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55 Matemática Universitária nº45 Artigo Álgebra linear e o problema das quatro retas do cálculo de Schubert Jacqueline Rojas (UFPB) Ramón Mendoza (UFPE) D ado um sistema de equações algébricas que pos- sui um número finito de soluções, podemos di- zer que contar o número destas soluções é o objetivo da geometria enumerativa. De fato, um problema típico em geometria enumerativa é determinar o número de objetos geométricos de um determinado tipo que satis- fazem a um dado conjunto de condições. Por exemplo, dados dois pontos distintos no plano projetivo, quantas retas passam por esses dois pontos? Em 1870, Hermann Cäsar Hannibal Schubert obteve seu grau de Doutor na Universidade de Halle com uma tese em geometria enumerativa intitulada “Zur Theo- rie der Charakteristiken”. Apesar disto, nunca lecionou numa universidade, dedicando sua vida ao magisté- rio no Andreanum Gymnasium em Hildesheim (1872– 1876) e no Johanneum (uma famosa escola humanista), em Hamburgo (1877–1908). Schubert introduziu o que hoje chamamos, em sua homenagem, cálculo de Schu- bert 1 . A estratégia deste cálculo consistia em transfor- mar um dado sistema de equações algébricas em um novo sistema, cujas soluções seriam mais fáceis de se determinar. Segundo Schubert, deveria ser possível efe- tuar esta transformação fazendo uma mudança contí- nua das constantes envolvidas de modo que a quan- tidade de soluções fosse preservada, processo que ele chamava de princípio de conservação do número. O método de Schubert não possuía uma fundamen- tação teórica rigorosa, mas funcionava muito bem. Jus- tificar seus resultados foi o tema do 15 o Problema da fa- 1 Ver, por exemplo, [5]. mosa lista proposta por Hilbert, em 1900, no Congresso Internacional de Matemáticos, realizado em Paris. No século XX, a geometria enumerativa foi reconceituali- zada e definida de maneira mais rigorosa em termos de teoria de intersecção sobre espaço de parâmetros. Um clássico neste assunto é o livro de Fulton ([2]) 2 . O objetivo deste trabalho é apresentar e resolver, no contexto da álgebra linear, um dos problemas enumera- tivos clássicos do cálculo de Schubert, que chamaremos de problema das quatro retas: Dadas quatro retas disjuntas duas a duas no es- paço projetivo complexo tridimensional (denotado por P 3 ), determinar o número de retas que as in- tersectam simultaneamente. A figura 1 ilustra uma solução genérica deste pro- blema, num desenho em R 3 . As quatro retas dadas são 1 , 2 , 3 , 4 , e as retas encontradas como solução são m 1 e m 2 . O hiperboloide serve como ilustração de um passo importante da solução, que é o estudo da relação entre as retas e as superfícies quádricas em P 3 . Evidentemente, a compreensão do problema envolve o conhecimento do que vem a ser uma reta em P 3 e do próprio P 3 . Tudo isso será explicado ao longo deste ar- tigo. Para tanto, é recomendável ter, principalmente, conhecimentos básicos de álgebra linear e, ainda, um pouco de álgebra em nível introdutório (ver, por exem- plo, [6] e [4], respectivamente). Uma ótima referência para iniciar uma exploração pela geometria algébrica é o livro “Introdução às curvas algébricas planas”, de Vainsencher ([9]). 2 Recomendamos ver [10] para uma apresentac ¸˜ ao mais acess´ ıvel de [2]. 1

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55Matemática Universitária nº45

Artigo

Álgebra linear e o problema das quatro retas do cálculo de SchubertJacqueline Rojas (UFPB)

Ramón Mendoza (UFPE)

Dado um sistema de equações algébricas que pos-

sui um número finito de soluções, podemos di-

zer que contar o número destas soluções é o objetivo

da geometria enumerativa. De fato, um problema típico

em geometria enumerativa é determinar o número de

objetos geométricos de um determinado tipo que satis-

fazem a um dado conjunto de condições. Por exemplo,

dados dois pontos distintos no plano projetivo, quantas

retas passam por esses dois pontos?

Em 1870, Hermann Cäsar Hannibal Schubert obteve

seu grau de Doutor na Universidade de Halle com uma

tese em geometria enumerativa intitulada “Zur Theo-

rie der Charakteristiken”. Apesar disto, nunca lecionou

numa universidade, dedicando sua vida ao magisté-

rio no Andreanum Gymnasium em Hildesheim (1872–

1876) e no Johanneum (uma famosa escola humanista),

em Hamburgo (1877–1908). Schubert introduziu o que

hoje chamamos, em sua homenagem, cálculo de Schu-

bert1. A estratégia deste cálculo consistia em transfor-

mar um dado sistema de equações algébricas em um

novo sistema, cujas soluções seriam mais fáceis de se

determinar. Segundo Schubert, deveria ser possível efe-

tuar esta transformação fazendo uma mudança contí-

nua das constantes envolvidas de modo que a quan-

tidade de soluções fosse preservada, processo que ele

chamava de princípio de conservação do número.

O método de Schubert não possuía uma fundamen-

tação teórica rigorosa, mas funcionava muito bem. Jus-

tificar seus resultados foi o tema do 15o Problema da fa-

1 Ver, por exemplo, [5].

mosa lista proposta por Hilbert, em 1900, no Congresso

Internacional de Matemáticos, realizado em Paris. No

século XX, a geometria enumerativa foi reconceituali-

zada e definida de maneira mais rigorosa em termos de

teoria de intersecção sobre espaço de parâmetros. Um

clássico neste assunto é o livro de Fulton ([2])2.

O objetivo deste trabalho é apresentar e resolver, no

contexto da álgebra linear, um dos problemas enumera-

tivos clássicos do cálculo de Schubert, que chamaremos

de problema das quatro retas:

Dadas quatro retas disjuntas duas a duas no es-

paço projetivo complexo tridimensional (denotado

por P3), determinar o número de retas que as in-

tersectam simultaneamente.

A figura 1 ilustra uma solução genérica deste pro-

blema, num desenho em R3. As quatro retas dadas

são 1, 2, 3, 4, e as retas encontradas como solução são

m1 e m2. O hiperboloide serve como ilustração de um

passo importante da solução, que é o estudo da relação

entre as retas e as superfícies quádricas em P3.

Evidentemente, a compreensão do problema envolve

o conhecimento do que vem a ser uma reta em P3 e do

próprio P3. Tudo isso será explicado ao longo deste ar-

tigo. Para tanto, é recomendável ter, principalmente,

conhecimentos básicos de álgebra linear e, ainda, um

pouco de álgebra em nível introdutório (ver, por exem-

plo, [6] e [4], respectivamente). Uma ótima referência

para iniciar uma exploração pela geometria algébrica

é o livro “Introdução às curvas algébricas planas”, de

Vainsencher ([9]).

2 Recomendamos ver [10] para uma apresentacao mais acessıvel de

[2].

1

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56 Matemática Universitária nº45

{Artigo}

1

2

3

4

m1

m2

Figura 1:

Uma das fontes de inspiração deste trabalho foi o ar-

tigo de Ronga ([7]), onde é apresentada uma justifica-

tiva do cálculo de Schubert seguindo os resultados ex-

postos por Schubert em [8].

A partir desta seção serão introduzidos conceitos e re-

sultados necessários para a compreensão e a solução do

problema das quatro retas.

A ideia de espaço projetivo está relacionada à de

perspectiva (do latim perspicere, percepção visual) num

desenho gráfico, numa pintura etc. Uma das modali-

dades mais utilizadas é a perspectiva linear, tipicamente

usada no desenho de estradas e trilhos de trens que pa-

recem, relativamente a um observador nelas situado,

convergir para um único ponto, denominado ponto de

fuga.

Como no plano real R2 (ou complexo C2) duas retas

distintas se encontram num único ponto ou são parale-

las, surgiu a necessidade de se construir um objeto ma-

temático em que quaisquer duas retas se intersectem,

como tentativa de se dar uma fundamentação matemá-

tica aos métodos de perspectiva empregados pelos pin-

tores e arquitetos. Desargues aparece, em 1639, como o

primeiro a considerar as ideias que expomos a seguir,

para motivar as definições e o desenvolvimento deste

texto.

Tome Π o plano de equação z = 1 no espaço tridi-

mensional real. Observe que

1. Cada ponto p no plano Π determina uma reta Up

passando pela origem e por p, ou seja, um subes-

paço unidimensional que contém p; no entanto, nem

todo subespaço unidimensional intersecta o plano

Π: esse é o caso (exatamente) dos subespaços con-

tidos no plano {z = 0}.

2. Cada reta ⊂ Π é a intersecção de um plano W

que passa pela origem, isto é, um subespaço bidi-

mensional, com o plano Π; o único subespaço bidi-

mensional que não intersecta Π é o plano {z = 0}.

3. Se as retas 1, 2 ⊂ Π se intersectam no ponto p,

então os subespaços bidimensionais W1 e W2 têm

por intersecção o subespaço unidimensional Up.

4. Se as retas 1, 2 ⊂ Π são disjuntas (neste caso, pa-

ralelas, pois estão no mesmo plano) então a inter-

secção dos subespaços bidimensionais W1 e W2

2

O plano projetivo real: motivação

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57Matemática Universitária nº45

{Artigo}

é um subespaço unidimensional contido no plano

{z = 0}.

O plano projetivo real é definido como sendo o conjunto

dos subespaços unidimensionais de R3. Veja que, pelo ex-

posto acima, o plano Π se identifica naturalmente com

um subconjunto do plano projetivo real pela aplicação

injetiva Π p → Up. No entanto, essa aplicação não é

sobrejetiva, pois não atinge os subespaços horizontais.

Tudo funciona como se o plano projetivo real fosse um

plano real (no caso, Π), “acrescido” de outros elementos

(os subespaços horizontais), que podem ser interpreta-

dos como “pontos no infinito do plano Π”.

Essa interpretação faz mais sentido quando defini-

mos o que é uma reta no plano projetivo real. Veja que

qualquer reta contida no plano Π é a intersecção de

Π com um subespaço bidimensional W. Esse subes-

paço bidimensional é, por sua vez, formado pela cole-

ção de subespaços unidimensionais, que são elementos

do plano projetivo. Então pode-se associar a ⊂ Π um

subconjunto do plano projetivo real que é a coleção dos

subespaços unidimensionais contidos em W. Essa as-

sociação motiva a seguinte definição: um subconjunto

do plano projetivo é uma reta se e somente se a união de

seus elementos é um subespaço bidimensional de R3.

Note que as retas em Π “ganham” um elemento a

mais no plano projetivo: a cada ponto p ∈ se associa

o subespaço unidimensional Up contido em W, mas há

ainda um subespaço unidimensional em W contido em

{z = 0} que não vem de nenhum ponto de . Esse é o

“ponto no infinito” da reta . Além disso, o conjunto

de retas do plano projetivo tem um elemento a mais do

que as retas do plano π: é a “reta no infinito”, que é o

subconjunto do plano projetivo real formado por todos

os subespaços unidimensionais contidos em {z = 0}.

Veja também que se 1, 2 ⊂ Π são paralelas, ainda

assim W1 e W2 têm um elemento em comum, que é

um subespaço unidimensional contido no plano {z =

0}. Então, no plano projetivo, as retas supostamente

paralelas se intersectam no infinito.

Essas definições em tom coloquial servem como moti-

vação para o tratamento mais cuidadoso que faremos a

seguir. No entanto, daremos ênfase ao caso complexo

(em vez de real) e, posteriormente, ao caso tridimensio-

nal (em vez de bidimensional), pois é aí que se insere o

problema que queremos resolver.

Para passar ao caso complexo sem mudar a dimen-

são, observe primeiro que toda reta que passa pela ori-

gem em C3 é um subespaço vetorial de dimensão 1 de

C3, isto é, é o subconjunto [v], onde [v] denota o su-

bespaço vetorial gerado pelo vetor v. Então define-se o

plano projetivo complexo por

P2 =[v] ⊂ C3 | v ∈ C3, v = 0

.

De maneira análoga, se V é um espaço vetorial qual-

quer sobre C (poderia também ser sobre R), podemos

definir a projetivização de V ou espaço projetivo determi-

nado por V, que denotaremos por P(V), por

P(V) = {[v] ⊂ V | v ∈ V, v = 0} .

Por simplicidade, denotaremos Pn = P(Cn+1). Veja

que P0 = {[1]} consiste de um único ponto, pois

C = [1] é o único subespaço de C de dimensão 1. Veja

também que P1 = {[(1, t)] | t ∈ C} ∪ {[(0, 1)]} (a

reta complexa, i.e. C, acrescida de um ponto, o “in-

finito”), pois todo subespaço de dimensão 1 de C2 é

gerado por um vetor não nulo v = (a, b) ∈ C2, e

[v] = [(a, b)] = [(1, b/a)] se a = 0, caso contrário

[v] = [(0, b)] = [(0, 1)].

A definição de espaço projetivo é, de fato, um caso

particular de grassmaniana. A k-grassmaniana de V, de-

notada por G(k, V), é simplesmente o conjunto dos su-

bespaços vetoriais de dimensão k de V. Assim, todo es-

paço projetivo é uma 1-grassmanniana, já que P(V) =

G(1, V). Neste trabalho, a definição de G(k, V) nos será

útil apenas por uma questão de simplicidade da nota-

ção.

3

Espaços projetivos

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58 Matemática Universitária nº45

{Artigo}

Na notação que apresentamos (com R como corpo

de escalares), o plano projetivo real é definido como

P(R3). Fica mais simples, além disso, definir as retas

do plano projetivo real: é uma reta em P(R3) se existe

um subespaço W ⊂ R3 de dimensão 2 tal que = P(W)

(isto é, é a coleção de todos os subespaços unidimen-

sionais contidos em W). É exatamente dessa forma que

são definidos retas, planos, k-planos e hiperplanos em

qualquer espaço projetivo P(V).

Sejam V um espaço vetorial sobre C de dimensão

n + 1 e k um inteiro, com 0 ≤ k ≤ n. Diremos que

⊂ P(V) é uma reta se existir W ∈ G(2, V) tal que

= P(W). Mais geralmente, diremos que π ⊂ P(V)

é um k–plano se existir W ∈ G(k + 1, V) tal que π =

P(W). Os 0–planos são pontos e os 1–planos são re-

tas em P(V). Os 2–planos e (n− 1)–planos serão cha-

mados simplesmente de planos e hiperplanos, respectiva-

mente.

Na geometria dos espaços projetivos, duas retas con-

tidas num plano sempre se intersectam, como justifi-

caremos a seguir. Usaremos agora e mais adiante que

a dimensão da intersecção de dois subespaços V, W é

dada pela fórmula

dim V ∩W = dim V + dim W − dim(V + W) . (1)

Fato 1 (Retas num plano). Seja o plano π = P(W) ⊂P(V), com W ∈ G(3, V), e sejam 1 = P(W1) e 2 =

P(W2) retas contidas em π. Então ou 1 ∩ 2 consiste de um

único ponto ou 1 = 2.

Demonstração. Note que a condição 1 = 2 se traduz

em W1 + W2 = W. Como dim W1 = dim W2 = 2 e

dim W = 3, então dim(W1 ∩W2) = 1, pela equação (1).

Portanto, 1 ∩ 2 consiste de um único ponto, porque

1 ∩ 2 = P(W1 ∩W2).

De maneira mais geral, dois hiperplanos distintos se

intersectam em um (n− 2)–plano. A justificativa é aná-

loga ao caso anterior.

Fato 2 (Hiperplanos em P(V)). Sejam H1 = P(W1) e

H2 = P(W2) hiperplanos em P(V) com dim V = n + 1 ≥3. Então H1 ∩ H2 é um (n− 2)–plano ou H1 = H2.

Seja Sd, com d ≥ 0, o espaço vetorial sobre C dos po-

linômios homogêneos de grau d (ou formas de grau d) nas

variáveis x, y, z, w. Esses são os polinômios que têm to-

dos os termos de grau exatamente d, isto é, todo F ∈ Sd

pode ser escrito na forma

F = ∑i, j, k, l ≥ 0

i + j + k + l = d

fi,j,k,l xiyjzkwl ,

com fi,j,k,l ∈ C. Em particular, esse espaço tem como

base o conjunto de monômios

xiyjzkwl | i, j, k, l ≥ 0, i + j + k + l = d

.

Por simplicidade, pensaremos em todo polinômio de

Sd como função de C4 em C, quando for conveniente.

Em particular, S1 se identifica naturalmente com o es-

paço dos funcionais lineares de C4.

Note também que se F ∈ Sd então F(λv) = λdF(v),

para quaisquer λ ∈ C e v ∈ C4. Em particular, se

F(v) = 0 então F(λv) = 0, para todo λ ∈ C. Isto mos-

tra que se v é raiz de F então todo vetor de [v] é também

raiz de F. Portanto está bem definido o conjunto

Z(F) =[v] ∈ P3 | F(v) = 0

,

que será chamado de superfície algébrica de grau d em P3,

se F for não nulo.

No caso d = 0, se F é não nulo então Z(F) = ∅. Por-

tanto o conjunto vazio é (a única) superfície algébrica

de grau zero. Na seção seguinte veremos, em particu-

lar, que as superfícies algébricas de grau 1 são os planos

de P3. As superfícies algébricas de grau 2, 3, 4, 5, etc.

são chamadas de superfícies quádricas, cúbicas, quárti-

cas, quínticas etc., respectivamente.

Um subconjunto Y de P3 é um conjunto algébrico se Y

for uma intersecção finita de superfícies algébricas, ou

o próprio P3. Note que P3 não é superfície algébrica

4

Retas, planos, . . . , e hiperplanos

Superfícies e conjuntos algébricos

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59Matemática Universitária nº45

{Artigo}

porque não permitimos que F fosse um polinômio nulo

na definição. Usaremos a notação

Z(F1, . . . , Fk) = Z(F1) ∩ . . . ∩ Z(Fk)

para denotar um conjunto algébrico em que se conhe-

cem as superfícies algébricas que o geram por intersec-

ção.

Entre os exemplos mais simples de conjuntos algébri-

cos, podemos citar os pontos, retas e planos, também

chamados conjuntos algébricos lineares pois, como vere-

mos a seguir, são determinados pela intersecção de su-

perfícies algébricas de grau 1.

Observacao. Pode-se também mostrar que a união fi-

nita e a intersecção arbitrária de conjuntos algébricos é

um conjunto algébrico. Para intersecções finitas é a pró-

pria definição e para uniões finitas é um exercício. Já

para intersecções arbitrárias, a demonstração envolve

generalizar o conceito de conjunto algébrico para ideais

de C[x, y, z, w] e usar o fato de que C[x, y, z, w] é um anel

noetheriano, isto é, todo ideal contido em C[x, y, z, w] é

gerado por um número finito de polinômios.

Aqui vamos explorar um pouco mais a identificação de

S1 com o conjunto de funcionais lineares de C4, isto é, o

conjunto de aplicações lineares de C4 em C, para carac-

terizar os conjuntos algébricos lineares de P3. Veja que

se L ∈ S1 então

Z(L) = P(ker(L)) , (2)

diretamente da definição de Z(L), onde ker(L) denota

o núcleo de L, isto é, o subespaço vetorial de vetores de

C4 que têm imagem nula por L.

As três proposições seguintes caracterizam planos,

retas e pontos em P3 como conjuntos algébricos gera-

dos por superfícies algébricas de grau 1.

Proposição 1 (Planos). π é um plano em P3 se e somente

se π = Z(L) para alguma L ∈ S1 não nula.

Proposição 2 (Retas). é uma reta em P3 se e somente

se = Z(L1, L2) para algum {L1, L2} ⊂ S1 linearmente

independente.

Proposição 3 (Pontos). Se {L1, L2, L3} ⊂ S1 é linear-

mente independente então Z(L1, L2, L3) é formado por um

único ponto de P3. Reciprocamente, para todo p ∈ P3

existe {L1, L2, L3} ⊂ S1 linearmente independente tal que

{p} = Z(L1, L2, L3).

Antes de demonstrarmos essas proposições, enunci-

aremos e demonstraremos o lema seguinte, que trata

da intersecção de núcleos de formas de grau 1 em C4.

Daqui em diante, denotaremos por [u1, . . . , uk] o subes-

paço gerado pelos vetores u1, . . . , uk.

Lema 1. Seja {Li}4i=1 uma base de S1. Sejam Wi =

ker(Li), Wij = Wi ∩Wj e Wijk = Wi ∩Wj ∩Wk, para

1 ≤ i < j < k ≤ 4, e W1234 = ∩4i=1Wi. Denotando por |I|

o comprimento da sequência I, então dim WI = 4− |I|.

Demonstração. A prova será feita em quatro etapas, de

acordo com o valor assumido por |I|.|I| = 1: Como Li ∈ S1, 1 ≤ i ≤ 4, é uma aplica-

ção linear de C4 em C e, por hipótese, é não nula, então

sua imagem tem ao menos dimensão 1. Mas o contra-

domínio tem dimensão 1, então a imagem de Li tem

exatamente dimensão 1. Pelo Teorema do Núcleo e da

Imagem, ker(Li) é um subespaço de dimensão 3.

|I| = 2: Sem perda de generalidade, vamos verifi-

car apenas que dim(W1 ∩W2) = 2. Primeiro vamos

mostrar que W1 = W2. Se fossem iguais, e já que

dim W1 = 3, fixada uma base de W1 poderíamos ob-

ter uma base de C4 acrescentado um vetor, digamos

w. Assim teríamos Lr(w) = λr = 0 para r = 1, 2, de

onde concluiríamos que L1 = λ1λ2

L2, isto é, L1 e L2 se-

riam linearmente dependentes, contradizendo a hipó-

tese. Mas W1 = W2 implica W1 + W2 = C4, e assim, por

(1), dim W1 ∩W2 = 3 + 3− 4 = 2.

|I| = 3: Fixe I = 123, sem perda de generalidade.

Bastará mostrarmos que W12 + W3 = C4, pois aí, por

(1), dim W123 = dim W12 + dim W3 − dim[W12 + W3] =

2 + 3− 4 = 1.

5

Conjuntos algébricos lineares

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60 Matemática Universitária nº45

{Artigo}

Suponha, por absurdo, que W12 + W3 = C4. Então

W12 +W3 = W3, pois dim W3 = 3. Segue que W12 ⊂ Wi,

para 1 ≤ i ≤ 3. Como W12 tem dimensão 2 e Wi tem

dimensão 3, podemos escolher uma base {u, v, wi} de

Wi para 1 ≤ i ≤ 3, de maneira que W12 = [u, v].

Agora tome i, j distintos entre 1 e 3. Se Li(wj) fosse

nulo, teríamos wj ∈ Wi = ker(Li) e aí Wj = [u, v, wj] ⊂Wi. Como ambos têm dimensão 3, teríamos Wi = Wj.

Mas isso implicaria, como no parágrafo anterior, que Li

e Lj são linearmente dependentes, o que é uma contra-

dição com a hipótese. Portanto Li(wj) = λij = 0, se

i = j e i, j ∈ {1, 2, 3} (de fato, só iremos precisar de λ12

e λ21 não nulos).

Observe também que {u, v, w1, w2} é uma base de

C4 (pois w2 ∈ W1 = [u, v, w1]). Usando-se essa base,

verifica-se sem dificuldade que L3 = λ32λ12

L1 + λ31λ21

L2, de

onde se conclui que {Li}3i=1 são linearmente dependen-

tes, o que é mais uma vez uma contradição.

|I| = 4: Por raciocínio análogo aos casos anteriores,

pode-se concluir que dim W1234 = 0.

Demonstração da Proposição 1. Se L ∈ S1 for uma forma

linear não nula, então segue do Lema 1 (para |I| = 1)

que ker(L) é um subespaço de dimensão 3 de C4. Por-

tanto Z(L) é um plano em P3.

Reciprocamente, se π = P([v1, v2, v3]) for um plano

em P3, então seja L ∈ S1 a forma de grau 1 definida

por L(vi) = 0, para 1 ≤ i ≤ 3, e L(v) = 1, em que v

é um vetor de C4 tal que {v, v1, v2, v3} é uma base de

C4. Assim, ker(L) = [v1, v2, v3] e π = P(ker(L)) =

Z(L).

Demonstração da Proposição 2. Sejam L1, L2 ∈ S1 linear-

mente independentes e Wi = ker(Li), i = 1, 2. Pelas

definições, Z(L1, L2) = Z(L1) ∩ Z(L2) = P(W1) ∩P(W2) = P(W1 ∩W2). Como dim W1 ∩W2 = 2, pelo

Lema 1, segue que Z(L1, L2) é uma reta em P3.

Agora vamos verificar que toda reta em P3 é determi-

nada pela intersecção de dois planos distintos. De fato,

seja = P([u1, u2]) uma reta em P3. Estenda {u1, u2}para uma base de C4, digamos {u1, u2, v1, v2}. Defina

L1 e L2 em S1 de forma que ker(L1) = [u1, u2, v2] e

L1(v1) = 1, e ker(L2) = [u1, u2, v1] e L2(v2) = 1. Essa

definição implica que L1 e L2 são linearmente indepen-

dentes e que ker(L1)∩ker(L2) = [u1, u2]. LogoZ(L1)∩Z(L2) = P(ker(L1)) ∩ P(ker(L2)) = P(ker(L1) ∩ker(L2)) = P([u1, u2]) = .

Demonstração da Proposição 3. Se L1, L2, L3 ∈ S1 são

linearmente independentes segue diretamente do

Lema 1, como nos casos anteriores, que ker(L1) ∩ker(L2)∩ker(L3) é um subespaço de dimensão 1 e, por-

tanto, que Z(L1, L2, L3) é um ponto.

Pode-se também usar um argumento análogo ao

acima utilizado para planos e retas, para concluir que

um ponto em P3 é determinado pela intersecção de três

planos em P3. Outra maneira é assumir, sem perda

de generalidade, que p = [(a1, a2, a3, a4)] com a1 = 0,

e verificar que {p} = Z(a1y − a2x) ∩ Z(a1z − a3x) ∩Z(a1w− a4x).

Essa outra maneira de demonstrar a Proposição 3

é um caso particular de um fato mais geral. Note

que, sendo p = [(a1, a2, a3, a4)], então {a1y− a2x, a1z−a3x, a1w− a4x} é uma base do subespaço

S1(p) = {F ∈ S1 | F(v) = 0, se [v] = p} .

De maneira mais geral, podemos definir o subespaço

de formas de um dado grau que se anulam num de-

terminado conjunto de pontos no espaço projetivo. Por

exemplo, quem é o conjunto de formas de grau 1 que se

anulam em três pontos dados, não colineares? Se os três

pontos são p1 = [v1], p2 = [v2] e p3 = [v3], a hipótese

de não colinearidade implica que {v1, v2, v3} são linear-

mente independentes e que P([v1, v2, v3]) é um plano,

contendo os três pontos. Esse plano é também, como

vimos, o conjunto de anulamento de um subespaço uni-

dimensional de formas lineares.

Fixemos os pontos p1, ..., pk em P3 e denotemos por

Sd(p1, ..., pk) o subespaço vetorial de Sd definido por

Sd(p1, ..., pk) = {F ∈ Sd | F(vi) = 0, se pi = [vi], ∀i} .

Seja nd = dimSd (que, pode-se mostrar, é igual a (3+dd ),

ou seja, n0 = 1, n1 = 4, n2 = 10 etc.). Observe que

dimSd(p1, ..., pk) ≥ nd − k, (3)

6

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61Matemática Universitária nº45

{Artigo}

porque, para cada v = (x1, x2, x3, x4) ∈ C4 não

nulo, a condição F(v) = 0, ou mais precisamente

F(x1, x2, x3, x4) = 0 = ∑ fi,j,k,l x1ix2

jx3kx4

l , impõe exa-

tamente uma condição linear sobre F.

Observacao. A igualdade em (3) admite a seguinte ca-

racterização. Seja S∗d o dual de Sd, isto é, o espaço ve-

torial de funcionais lineares de Sd em C. Para cada v ∈C4, não nulo, considere a aplicação linear Ev ∈ S∗d defi-

nida por Ev(F) = F(v). Seja Hv = {F ∈ Sd | F(v) = 0}o núcleo de Ev, e observe que a imagem de Ev é igual

a C (como v = (a1, a2, a3, a4) é um vetor não nulo em

C4, podemos assumir que a1 = 0, logo G(v) = 1 para

G = 1ad

1xd). Então temos que dim Hv = nd − 1. Levando

em consideração que Sd(p1, ..., pk) = ∩ki=1Hvi (pi = [vi],

1 ≤ i ≤ k), pode-se verificar que dimSd(p1, ..., pk) =

nd − k se e somente se {Evi}ki=1 é um conjunto linear-

mente independente no espaço dual S∗d .

Uma superfície algébrica Z(F) ⊂ P3 definida por um

polinômio F ∈ C[x, y, z, w] homogêneo de grau d ≥ 1

é chamada de irredutível se F é um polinômio irredutí-

vel sobre C (um polinômio F é irredutível sobre C se só

admite fatorações triviais, ou seja, em qualquer fatora-

ção de F um dos fatores é um polinômio constante). Do

contrário a superfície é chamada redutível.

Como todo polinômio de grau 1 é irredutível, então

os planos são superfícies algébricas irredutíveis.

Já se F tem grau 2 há duas opções: ou F é irredutível

sobre C (por exemplo, as superfícies definidas por F3 e

F4 no Exemplo 1 mais abaixo) ou F = L1L2 com L1 e L2

formas de grau 1 não nulas. No segundo caso, há ainda

duas possibilidades: {L1, L2} pode ser linearmente de-

pendente ou linearmente independente. No primeiro

caso, Z(F) = Z(L2) = Z(L), com L = L1 = λL2 para

algum λ ∈ C não nulo; isto é, Z(F) é um plano. No

segundo caso, Z(F) = Z(L1L2) = Z(L1) ∪ Z(L2), em

que Z(L1) e Z(L2) são planos distintos (que se inter-

sectam em uma reta, pela Proposição 2).

A seguir verificaremos que uma superfície irredutível

de grau maior que 1 em P3 não pode conter nenhum

plano.

Proposição 4. Sejam F ∈ Sd um polinômio irredutível de

grau d ≥ 2 e π = Z(L) um plano em P3. Então π ⊂ Z(F).

Demonstração. Sem perda de generalidade, iremos su-

por que o coeficiente de z em L é não nulo, de forma

que L pode ser escrita sob a forma L = ax + by + z + cw.

Note que L é um polinômio mônico de grau 1 no anel

A[z], com A = C[x, y, w]. Assim, segue-se do algo-

ritmo da divisão que existem G, R ∈ A[z] tais que

F = LG + R, com G ∈ A[z] necessariamente homo-

gêneo de grau 1, e R ∈ A[z] nulo ou constante, isto é, R

homogêneo de grau 2 nas variáveis x, y, w.

Agora mostraremos que π = Z(L) ⊂ Z(F) impli-

caria em R = 0, o que seria uma contradição com a

hipótese de que F é irredutível. De fato, Z(L) ⊂ Z(F)

implica que F([(v1, v2,−av1− bv2− cv4, v4)]) = 0, para

todo [(v1, v2, v4)] ∈ P2. Logo, avaliando a igualdade

F = LG + R nos pontos [(v1, v2,−av1− bv2− cv4, v4)] ∈Z(L), obtemos que R([(v1, v2, v4)]) = 0, para todo

[(v1, v2, v4)] ∈ P2. Então R(v1, v2, v4) = 0 para todo

(v1, v2, v4) ∈ C3 não nulo. Sendo R um polinômio ho-

mogêneo, também R(0, 0, 0) = 0, o que nos faz concluir

que R é nulo.

Seja H = Z(F) uma superfície de grau d ≥ 1 em P3.

Denotemos por Fξ a derivada parcial de F em relação

a ξ, ξ ∈ {x, y, z, w} (note que Fξ é um polinômio ho-

mogêneo de grau d − 1). H é chamada de superfície

não singular se e somente se

ξ∈{x,y,z,w} Z(Fξ) = ∅.

Do contrário, diremos que H é singular e os pontos de

ξ∈{x,y,z,w} Z(Fξ) serão chamados de pontos singulares.

Em outras palavras, os pontos singulares são os pontos

onde o gradiente de F se anula.

Veja que não é preciso pedir que os pontos singulares

estejam em H, porque todo vetor em que o gradiente de

F se anula tem que ser um vetor onde F se anula. Basta

7

Superfícies singulares e não singulares

Superfícies irredutíveis

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62 Matemática Universitária nº45

{Artigo}

usar o fato de que F é polinômio homogêneo de grau d

e mostrar que

F =1d(xFx + yFy + zFz + wFw) .

Note que o conceito de superfície algébrica singular

fica mal definido se olharmos apenas para o conjunto

Z(F). A singularidade é, de fato, uma propriedade de

F.

A título de exemplo, os planos em P3 são super-

fícies (de grau 1) não singulares. A partir de grau

d ≥ 2 temos muitos exemplos de superfícies singulares

(por exemplo, Z(xd)) e não singulares (por exemplo,

Z(xd + yd + zd + wd)).

Exemplo 1. Seja Z(Fk) a superfície quádrica definida por

Fk =

x2 se k = 1

x2 + y2 se k = 2

x2 + y2 + z2 se k = 3

x2 + y2 + z2 + w2 se k = 4 .

Observe que, do ponto de vista de conjuntos, Z(F1)

é igual ao plano Z(x) = {[(x1, x2, x3, x4)] ∈ P3 | x1 =

0} = P([e2, e3, e4]). No entanto, F1 define uma superfí-

cie quádrica singular, pois

ξ∈{x,y,z,w} Z(F1ξ) = Z(x).

Assim todo ponto da superfície quádrica Z(F1) é sin-

gular.

Figura 2:

Z(F1) Z(F2)

Z(F3) Z(F4)

Note que F2 = x2 + y2 = (x + iy)(x− iy), logo Z(F2)

é a união dos planos Z(x ± iy) = P([±ie1 + e2, e3, e4])

onde os ei’s denotam os vetores da base canônica de

C4. Como

ξ∈{x,y,z,w} Z(F2ξ) = Z(x) ∩ Z(y), Z(F2) é

uma superfície quádrica singular, cujos pontos singula-

res são os pontos da reta de intersecção dos planos que

determinam Z(F2).

Ao contrário de F1 e F2, os polinômios F3 e F4 são irre-

dutíveis. Para ver isso, observa-se primeiro que se eles

fossem redutíveis então F3 = G3H3 e F4 = G4H4, com

G3, G4, H3, H4 polinômios homogêneos de grau 1 (ou-

tras possibilidades são descartadas pelo fato de F3 e F4

serem homogêneos). Em seguida, deve-se comparar os

coeficientes das igualdades polinomiais e, após alguma

manipulação, chegar-se a uma contradição entre essas

igualdades.

Então as superfícies quádricas Z(F3) e Z(F4) são

irredutíveis. A diferença fundamental entre elas

é o fato de que Z(F4) é uma quádrica não sin-

gular, pois

ζ∈{x,y,z,w} Z(F4ζ) = ∅, enquanto que

Z(F3) possui um (único) ponto singular, posto que

ζ∈{x,y,z,w} Z(F3ζ) = {[(0, 0, 0, 1)]}.

A figura 2 mostra ilustrações dos quatro casos do

Exemplo 1, com analogias de quádricas do espaço eu-

clidiano tridimensional que têm algumas propriedades

semelhantes.

Seja T : V −→ V um isomorfismo linear. É fácil ver que

T preserva subespaços de V, isto é, se W é subespaço

de dimensão k então T(W) também é. Então T induz

uma bijeção em P(V), que denotaremos por T e cha-

maremos de mudança de coordenadas projetivas, definida

por T([v]) = [T(v)].

O fato de T preservar subespaços também implica

que um k-plano P(W) em P(V) é transformado no k-

-plano T(P(W)) = P(T(W)), em P(V), pela mudança

de coordenadas projetivas T. Ou seja, retas, planos etc.,

são aplicados respectivamente em retas, planos etc., por

uma mudança de coordenadas projetivas T.

8

Mudanças de coordenadas projetivas

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63Matemática Universitária nº45

{Artigo}

A seguir continuaremos nossa exploração sobre mu-

danças de coordenadas projetivas no caso específico de

P3 (deixando ao leitor interessado a tarefa de fazer as

adaptações para P(V)).

Mudanças de coordenadas projetivas preservam conjuntos

algébricos. Sejam F ∈ Sd e T : C4 −→ C4 um isomor-

fismo linear. Então T(Z(F)) = {[T(v)] | [v] ∈ Z(F)} =

{[T(v)] | F(v) = 0} =[w] | F(T−1(w)) = 0

. Essa úl-

tima igualdade nos sugere olhar para o isomorfismo li-

near Td : Sd −→ Sd definido por (TdF)(x, y, z, w) =

F(T−1(x, y, z, w)) (ver [3], p. 228; a definição de Td(F)

corresponde a dizer que o grupo dos isomorfismos li-

neares de C4 opera sobre o conjunto Sd). Assim, temos

que

T(Z(F)) =[w] | F(T−1(w)) = 0

= {[w] | TdF(w) = 0} (4)

= Z(TdF) .

Isto diz que superfícies algébricas são aplicadas em su-

perfícies algébricas.

Do fato acima podemos também concluir que se X =

∩si=1Z(Fi), em que Fi é homogêneo de grau di para 1 ≤

i ≤ s, então T(X) = ∩si=1Z(Tdi

Fi), ou seja, conjuntos

algébricos são aplicados em conjuntos algébricos.

Uma das utilidades das mudanças de coordenadas

projetivas é permitir transformar um dado conjunto al-

gébrico em outro, definido por equações mais simples

ou com um determinado padrão. Isso será explicitado

na próxima seção, no caso das superfícies quádricas.

Mudanças de coordenadas projetivas preservam o grau de

superfícies. De fato, sejam H = Z(F) ⊂ P3 uma super-

fície de grau d. Então, segue-se de (4) que T(Z(F)) =

Z(TdF) e, como Td é um isomorfismo linear em Sd, con-

cluímos que T(Z(F)) é uma superfície de grau d em P3.

Em particular os planos em P3 são transformados em

planos por qualquer mudança de coordenadas projeti-

vas.

Mudanças de coordenadas projetivas preservam intersec-

ções. Sejam Z(F) e Z(G), superfícies em P3 de grau

d1 e d2, respectivamente. Se p ∈ Z(F) ∩ Z(G), então

T(p) ∈ T(Z(F)) ∩ T(Z(G)) = Z(Td1 F) ∩ Z(Td2 G).

De fato, suponha que p = [v]. Então F(v) = G(v) =

0. Por outro lado, Td1 F(T(p)) = F(T−1(T(p))) =

F(T−1(T(v))) = F(v) = 0. Analogamente, concluímos

que Td2 G(T(p)) = 0.

O mesmo raciocínio mostra que se Y1 e Y2 são con-

juntos algébricos em P3 tais que p ∈ Y1 ∩ Y2, então

T(p) ∈ T(Y1) ∩ T(Y2). Em particular, se duas retas

em P3 se intersectam, então suas imagens sob uma mu-

dança de coordenadas projetivas também serão retas

que têm um ponto em comum.

Além disso, se p ∈ P3 for definido pelas formas line-

ares L1, L2 e L3, então sabemos que T(p) será um ponto

de P3 definido pelas formas lineares T1L1, T1L2 e T1L3.

Mudanças de coordenadas projetivas preservam pontos

singulares. É possível mostrar, sem grande dificuldade,

que se Z(F) é uma superfície de grau d em P3 e p ∈Z(F) um ponto singular, então T(p) é um ponto sin-

gular de T(Z(F)). Deixamos a demonstração para o

leitor.

Iniciamos esta seção apresentado um exemplo da utili-

zação de uma mudança de coordenadas projetivas para

transformar uma superfície quádrica em Z(F2) (ver

Exemplo 1).

Exemplo 2. Seja F = x2 + xy + y2 ∈ S2. Seja T o iso-

morfismo linear de C4 definido por T(x, y, z, w) = (x +y2 ,√

32 y, z, w), cuja inversa é dada por T−1(x, y, z, w) =

(x− 1√3

y, 2√3

y, z, w)). Então T2F = x2 + y2 e T(Z(F)) =

Z(T2F).

O teorema seguinte afirma que em P3 só existem, em

essência, as superfícies quádricas do Exemplo 1. Sua

demonstração é simples e conhecida, mas a colocamos

aqui (no caso geral de superfícies quádricas em Pn) por

completeza desta exposição.

Teorema 1. Se Q for uma superfície quádrica em Pn defi-

nida pela forma

F = ∑0≤i≤j≤n

aijxixj ∈ C[x0, ..., xn] ,

9

Classificação das superfícies quádricas

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64 Matemática Universitária nº45

{Artigo}

então existe uma mudança de coordenadas projetivas T tal

que T(Q) = Z(Fk), para algum 1 ≤ k ≤ n + 1, em que

Fk = x20 + x2

1 + · · ·+ x2k−1, isto é, Fk é a soma dos quadrados

das primeiras k variáveis.

Demonstração. A prova pode ser feita por indução. O

passo indutivo e também o primeiro passo consistem

em demonstrar que se F tem a forma

∑l<k

x2l + ∑

k≤l≤j≤naljxl xj , (5)

para algum k = 0, 1, . . . , n, e algum dos alj é não nulo,

então existe um isomorfismo linear T tal que F ◦ T−1

tem a forma

∑l≤k

x2l + ∑

k<l≤j≤naljxl xj . (6)

Note que para k = 0 (o primeiro passo da indução) a

primeira soma de (5) é vazia.

Para provar isso, construiremos T como composição

dos seguintes tipos de isomorfismos: (i) T(l,j), em que

T(l,j)(el) = ej, T(l,j)(ej) = el e T(l,j)(ei) = ei, para todo

i diferente de l ou j (se l = j esse isomorfismo é a iden-

tidade); (ii) T(j)a , em que a ∈ C \ {0}, T(j)

a (ej) = aej

e T(j)a (el) = el , para todo l = j; e (iii) T(l,j) tal que

T(l,j)(ej) = ej − el e T(l,j)(ei) = ei, para todo i = j.

Veja que o inverso de T(l,j) é ele próprio, o inverso de

T(j)a é T(j)

a−1 e o inverso de T(l,j) é dado por ej → ej + el e

ei → ei, para todo i = j.

Suponha que F tenha a forma (5). Se existe l entre k e

n tal que all = 0, então componha F com o inverso de

T(l)√all

e, depois, componha o resultado disso com T(k,l),

para obter

∑l<k

x2l + x2

k + ∑k≤l≤j≤n(l,j) =(k,k)

aljxl xj . (7)

Se não houver all = 0 para l = k, . . . , n então há pelo

menos um alj = 0, com l = j. Então a composição de F

com o inverso de T(l,j) conterá o termo

aljxl(xl + xj) ,

sem que apareça nenhum outro termo em x2l . Essa ex-

pressão recai no caso anterior e, assim, (7) pode ser ob-

tida em qualquer caso.

Resta mostrar que existe um isomorfismo linear Ttal que o polinômio em (7) composto com T−1 tenha a

forma dada em (6). Essa parte da demonstração é feita

por completamento de quadrados.

O polinômio em (7) pode ser escrito na forma

∑l<k

x2l + x2

k +

n

∑l=k+1

2bl xl

xk + ∑

k<l≤j≤naljxl xj ,

com 2bl = akl ; completando quadrados, a expressão fica

∑l<k

x2l +

xk +

n

∑l=k+1

bl xl

2

+ ∑k<l≤j≤n

aljxl xj ,

em que no último somatório são incorporados os ter-

mos de�∑n

l=k+1 bl xl2. Então define-se T por T(el) = el ,

para l ≤ k e T(el) = el + blek, para l = k + 1, . . . , n,

que tem inversa dada por T−1(el) = el , para l ≤ k, eT−1(el) = el − blek, para l = k + 1, . . . , n. É fácil veri-

ficar que essa última expressão composta com T−1 fica

na forma (6).

O seguinte resultado trata da intersecção entre uma su-

perfície de grau d e uma reta em P3.

Proposição 5. Sejam F ∈ Sd não nulo, com d ≥ 1, e =

P(W) uma reta em P3. Então Z(F) ∩ = ∅. Além disso,

ou ⊂ Z(F) ou Z(F) ∩ tem no máximo d pontos.

Demonstração. Se ⊂ Z(F) então podemos escolher

uma base {w1, w2} de W tal que [w2] /∈ Z(F) e pode-

mos escrever

= {[w1 + tw2] | t ∈ C} ∪ {[w2]} .

Se escrevermos w1 = (a1, a2, a3, a4), w2 = (b1, b2, b3, b4)

e

F = ∑i, j, k, l ≥ 0

i + j + k + l = d

fi,j,k,l xiyjzkwl ,

então [w1 + tw2] ∈ Z(F) se e somente se

∑ fi,j,k,l(a1 + b1t)i(a2 + b2t)j(a3 + b3t)k(a4 + b4t)l

é igual a zero. Mas essa expressão pode ser agrupada

por potências de t, isto é, pode ser escrita como p(t) =

10

Relações entre retas e superfícies quádricas

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65Matemática Universitária nº45

{Artigo}

∑dµ=0 fµtµ, em que cada fµ ∈ C é uma expressão poli-

nomial nos ai’s e bj’s, de forma que [w1 + tw2] ∈ Z(F)

se e somente se p(t) = 0. Como o coeficiente de grau

d de p é exatamente F(w2), e F(w2) = 0, então p não

é constante e, pelo Teorema Fundamental da Álgebra,

tem pelo menos uma raiz. Isso mostra que a interse-

ção de com Z(F) tem que ser não nula. Além disso,

como p tem grau d então há no máximo d raízes, isto é,

d pontos de intersecção.

Agora apresentaremos alguns fatos que dizem res-

peito à existência de retas disjuntas nas superfícies quá-

dricas Z(Fk) apresentadas no Exemplo 1. Essas consi-

derações têm âmbito geral pelo fato de que essas são as

únicas superfícies quádricas, a menos de mudanças de

coordenadas projetivas.

Fato 3 (Retas em Z(F1) e Z(F2)). As superfícies quádricas

Z(F1) e Z(F2) não podem conter três ou mais retas disjun-

tas.

Demonstração. Como foi comentado logo após o Exem-

plo 1, Z(F1) é um plano e Z(F2) é a união de dois pla-

nos distintos. Logo, se tivermos três ou mais retas conti-

das na quádrica Z(Fi), para 1 ≤ i ≤ 2, necessariamente

um par estará contido num plano. Assim, decorre do

Fato 1 que estas superfícies quádricas não podem con-

ter três ou mais retas disjuntas.

O lema seguinte entrará na prova do Fato 4, mas é

interessante por si só. Para melhor entender seu enun-

ciado, lembramos que [e4] é o único ponto singular de

Z(F3).

Lema 2. Se π é um plano em P3 que contém [e4] então π ∩Z(F3) = m1 ∪m2, em que m1 e m2 são retas contendo [e4]

(não necessariamente distintas).

Demonstração. Seja H forma linear não nula em S1 tal

que π = Z(H). Como [e4] ∈ π, então na expressão

de H não aparece a variável w. Logo, sem perda de

generalidade, iremos assumir que o coeficiente de z em

H é não nulo (de fato, igual a 1), de forma que H =

ax + by + z com a, b ∈ C. Assim,

π ∩ Z(F3) = Z(H, F3) = Z(ax + by + z, f ) ,

com f = (1 + a2)x2 + (1 + b2)y2 + 2abxy (a variável z

foi eliminada de F3 = 0 usando-se H = 0). Observe que

f é uma forma de grau 2 não nula, porque 1 + a2, 1 + b2

e ab não podem ser nulos simultaneamente.

Se a, b ∈ {i,−i} então f = ±2xy, de onde concluímos

que π ∩ Z(F3) = Z(ax + by + z, 2xy) = Z(by + z, x) ∪Z(ax + z, y). Como m1 = Z(by + z, x) e m2 = Z(ax +

z, y) são retas (distintas), o lema segue neste caso.

Agora suponha que a = ±i e seja λ = 1 + a2. Neste

caso f pode ser escrita na forma

f = λ

x +abλ

y2

+ µy2 ,

com µ = 1+a2+b2

λ , que pode ser fatorada na forma f =

h1h2, com

h1 =√

λx +

√λabλ

+ i√

µ

y

e

h2 =√

λx +

√λabλ

− i√

µ

y ,

de forma que

π ∩ Z(F3) = Z(H, h1h2) = Z(H, h1) ∪ Z(H, h2) .

Então definimos mi = Z(H, hi), para i = 1, 2, e observa-

mos que mi é, de fato, uma reta, usando a Proposição 2:

como H tem termo em z e hi não tem, H e hi são linear-

mente independentes. É fácil verificar que as retas m1 e

m2 são iguais se e somente se µ = 0.

Fato 4 (Retas em Z(F3)). Na quádrica Z(F3) não existem

retas disjuntas.

Demonstração. Bastará mostrarmos que p = [e4], o

único ponto singular deZ(F3), pertence a qualquer reta

contida em Z(F3).

Suponha = P([u, v]) ⊂ Z(F3) e p = [e4] /∈ . As-

sim, [u, v, e4] tem dimensão 3 e π = P([u, v, e4]) é um

plano, que contém a reta e o ponto [e4]. Então

⊂ π ∩ Z(F3) = m1 ∪m2 ,

pelo Lema 2. Assim, = ( ∩ m1) ∪ ( ∩ m2) ⊂ π.

Portanto = m1 ou = m2, pois cada intersecção ∩mi

ou é igual a mi ou é igual a um ponto, segundo o Fato 1.

11

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66 Matemática Universitária nº45

{Artigo}

Mas o Lema 2 diz que as retas m1 e m2 contêm p, logo

p ∈ , o que é uma contradição.

Em Z(F4), existem duas famílias de retas que jogarão

um papel importante na solução do problema das qua-

tro retas. Para cada a = [(a1, a2)] ∈ P1, sejam as retas

La = P(Ua) e Ma = P(Va), em que Ua = [u1(a), u2(a)],

Va = [v1(a), v2(a)], u1(a) = (ia1, a1, ia2, a2), u2(a) =

(ia2,−a2,−ia1, a1), v1(a) = (ia1, a1,−ia2, a2) e v2(a) =

(ia2,−a2, ia1, a1).

Deixamos ao leitor a verificação de que, para qual-

quer escolha de a = [(a1, a2)] ∈ P1, u1(a) não é colinear

com u2(a) nem v1(a) é colinear com v2(a), para garantir

que os subespaços Ua e Va tenham dimensão 2 e La, Ma

sejam realmente retas.

Além disso, é fácil mostrar que La e Ma estão contidos

em Z(F4), para qualquer a ∈ P1. Por exemplo, mostrar

que La ⊂ Z(F4) consiste em tomar qualquer u ∈ Ua,

isto é, u = αu1(a) + βu2(a), e verificar que F4(u) = 0.

Nos Fatos 5, 6, 7 e 8 reunimos propriedades dessas

famílias, que nos serão úteis em seguida.

Fato 5. La ∩ Lb = ∅ e Ma ∩Mb = ∅, se a = b ∈ P1.

Demonstração. Seja M a matriz cujas colunas são as co-

ordenadas dos vetores u1(a), u2(a), u1(b) e u2(b), para

a = [(a1, a2)], b = [(b1, b2)] ∈ P1. Verifica-se que o de-

terminante de M é igual a −4(a1b2 − a2b1)2, de onde se

conclui que os vetores acima formam uma base de C4

se, e somente se, a1b2 − a2b1 = 0, e essa última desi-

gualdade é equivalente a a = b. Portanto, se a = b en-

tão os subespaços Ua e Ub, que determinam as retas La

e Lb, respectivamente, só têm como vetor comum o ve-

tor nulo, o que implica La ∩ Lb = ∅. Usando o mesmo

raciocínio verifica-se que Ma ∩Mb = ∅ se e somente se

a = b ∈ P1.

Fato 6. Para quaisquer a = [(a1, a2)], b = [(b1, b2)] ∈ P1,

a intersecção de retas La ∩ Mb é formada pelo, e apenas pelo,

ponto

[b1(ia1, a1, ia2, a2) + b2(ia2,−a2,−ia1, a1)] .

Demonstração. Note também que [b1u1(a) + b2u2(a)] ∈La, [a1v1(b) + a2v2(b)] ∈ Mb e que b1u1(a) + b2u2(a) =

a1v1(b)+ a2v2(b). Assim [b1u1(a)+ b2u2(a)] ∈ La ∩Mb,

isto é, La e Mb se intersectam para quaisquer a e b.

Para vermos que esse é o único ponto de intersecção,

verificaremos que Ua = Vb.

Caso 1: Se b1 = 0, então Vb = [(0, 0,−i, 1), (i,−1, 0, 0)].

Logo u1(a) /∈ Vb, do contrário existiriam α e β ∈ C tais

que ia1 = iβ, a1 = −β, ia2 = −iα e a2 = α, de onde

concluímos que a1 = a2 = 0, o que contradiz a ∈ P1.

Caso 2: Se b1 = 0, então, supondo b1 = 1

sem perda de generalidade, temos Vb =

[(i, 1,−ib2, b2), (ib2,−b2, i, 1)]. E, neste caso, temos

que u2(a) /∈ Ub, pois do contrário teríamos que

ia2 = iα + iβb2

−a2 = α− βb2

−ia1 = −iαb2 + iβ

a1 = αb2 + β

Multiplicando a segunda equação por i e somando-a à

primeira obtemos que α = 0. Aplicando o mesmo pro-

cedimento à terceira e à quarta equações chegamos à

conclusão que β = 0. Mas isso implica a1 = a2 = 0, o

que é uma contradição novamente.

Fato 7. Dado q ∈ Z(F4), existem únicas retas Laq e Mbq

tais que Laq ∩Mbq = {q}.

Demonstração. A seguir vamos exibir as retas Laq e Mbq

tais que Laq ∩ Mbq = {q}. Seja q = [(x1, x2, x3, x4)] ∈Z(F4), o que implica x1

2 + x22 + x3

2 + x42 = 0. Temos

duas possibilidades:

(I) x1 + ix2 = x3 + ix4 = 0;

(II) x1 + ix2 = 0 ou x3 + ix4 = 0.

No caso (I), tome aq = [(x4,−x2)] e bq = [(0, 1)]. Assim

Uaq = [(ix4, x4,−ix2,−x2), (−ix2, x2,−ix4, x4)]

e

Vbq = [(0, 0,−i, 1), (i,−1, 0, 0)] .

Observe que (x1, x2, x3, x4) = (−ix2, x2,−ix4, x4), logo

pertence a Uaq . Além disso,

(−ix2, x2,−ix4, x4)

= x4(0, 0,−i, 1)− x2(i,−1, 0, 0) ∈ Vbq ,

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67Matemática Universitária nº45

{Artigo}

de onde concluímos que Laq ∩Mbq = {q}.

No caso (I I), tome aq = [(x1 + ix2, x3 + ix4)] e bq =

[(x2− ix1, x4 + ix3)]. Não esquecendo de usar x21 + x2

2 +

x23 + x2

4 = 0, observe que

(−x1 − ix2) · u1(aq) + (x3 − ix4) · u2(aq)

= 2(x2 − ix1)(x1, x2, x3, x4) ∈ Uaq

e

(x1 + ix2) · v1(bq) + (x3 + ix4) · v2(bq)

= 2(x1 + ix2)(x1, x2, x3, x4) ∈ Vbq .

Portanto q ∈ Laq ∩ Mbq e, pelo Fato 6, é o único ponto

na intersecção.

Fato 8. Se for uma reta contida em Z(F4), então = La

ou = Ma, para algum a ∈ P1.

Demonstração. Tomemos a reta ⊂ Z(F4). Sejam

p = [x] e q = [y], com x = (x1, x2, x3, x4) e y =

(y1, y2, y3, y4), pontos distintos na reta . Então os ve-

tores x e y são linearmente independentes e = P(W),

com W = [x, y].

Seja Hx o plano definido pela forma linear

h(x, y, z, w) = x1x + x2y + x3z + x4w (ou seja,

Hx = Z(h)). Primeiro verificamos que ⊂ Hx.

De fato, se [v] ∈ então v = tx + sy, para certos

t, s ∈ C, e vale

h(v) = tF4(x) + s(x1y1 + x2y2 + x3y3 + x4y4) .

O primeiro termo da soma é nulo porque p ∈ Z(F4).

Por outro lado, como p e q pertencem aZ(F4) e [x+y] ∈ ⊂ Z(F4), então

0 = F4(x + y)

= F4(x) + F4(y) + 2x1y1 + 2x2y2 + 2x3y3 + 2x4y4

= 2(x1y1 + x2y2 + x3y3 + x4y4) ,

implicando que h(v) = 0.

Nosso objetivo será mostrar que

Hx ∩ Z(F4) = Lap ∪Mbp . (8)

Como ⊂ Z(F4) (por hipótese) e ⊂ Hx (pelo pará-

grafo anterior), então ⊂ Lap ∪ Mbp . Usando o Fato 1,

conclui-se que = Lap ou = Mbp , como queríamos

demonstrar.

A intersecção em (8) é o conjunto algébrico Z(h, F4),

e z = [(z1, z2, z3, z4)] ∈ Z(h, F4) se e somente se

h(z) = x1z1 + x2z2 + x3z3 + x4z4 = 0

F4(z) = z21 + z2

2 + z23 + z2

4 = 0.

Como o plano Hx é definido pela forma linear h não

nula, podemos supor, sem perda de generalidade, que

x4 = 0. Assim, Hx = Z(h) = Z(h1), com h1 = α1x +

α2y + α3z + w e αi = xix4

, para 1 ≤ i ≤ 3. Logo z =

(z1, z2, z3, z4) ∈ Z(h, F4) se, e somente se,

α1z1 + α2z2 + α3z3 + z4 = 0

f = 0 ,

em que f = (1 + α21)x2 + (1 + α2

2)y2 + (1 + α23)z2 +

2α1α2xy + 2α1α3xz + 2α2α3yz ∈ C[x, y, z]. Portanto

Z(h, F4) = Z(h1, f ).

Os coeficientes 1 + α2i , 1 ≤ i ≤ 3, não podem ser

todos nulos, pois 1 + α2i = 0 para 1 ≤ i ≤ 3 im-

plica α21 + α2

2 + α23 = −3, o que é uma contradição com

p = [x] = [(α1, α2, α3, 1)] ∈ Z(F4), pois isto implica

α21 + α2

2 + α23 = −1. Assim vamos supor, sem perda de

generalidade, que 1 + α21 = 0. Façamos λ = 1 + α2

1

e tomemos µ tal que µ2 = λ, para simplificar a no-

tação. É uma simples conta verificar que f = L1L2,

com L1 = µx + ( µα1α2λ + α3

µ )y + ( µα1α3λ − α2

µ )z e L2 =

µx + ( µα1α2λ − α3

µ )y + ( µα1α3λ + α2

µ )z. Então Z(h, F4) =

Z(h1, f ) = Z(h1, L1L2) = Z(h1, L1) ∪ Z(h1, L2). Além

disso, L1 e L2, por não terem termo em w, não são múl-

tiplos de h1, implicando que 1 = Z(h1, L1) e 2 =

Z(h1, L2) são retas.

Sabemos que o ponto p = [x] está contido nas re-

tas Lap e Mbp e, assim como mostramos que ⊂ Hx,

mostra-se que Lap e Mbp estão contidas no plano Hx.

Como essas retas também estão em Z(F4),

Lap ∪Mbp ⊂ Z(h, F4) = 1 ∪ 2 .

Assim, Lap ⊂ 1 ∪ 2 e Mbp ⊂ 1 ∪ 2 e, portanto, Lap ⊂(Lap ∩ 1)∪ (Lap ∩ 2) e Mbp ⊂ (Mbp ∩ 1)∪ (Mbp ∩ 2).

Como as retas Lap , Mbp , 1 e 2 estão contidas no plano

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68 Matemática Universitária nº45

{Artigo}

Hx, segue-se do Fato 1 que Lap ∩ 1 consiste de um único

ponto ou Lap = 1. Por outro lado, todas essas retas

passam pelo ponto p = [x], assim a intersecção de qual-

quer par dessas retas, no caso de serem distintas, será

o ponto p. Como Lap ⊂ (Lap ∩ 1) ∪ (Lap ∩ 2), en-

tão não pode acontecer que Lap = 1 e Lap = 2, pois

neste caso teríamos que Lap ⊂ (Lap ∩ 1) ∪ (Lap ∩ 2) =

{p} ∪ {p} = {p}, o que é um absurdo, pois uma reta

consiste de infinitos pontos. Assim, podemos afirmar

que i = Lap , para i = 1 ou i = 2. Da mesma forma,

i = Mbp , para i = 1 ou i = 2. Além disso, i não pode

ser o mesmo nos dois casos, já que Lap e Mbp são retas

distintas. Portanto 1 ∪ 2 = Lap ∪ Mbp , e isto encerra a

demonstração de (8).

Sejam 1, 2, 3, 4 quatro retas disjuntas duas a duas em

P3. O primeiro passo será associar às três primeiras re-

tas disjuntas uma superfície quádrica que as contenha.

Escolhendo três pontos distintos p1i , p2

i e p3i em cada

reta i, para 1 ≤ i ≤ 3, segue-se de (3) que existe pelo

menos uma superfície quádrica Q = Z(F) com F ∈ S2,

não nulo, contendo esses 9 pontos. Assim, temos que

{p1i , p2

i , p3i } ⊂ Q ∩ i para 1 ≤ i ≤ 3, e consequente-

mente, da Proposição 5, as três retas estão contidas em

Q.

Por outro lado, sabemos que existe uma mudança de

coordenadas projetivas T tal que T(Q) = Z(Fk), para

algum 1 ≤ k ≤ 4. Ademais, convém lembrar que uma

mudança de coordenadas projetivas transforma retas

em retas, e que pares de retas disjuntas são aplicados

em pares de retas disjuntas.

Finalmente, a partir dos Fatos 3 e 4, concluímos que

T(Q) só pode ser Z(F4), em particular, não singular

(por simplicidade, iremos supor que essa mudança de

coordenadas já foi feita e que Q = Z(F4)). Já os Fa-

tos 8 e 6 nos dizem que essas retas são todas de, e

apenas de, uma das famílias L = {La | a ∈ P1} ou

M = {Ma | a ∈ P1}. Iremos supor, sem perda de gene-

ralidade, que i ∈ L, para 1 ≤ i ≤ 3.

O segundo passo é verificar que uma reta que inter-

secta 1, 2, 3 e 4 deve estar contida em Q. Se é uma

tal reta, definimos {pi} = ∩ i, para 1 ≤ i ≤ 3. Como

as retas i, para 1 ≤ i ≤ 3, são duas a duas disjuntas,

e estão contidas na quádrica Q, temos que os pontos

pi, para 1 ≤ i ≤ 3, têm que ser distintos e pertencer à

quádrica Q. Logo, da Proposição 5, segue que ⊂ Q.

Assim será necessariamente uma reta contida em Q

que intersecta as retas i ∈ L, para 1 ≤ i ≤ 3. Portanto,

pelos Fatos 5 e 8, será necessariamente da família M.

O passo final é considerar a quarta reta. Usando no-

vamente a Proposição 5, 4 está contida em Q ou Q ∩ 4

consiste de dois pontos (não necessariamente distintos).

Analisemos esses dois casos.

Caso 4 ⊂ Q. Como 4 é disjunta de i, para 1 ≤ i ≤ 3,

então, pelos Fatos 5, 6 e 8, 4 também pertence à família

L. Neste caso todas as retas da família M intersectam 1,

2, 3 e 4, simultaneamente. Portanto, as infinitas retas

da família M são soluções do problema em questão.

Caso 4 ⊂ Q. Pela Proposição 5, Q ∩ 4 = {q1} ∪ {q2},

com q1 e q2 não necessariamente distintos. Sejam Mb1 e

Mb2 as únicas retas da família M que passam por q1 e q2,

respectivamente, pelos Fatos 7 e 5. Então Mb1 e Mb2 in-

tersectam 1, 2, 3 e 4, simultaneamente, pelo Fato 6.

Como as soluções que estamos procurando são neces-

sariamente retas da família M, concluímos que Mb1 e

Mb2 são as únicas soluções. Teremos, então, exatamente

duas soluções se 4 não for uma reta “tangente” a Q,

isto é, q1 = q2, e, caso contrário, uma única solução.

Em resumo, a solução do problema proposto é: dadas

as quatro retas disjuntas, seja Q uma quádrica contendo

três delas. Se a quarta reta está contida em Q, então há

infinitas retas que intersectam as retas dadas. Se não,

pode haver duas ou uma, dependendo da posição rela-

tiva dessa quarta reta com respeito a Q.

Agradecimentos. Agradecemos ao Prof. Frank Sot-

tile, a gentileza de ter nos fornecido a figura 1, aos pa-

14

A solução do problema

Page 15: Artigo Álgebra linear e o problema das quatro retas do ... · rio no Andreanum Gymnasium em Hildesheim ... tificar seus resultados foi o tema do 15o Problema da fa- ... o espaço

69Matemática Universitária nº45

{Artigo}

receristas e editores da Matemática Universitária (em es-

pecial ao Prof. Eduardo Colli) e ao Prof. Nelson Nery

de Oliveira Castro (DM-UFPB), pela leitura e sugestões,

que tiveram um papel imprescindível na reformulação

do texto original. Durante a elaboração do texto o pri-

meiro autor (Jacqueline Rojas) teve o apoio parcial do

CNPq, processo número 620108/2008-8 (Edital Casadi-

nho).

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Jacqueline Rojas

CCEN - Departamento de Matemática - UFPB

Cidade Universitária - João Pessoa - PB

CEP: 58051-900

[email protected]

Ramón Mendoza

CCEN - Departamento de Matemática - UFPE

Cidade Universitária - Recife - PE

CEP: 50740-540

[email protected]

15

Referências