20
II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade Natal, 18 a 21 de setembro de 2012 1 Leituras sobre duas propostas recentes de cidades ideais a partir da crítica às vanguardas de Manfredo Tafuri Readings on two recent proposals for ideal cities, following Manfredo Tafuri’s critique of the avant-gardes Lecturas de dos recientes propuestas de ciudades ideales, partiendo de la crítica a las vanguardias de Manfredo Tafuri Leandro CRUZ Arquiteto e Urbanista pela FAUFBA, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUFBA; [email protected]. RESUMO Neste artigo se propõe analisar duas propostas recentes de cidades ideais, partindo da crítica às vanguardas de Manfredo Tafuri. Num primeiro momento, promove-se uma revisão da discussão levantada pelo historiador italiano, e nas seções seguintes são analisadas duas propostas: “Exodus, ou Os Prisioneiros Voluntários da Arquitetura” (Koolhaas, Vriesendorp e o casal Zenghelis, 1972), e “Stop City” (DOGMA, 2007). Os casos exemplares permitem questionar a condição das neovanguardas como um campo de intervenção crítica em arquitetura e urbanismo, assim como a influência do pensamento utópico sobre a produção de cidades ideais, mesmo naquelas em que o conteúdo se revela mais propriamente distópico. A reflexão ajuda a acentuar as limitações em dois campos da análise: por um lado, evidencia o desafio de manter uma produção consistente na relação conflituosa entre realidade e utopia; por outro, as limitações da própria crítica na tarefa de proceder a uma leitura que reconstrua o objeto sem necessariamente destruí-lo nem se sobrepor a ele. Nas conclusões, apresenta-se uma possibilidade de atualização da crítica às vanguardas, dando ênfase ao entendimento das propostas utópicas como meio de negociação com o real, a partir do que foi elaborado pelo crítico e teórico Michael Hays em seu trabalho sobre a chamada “vanguarda tardia” em arquitetura. PALAVRAS-CHAVE: cidades ideais, neovanguardas, Manfredo Tafuri, Exodus, Stop City. ABSTRACT This paper presents analysis of two recent proposals of ideal cities, following Manfredo Tafuri’s critique of the avant-garde. At first, it traces the developments of the discussion raised by the Italian historian; then it analyzes two proposals: “Exodus, or The Voluntary Prisoners of Architecture” (Koolhaas, Vriesendorp and the Zenghelis couple, 1972), and “Stop City” (DOGMA, 2007). The case-studies raise two issues: the condition of neo-avant-gardes as critical interventions in architecture and urbanism; and the influence of utopian thinking on the proposition of ideal cities, even those whose content proves rather be dystopian. Reflection stresses the limitations inherent in both questions: at first, there is a challenge in keeping up consistent work in face of the tension between reality and utopia; on the other hand, criticism itself has limitations in coming up with readings that reconstruct the object without necessarily destroying or overwriting it. The conclusion advocates the possibility of updating the critique of avant-garde, emphasizing its condition of a mode of negotiation with reality, relying on critic and theorist Michael

Artigo AC267 - CRUZ

Embed Size (px)

Citation preview

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

1

Leituras sobre duas propostas recentes de cidades ideais a partir da crítica às vanguardas de Manfredo Tafuri

Readings on two recent proposals for ideal cities, following Manfredo Tafuri’s critique of

the avant-gardes

Lecturas de dos recientes propuestas de ciudades ideales, partiendo de la crítica a las vanguardias de Manfredo Tafuri

Leandro CRUZ Arquiteto e Urbanista pela FAUFBA, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUFBA; [email protected].

RESUMO Neste artigo se propõe analisar duas propostas recentes de cidades ideais, partindo da crítica às vanguardas de Manfredo Tafuri. Num primeiro momento, promove-se uma revisão da discussão levantada pelo historiador italiano, e nas seções seguintes são analisadas duas propostas: “Exodus, ou Os Prisioneiros Voluntários da Arquitetura” (Koolhaas, Vriesendorp e o casal Zenghelis, 1972), e “Stop City” (DOGMA, 2007). Os casos exemplares permitem questionar a condição das neovanguardas como um campo de intervenção crítica em arquitetura e urbanismo, assim como a influência do pensamento utópico sobre a produção de cidades ideais, mesmo naquelas em que o conteúdo se revela mais propriamente distópico. A reflexão ajuda a acentuar as limitações em dois campos da análise: por um lado, evidencia o desafio de manter uma produção consistente na relação conflituosa entre realidade e utopia; por outro, as limitações da própria crítica na tarefa de proceder a uma leitura que reconstrua o objeto sem necessariamente destruí-lo nem se sobrepor a ele. Nas conclusões, apresenta-se uma possibilidade de atualização da crítica às vanguardas, dando ênfase ao entendimento das propostas utópicas como meio de negociação com o real, a partir do que foi elaborado pelo crítico e teórico Michael Hays em seu trabalho sobre a chamada “vanguarda tardia” em arquitetura.

PALAVRAS-CHAVE: cidades ideais, neovanguardas, Manfredo Tafuri, Exodus, Stop City.

ABSTRACT This paper presents analysis of two recent proposals of ideal cities, following Manfredo Tafuri’s critique of the avant-garde. At first, it traces the developments of the discussion raised by the Italian historian; then it analyzes two proposals: “Exodus, or The Voluntary Prisoners of Architecture” (Koolhaas, Vriesendorp and the Zenghelis couple, 1972), and “Stop City” (DOGMA, 2007). The case-studies raise two issues: the condition of neo-avant-gardes as critical interventions in architecture and urbanism; and the influence of utopian thinking on the proposition of ideal cities, even those whose content proves rather be dystopian. Reflection stresses the limitations inherent in both questions: at first, there is a challenge in keeping up consistent work in face of the tension between reality and utopia; on the other hand, criticism itself has limitations in coming up with readings that reconstruct the object without necessarily destroying or overwriting it. The conclusion advocates the possibility of updating the critique of avant-garde, emphasizing its condition of a mode of negotiation with reality, relying on critic and theorist Michael

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

2

Hays’ essay on so-called "late avant-garde".

KEY-WORDS: ideal cities, neo-avant-garde, Manfredo Tafuri, Exodus, Stop City.

RESUMEN

En este artículo se propone una lectura de dos recientes propuestas de ciudades ideales, partiendo de la crítica a las vanguardias de Manfredo Tafuri. En un primero momento, se promueve una revisión de la cuestión planteada por el historiador italiano, para en las secciones siguientes analizar dos propuestas: "Exodus, o Los Prisioneros Voluntarios de la Arquitectura" (Koolhaas, Vriesendorp, Elia y Zoe Zenghelis, 1972), y "Stop City" (DOGMA, 2007). Los casos ejemplares que ponen en cuestión tanto la condición de neo-vanguardias como una intervención crítica en el campo de la arquitectura y el urbanismo, y la influencia del pensamiento utópico sobre la producción de las ciudades ideales, incluso aquellos en que el contenido se muestra más propiamente distópico. El debate pone de relieve las limitaciones de los dos campos de análisis: en primer lugar, el reto de mantener la producción consistente en la relación de confrontación entre la realidad y la utopía; y por otro lado, las limitaciones de la propia crítica en la tarea de hacer una lectura que reconstruya el objeto sin necesariamente destruirlo ni sobreponerlo. A partir de las conclusiones, se presenta una actualización de la posibilidad de la crítica de la vanguardia, haciendo hincapié en su condición de medio para negociar con la realidad, a partir de lo que viene siendo elaborado por lo crítico y teórico Michael Hays y sus análisis sobre la llamada “vanguardia tardía” en arquitectura.

PALABRAS-CLAVE ciudades ideales, neo-vanguardias, Manfredo Tafuri, Exodus, Stop City.

1 INTRODUÇÃO

Neste artigo são analisadas duas propostas recentes de cidades ideais, dentro de um recorte contemporâneo, produzidas entre os anos 1970 e a década de 2000. Sua leitura toma como partido inicial a chamada “crítica às vanguardas”, estabelecida entre os anos 1970-80 como um dos eixos de discussão do arquiteto e historiador italiano Manfredo Tafuri e de outros pesquisadores vinculados ao IUAV (Istituto Universitario di Architettura di Venezia).

Num primeiro momento, caracterizado inicialmente como “pura ideologia”, apresenta-se o projeto Exodus, ou Os Prisioneiros Voluntários da Arquitetura (1972), elaborado por Rem Koolhaas, Madelon Vriesendorp, Elia e Zoe Zenghelis. Em seguida apresenta-se o projeto para a Stop City (2007), do grupo DOGMA, a partir da noção de “arquitetura como forma política”, expressão cunhada por um dos autores da proposta, Pier Vittorio Aureli.

Interessa entender em que condições estas propostas de cidades ideais foram elaboradas, e sob que influências principais elas se assentam, sejam do próprio campo da arquitetura e do urbanismo como de outras áreas. E ainda, considerando que ambas se inserem num período posterior à deflagração da crise do Movimento Moderno e são de alguma forma influenciadas pelas chamadas neovanguardas dos anos 1970, é de interesse ressaltar como a herança das produções anteriores interfere nestas obras.

2 A CRÍTICA ÀS VANGUARDAS NA OBRA DE MANFREDO TAFURI

O arquiteto e historiador Manfredo Tafuri (1935-1994) foi uma das figuras responsáveis por

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

3

estabelecer, junto a outros intelectuais do contexto italianoi, uma crítica radical às vanguardas históricas do começo do século XX e à metrópole moderna (esta última entendida como seu campo de experimentação por excelência), revelando o seu papel mistificador de uma racionalidade que servia à manutenção dos ciclos de produção do sistema capitalista. Em síntese, às manifestações mais pretensamente radicais das vanguardas, Tafuri lhes creditava o papel de terem se revelado, com a crise do Movimento Moderno, como “prefigurações” ou “antecipações ideológicas” que garantiam a sobrevivência do próprio sistema capitalista, por mais que pretensamente estivessem tentando superá-lo.

No conjunto da obra de Tafuri, interessa o modo como se estende essa leitura para além da crítica aos movimentos de vanguarda do começo do século XX, chegando à análise da produção contemporânea. Esta movimentação foi apresentada inicialmente em “Progetto e utopia”, de 1973 (TAFURI, 1985), e aprofundada em “La sfera e Il laberinto” (TAFURI, 1987), livro publicado originalmente em 1980, em que se reúne de forma mais acabada o conjunto de reflexões elaboradas pelo autor ao longo dos anos 1970.

“Projeto e utopia” foi o resultado da reelaboração do polêmico ensaio “Per una critica dell’ideologia architettonica”, publicado na revista marxista Contropiano em 1969. De forma geral, pesa sobre o livro o reconhecimento não só da falência do Movimento Moderno com um todo, como também a consideração de que, à época em que foi escrito, a arquitetura já não tinha mais papel algum dentro do sistema capitalista, nem mesmo como criadora das chamadas “prefigurações ideológicas”. A crítica a que se propõe implica em refazer o percurso desde as experiências das arquiteturas “revolucionárias” do séc. XVIII até as expressões da produção contemporânea, detendo-se com mais propriedade nas propostas radicais do começo do século XX e no momento de crise da arquitetura moderna, que teria sido deflagrado nos anos 1930.

Para o autor, a arte e arquitetura modernas podem ser entendidas como uma arte burguesa, que serviu ao sujeito moderno como uma forma de compensação ou alívio do chamado “choque metropolitano”, fazendo referência aqui às leituras de Georg Simmel, Max Weber e Walter Benjamin sobre a cidade moderna (TAFURI, 1985, p:56-61). Teria sido justamente via choque que se alcançou a tranquilidade de nervos necessária à sobrevivência pacífica do sujeito moderno na metrópole, condição indispensável para dar novos saltos nos ciclos de desenvolvimento do capitalismo. Fica entendida, então, como tarefa das vanguardas: num primeiro momento, remover a experiência do choque do automatismo, revelando-a, para em seguida incorporar essa experiência a ponto de não se agregar a ela qualquer noção de valor. Tafuri relaciona, assim, o movimento de surgimento e substituição das vanguardas ao funcionamento próprio dos processos industriais.

Após chegar a esta situação de impasse, não mais disfarçável, Tafuri identifica dois caminhos principais para a ideologia arquitetônica, uma vez que não é mais possível assumir o antigo papel propulsor, embora ainda se autodenomine como “vanguarda”: ou mascarar-se por trás de uma autonomia disciplinar, ou passar a adotar atitudes autodestrutivas. A produção contemporânea, não conseguindo chegar às causas efetivas da crise (que certamente deveriam passar pelo campo da política), concentra-se nos problemas internos ao próprio design, o que se constitui como um dos argumentos principais de Tafuri em “L’architecture dans le boudoir”, um dos mais discutidos capítulos de “A esfera e o labirinto”.

Nesta constatação, Tafuri lista entre os seus alvos os ambientes e os “não-projetos” elaborados

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

4

para a exposição “Italy – New Domestic Landscape”, realizada no MoMA em 1972, entre os quais havia obras de grupos como Superstudio e Archizoom, que de certa forma influenciam as propostas aqui analisadas. A despeito de terem sido apresentados na época como uma “Arquitetura Radical”, e independente também de certa revalorização que se vem fazendo sobre a obra do Archizoom, destacando o posicionamento político dos integrantes (AURELI, 2008), é inegável que sua atuação se deu num circuito de elite, que se retroalimenta através de exposições e publicações, motivo pelo qual Tafuri faz sua crítica:

Assiste-se, por outras palavras, a toda uma proliferação de um design underground, de “contestação”. O qual, porém, contrariamente aos filmes de um [Andy] Warhol ou de um [Pino] Pascali, é tornado institucional e propagandeado por organismos internacionais e integrado num circuito de élite. Através do design e do projecto do microambiente, as flagrantes contradições das estruturas metropolitanas, sublimadas e submetidas a uma ironia catártica, entram no ambiente da vida privada. [...] (TAFURI, 1985, p:95-96. Grifos originais.)

Ainda em “Projeto e utopia”, Tafuri apresenta também uma declaração final sobre a produção recente, que segundo ele se resume a produzir “fugazes vislumbres de movimento estático”, afirmando que o único caminho que parece se apresentar à arquitetura do espaço metropolitano seja o de tornar-se uma espécie de fantasma de si própria, uma arquitetura silenciosa, a exemplo de algumas obras de Mies van der Rohe. Vendo-se irremediavelmente presa às condições de reprodução do sistema capitalista, restaria à arquitetura conseguir existir através de sua própria negação, embora naquele momento ele não conseguisse vislumbrar nenhum exemplar recente dessa mesma atitude (TAFURI, 1985, p:98-100).

O desenvolvimento mais aprofundado da crítica às vanguardas a partir da produção contemporânea se dá logo após a publicação de “Projeto e utopia”. Entre 1973-76, Tafuri se envolveu num conjunto de atividades que seriam posteriormente aprofundadas na publicação de “A esfera e o labirinto”, publicado originalmente em 1980. Deste livro interessa sobretudo o penúltimo capítulo, “L’architecture dans le boudoir”, no qual Tafuri avalia a situação das neovanguardas da época, dominadas pela “crítica da linguagem” e oferece, em seu lugar, a “linguagem da crítica” como uma neutralização desse efeito sedativo em que se encontravam as neovanguardasii.

O capítulo se inicia com a tese de que sempre fez parte da arte moderna o trabalho a partir do reaproveitamento de materiais degradados, bem como de dejetos e fragmentos retirados da banalidade do cotidiano. A partir dessa contestação, segundo o autor, não é de espantar o estado da neovanguardas ao longo dos anos 1970, agindo como quem redistribui os restos de uma batalha, ou seja, as sobras da arquitetura moderna após a inevitável aceitação de sua derrota. Àqueles que se quisessem trabalhar com a arquitetura fazendo-a “falar”, seria necessário, antes, reduzir a um “grau zero” a sua ideologia, ou qualquer sonho possível de função social e mesmo cada sobra de utopia. Os elementos da tradição moderna se apresentavam naquele momento como “fragmentos enigmáticos”, “signos mudos de uma linguagem cujo código se tinha perdido”. Por conta disso, segundo Tafuri, fazia-se recorrente a adoção do purismo e da rigorosidade pelas neovanguardas, como atitudes características “[...] de alguém consciente de que está se engajando numa ação desesperada cuja única justificação reside nela mesma.” (TAFURI, 1987, p:267).

Tafuri reconhece como condição imposta às propostas radicais não ter outra saída senão operarem como narrativas, recorrendo inclusive à dimensão da linguagem como meio de comunicação. Para ele, o escape para o domínio da linguagem daquela época é uma prova do

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

5

fracasso das vanguardas, o que não chega a ser culpa dos arquitetos, mas antes um caminho inelutável, já que a dimensão formal estava excluída do discurso geral em arquitetura.

Em vista disso, atribui à sua crítica certo papel repressivo, o que implica em atuar com violência, atravessando seu objeto de estudo, sendo necessário inclusive violentá-lo para conseguir chegar ao sistema que lhe dá sentido. Essa avaliação pessimista, melancólica, ainda que abra espaço para a construção de uma utopia igualmente melancólica, já se anunciava desde “Projeto e Utopia”iii. É uma consequência da influência do pensamento negativo sobre a obra de Tafuri, componente fundamental do “projeto de crise” a que se propunhaiv. Esta condição de impasse revela como o próprio projeto de Tafuri de leitura do Movimento Moderno também era, ele mesmo, moderno (BIRAGHI apud RETTO JÚNIOR, 2006), daí a sua condição de eterno impasse, com uma visão trágica sobre qualquer possibilidade de mudança.

As obras de James Stirling e de Aldo Rossi ganham um papel fundamental na sua análise. Ao primeiro, atribui-lhe o papel de operador de um conjunto de referências do Movimento Moderno, mas não de forma meramente celebrativa ou leviana, e sim como um figura que reescreve a própria tradição moderna com essas referências, a ponto de recombiná-las à exaustão. Quanto à obra de Rossi, Tafuri lhe credita o papel de libertar o discurso arquitetônico de qualquer contato com o real. O seu trabalho representaria de forma mais bem acabada a postura de operar através de signos esvaziados, “de emblemas geométricos reduzidos a espectros”, como um modo de falar através do silêncio das formas, único recurso que restaria à arquitetura.

Tafuri vê na empreitada coletiva do Conjunto Gallaratese (1970-73), em Milão, o drama da arquitetura contemporânea: por um lado, o bloco de Carlo Aymonino representa a cultura do excesso, com uma arquitetura ruidosa, impelida forçosamente a se comunicar, ainda que na leitura do historiador esse objetivo fosse evidentemente impossível; por outro, no bloco projetado por Aldo Rossi, a expressão de “objeto mudo”, a resignação em falar através do silêncio, último recurso disponível a quem desejasse fazer arquitetura (TAFURI, 1987, p:276-277).

Mas é a partir de outra obra de Aldo Rossi que se faz o prognóstico que mais interessa a este artigo. A partir de sua análise da colagem A Cidade Análoga: Painel (1976), Tafuri entende que a arquitetura subsiste nela por via da contemplação da própria dor, pelo reconhecimento da impossibilidade de utopias alternativas e pela ação desesperada em encontrar, via nostalgia, um lugar para encontrar estabilidade (fig. 1):

Mesmo para a "cidade análoga" de Rossi não há um "lugar" real. Logo abaixo da composição, poderia muito bem aparecer, rabiscada com caligrafia infantil, a inscrição ceci n'est pas une ville [isto não é uma cidade], o que produziria o mesmo deslizamento discursivo que se dá no Cachimbo de Magritte. [...] (Tafuri, 1987, p:277. Grifos originais.)

Avançar com esse projeto significaria, nas palavras do próprio Tafuri, assumir o “complexo de Ícaro” e reconhecer que o campo para a fusão criativa (contaminatio) entre o sonho e os desenhos arquitetônicos não se dão mais na cidade. A arquitetura, assim, se descola e alça voo, a paisagem arquitetônica “[...] sobrevive numa memória privada dentro da qual ganha novamente uma ‘beleza sem finalidade’ kantiana” (TAFURI, 1987, p:278-279). O historiador, no entanto, não faz muitas concessões e só identifica esta condição nas paisagens oníricas de Massimo Scolari. O mesmo não valeria, segundo Tafuri, para as experimentações de Rem Koolhaas nem as dos irmãos Krier, caracterizadas por ele como um “jogo cínico” e “tensões utópicas”.

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

6

Figura 1: Painel de Aldo Rossi para sua “cidade análoga”

Fonte: Rossi, 1976.

Todo o mais não passaria de “arquitetura no boudoir”, ou seja, não vão muito além de uma atuação que se pretende disciplinarmente autônoma, intencionalmente removida do contexto econômico e funcional. Tafuri desfere um golpe final às neovanguardas reconhecendo que essa arquitetura não passa de um subproduto do sistema de produção corrente, que está sempre em busca de, por um lado, renovar-se em termos formais, deixando a cargos dos setores marginais da produção a experimentação de novos modelos; e por outro, a consolidação de um público diversificado, a fim de garantir a manutenção do conceito e do papel da arquitetura, com uma pretensa capacidade de comunicação (TAFURI, 1987, p:283-284).

Passado esse primeiro momento de revelação de como opera o sistema por trás do objeto, dando-lhe sentido, Tafuri aponta para um caminho possível, o que pode ser lido como o lugar da utopia dentro do seu “projeto de crise”, situação que já estava esboçada em “Projeto e utopia”. Reserva-se às estruturas da cidade e do território a possibilidade de inverter o processo em curso, dando indicações, a partir de sua leitura das vanguardas, como se chega a tal resultado:

[...] Degradar as ferramentas da comunicação, reduzindo-as a lugar comum, forçando-as a se refletirem no pântano agonizante do mundo da mercadoria, reduzindo-as a signos vazios e mudos [...]. A profanadora imersão no caos permite a esses artistas [Kurt Schwitters, László Moholy-Nagy e Sol Le Witt] retornarem com os instrumentos que, tendo absorvido a lógica daquele mesmo caos, estão preparados para dominá-lo a partir de dentro. (TAFURI, 1987, p:284)

Cabe lembrar que Tafuri não reserva esse lugar de utopia a qualquer expressão que se pareça com as leituras do pop vernacular do casal Denise Scott Brown e Robert Venturiv, nem para as experimentações de uma utopia tecnológica por parte de grupos como Archigram ou Archizoom, que segundo ele não vão além de dar uma “forma de expressão” ao consumo de massas, além de mistificaram a tecnologia como uma segunda natureza (TAFURI, 1987, p:285).

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

7

Dada esta breve revisão sobre a crítica das vanguardas de Manfredo Tafuri, é oportuno passar para a análise das propostas indicadas, uma vez que são justamente essas diferentes expressões da tecnoutopia que de algum modo – oscilando entre movimentos de aproximação e oposição – servem de referência para os projetos analisados a seguir.

3 O PROJETO “EXODUS” (1972): ARQUITETURA COMO “PURA IDEOLOGIA”

O projeto “Exodus, ou os Prisioneiros Voluntários da Arquitetura” (1972), elaborado por Rem Koolhaas, Madelon Vriesendorp, Elia e Zoe Zenghelis, foi apresentado originalmente como um dos inscritos no concurso “The City as Meaningful Environment” (A Cidade como um Ambiente Significante), organizado pela Associazione per Il Disegno Industriale de Milão e pela revista Casabella entre 1971-72. Ao final do concurso, o projeto figurou como um dos vencedores, no mesmo ano em que foi apresentado como trabalho final de Koolhaas na Architectural Association de Londres.

A proposta consistiu num conjunto inicial de dezoito peças gráficas, que incluem desenhos, aquarelas e colagens, acompanhadas por um texto/ficção que se configura como uma narrativa. Exodus pode ser lido como uma utopia urbana – ainda que impregnada de distopia – sobre o centro de Londres. Trata-se de uma proposta herdeira de outros exemplos de megaestruturas, especialmente aquelas vinculadas aos grupos Archigram, Archizoom e Superstudio, cujos integrantes estavam em contato próximo com os autores do projeto.

A relação estabelecida com esses grupos é bastante ambígua. Por um lado, deve-se muito a eles pelo repertório formal que se apresenta no conjunto de suas peças gráficas, assim como na configuração geral da nova cidade – uma megaestrutura em linha, tendendo à expansão infinita, que se sobrepõe sobre a cidade preexistente. Exodus se apresenta como uma Faixa (Strip), uma megaestrutura em linha, caracterizada por uma sequência de espaços coletivos e um setor com lotes privados (figs. 2 e 3).

Figura 2: Vista em perspectiva de Exodus. Fonte: Digital Image © The Museum of Modern Art/Licensed by

SCALA / Art Resource, NY.

Figura 3: Exodus em planta Fonte: Digital Image © The Museum of Modern Art/Licensed by

SCALA / Art Resource, NY.

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

8

A proposta é definida por dois grandes muros paralelos, que encerram nove praças de mesma dimensão, além de um conjunto de estruturas lineares com extensões e em quantidade variadas, que a princípio não têm limite preciso, e duas quadras nas pontas da faixa, que estão em fase de construção e são apresentadas como os locais de “fricção ideológica” entre a proposta e a cidade de Londres, além de reforçar seu caráter de expansão indefinida.

Em termos visuais, o projeto remonta quase de imediato ao Monumento Contínuo (1969) do Superstudio (figs. 4 e 5), uma megaestrutura que se pressupunha ocupar todo o globo, espalhando-se pelos mais diversos territórios, assumindo formas essencialmente lineares que ora avançavam de forma destrutiva sobre as estruturas existentes, ora se sobrepunham a elas espelhando-as, literalmente.

Figura 4: “New New York”, parte do Monumento Contínuo (1969) Fonte: Fondazione MAXXI.

Figura 5: “New New York”, parte do Monumento Contínuo (1969)

Fonte: Digital Image © The Museum of Modern Art/Licensed by SCALA / Art

Resource, NY.

Quando o foco passa para conjunto de intenções da proposta, no entanto, contrapõe-se frontalmente a essas experiências anteriores. Segundo o próprio Koolhaas (apud SCOTT, 2003, p:83), Exodus foi baseado no seu estudo sobre o Muro de Berlim e se apresentava como uma reação a certa inocência que seus professores e mesmo alguns parceiros de debate, como os integrantes do Archizoom e do Superstudio, viam nas possibilidades da imaginação arquitetônica – por isso a insistência dada, ao longo de todo o texto e implícita nas imagens, à ambiguidade e ao perigo que a arquitetura também constitui. A obra assume certo aspecto biográfico, sobretudo com relação a Koolhaas e Elia Zenghelis – respectivamente aluno e professor da AA naquele momento, mas compartilhando da posição de deslocamento frente aos debate hegemônico na instituição – e pode ser lida como um projeto edipiano de contestação dos mestres da geração de vanguarda anterior.

Como uma das atividades dentro da AA, os alunos eram convidados a viajar e trazer suas impressões sobre alguma obra de arquitetura. Um ano antes da realização da proposta, Koolhaas realizou a atividade fazendo uma visita ao Muro de Berlim e, subvertendo o que se esperava dos alunos, elabora a apresentação “O Muro de Berlim enquanto Arquitetura”, que ganha uma versão escrita posteriormente, em 1993 (KOOLHAAS, 1997). Em sua apresentação ele destacou, para o descontentamento de boa parte dos professores, ainda encantados com as maravilhas prometidas pelo avanço tecnológico e sua promessa redentora, uma face da arquitetura que parecia evitada pela maioria, o que lhe permite sugerir, por exemplo, que “a beleza da arquitetura é diretamente proporcional ao seu horror” (KOOLHAAS, 1997, p:226). No

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

9

corpo de docentes, no entanto, a figura de Zenghelis era uma exceção e, embora já mantivesse uma relação amigável com Koolhaas, consolidam a parceria depois deste evento e daí começam a elaborar a proposta que viria a ser apresentada no ano seguinte como Exodus.

Embora esteja localizada em Londres, sobre a qual avança ininterruptamente (A Ponta da Faixa), a obra remete também à condição da cidade de Berlim naquela época, no auge da Guerra Fria – ambiguamente reservada e ao mesmo tempo separada pelo Muro. Se por um lado é evidente se absorve esta situação como referência para ao projeto, isto se dá principalmente em termos formais, o que lhe permite dar o conteúdo que bem entender àquela arquitetura, sem cair numa relação aprisionadora entre forma e conteúdo (KOOLHAAS, 1997, p:227). Ao tratar com ironia a relação ambígua entre oposições antagônicas, o que se percebe em Exodus é muito mais uma vontade de quebrar as leituras maniqueístas e ingênuas sobre a arquitetura, sobre seu potencial como um dispositivo capaz de transformar a sociedade.

Exodus se apresenta como uma deus ex machina, ou seja, insere-se na tradição de utopias urbanas de cidades que surgiram “do nada”, com uma solução que muda completamente as regras do jogo. Pressupõe uma situação em que a cidade de Londres teria sido dividida em duas partes: uma delas teria ficado conhecida como a “Metade Boa”, e a outra, como a “Metade Má”vi. Aqueles moradores que decidirem migrar para a cidade intramuros – a parte boa da cidade – se tornariam seus prisioneiros voluntários, ingressando numa zona de hiperdensidade e estariam a partir de então sujeitos a diversas experiências com vistas a libertá-los de sua vida anterior.

De repente, uma faixa com forte ambição metropolitana atravessa o centro de Londres. Esta faixa é como um trilho, uma pista de pouso para a nova arquitetura dos monumentos coletivos. Duas paredes encerram e protegem essa zona para manter sua integridade e evitar qualquer contaminação da sua superfície pelo organismo canceroso que a ameaça engolir. (KOOLHAAS e ZENGHELIS, 1997, p:7)

A narrativa, como um todo (considerando aqui, obviamente, tanto o texto escrito como o conjunto de imagens), nos mostra uma cidade pensada como um grande laboratório para novas formas de vida metropolitana. Numa das situações mais evidentes, As Termas (The Baths), uma das praças internas, é apresentada como um “condensador social”, tendo como funções principais atuar nas fantasias sexuais públicas e privadas dos internos, bem como apresentar novas formas de comportamento.

Esta situação nos permite, seguindo a leitura de Tafuri, argumentar que os autores estão indo além de simplesmente operar através de “signos mudos” de uma tradição moderna que não se realizou. O condensador social não somente é apresentado como uma “forma sem utopia”, como tem seu sentido completamente desvirtuado, na linha tênue entre a ironia e o cinismo. Vale o mesmo para outras referências e reaproveitamentos incluídos no projeto, sempre num tom iconoclasta: na Praça dos Quatro Elementos, por exemplo, encontra-se uma réplica de uma das pirâmides do Egito, mas aos internos nunca será revelado que, na verdade, ela não esconde nenhuma câmara secreta; e no caso das habitações dos prisioneiros voluntários, nos Lotes, que são descritas como “pequenos palácios para o povo”, os autores satirizam as pretensões salvadoras do Movimento Moderno.

As pranchas de apresentação do projeto, que ficaram a cargo de Madelon Vriesedorp e Zoe Zenghelis, lidam de forma direta com a profusão de referências e dão boa parte do tom de ironia e das referências do projeto e da influência do método crítico paranoico na concepção da proposta. Em duas das pranchas que representam os lotes (figs. 6 e 7) pode-se ler, por um

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

10

lado, a incorporação do imaginário suburbano de condomínios fechados à paisagem de Exodus, com suas ruas em cul-de-sac cujo acesso se encontra estranhamente impedido pelo muro (fig. 6) e, por outro, traduzem a ironia da descrição dessas habitações: a figura humilde dos camponeses da obra O Angelus (1857-59), de Millet, contrasta com a luxo do mármore verde à la Pavilhão de Barcelona de Mies van der Rohe (1929) e com as superfícies reticuladas do Superstudio, a exemplo da Supersurface-Life (1972), e sua pretensa radicalidade:

Nesta parte da faixa [Os Lotes], cada morador tem um pequeno pedaço de terra para cultivo próprio; eles precisarão disso para se recuperar, na sua intimidade, das demandas que o intenso coletivismo e o estilo de vida comunal exercem sobre eles.

As casas nesses lotes são construídas com os materiais mais belos e caros – mármore, cromo, aço (pequenos palácios para o povo). (KOOLHAAS e ZENGHELIS, 1973, p:43).

Figura 6: Os Lotes de Exodus (1972) Fonte: Digital Image © The Museum of Modern Art/Licensed

by SCALA / Art Resource, NY.

Figura 7: Os Lotes de Exodus (1972) Fonte: Digital Image © The Museum of Modern Art/Licensed by

SCALA / Art Resource, NY.

No terceiro capítulo de “Projeto e utopia” Tafuri analisa como se dão os diferentes papéis dos intelectuais na sociedade nos momentos propensos a elaborações de vanguarda. Numa primeira análise, conclui que há duas tendências gerais, que se configuram como condições distintas, mas ao mesmo tempo complementares. Por um lado, tem-se a postura do trabalho intelectual como trabalho em si, portanto não servindo a um movimento revolucionário; e por outro, a pura ideologia, leitura do trabalho intelectual que se nega a si próprio, que pretende “substituir a organização política, ou exaltá-la, ou criticá-la a partir do seu interior”, sempre se colocando à sua frente como uma forma de “consciência crítica” (TAFURI, 1985, p:49). A leitura de Tafuri sobre a pura ideologia pressupõe, inclusive, uma forma de atuação que pudesse se colocar como força contrária ao sistema capitalista, atuando a partir de dentro do próprio sistema.

Rem Koolhaas chega a ser mencionado em “A esfera e o labirinto” em dois momentos, mas em nenhum deles as suas propostas são discutidas em detalhe. A despeito da relevância que parte da crítica e algumas revistas especializadas lhe conferiam já nos primeiros anos de atuação, Tafuri apenas o lista num rol de arquitetos das neovanguardas dos anos 1970, dentre os quais ele é especialmente caracterizado pelo seu “jogo cínico” (cynical play) e pelas suas “brincadeiras” (jokes), o que demonstra a grande desconfiança que o historiador lhe reservavavii (TAFURI, 1987, p:279; 300).

Enquanto para Tafuri o diagnóstico com relação à crise do Movimento Moderno era pessimista,

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

11

negativista, e se resignava se manter obstinadamente no seu “projeto de crise”, os autores de Exodus propõem não só esvaziar o conteúdo dessa herança, como incorporar de aspectos emergentes da cidade contemporânea, exaltando-os indiscriminadamente, aproximando-se por esta via da postura da “pura ideologia”viii.

Suas atitudes iconoclasta e irreverente apenas reforçam a leitura de se constituem como mais das expressões de arquitetura “no boudoir”, ou seja, de pensar a arquitetura como a realização de pequenos prazeres, em busca de sedativos, o que se apresenta ao longo da narrativa de Exodus como um todo: a exploração dos sentidos mal desenvolvidos dos prisioneiros voluntários recém-chegados, via exposição ao luxo e ao bem-estar (Área de Recepção); a exposição a shows pirotécnicos, miragens e gazes que produzem experiências aromáticas e alucinógenas (A Praça dos Quatro Elementos); liberação sexual, voyeurismo e exibicionismo (As Termas); ou mesmo a prática esportiva da agressão (O Parque da Agressão).

Ao longo das várias ocasiões em que o projeto foi apresentado, sua descrição e mesmo o conjunto de imagens passou por modificações. A cada nova versão, uma das praças internas pode ter seu nome e/ou uso modificado, ser substituída por outra, ou mesmo pode-se agregar outro projeto, a princípio completamente estranho, como sendo parte deleix. Esta condição de indefinição permite fazer a mesma referência à leitura de Michel Foucault sobre os “deslizamentos discursivos”, à qual Tafuri se referiu quando analisou a “cidade análoga” de Aldo Rossi. No entanto, no lugar da melancolia de Rossi e do seu processo crítico, ou seja, de seleção cuidadosa das referências, o que se encontra em Exodus e em outras obras de Koolhaas é uma celebração hedonista e sem compromisso dos aspectos emergentes da cidade contemporânea.

4 “STOP CITY” (2007): ARQUITETURA COMO “FORMA POLÍTICA”

Stop City (2007) é fruto de um projeto de pesquisa realizado pelo grupo DOGMA, encabeçado por Pier Vittorio Aureli e Martino Tattara, arquitetos italianos formados pelo IUAV, em Veneza. A sede do escritório, no entanto, fica em Roterdã, onde os arquitetos e professores lecionam, vinculados ao Berlage Institute. A proposta foi apresentada originalmente na exposição “Holland-Italy: 10 Works of Architecture”, realizada no MAXXI, de Roma, entre maio e julho de 2007, junto a outras nove propostas que misturavam escritórios italianos e holandesesx.

O texto de apresentação do projeto oscila entre uma leitura de cunho mais teórico, influenciada por leituras no campo da teoria política, e uma descrição formal da proposta. Stop City se apresenta como forma de oposição à urbanização contemporânea, caracterizada pela expansão ilimitada e por se tratar de um dispositivo gerencial que sobrepõe à escala pública, constrangendo, por consequência, a privada.

Defende-se a uma linguagem arquitetônica “não-figurativa”, sem qualidades. Cada agrupamento de unidades da Stop City é entendido como um arquipélago de ilhas de alta densidade, compreendendo uma população de 500.000 habitantes, com oito lâminas medindo 500x500x25m cada, cercando uma área vazia, com um formato rigidamente quadrado, com 3Km de lado. Semelhante ao que se deu com Exodus, há uma grande profusão de referências formais ao Movimento Moderno: as torres são descritas como as immeuble cités do Movimento Moderno, a postura por uma arquitetura não-figurativa é retirada da obra de Ludwig Hilberseimer e, como o próprio nome indica, a proposta se configura como uma

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

12

resposta à No-Stop City (1969) do grupo Archizoom.

Passados quase 40 anos desde No-stop City, nossa proposta para uma Stop City mantém a linguagem não-figurativa desenvolvida por Hilberseimer e pelo Archizoom, mas inverte completamente a sua tese urbana de cabeça para baixo. Se Hilberseimer e o Archizoom conceberam a cidade como genérica e estendida sem limites, a Stop City, configurando-se como uma fronteira que separa a urbanização do espaço vazio, propõe-se, pelo contrário, como um limite absoluto e, portanto, como a própria forma da cidade. [...]

Em 1970, No-Stop City profetizou uma urbanização total da cidade. Em 2007, a Stop City quer ser o começo de uma retomada lenta, porém inexorável, da cidade contra a urbanização. (DOGMA, AURELI e TATTARA, 2007)

Não somente nesta como também em outra cidade ideal proposta pelo DOGMA, com o título de A Simple Heart (2002-09), fica expressa a dificuldade em se transpor o referencial formal das gerações anteriores ao trabalhar com o tema das utopias urbanas. O grupo não esboça criar novas formas de expressão para suas propostas sem estarem diretamente vinculados à herança das neovanguardas. As técnicas, por sinal, são basicamente as mesmas – desenhos e colagens – o que pode também ser entendido como uma oposição crítica à banalização do design apoiado em softwares de computador.

Figura 8: Vista aérea de uma unidade de Stop City Fonte: DOGMA.

Figura 9: Implantação de uma unidade de Stop City Fonte: DOGMA.

E por mais que os integrantes do DOGMA defendam uma postura que se afaste da celebração midiática dos star-architects, suas ferramentas ainda são basicamente as mesmas, o que vai se mostrando como uma condição para que se consiga levar adiante propostas como essa. Seus autores estão vinculados a grandes centros de pesquisa e universidades influentesxi, com alcance internacional, e ao universo das exposições e dos museus. Pesa-lhe muito menos, no entanto, por não estarem falsamente se propondo com um design underground, ou contrário à produção da arquitetura dentro do sistema capitalista, nem como uma solução ingenuamente transformadora.

A grande contribuição das propostas está em prestar ao trabalho de definir uma forma arquitetônica para a cidade contemporânea, servindo como um contraponto necessário a todo

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

13

otimismo exagerado sobre a produção arquitetônica via formas icônicas, design paramétrico, ou principalmente, como fazem questão de ressaltar em mais de uma situação, contra a valorização excessiva da redução da atuação frente à cidade contemporânea via mapeamento (AURELI, 2011a). A crítica a esse conjunto de expressões, aos quais eles pretendem se contrapor, se assemelha ao desinteresse de Tafuri com relação às tecnoutopias, que não vão muito além de trabalhar imerso nas explorações do informe e lhe dar uma forma equivalente, sem a pausa para reflexão crítica.

A valorização dada ao componente formal na obra do grupo DOGMA, e sobretudo nos escritos teóricos de Pier Vittorio Aureli, reflete a necessidade de superar certa limitação sentida por essas figuras que se debruçam sobre a obra não só de Tafuri, mas também de outros pensadores ligado ao pensamento negativo. Esse interesse em sua obra ganhou força após ter participado de um grupo de pesquisa coordenado por Joan Ockman, no período em a pesquisadora esteve à frente do Temple Buell Center, vinculado à Columbia University. Naquela situação, ela coordenou as atividades do grupo de pesquisa FORuM, realizado em parceria com o Berlage Institute. Um dos principais eixos de discussão dentro do grupo foi o reconhecimento da necessidade de se aliar o pensamento crítico ao processo de elaboração formal. Num entrevista concedida recentemente por Ockman, transcreveu-se seu posicionamento em parceria com Pier Vittorio Aureli, que esclarece as intenções gerais desse eixo de discussão:

Num tempo em que a produção e o consumo são praticamente coextensivos com a própria vida, em que o poder se tornou biopoder, o lugar crucial para uma produção formal [form-making] estratégica não é estético, nem tecnológico, nem mesmo ambiental. É, antes, o espaço político ou metapolítico em que se negocia uma posição dentro da, e ao mesmo tempo contra, as forças econômicas e políticas que tendem a determinar a existência hoje em dia. Dada a natureza extremamente complexa dessas forças, qualquer posicionamento deve ser constantemente testado e contestado. [...]. A produção formal [form-making], neste sentido, não é um processo, mas um processo dirigido; não é um produto estilístico ou um subproduto técnico, mas sim uma atividade de organização, em todos os sentidos do termo. (AURELI e OCKMAN apud GRABAR, 2010, p:257)

Segundo Aureli, a autonomia em arquitetura, via procedimento formal, não significa pureza, isolamento disciplinar, muito menos adotar posturas acríticas. A autonomia buscada por ele se consegue através de uma “confrontação sistemática e radical com relação à cidade na qual [a arquitetura absoluta] opera” (AURELI, 2011a, p:IX). Sua concepção é influenciada pelo pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben, sobretudo pela sua noção de absoluto como algo que se constituiu definitivamente como “ele mesmo” após se separar do “outro”. Este “outro” das obras do grupo DOGMA é a cidade contemporânea ou, mais especificamente, o resultado da urbanização, “o espaço da cidade, com sua organização extensiva e seu governo” (AURELI, 2011a, p:IX). E refletir sobre uma forma política da arquitetura que seja “absoluta” implica em tentar definir uma “arquitetura da cidade” – ao cabo, propõe-se o reestabelecimento da cidade como uma entidade com forma política definida (AURELI, 2011b).

Para Aureli, o ato crítico da arquitetura está no momento em que se propõe como o projeto daquilo que é finito, portanto separado do resultado de uma urbanização extensiva, com limites indefinidos. O arquiteto reconhece que isso acontece via explicitação do processo da urbanização que se dá com a inserção da sua proposta de uma “arquitetura absoluta” inserida neste mesmo processo. O ato de separar-se não significa ignorar completamente o outro, mas sim no ato de se encontrar na condição de autônomo após a separação do outro, que em certa dimensão é também sua parte constituinte.

Apesar de suas qualidades como uma forma de posicionamento frente à cidade

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

14

contemporânea, não acrescenta muito no que diz respeito à expressão formal. A busca por uma “arquitetura sem qualidades”, como eles mesmos afirmam, fazendo referência a Ludwig Hilberseimer, não favorece a busca formal com muita variação. Curiosamente, apesar dessa falta de exploração de uma nova expressão – talvez por conta disso mesmo – se consegue o resultado que dá força ao sentido político pretendido pela proposta: a Stop City apagada na paisagem. Apresentada assim sobre o território, com tamanha dureza, afirma o seu caráter autônomo, como uma unidade que se afirma enquanto tal por estar separada com relação a um “outro”.

Neste sentido, seus “objetos apagados” conseguem um efeito de maior efeito do que objetos espelhados do Superstudio. No caso do grupo florentino, os prismas se constituíam como objetos que refletem tudo ao seu redor, misturando-se de tal forma à paisagem que, mesmo tendo dimensões colossais, desapareciam, tanto formalmente como também em termos programáticos, já que se tratava de objetos sem uso, nem espaço interno. Stop City pode até se assemelhar ao Monumento Contínuo, mas ganha uma conotação completamente diferente quando se entende que suas lâminas não assumem uma forma completamente fechada, estando sujeita a alterações futuras, em função das suas dinâmicas. É quase uma anulação da arquitetura para que seja traduzida diretamente pelos usos que lhes são dados.

Figura 10: Vista de uma unidade da Stop City Fonte: DOGMA.

Figura 11: Vista interna de uma Stop City Fonte: DOGMA.

5 CONCLUSÕES E NOTAS PARA PRÓXIMAS LEITURAS

Entre as figuras que vem reconhecidamente estudando o legado de Manfredo Tafuri, destaca-se a figura do crítico e teórico americano Michael Hays. Em especial, interessa a este artigo seu trabalho recente que se debruça sobre as neovanguardas, ou práticas avançadas (HAYS, 2001), ou ainda, como ele define em seu livro mais recente, sobre as “vanguardas tardias” (HAYS, 2010). Sua leitura é influenciada pela teoria de Fredric Jameson sobre o “moderno tardio” [late

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

15

modern], que pressupõe uma leitura reflexiva sobre o próprio Moderno, ao invés de considerar a experiência dos anos 1970, por exemplo, como uma mera reprodução das experiências anteriores, ou mesmo reduzi-las à prática de um pós-modernismo comercializado e inserido diretamente na esfera do consumo de massas. Propõe-se claramente, por parte de Hays, uma superação da negatividade da crítica às vanguardas de Tafuri, levando a uma reconsideração daquilo que foi inicialmente considerado como arquitetura “no boudoir”, a fim de buscar nas obras da neovanguarda dos anos 1970 aqueles casos em que se atuou de forma crítica (HAYS, 2010).

Com o termo “vanguarda tardia”, Michael Hays está trabalhando num campo bastante específico, onde investiga momentos particulares na trajetória de quatro arquitetos contemporâneos, no que ele chama de “década de 1970 expandida”xii. A partir de sua leitura sobre essa produção específica, Hays propõe superar, de certa forma, a condição de impasse colocada não só por Manfredo Tafuri, mas também por Colin Rowe: do primeiro, como vimos, pretende superar a condição de impasse colocada pelo “projeto de crise”; e de Rowe, ampliar a possibilidade de atuação para além do universo material e estritamente formalxiii. Pretende-se, por fim, validar algumas experiências recentes de propostas radicais que, segundo Hays, internalizam a crítica negativa e reorientam o universo da produção como uma crítica à própria arquitetura.

[...] A incorporação da perda e da ausência por parte da vanguarda tardia não significa que o objeto arquitetônico esteja esvaziado, ausente, sem contato com o real – como Tafuri e Rowe consideram –, mas antes, que o objeto exprime seu conteúdo patológico de forma direta; ele é a própria forma com que certa ausência assume sua existência, a forma necessária para se imaginar uma ausência radical no próprio real. (HAYS, 2010, p:11)

Hays atribui a sua interpretação a uma influência dos escritos de Jacques Lacan e de figuras influenciadas por ele sobre o “real” e sobre o “desejo” (a exemplo do próprio Jameson e do filósofo Slavoj Žižek). Segundo Hays, a arquitetura e a cidade que esses projetos apresentam, portanto, podem ser lidos como meios através dos quais seus autores “negociam” com o Real, de modo que não tratam simplesmente de reproduzi-lo, mas sim apresentá-lo após num processo de revelação e ocultamento, expressão e repressão – tudo isso operado pelo “desejo”, o impulso que faz essas expressões de vanguarda se apresentem com relação ao que lhes é externo, sobretudo num momento em que o campo disciplinar se encontra ameaçado pela sua própria dissolução.

Essa abertura a se considerar com maior positividade a produção das neovanguardas, no entanto (e felizmente), não exclui o rigor no método e na capacidade de avaliação crítica. Às proposições de Rem Koolhaas e seus discípulos, por exemplo, não são rendidas muitas referências nem são feitas concessões – Hays alerta para o fato de sua obra recente caminhou para uma situação em que se incorpora a banalidade de tal forma que a arquitetura passa a ser um “mero design”, reduz-se a mera operatividade, o que certamente impede que se apresente com maior força tal impulso do desejo que promove a atitude vanguardista.

Mesmo que não seja tão fácil identificar isso na obra de Rem Koolhaas, pela sua obra não ser de fácil categorização e parecer em alguns momentos estar à frente da própria crítica, o mesmo não se pode dizer de uma obra como a Metacity/Datatown (1998), de Winy Maas/MVRDV, em que a arquitetura se mostra tão flexível e sujeita a reestruturações completas quanto o mercado de valores, valendo o mesmo para o conjunto da produção holandesa ao longo dos anos 1990, agrupados genericamente como os SuperDutch, e a

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

16

tendência à uma arquitetura dita projetiva, ou pragmática, como definida por figuras como Michael Speaks (2002).

É razoável entender que, no projeto Exodus, parte dessa atitude mais reflexiva e crítica está presente, se não permeando toda a proposta, pelo menos no momento em que se propõe a trabalhar com a escala gigantesca da cidade, mas subvertendo seus princípios, revelando os aspectos menos desejáveis que mesmo as propostas mais bem intencionadas podem trazer. Nesse sentido, Exodus atinge com sua provocação não apenas os antigos mestres, num processo edipiano de superação das neovanguardas pelos seus novos representantes, como põem em questão também os próprios contemporâneos – a exemplo do grupo Superstudio e seu Monumento Contínuo.

No entanto, o trabalho a partir das sobreposições e inversões programáticas, junto ao excesso de referências e o hedonismo, levam a encarar o projeto Exodus como um exemplo de “pura ideologia” que não constrói a possibilidade de criticar a arquitetura de tal modo a superar a condição atual. A proposta pressupõe uma situação de eterna suspensão, que não mais negocia com o real, mas parece mesmo se sobrepor a ele, donde se pode imaginar que seus moradores levavam uma vida de fato aprisionada, num eterno jogo de simulações e estados de ânimo alterados e artificiais.

As proposições deste breve artigo, ainda que de forma bastante preliminar, se apresentam como um começo de amadurecimento de questões teóricas que permitirão lançar novos olhares sobre as expressões de vanguarda dos anos 1970 até os dias atuais. Apesar da produção recente no Brasil não dar muitos exemplos desse tipo de investigação mais radical, a valorização das expressões dos anos 1960-70 se configuram como um farto material de referência com grande potencial de informar à produção contemporânea. Restará conferir com que grau de distorção ela nos será – ou já está sendo – apresentada.

Não é de estranhar, por exemplo, encontrar ecos das propostas utópicas dos anos 1960 na obra apresentada este ano pelo escritório Metro Arquitetos a uma edição da Revista S/Nº (2012), proposta que remete quase de imediato à proposta de Sérgio Bernardes para o Rio do Futuro / Bairros verticais (1963-65). A obra de Bernardes vem sendo retomada já algum tempo, através de pesquisas acadêmicas e artigos (CAVALCANTI, 2009), e mais recentemente foi incluída em pelo menos duas exposições que a apresenta junto a outras experiências de caráter utópico dos anos 1960-70xiv.

Figura 11: Proposta do grupo Metro Arquitetos para a Revista S/Nº Fonte: Metro Arquitetos.

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

17

Figura 12: Rio do Futuro / Bairros verticais (1963-65), de Sérgio Bernardes. Fonte: Cavalcanti, 2009.

Na proposta, os autores propõem um conjunto de torres que se dispõem sobre o território de forma bastante rígida, em posição à grande flexibilidade de usos e formas a que se pretende (embora, pelo menos nas imagens disponibilizadas, o resultado formal também seja bastante rígido e uniforme). Numa primeira impressão, destaca-se a necessidade sentida pelos seus autores de imputar um sentido de ordem para o que eles entendem à grande escala da cidade – não só em termos físicos, mas também pela sua “capacidade de gerar diversidade, complexidade e sentido”. Neste sentido, assemelha-se à busca de uma definição de “forma política” para a arquitetura na cidade contemporânea, que encontra interlocutores na produção do grupo DOGMA, por exemplo. Uma expressão da necessidade de se tomar o objeto arquitetônico como uma referência, em oposição à indefinição do informe da cidade.

Em termos ainda no plano das ideias, é interessante perceber como ambos se interessam em recuperar a noção de totalidade, como uma forma de não assimilar pura e simplesmente a indefinição de limites da cidade contemporânea, e buscar definir uma forma para a arquitetura e (como consequência) para a cidade, sem que necessariamente ela seja o reflexo de uma ação totalitária ou repressora. Momento em que se mostra mais uma vez oportuno recuperar a crítica de Tafuri e questionar se não estariam essas formas, a despeito se suas influências filosóficas e políticas mais radicais, sendo o continente privilegiado para habitar as novas prefigurações ideológicas.

5 AGRADECIMENTOS

Este artigo é fruto de uma discussão que serve como pano de fundo para o projeto de dissertação do autor, que está orientado pela professora Ana Fernandes. É o também o resultado dos debates conduzidos ao longo da disciplina “Teorias Urbanísticas”, ministrada pelos professores Heliodório Sampaio e Maurício Chagas, no PPG-AU/FAUFBA. Faz-se agradecimento também ao grupo Cronologia do Pensamento Urbanístico, vinculado ao mesmo Programa, sobretudo na figura da professora Thais Portela. A todos e todas, agradeço pelas valiosas contribuições, não lhes cabendo responsabilidade, evidentemente, sobre quaisquer problemas deste artigo.

6 REFERÊNCIAS

AURELI, P. V. The project of autonomy: politics and architecture within and against capitalism. Nova Iorque: Princeton Architectural Press; Buell Center; FORuM Project, 2008.

AURELI, P. V. The possibility of an absolute architecture. Cambridge: MIT Press, 2011a.

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

18

AURELI, P. V. City as political form: four archetypes of urban transformation. Architectural Design, Londres, v. 81, n. 1, p. 32-37, jan. 2011b.

AURELI, P. V.; TATTARA, M. Architecture as framework: the project of the city and the crisis of Neoliberalism. New Geographies, Cambridge, n. 1, p. 36-51, 2009.

AURELI, P. V.; TATTARA, M. A Simple Heart: architecture on the ruins of the post-Fordist city. Architectural Design, Londres, v. 81, n. 1, p. 110-119, jan. 2011 (2011a).

AURELI, P. V.; TATTARA, M. Stop City. Urbânia, São Paulo, n. 4, 2 set. 2011 (2011b). Disponível em <http://urbania4.org/2011/09/02/stop-city/>. Acesso em 25 mar. 2012.

CAVALCANTI, L. A importância de Sér(gio) Bernardes. Arquitextos, São Paulo, n. 10.111, ago. 2009. Disponível em <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.111/31>. Acesso em 17 mar. 2012.

DOGMA; AURELI, P. V.; TATTARA, M. Stop City. In: Holland-Italy – 10 works of architecture. Endereço eletrônico documentando a exposição. 2007. Disponível em <http://www.parc.beniculturali.it/ MAXXI/H_I/english/ progetti.htm>. Acesso em 25 mar. 2012.

GARGIANI, R. Rem Koolhaas/OMA: the construction of merveilles. Abingdon; Lausanne: Routledge; EPFL Press, 2008.

GHIRARDO, D. Manfredo Tafuri and Architecture Theory in the U.S., 1970-2000. Perspecta, New Haven, n. 33, p. 38-47, 2002.

GONZÁLEZ, C. G. Lugarizando Exodus: el arma de um asesinato premeditado. Madri: Circo, n. 171, 2011.

GORÉLIK, A. Arquitetura e capitalismo: os usos de Nova York. In: KOOLHAAS, R. Nova York delirante: um manifesto retroativo para Manhattan. São Paulo: Cosac Naify, 2008. p. 6-23.

GRABAR, N. FORuM and formalisms: architectural strategies. Interview with Joan Ockman. May 2008, Buell. SAB – Serbian Architectural Journal, Belgrado, n. 2010.2, p. 255-268, 2010. Disponível em <http://saj.rs/uploads/2010/3%20broj/ngrabar.pdf>. Acesso em 7 fev. 2012.

HAYS, K. M. (Ed.). Architecture theory since 1968. Cambridge; Londres: MIT Press, 1998a.

HAYS, K. M. The oppositions of autonomy and history [Introdução]. In: HAYS, K. M. (Ed.). Oppositions reader: selected readings from a journal for ideas and criticism in architecture 1973-1984. Nova Iorque: Princeton Architectural Press, 1998b.

HAYS, K. M. Prolegomenon for a Study linking the advanced architecture of the present to that of the 1970s through ideologies of media, the experience of cities in transition, and the ongoing effects of reification. Perspecta, n. 32, p. 100-107, 2001.

HAYS, K. M. Architecture’s desire: reading the latest avant-garde. Cambridge; Londres: MIT Press, 2010.

HOEKSTRA, T. Building versus Bildung: Manfredo Tafuri and the construction of a historical discipline. Tese (Doutorado) – Faculteit der Letteren, Rijksuniversiteit Groningen, 2005.

KOOLHAAS, R. Field trip: A(A) memoir (first and last). In: O.M.A. (Office for Metropolitan Architecture); KOOLHAAS, R; MAU, B. S, M, L, XL. 2. ed. Köln: Taschen, 1997. p. 214-232.

KOOLHAAS, R.; ZENGHELIS, E. Exodus, o i prigionieri volontari dell’architettura / or the voluntary prisoners of architecture. Casabella, Milão, n. 378, p. 42-45, jun. 1973.

KOOLHAAS, R.; ZENGHELIS, E. Exodus, or the voluntary prisoners of architecture. In: O.M.A; KOOLHAAS, R; MAU, B. S, M, L, XL. 2. ed. Köln: Taschen, 1997.

KOOLHAAS, R.; ZENGHELIS, E. Metropolis: Exodus, or the voluntary prisoners of architecture. In: VAN SCHAIK, M.; MÁCEL, O. (Ed.). Exit Utopia: architectural provocations 1956-76. Munique-Berlim; Londres-Nova Iorque: Prestel, 2005. p. 236-253.

LEACH, A. Choosing history: a study of Manfredo Tafuri’s theorisation of architectural history and architectural history research. Tese (Doutorado em Arquitetura) – Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Gent, 2006.

PORPHYRIOS, D. Pandora's Box: an essay on metropolitan portraits. Perspecta, Cambridge, v. 32, p. 18-27, 2001.

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

19

RETTO JÚNIOR, A. Marco Biraghi. Entrevista, Portal Vitruvius, n. 07.028, out. 2006. Disponível em <http://www. vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/07.028/3300>. Acesso em 7 fev. 2012.

ROSSI, A. La città analoga: tavola / The analogous city: panel. Lotus, Milão, n. 13, p. 5-9, 1976.

ROWE, C. Introduction to Five Architects. In: HAYS, M. (Ed.). Architecture theory since 1968. Cambridge; Londres: MIT Press, 1998.

SCOTT, F. Involuntary prisoners of architecture. October, Cambridge, n. 106, p. 75-101, set./dez. 2003.

SCOTT BROWN, D. Learning from Pop. In: VENTURI, R.; SCOTT BROWN, D. A view from the Campidoglio: selected essays 1953-1984. Nova Iorque: Harper & Row, 1984, p. 26-33.

TAFURI, M. Ceci n’est pas une ville. Lotus, Milão, n. 13, p. 10-13, 1976a.

TAFURI, M. “European Graffiti.” Five x Five = Twenty-five. Oppositions, Nova Iorque, n. 5, p. 35-73, jun./set. 1976 (1976b).

TAFURI, M. Projecto e utopia. Lisboa: Presença, 1985.

TAFURI, M. The sphere and the labyrinth: avant-gardes and architecture from Piranesi to the 1970s. Cambridge; Londres: MIT Press, 1987.

TAFURI, M. L’architecture dans le boudoir: the language of criticism and the criticism of language. Oppositions, Nova Iorque, n. 3, p. 37-62, 1974.

VENTURI, R.; SCOTT BROWN, D.; IZENOUR, S. Learning from Las Vegas: the forgotten symbolism of architectural form. 2. ed. Cambridge, Londres: MIT Press, 1977.

VIDLER, A. Histories of the immediate present: inventing architectural modernism. Cambridge; Londres: MIT Press, 2008.

NOTAS

i Para uma leitura mais apropriada das principais influências de Manfredo Tafuri, bem como sobre a relação entre ele

e outros intelectuais do contexto italiano, ver como o tema foi abordado por Hays (1998a, p:2-5), Vidler (2008, p:159-165) e Hoexstra (2005, p:166-183). E para uma leitura mais aprofundada sobre sua influência no debate teórico e crítico americano, de grande relevância para alguns dos autores que apoiam a elaboração deste artigo, ver como esta relação foi descrita por Ghirardo (2002) e Hays (1998b).

ii Este capítulo de “A esfera e o labirinto” foi apresentado pela primeira vez como “A theory of criticism”, uma

palestra no seminário “Practice, Theory and Politics in Architecture”, organizado em 1974 por Diana Agrest, na Universidade de Princeton. Na referida apresentação, Tafuri cuidava em dar prosseguimento à sua pesquisa anterior de crítica às vanguardas históricas, realizada em “Projeto e utopia”, levando em conta nesta ocasião a produção das neovanguardas, sobretudo aquelas expressões ligadas aos debates americano e italiano (HAYS, 1998a, p:146). A apresentação foi publicada naquele mesmo ano como o artigo “L’architecture dans le boudoir: the language of criticism and the criticism of language”, numa das edições da revista Oppositions (TAFURI, 1974), e continuou sendo desenvolvido até chegar ao formato final do capítulo que nos serve de referência para esta análise. Outros dois artigos, publicados por Tafuri em 1976, contribuíram para a sua análise e não deixam de ser relevantes para esta leitura: em “Ceci n’est pas une ville” (TAFURI, 1976a), faz uma análise da “Cidade análoga” de Aldo Rossi a partir do famoso ensaio de Foucault sobre a obra de René Magritte; e em “European Grafitti” (TAFURI, 1976b), uma crítica mais direta às neovanguardas nos Estados Unidos, sobretudo com relação à produção do grupo conhecido como New York Five.

iii Veja-se, por exemplo, a caracterização da obra de Mies van der Rohe pelo seu “silêncio” e pela capacidade de

“existir através da própria morte”; ou pela atribuição ao “indeterminado” da cidade contemporânea a possibilidade de comunicação (TAFURI, 1985, p:98; 113).

II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas Complexidade, Mobilidade, Memória e Sustentabilidade

Natal, 18 a 21 de setembro de 2012

20

iv

Na introdução de “A esfera e o labirinto”, Tafuri explica em linhas gerais o seu “projeto histórico”, ou “projeto de crise” (TAFURI, 1987). O reconhecimento, através da leitura histórica, do enfraquecimento da crença do conhecimento como uma forma de poder, leva-o a uma visão trágica sobre a arquitetura. Sobre este tema, ver comentários de Marco Biraghi, em entrevista a Adalberto da Silva Retto Júnior (RETTO JÚNIOR, 2006), e o desenvolvimento como um todo da tese de doutorado de Andrew Leach (2006).

v Sobretudo como o tema foi explorado por Denise Scott Brown num artigo publicado originalmente em 1971

(SCOTT BROWN, 1984) e apresentado por Robert Venturi, Scott Brown e Steven Izenour no ano seguinte, em “Aprendendo com Las Vegas” (VENTURI, SCOTT BROWN e IZENOUR, 1977).

vi González (2011) acredita que esta seja outra ironia com relação ao corpo docente da AA. Neste caso, direciona-se

especificamente à figura de Peter Cook (com que Koolhaas não mantinha uma boa relação), conhecido pelo hábito de dividir seus estudantes em “Bons” e “Maus” alunos.

vii A relação entre a obra de Rem Koolhas e a de Tafuri é um tema ainda pouco explorado. Adrian Gorélik, na

introdução à edição brasileira de “Nova York Delirante” (GORÉLIK, 2008), levanta novamente a questão, que já tinha sido colocada em 2005 por Marco Biraghi no seu livro “Progetto di crisi”. Andrew Leach (2006) e Roberto Gargiani (2008) concordam que a leitura proposta por Biraghi não se atém com propriedade sob a noção de contemporaneidade de Tafuri ao usá-la para interpretar a obra de Rem Koolhaas. Reconhecendo essa complicada relação, destaca-se o objetivo estrito desse artigo em proceder a uma leitura da crítica às vanguardas a partir das obras em questão.

viii Essa mesma relação foi apontada – em alguns aspectos com muito mais propriedade – por Demetri Porphyrios

(2001). Embora o crítico esteja se referindo à “pura ideologia” sem fazer referência direta a Tafuri, a sua descrição equivale à que se propõe neste artigo. Porphyrios também observa de forma precisa como não há nada de novo na permissividade ideológica em se sobreporem no projeto Exodus, com seu conjunto de “praças de reificação burguesas” (referindo-se às divisões internas da Faixa) que remontam a referências as mais diversas do inventário urbano contemporâneo, indo de Ledoux ao Superstudio.

ix A exemplo da versão publicada na edição n. 47 da revista Architectural Design, em 1977; a versão do livro-catálogo

“S, M, L, XL”, de 1995 (KOOLHAAS e ZENGHELIS, 1997); e a versão publicada em 2005 (KOOLHAAS e ZENGHELIS, 1997), em que o texto-ficção foi reescrito e acrescentou-se ao projeto Exodus a proposta A Cidade do Globo Cativo, também de 1972.

x Semelhante ao que se deu com Exodus, e em parte impulsionado pela facilidade de divulgação via mídias pela

Internet, já foi republicado em pelo menos outras três situações: num artigo publicado pelos autores na revista New Geographies, de Harvard, destacam a questão de forma pode adquirir uma nova relevância crítica frente à mudança de paradigmas representada pela crise do Neoliberalismo (AURELI e TATTARA, 2009). Além desta ocasião, foi incluído também na revista virtual Urbânia (AURELI e TATTARA, 2011b).

xi Martino Tattara, por exemplo, é responsável por programas de ensino em unidades do tipo Visiting School do

Berlage Institute. xii

Em sua análise sobre a “vanguarda tardia” estão incluídos: o conceito textual de tipologia de Aldo Rossi, a proposta de Peter Eisenman para o Cannaregio (1978), o conjunto da obra de John Hejudk e de Bernard Tschumi – neste último, com maior destaque para o caso do Parc de la Villette (1984-87).

xiii Essa posição de Colin Rowe pode ser lida com mais clareza em sua obra conjunta com Fred Koetter, “Collage City”

(1978), mas já estava lançada no momento em que escreveu a apresentação do livro que acompanhou a exposição “Five Architects” no MoMA. Ao fazer uma reflexão sobre as neovanguardas dos anos 1970 e sua relação com o Movimento Moderno, Rowe divide a arquitetura moderna em duas categorias, representadas pelos binômios physique-matéria e morale-palavra. Para a condição contemporânea, Rowe valoriza principalmente o primeiro termo em detrimento do segundo, que ficava à espera de um momento mais oportuno para sua realização, uma vez que estava mais ligado às expectativas frustradas do Movimento Moderno (ROWE, 1972).

xiv Estamos nos referindo às exposições “Desvíos de la deriva. Experiencias, travesías y morfologias” (2010), realizada

no Museu Reina Sofía, com curadoria de Lisette Lagnado, em que foi apresentada junto a obras de Flavio de Carvalho, Juan Borchers, Lina Bo Bardi e Roberto Matta ; e “Razão e Ambiente” (2011), realizada no MAM-SP, com curadoria de Lauro Cavalcanti, em que foi apresentada junto a obras de Lina Bo Bardi e Lucio Costa, como um conjunto de referências a partir da qual se pode ler a produção contemporânea.