a pecuária, que era aatividade hegemônica dos grandes proprietários da re-gião, e não tocava na produção familiar e nem era desti-nada à maioria da população da região, constituída depequenos produtores rurais sem terra que viviam nosgrandes latifúndios agropecuários, e cuja tendênciademográfica era de crescimento, ampliava o impacto so-cial de cada seca. Portanto, a cada seca se tinha maisgente nas frentes de trabalho destinadas aos ‘flagelados’.”(Bacelar, 2000, p. 76-77).

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programática: ajudar a aumentar substancialmen-te a oferta de alimentos para a própria região, oque, num primeiro momento, significava mexersomente com as terras do setor canavieiro da faixaúmida, e, no semiárido, com aquelas já beneficia-das pelo sistema de açudes. Já para a região doagreste, espaço de transição entre o litoral e osemiárido, sua ideia caminhava em sentido con-trário, de certa reconcentração fundiária, já que,nessa zona, imperava significativa dispersãofundiária5 (Furtado, 1959, p. 57-65).

Uma das características distintivas do pro-jeto encabeçado por Furtado foi a clareza com quedistinguiu, de um lado, a definição do conteúdodo programa e, de outro, o agente institucional aptoa desenvolvê-lo. A SUDENE, por exemplo, foi cri-ada em 1959, como o desdobramento de um planoclaramente delineado, cujas tarefas a executar ne-cessitavam de uma agência como ela.6 Portanto, suainstituição original em nada se deveu ao conheci-do método brasileiro de criar órgãos ou instrumen-tos de ação quando não se sabe ou não se querenfrentar determinada questão, em especial quan-do ela apresenta, aos olhos dos políticos e buro-cratas envolvidos, riscos políticos. Esse foi o casoda recriação da SUDENE em 2007, durante o go-verno Lula, num ato de homenagem simbólica a

Celso Furtado e “atenção” a uma região para a qualo governo petista não tinha um projeto claro.7

O projeto de Nordeste, defendido porMangabeira Unger meio século depois da empreita-da de Celso Furtado, também representou um es-forço intelectual e político de colocar a questão “re-gional” no centro da agenda política nacional e nocoração do processo decisório do Estado brasileiro.Foi formulado como um programa capaz de ser aexpressão regional de um novo modelo de desen-volvimento que “ancore o social na maneira de or-ganizar o econômico”, o que significa romper com oque Unger chamou de o “pobrismo”, característicodas políticas socioeconômicas destinadas a apenasmitigar os efeitos da pobreza que atinge a maioriados nordestinos. Nesse sentido, sua concepção foideliberadamente pensada como uma alternativa àsideias reinantes a respeito do modo de realizar ainclusão social: ao invés de política social compen-satória, que cumpre uma função importante em con-texto de desigualdades tão fortes como o do Nor-deste, mas uma política social que enfrente odualismo ao invés de aceitá-lo e reproduzi-lo.8

5 Em uma entrevista de 2004, Furtado afirmou que “...quaisquer que hajam sido as intenções dos autores dogolpe militar de 1964, o seu efeito principal foi, semlugar a dúvida, a interrupção do processo de mudançaspolíticas e sociais, entre elas, em primeiro lugar, a cons-trução que se iniciava de uma nova estrutura agrária emnosso país. Cabe acrescentar que o dano maior do golpefoi feito ao Nordeste, onde era mais vigoroso o movi-mento renovador em curso de realização e onde eram, eainda são, mais nefastos os efeitos do latifundismo”(Furtado apud Bacelar, 2009, p. 41-42).

6 Alguns autores chamaram a atenção para o fato de aSUDENE ter sido pensada com o objetivo de realizar,entre outras atribuições, o enfrentamento do grave pro-blema federativo experimentado pelo Brasil que, ao co-piar sem rebuços o modelo norte-americano, com o seuarcabouço legal definindo de maneira rígida as compe-tências entre os entes federados, acabou por agravar ain-da mais a nossa realidade marcada por profundas desi-gualdades regionais. Nesse sentido, a SUDENE foi umainstância que, na ausência de um “federalismo coope-rativo”, como propunha Furtado, fez as vezes de uma ins-tituição capaz de superar os entraves da camisa de força denosso federalismo e “[...] articular os interesses estaduais,produzindo assim, simultaneamente, cooperação regionale força política para atuar nas negociações no plano nacio-nal” (Ismael, 2009, p. 243). Na segunda parte deste artigo,será feita uma análise de como a perspectiva do projetoencabeçado por Unger atualizou essa questão.

7 A SUDENE foi criada como órgão diretamente ligado aoGabinete da Presidência da República e teve sua atuaçãorelativamente empoderada segundo seus termos origi-nais até o golpe militar de 64, quando foi incorporada aoMinistério do Interior, tendo suas funções modificadas.Em 2001, no governo de Fernando Henrique Cardoso,foi extinta. Para uma análise quase biográfica acerca daSUDENE, ver Furtado, 1997 (segundo livro, cap. 3, 4 e5). Para uma avaliação crítica a respeito da concepçãoteórica norteadora da SUDENE e de seus principais re-sultados, a partir de uma visão marxista fundada naideia de que a questão regional não precede o problemade classe, ver Oliveira (1977), e, a partir de uma visãoliberal fundada na ideia de que a questão da disparidadede renda regional não precede a disparidade de rendaindividual, ver Pessoa (1999).

8 Minha hipótese é a de que essa iniciativa em relação aoNordeste, liderada por Mangabeira Unger, foi inspiradana experiência de Celso Furtado na época da SUDENE.Mangabeira Unger sempre se mostrou um grande admi-rador de Furtado. Dias após a morte de Furtado, em 2004,escreveu um artigo (Unger, 2004b) de homenagem aopensador paraibano, um “sertanejo curtido pelo mun-do” como o definiu Gildo Marçal Brandão, no qual des-crevia a tarefa que os sobreviventes tinham pela frentese quisessem levar adiante o legado de pensamento eação do autor de A Dialética do Desenvolvimento. Quan-do a oportunidade apareceu, em 2008, durante sua par-ticipação no ministério de Lula, ele organizou uma inici-ativa abrangente para a região, com o seu “Projeto Nor-deste”. Em várias discussões com lideranças políticas ecom movimentos sociais sobre suas propostas para oNordeste noticiadas pela imprensa, Unger citou o exem-plo de Furtado – não como meio de legitimação de suainiciativa, já que também teceu críticas a aspectos doideário do economista cepalino.

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A crítica ao “pobrismo” pode ser encontra-da, sem rodeios, no texto publicado pela Secreta-ria de Assuntos Estratégicos (SAE), que serviu debase para o projeto de Unger para o Nordeste: “Aprimeira ilusão é a do ‘pobrismo’: confiar, sobretu-do no semiárido, em ações e em empreendimen-tos de escalas e de cunho artesanais – como osmicroempreendimentos e as pequenas cooperati-vas. Estas ações ocupam as pessoas mais pobres.Geram um pouco de renda. Ajudam a evitar o pior,ainda que – todos o reconhecem – não resolvamos reais entraves ao desenvolvimento sustentávele includente da região” (Unger, 2009, p. 8). A ideiasubjacente é a de que política social compensató-ria, circunscrita às divisões rígidas entre as van-guardas e as retaguardas produtivas, não é capazde reduzir as desigualdades extremas como as queexistem no Nordeste e no Brasil.

Tal como Furtado, as propostas socioeco-nômicas de Unger para o Nordeste partiram deuma crítica à ideia de redistributivismo desacom-panhada da reorganização das relações de produ-ção, embora nenhum dos dois concebesse a reor-ganização das relações de produção da mesmamaneira que os marxistas. Para Unger, por exem-plo, o processo de reorganização de uma dada es-trutura econômica é quase sempre resultado dereconstrução institucional9. Assim, a economia demercado não encerra um conteúdo jurídico einstitucional predeterminado, e, por isso, pode serinstitucionalmente reinventada: a ideia geral é queo tipo de regime de propriedade e contrato quepassou a caracterizá-la no Ocidente não reflete uma

lógica profunda de necessidades econômicas esociais, mas, ao contrário, resulta de lutas e cons-truções políticas. Somente um pensamento forma-do dentro de uma cultura intelectual marcada pela“necessidade falsa” acredita que os dispositivosinstitucionais da modernidade resultam de umalógica social ou econômica predeterminada.

Para Unger, as estruturas de uma sociedade“[...] são o resultado de muitas sequências frouxa-mente interligadas de conflito social e ideológico,e não imperativos funcionais insuperáveis e deter-minados, que dirigem uma sucessão de sistemasinstitucionais indivisíveis” (Unger, 1999, p. 26).Portanto, para ele, esse movimento promove a que-bra do clássico antagonismo entre reforma e revo-lução, pois o experimentalismo institucional pro-posto pode ser radical, a ponto de transformar asestruturas básicas da sociedade. Daí o seu caráterrevolucionário. E fazê-lo lidando com uma partedessa estrutura por vez, passo a passo, cumulati-vamente. Daí seu caráter reformista. Nesse contex-to, campos intelectuais como o Direito e a Econo-mia Política podem virar grandes aliados do méto-do do experimentalismo institucional, pois são elesque lidam mais de perto com a realidade dos ar-ranjos institucionais estabelecidos e podem reco-nhecer que esses arranjos integram um conjuntode possibilidades institucionais muito mais am-plo, que inclui não só soluções do passado repri-midas ou descartadas como tendências divergen-tes dentro da ordem atual (Unger, 2004, p. 36-40).

Por isso, ele pensa na possibilidade de insti-tuir, no Nordeste, uma economia de pequenos emédios produtores, operando por meio de uma mis-tura de organização cooperativa e atividade indepen-dente, cujo horizonte é a estruturação de uma socie-dade baseada na descentralização da propriedade.10

9 Uma das principais críticas de Unger ao pensamentosocial, tanto o de ambição crítica e transformadora comoo de matiz conservador, diz respeito ao compartilhamentode uma forma equivocada de compreensão do que são asinstituições e a estrutura da sociedade e, ainda, de suasrelações: “O fetichismo institucional é a crença em queconceitos institucionais abstratos, como as ideias dedemocracia representativa, economia de mercado ousociedade civil livre, têm uma expressão natural e neces-sária em um conjunto particular de estruturas legal-mente definidas. O fetichismo estrutural é a contrapartede ordem superior do fetichismo institucional: a ideia deque, apesar de podermos ser capazes de revisar uma or-dem institucional particular, e até mesmo de substituir,vez por outra, um sistema institucional por outro dife-rente, não podemos alterar o caráter da relação entre asestruturas institucionais e a liberdade dos agentes queas ocupam de contestar e transcender essas estruturas”(Unger, 1999, p. 91).

10 A teoria de Unger “[...] propõe o desmembramento dodireito de propriedade tradicional para atribuir seus com-ponentes a diferentes tipos de titulares. Entre esses su-cessores do proprietário tradicional estarão as empresas,trabalhadores, governos locais e nacional, organizaçõesintermediárias e fundos sociais. Ele se opõe à reversãosimples da propriedade privada convencional para a pro-priedade do Estado ou de cooperativas de trabalhadores,porque essa reversão apenas redefine a identidade doproprietário sem alterar a natureza da propriedade ‘uni-tária’. Propõe uma estrutura de propriedade em três ní-

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O conjunto de propostas de Unger para oNordeste se baseia também numa compreensão doslimites e das possibilidades da região. É o que, notexto O desenvolvimento do Nordeste como projeto

nacional, chama de “premissas”: 1) a constataçãode que a ausência de um plano abrangente e siste-mático para a região, desde o início dos anos 60do século passado, abriu espaço para três proces-sos degenerativos: a) a busca de incentivos e sub-sídios fiscais, b) a fixação em grandes obras físicas,como a transposição do Rio São Francisco, e c) acrença em “ilusões”, como o “pobrismo” e o “sãopaulismo”; 2) a tentação de não enfrentar, de forma“direta e para valer, o problema do semiárido”, re-fugiando-se no “pobrismo”. Trata-se de uma situ-ação ainda mais grave, porque, além da dimensãomoral e econômica do desastre fruto desse aban-dono do semiárido, ela representaria grande des-perdício das condições favoráveis à “... constru-ção de regime social que privilegia a autonomia e acooperação entre gente livre”; 3) a realidade de um“novo” Nordeste, marcada por um impressionan-te empreendedorismo dos “batalhadores” e por umanão menos impressionante “inventividadetecnológica popular”.11

Se o núcleo duro da proposta de Unger parao Nordeste é a criação de uma sociedade e umaeconomia de pequenos e médios empreendedorese trabalhadores, por meio de um conjunto de ino-

vações institucionais capazes de rearranjar a es-trutura de sua vida social, o seu veículo são as po-líticas públicas do Estado brasileiro, em especial aindustrial e a agrícola na esfera econômica, e, naesfera social, aquelas destinadas à capacitação edu-cacional centrada no ensino e difusão de ciência ede tecnologia capazes de instrumentalizar oempreendedorismo emergente dos “batalhadores”.Toda essa discussão levantada por Unger acerca dasnovas formas de economia de mercado é caracteri-zada pela ligação que sua perspectiva teórica postu-la entre os problemas institucionais e as práticasmais características da atual produção de vanguar-da, chamada por especialistas de “pós-fordismo”.

A relação da política industrial – e da políticaagrícola, analisada a seguir – com a reconstrução daeconomia de mercado, numa direção como a preco-nizada pelo projeto Nordeste proposto por Unger,cujo foco está nas pequenas e médias empresas,12

tem o seu ideário fundado na superação do “sãopaulismo”. A passagem seguinte é ilustrativa:

A primeira tarefa é acelerar a passagem, que jácomeçou no centro industrial do país, para alémdo Fordismo. A segunda tarefa, mais exigente emenos compreendida, é organizar travessia di-reta do pré-Fordismo para o pós-Fordismo, semque o país todo tenha de passar pelo purgatóriodo Fordismo industrial. O Brasil todo – o Nordes-te inclusive – não deve ter de primeiro virar aSão Paulo de meados do século vinte para poder,depois, transformar-se em algo diferente. O Nor-deste não é para ser versão tardia da São Paulo demeados do século passado. O Nordeste deve porsua própria originalidade a serviço da originali-dade do Brasil, abrir novo caminho de desenvol-vimento nacional (Unger, 2009, p. 9).

Para realizar essa obra, a política industrialpreconizada por Unger tem duas dimensões: umainstitucional e outra operacional. Na primeira, a ques-tão se refere às formas de relacionamento entre osprodutores entre si e entre os produtores e o Estado.Na relação entre os produtores, o ponto central é a

veis: um fundo central de capital, criado pelo governonacional democrático para tomar as decisões finais rela-tivas ao controle social da acumulação econômica; osvários fundos de investimentos criados pelo governo epelo fundo central de capital para aplicação de capital embases competitivas; e tomadores primários de capital queserão as equipes de trabalhadores, técnicos e empreen-dedores” (Cui, 2001, p. 19).

11 O livro Os Batalhadores Brasileiros, do sociólogo JesséSouza, obra que é o resultado de uma pesquisa teórica eempírica abrangente realizada em todas as regiões do Brasilsobre o perfil sociológico dos principais tipos de empreen-dedores e trabalhadores que integram um grupo social quese tornou suporte das transformações do capitalismo bra-sileiro nas últimas décadas, mostra, em seu capítulo 7, arealidade da segunda premissa sugerida por Unger, assimcomo, de maneira geral, a situação do empreendedorismotípico da região. Esses “batalhadores” empreendedores etrabalhadores seriam o agente em que Unger deposita suasmaiores esperanças e que deveria ser – e ainda não é – oprincipal destinatário das políticas públicas do Estado bra-sileiro. Na região Nordeste, a presença acentuada desses“batalhadores” é percebida como uma vantagem e maisum indicativo do tipo de política industrial, agrícola e socialque deve ser destinada à região. Não por acaso, o livro contacom um prefácio de Unger.

12 Afirma Unger (2009, p. 12): “O foco da política industri-al não deve ser nem as grandes empresas, de um lado,nem os microempreendimentos, de outro lado. São aspequenas e médias empresas as que devem merecer aatenção prioritária. É nelas que está a grande maioria dosempregos industriais. E é delas que resulta a maior partedo produto. Nisso, o Nordeste apenas acentua uma ca-racterística generalizada da economia brasileira”.

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organização do regime de “concorrência cooperati-va”, como meio de resolver o problema clássico deacesso à escala das pequenas e médias empresas.Assim, elas, apesar de continuarem competindo nomercado, podem compartilhar recursos financeirose tecnológicos que, isoladamente, não conseguiriamalcançar. Já na relação entre os produtores e o Esta-do, o ponto central é a fuga da escolha entre o mode-lo norte-americano, desenhado para regular as em-presas à distância, por meio de agências, e o modelodo nordeste asiático, em que o Estado impõe, de cimapara baixo, por meio de uma burocracia forte, o seuprojeto. A proposta para o Brasil em geral, e para oNordeste em particular, centra-se no avanço em dire-ção a um modelo experimentalista e descentralizadocomo o “[...] sugerido pelo conceito, tipicamente bra-sileiro, de arranjos produtivos locais”13 (Unger, 2009,p. 14). Na segunda dimensão, a operacional, doisaspectos são fundamentais: 1) a atenção decisiva àoferta real e massificada de crédito e de tecnologia àspequenas e médias empresas, de forma a completaro trabalho de aconselhamento gerencial realizado peloServiço Brasileiro de Apoio às Micro e PequenasEmpresas (SEBRAE) junto a esse universo empresa-rial;14 2) a organização das empresas em rede, demaneira a sempre existir uma instituição “âncora”(empresa maior ou agência do governo local) em tor-no da qual as empresas menores ou as cooperativasde empresas menores passem a gravitar.15

A democratização da economia de mercado

no Nordeste brasileiro, sugerida acima pela políti-ca industrial voltada para o empreendedorismoemergente, se completa através de uma políticaagrícola. Na proposta da SAE, há um conjunto deelementos que apenas reproduz o consenso domi-nante acerca do conteúdo de uma política agrícolapara o país, do qual, talvez, não participem ape-nas os setores da esquerda, que centra seu discur-so na questão da reforma agrária.16

Assim como na política industrial, a dimen-são institucional, geralmente negligenciada nas dis-cussões sobre agricultura, ganha ênfase na propos-ta de política agrícola da SAE, tanto aquela destina-da à agricultura irrigada como à voltada para a agri-cultura de sequeiro. O núcleo é a organização peloEstado de quatro conjuntos de ações: comercialização,ajuda técnica através do extensionismo agrícola, emque o método da colaboração entre os entesfederados seja decisivo, disseminação para os pe-quenos e médios produtores agrícolas dos instru-mentos financeiros como os hedges, que protegemcontra os riscos climáticos e econômicos que ca-racteristicamente recaem sobre a agricultura (e quehoje somente o agronegócio deles se beneficiam) e,por fim, reorganização dos mercados agrícolas paraacabar com a fragmentação dos produtores frenteaos fornecedores e compradores cartelizados. Tudoisso sob o seguinte princípio: “[...] quando o merca-do não faz, o Estado (inclusive a Conab) tem de fazer

13 Esse conceito tem sido desenvolvido no Brasil sob aliderança intelectual dos economistas Helena Lastres eJosé Cassiolato, que têm se dedicado ao estudo teórico eempírico do universo das pequenas e médias empresas eda realidade dos arranjos produtivos locais (APLs). Ver,entre outros, os dois volumes da obra de Cassiolato;Matos; Lastres (2008).

14 A literatura que trata dos desafios à institucionalizaçãodas pequenas e médias empresas é consensual em seudiagnóstico: “Barreiras ao crédito geram ineficiênciasalocativas e subtraem recursos de projetos de investi-mento, que podem oferecer as maiores taxas de retorno[...] Se empresas de longa existência ou maior porte tive-rem maior facilidade de acesso ao crédito, enquanto no-vas firmas ou pequenas e médias empresas não têm, al-gumas dentre elas terão uma sobrevida além da expectati-va, e a concorrência será reduzida. No mundo em desen-volvimento, este é um problema que se difunde e consti-tui um sério impedimento à criação de economias locaisdinâmicas em torno de um setor de pequenas e médiasempresas em expansão” (Mytelka; Farinelli, 2005, p. 367).

15 No texto do projeto da SAE, há uma passagem em quese pode perceber como a realidade do Nordeste ajudou areforçar muitas das proposições teóricas de Mangabeira

Unger: “A primeira dessas forças construtivas é umempreendedorismo emergente [...] Por exemplo, emCaruaru e Toritama, no interior de Pernambuco, veem-se todas as etapas do capitalismo europeu, do séculodezessete ao século vinte, coexistirem no mesmo lugar.Estão presentes num complexo de confecções que so-brevive longe dos grandes mercados consumidores e damatéria-prima. E que toma a forma não só de empresasmédias, mas também de mais de dez mil empreendi-mentos caseiros – os chamados fabricos – que traba-lham em regime de terceirização para aquelas empresasmédias” (Unger, 2009, p. 11). Para uma análise de casodesse processo no Nordeste, ver Lourenço (2007).

16 Fazem parte da proposta o reconhecimento da agricul-tura como dimensão fundamental de qualquer econo-mia moderna e a necessidade de agregar à agriculturafamiliar características empresariais sem que isso impli-que a perda de seu vínculo com a policultura e com apropriedade descentralizada. Como decorrência, o esfor-ço para agregar valor aos produtos do campo e a atençãoaos problemas mais característicos da agricultura comoa estrutura física (centrada basicamente noequacionamento do problema da irrigação) e o financia-mento. Mas a tudo isso a proposta de Mangabeira Ungeracresce o objetivo de se “[...] construir classe média ruralforte, como vanguarda de uma massa de lavradores po-bres que virá atrás dela” (Unger, 2009, p. 15).

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como vanguarda do mercado” (Unger, 2009, p.16).17

Embora inovador e profundamenteprovocativo, o projeto de Unger parece equivoca-do em algumas partes. Talvez o seu principal pro-blema seja confundir a correta compreensão doslimites das alternativas fordistas com a obrigaçãode instantaneamente superá-los. O fordismo já éforte no Nordeste, e não parece ser razoável quealternativas produtivas fordistas não possam seruma parte da solução regional. No Nordeste, pare-ce existir espaço até para o “pobrismo” durantecerto tempo. Ou seja: embora o empreendedorismoflexível das pequenas e médias empresas que co-laboram e concorrem, ao mesmo tempo, deva ser onexo dinâmico de um projeto de desenvolvimentopara o Nordeste, pode haver espaço e importânciarelativa para o fordismo – e o fordismo flexível, quenão é a mesma coisa que dominou São Paulo. Emoutras palavras, no Nordeste, talvez existam condi-ções até para “maquiladoras”. E isso sem compro-meter o núcleo central da nova política, que é voltaros instrumentos do Estado para os clusters dos pe-quenos e médios empreendimentos dinâmicos.

Portanto, o núcleo do projeto de MangabeiraUnger para o Nordeste objetiva construir uma eco-nomia organizada de uma forma que reúna capi-tal, tecnologia e trabalho, sem distribuir direitospermanentes e irrestritos a seu uso. Essa soluçãoimplica imaginar e experimentar instituições queexpressem o antigo ideal, centrado no pequenoprodutor independente, como uma alternativa prá-tica ao capitalismo, conforme a tradição “socialistautópica” de pensamento, fundada na realização doprogresso econômico e tecnológico e na democra-tização da estrutura social.18 Embora com conteú-do diferente, o projeto formulado por Unger se

inspirou na experiência anterior liderada por Cel-so Furtado e reviveu seu sonho de transformar aregião-problema em exemplo de um caminho paratoda a sociedade brasileira:

[...] ao mesmo tempo em que apresenta muitosdos problemas nacionais em sua forma mais con-centrada, o Nordeste reúne muitos dos elemen-tos indispensáveis às soluções nacionais, inclusi-ve a força da identidade coletiva e o acúmulodos vínculos associativos (o capital social). NoNordeste, mais do que em qualquer outra partedo país, o Brasil afirma sua originalidade. (Unger,2009, p.7, Grifos nossos).

DA ECONOMIA À SOCIEDADE: a reorganizaçãodo Estado e a reorientação da política social

Os projetos de transformação do Nordesteelaborados por Celso Furtado e Mangabeira Ungercompartilham duas preocupações fundamentais,uma de caráter social e outra de natureza política.A primeira dedica-se ao enfrentamento, em seufundo causal, da chocante desigualdade social doNordeste. A segunda preocupa-se com a constru-ção do agente institucional capaz de traduzir e des-dobrar o projeto em iniciativas concretas e práti-cas, através de seus múltiplos e complexos níveispolíticos e administrativos, no âmbito de nossoaparato estatal e governamental. Essa parte do tex-to discutirá quais as respostas dadas pelo projetomais recente encabeçado por Mangabeira Unger aessas temáticas, realçando o contexto teórico deonde elas são extraídas.

Uma das grandes vertentes do projeto deUnger para o Nordeste apresenta, como justificati-va da iniciativa, a possibilidade de ela exemplificarum novo tipo de federalismo para o Estado brasi-leiro, marcado por uma lógica de cooperação es-treita entre os três níveis da federação.19 A ideiabásica que suscita essa questão resulta da observa-

17 A proposta de Mangabeira Unger destaca também a im-portância da agricultura de sequeiro, apostando alto naspossibilidades do desenvolvimento tecnológico: “A agri-cultura de sequeiro não só exige tecnologia própria, deaproveitamento do solo, de experimentação com semen-tes e de adaptação à sazonalidade das chuvas, como tam-bém só se viabiliza, economicamente, com o avanço daindustrialização rural. O conjunto de formas de agrega-ção de valor no campo precisa ser maior, não menor, paraa agricultura de sequeiro do que para a agriculturairrigada” (Unger, 2009, p. 15-16).

18 Para uma visão geral sobre os fundamentos clássicos dopensamento da tradição socialista utópica e seus princi-pais temas e questões, ver Teixeira (2002).

19 Observe-se que Furtado também identificou o nosso fe-deralismo como mais um obstáculo ao desenvolvimentodo Nordeste e, de maneira original, refletiu sobre o quedesignou de “federalismo cooperativo”, que, em sua pers-pectiva, havia sido ensaiado durante a experiência demo-crática da República de 45 a 64. Segundo um comentaris-ta, “[...] o federalismo cooperativo, nos termos propostospor Furtado, apontava para uma descentralização parcial

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ção de um problema característico de paísesterritorialmente extensos e com desigualdades re-gionais significativas como o Brasil: a necessidadeda compatibilização de padrões nacionais de in-vestimento e de qualidade com a gestão local daspolíticas públicas. Nessas circunstâncias, é impor-tante que o Estado tenha um bom sistema demonitoramento e de financiamento dessas políti-cas e flexível o suficiente para ser capaz, inclusi-ve, de reorientar temporariamente, de acordo comnecessidades extraordinárias, recursos e quadrosde um local para outro. Mas o problema maior éque, mesmo depois desses ajustes, uma determina-da área da política pública pode ostentar índicesabaixo dos padrões mínimos aceitáveis estabeleci-dos. Nesse caso, qual seria a solução? Na respostade Unger, o Estado tem de constituir uma instânciatransfederal que reúna os três níveis da federação eque tenha poder de intervenção nessa área da polí-tica pública que enfrenta dificuldades, para saneá-la e devolvê-la consertada ao ente federado consti-tucionalmente responsável. O espírito é fortalecer oexperimentalismo através da cooperação.

Uma das premissas norteadoras desse fede-ralismo cooperativo parte de uma constatação teó-rica acerca da necessidade de transformação doEstado, face às mudanças nos paradigmas de orga-nização da produção, numa direção “pós-fordista”,que cada vez mais invade os espaços da vida soci-al, tornando ainda mais inadequados muitos dosmeios com que o Estado, fundado numa lógica“fordista” de excessiva padronização e rigidez, aindaopera na realização de suas ações. Um exemplodessa circunstância pode ser observado na neces-sidade de reforma da relação da sociedade civilcom o Estado, no que diz respeito à provisão daspolíticas públicas. Vários especialistas definem osserviços públicos ofertados pelo Estado, em quase

todos os países, como uma espécie de “fordismoadministrativo”, pela sua característica padroniza-ção, ao que se associa a falta de qualidade – embora,para os mais objetivos, isso pouca relação guardacom a questão do estilo de organização, como apre-goam os liberais em seu jargão sobre gestão. Na es-teira dessa argumentação, Unger rejeita, inclusive,como falta de imaginação institucional, a ideia deque a alternativa a esse “fordismo administrativo”seja a provisão privada desses serviços.20

Mas a proposta institucional de reconstru-ção do federalismo, além de trazer a ideia de subs-tituição da repartição rígida de competências entreos três níveis da federação por um “federalismocooperativo”, que associe os entes federados emexperimentos compartilhados, traz outra questão,ligada à ampliação do potencial de uma determi-nada localidade ou setor: divergir do modelo jurí-dico e institucional constituído e construir umaespécie de contra modelo, que pode vir a ser omodelo do futuro.21 O que inibe essa possibilida-de, no federalismo clássico, é que, ao dar liberda-de para uma região ou um setor, imagina-se a ne-cessidade de oferecer liberdade igual para todos.Mas essa circunstância não é necessária. É possí-vel imaginar que determinadas localidades ou se-

na aplicação dos recursos públicos federais nos estados-membros, o que seria feito pelas instituições regionaisfederais, por estar apoiado nas influências teóricas de umplanejamento não autoritário. Entretanto, o desenvolvi-mento econômico equilibrado, para Furtado, dependiamuito mais das iniciativas da União que das unidadessubnacionais, ou mesmo da participação social. Era deci-sivo o papel do governo federal na construção da ordemideal, o que significava um afastamento do modelo ame-ricano clássico.” (Ismael, 2009, p. 236).

20 A SAE, sob o comando de Mangabeira Unger, tentoulevar a cabo também um projeto de ampla reformulaçãoda administração pública como elemento importante daconstrução de um modelo de desenvolvimento. A ideiabásica é que a reforma do Estado não deve restringir-se àmera transposição das práticas mais características dagestão privada para o aparato estatal, e nem desvincularo debate sobre o conteúdo dessa reforma do Estado dadiscussão sobre o modelo de desenvolvimento que oEstado, uma vez reformado, tornar-se-á instrumento. ASAE produziu um texto com toda essa problematização,no qual sustentava que o verdadeiro choque de gestãono país significava realizar simultaneamente três agen-das inacabadas em matéria de administração: a daprofissionalização, a da eficiência e a do experimentalismo(Secretaria de Assuntos Estratégicos, 2009). O princípioteórico sugerido é que o contraste hidráulico da políticado século XX, na qual mais Estado implica menos mer-cado e vice-versa, deva ser superado numa perspectivaprogressista (Unger, 1999).

21 Esse é o caso, por exemplo, da política industrial e agrí-cola voltada para os pequenos e médios empreendedo-res, em que um dos aspectos da relação entre o Estado eos produtores expressa o princípio da cooperação federa-tiva. O mesmo raciocínio, ainda que com muito maisintensidade, vale para áreas como educação e saúde. Sobesse aspecto, o SUS é uma empreitada institucional quecontempla o espírito da ideia em tela. Para uma aprecia-ção do espírito da ideia de federalismo cooperativo apli-cada ao caso das políticas públicas do Estado brasileiro,ver Chaves (2010).

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tores tenham poderes extraordinários de divergên-cias da orientação geral. Isso implicaria a realiza-ção da ideologia experimentalista que inspira o fe-deralismo clássico, mas que, no entanto, não temsido praticada. Trata-se da percepção dos estadosfederados como laboratórios de inovações.22

No bojo dessa proposta de reconstrução dofederalismo brasileiro, o projeto Nordeste formula-do por Unger desdobra-se rumo à questão dacapacitação da enorme população desprovida decapital cultural, tendo em vista, sobretudo, duasprioridades: a primeira é assegurar, dentro de umpaís muito grande, muito desigual e de regime fede-rativo, a reconciliação da gestão local dos sistemasescolares pelos estados e municípios, com padrõesnacionais de investimento e de qualidade. Sem aparticipação decisiva da União, o Nordeste não cons-truirá a escola capaz de realizar o choque de ciênciae tecnologia exigido como contrapartida das trans-formações econômicas sugeridas anteriormente. E asegunda é aproveitar o impulso dado pelo governoLula ao ensino técnico para enfrentar, simultanea-mente, dois desafios: a) usar a rede federal de esco-las técnicas para soerguer o elo fraco do sistemaescolar brasileiro, que é o ensino médio, cuja res-ponsabilidade de gestão recai sobre os estados emunicípios; b) usar as escolas técnicas para cons-truir uma fronteira aberta entre o ensino geral e oensino técnico. Mas ele adverte: “Convém fazer tudoisso com largueza de visão, livre das restrições im-postas pelo imediatismo. Os enigmas do Nordestepodem inspirar avanços científicos e inovaçõestecnológicas cuja utilidade prática só aparecerá adi-ante” (Unger, 2009, p. 20-21).23

Essa junção, por sua vez, enseja a insistên-

cia em transformar o modo de ensinar: substituiro modelo pedagógico baseado na informação porum tipo de ensino que seja mais analítico. Na ver-dade, essa sua proposta significa antecipar para asprimeiras etapas da aprendizagem o trabalho coo-perativo que caracteriza os estágios mais avança-dos da ciência. A crença no poder social da educa-ção, evidenciada por grandes pensadores liberais,como John Dewey e Bertrand Russell, é fortemen-te compartilhada por Unger. Um dos temas carosao seu pensamento programático é aquele referen-te às ideias sobre uma forma de ensino que resgatea criança das limitações de seu meio – de sua famí-lia, de sua classe social, de seu tempo histórico,de sua cultura nacional – e lhe dê os instrumentosda resistência moral e da antevisão intelectual(Unger, 1999, p. 180-185).24

O segundo eixo analítico do desdobramen-to programático do projeto Nordeste apresentadopor Mangabeira Unger emerge no contexto da dis-cussão que se tornou conhecida no Brasil como a“porta de saída” dos programas de transferênciade renda, comumente proposta pelos representan-tes intelectuais e políticos da direita. A ideia bási-ca é a que os programas de transferência, como oprograma Bolsa Família, são resgates de cidadania,já que, na miséria, as pessoas são imobilizadas –inclusive pelo medo. Dessa forma, os programasde transferência devem ser entendidos como ins-trumentos que criam as condições para umamobilização mínima (Vanderbouth; Parijs, 2006).O que Unger diz em resposta é que as transferên-cias representam uma condição necessária, mas nãouma condição suficiente. E que, portanto, deveria

22 A ideologia do federalismo clássico norte-americano apre-goa a ideia de que os Estados federados atuem, em algumamedida, como laboratórios de experimentação de projetose caminhos distintos daquele do governo central, emboraa sua prática institucional fundada na repartição rígida deatribuições entre os entes federados contradiga frontal-mente o princípio manifesto da ideologia. Para uma apre-ciação dessa discussão, face ao tema do federalismo coo-perativo, ver Dorf; Sabel (1998, p. 292-313.

23 O texto do projeto Nordeste diz: “A política industrialvoltada para redes de pequenas e médias empresas in-dustriais, e tanto para a agricultura irrigada como para ade sequeiro, são provocações naturais para mobilizar ci-ência e tecnologia. Falta o agente institucional. Já existe,porém, base de apoio financeiro no Sibratec – o novoSistema Brasileiro de Tecnologia. Para qualificar-se ao

apoio que, por meio dele, virá da Finep e de outras enti-dades federais e estaduais, deve cada um dos estadosnordestinos organizar uma entidade – ou aproveitar en-tidade existente – para coordenar o trabalho de identifi-cação, desenvolvimento, adaptação e transferência dastecnologias mais relevantes – relevantes, sobretudo, paraas iniciativas industriais e agrícolas enumeradas anteri-ormente” (Unger, 2009, p. 20).

24 No panorama da educação brasileira, a identificação deUnger é com a perspectiva pedagógica de Anísio Teixeiraque, além de discípulo do experimentalismo de Dewey,como o próprio Unger, foi secretário de educação do Es-tado da Bahia na época em que Otávio Mangabeira, seuavô, foi governador. Anísio Teixeira exerceu também gran-de influência sobre Darcy Ribeiro, e um de seus princi-pais projetos, o CIEP, foi implementado no estado doRio de Janeiro durante os governos de Leonel Brizola,nas décadas de 80 e 90.

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haver uma versão progressista – que não há – des-sa discussão sobre as “portas de saída”, descritaspor outra linguagem que enfatizasse a necessidadede agregar elementos de ampliação da oportunida-de e de capacitação a esses programas.

A ideia se baseia num dado empírico sobre aestrutura de classes no Brasil e sobre o perfil dosbeneficiários dos programas de transferência comoo Bolsa Família. Quando se observam os dados re-centes a respeito da evolução da renda e de seuscomponentes no Brasil, verifica-se o seguinte: em-baixo, entre aqueles descritos por Jessé Souza comoa “ralé” brasileira, houve um crescimento da renda,sem que tenha havido um crescimento da renda dotrabalho. Entende-se que a maior parte desse cresci-mento se deve aos programas de transferência derenda. Mais adiante, no gráfico de evolução da ren-da, houve um crescimento da renda menor, masuma proporção muito maior desse crescimento de-vido à renda do trabalho. E a partir daí, a curvacontinua a descender (Paes de Barros, 2008).

Essa constatação empírica inspirou a seguin-te conjectura causal: entre o núcleo duro da po-breza, de um lado, e a pequena burguesia empre-endedora, de outro, haveria um grupo intermediá-rio, que Unger chamou de “batalhadores”. Essegrupo social seria composto basicamente por pes-soas que surgem mais ou menos no mesmo meiopobre da “ralé”, do núcleo da pobreza, mas que,por razões sociológicas e psicológicas especiais,responderam às duríssimas circunstâncias coleti-vas e conseguiram iniciar seu autorresgate. De acor-do com essa ideia, essas pessoas existem aos mi-lhões no Brasil, no Nordeste principalmente. Essahipótese a respeito da estrutura de classes inspi-rou uma sugestão programática: o desdobramentocapacitador dos programas de transferência teriade ter em vista essa diferença entre a “ralé” e essegrupo chamado de “batalhadores”. O núcleo duroda pobreza é composto por pessoas que estão cer-cadas por um conjunto de inibições familiares eculturais, o que dificulta a eficácia dos programasde capacitação. A experiência mundial de progra-mas de capacitação dirigidos a esse núcleo duroda miséria é desalentadora, conforme estudos

como o de Galasso (2006) e Rodrigues (2010).Portanto, o malogro se explicaria por causa

desse conjunto de inibições sociais e culturais. Paraa “ralé”, não funcionaria uma iniciativa direta decapacitação. A primeira coisa a fazer é assegurarque o Estado consiga assumir algumas das fun-ções das famílias desestruturadas e adensar o sis-tema de assistência social. Isso não objetiva subs-tituir a família, mas complementá-la. Já os“batalhadores” seriam os alvos naturais dos pro-gramas de capacitação, na medida em que já de-monstraram que são resgatáveis, por uma razãosimples: já iniciaram o seu próprio resgate. De acor-do com essa perspectiva, o equívoco comum quese comete no mundo é dirigir os programas decapacitação aos mais pobres. Embora seja compre-ensível pensar que a capacitação deva começarpelos mais carentes, a lógica da política não deveser a mesma da caridade. Então, paradoxalmente,os programas de capacitação deveriam começar nãopelos mais carentes, mas pelos relativamente me-nos carentes, que funcionariam como uma espéciede “vanguarda” do contingente mais pobre de pes-soas que viria em seguida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Independentemente de se concordar ou nãocom as ideias norteadoras dos projetos encabeça-dos por Celso Furtado e Mangabeira Unger, há dese reconhecer que ambos se caracterizaram pelocompartilhamento da visão de que a melhor ma-neira de compreender as possibilidades do futuroé influir na sua construção. Para isso, o pensa-mento e a ação não podem prescindir da combina-ção de três atributos fundamentais: realismo, ge-nerosidade e ousadia. Na política contemporâ-nea, o realismo passou a ser identificado com aaceitação dos preconceitos e interesses da ordemestabelecida. Para esses dois pensadores brasilei-ros, realista é o agente que tanto se dispõe a com-preender e enfrentar a realidade, sem desconsiderarnem superdimensionar seus elementos refratáriose constrangedores, como aquele que, por atuar sobre

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Recebido para publicação em 15 de outubro de 2012Aceito em 26 de agosto de 2013

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A ECONOMIA POLÍTICA DA TRANSFORMAÇÃO ...

THE POLITICAL ECONOMY OF THETRANSFORMATION OF THE NORTHEAST:

from Furtado to Unger

Carlos Sávio Teixeira

This paper analyzes two proposals ofstructural reorganization of northeastern society,prepared at different moments in time, one underCelso Furtado’s intellectual leadership and theother under Mangabeira Unger’s leadership. Itargues that both stem from the premise that thefight against the serious problems faced by thecountry’s most unequal region requires boldinstitutional reconstruction, as well as the adoptionof public policies that confront the structuralconstraints of the region, rather than just lessenthem. It reinforces the idea that the project thatgave origin to SUDENE (Superintendence for theDevelopment of the Northeast), headed by Furta-do, served as inspiration to the second latestventure, since the two initiatives were based onideas that surpass a merely redistributivistperspective.

KEY WORDS: Northeast, structural change,institutional reconstruction, Celso Furtado,Mangabeira Unger.

Carlos Sávio Teixeira – Doutor em Ciência Política. Professor adjunto do departamento de Ciência Política daUFF onde atua na graduação de ciências sociais e no programa de pós-graduação em Ciência Política. Participade um grupo de pesquisa internacional em parceria com o Instituto de Estudos da Ásia e África da Universidadede Humboldt em Berlim. Tem dois livros publicados: um que analisa a relação entre mídia e política e outro queé fruto de uma organização de textos do filósofo Roberto Mangabeira Unger. Tem, também, dois livros no prelo:um em co-organização com o sociólogo Jessé Souza sobre as transformações recentes da sociedade nordestina eoutro resultado de sua tese de doutorado.

L’ÉCONOMIE POLITIQUE DE LATRANSFORMATION DU NORD-EST: de

Furtado à Unger

Carlos Sávio Teixeira

Cet article analyse deux propositions deréorganisation structurelle de la société du nord-est élaborées à des moments différents, l’une sousle leadership intellectuel de Celso Furtado et l’autrede Mangabeira Unger. On y argumente que toutesdeux partent de la prémisse selon laquelle lesaffrontement des graves problèmes de la région laplus inégalitaire du pays suppose unereconstruction institutionnelle courageuse ainsique l’adoption de politiques publiques prêtes àaffronter les contraintes structurelles de la régionet non pas seulement les atténuer. On y affirmeque la proposition qui a donné naissance à laSUDENE, menée par Furtado, a servi d’inspirationà une deuxième entreprise plus récente, ces deuxinitiatives étant fondées sur des idées allant au-delà d’une perspective purement distributive.

MOTS-CLÉS: Nord-est, changement structurel,reconstruction institutionnelle, Celso Furtado,Mangabeira Unger.