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INSTITUTO DE EDUCAÇÃO CONTINUADA Curso de Especialização em Clínica Psicanalítica nas Instituições de Saúde UMA REFLEXÃO ACERCA DA LOUCURA: Suas possíveis representações sociais, seu estigma, e uma possibilidade de inclusão A REFLECTION ON THE MADNESS: Its possible representations, its stigma, and a possibility of inclusion Vera Lúcia Rodrigues Maia

Artigo da vera

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Page 1: Artigo da vera

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO CONTINUADA

Curso de Especialização em Clínica Psicanalítica nas Instituições de

Saúde

UMA REFLEXÃO ACERCA DA LOUCURA:

Suas possíveis representações sociais, seu estigma, e uma possibilidade

de inclusão

A REFLECTION ON THE MADNESS:Its possible representations, its stigma, and a possibility of inclusion

Vera Lúcia Rodrigues Maia

BETIM

2011

Vera Lúcia Rodrigues Maia

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UMA REFLEXÃO ACERCA DA LOUCURA:

Suas possíveis representações sociais, seu estigma, e uma possibilidade

de inclusão

A REFLECTION ON THE MADNESS:Its possible representations, its stigma, and a possibility of inclusion

Artigo apresentado ao Programa de Pós Graduação em Clínica Psicanalítica nas Instituições de Saúde do Instituto de Educação Continuada (IEC) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Clínica Psicanalítica nas Instituições de Saúde.

Orientador: Renato Diniz Silveira

BETIM2011

RESUMO

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Muito se tem feito para a inserção dos portadores de sofrimento mental na sociedade, mas torna-se necessário garanti-lhes o efetivo exercício dos direitos básicos como cidadãos, para que possam circular em sua cidade. Mas como circular na cidade, onde o preconceito e a desinformação o isolam e perpetuam o estigma do “louco” como incapaz e perigoso? Será que a sociedade poderia aprender a conviver com a diferença? Como seria esse aprender se o saber, a idéia que as pessoas têm do “louco”, ou seja, as representações sociais sobre a loucura foram construídas ao longo do processo histórico? Através desses questionamentos é que surgiu este trabalho. Assim, a proposta deste texto é fazer uma reflexão sobre as questões acima e também apresentar uma possibilidade para que o adulto do futuro possa vir a ter outra representação sobre a loucura. Para esta proposta de reflexão é apresentada a questão da possível representação social da loucura, bem como seu estigma e a construção destes conceitos no decorrer das épocas, relatando um pouco sobre a história da loucura.

Palavras chaves: Loucura, representações sociais, estigma, portador de sofrimento mental

ABSTRACT

Much has been made for the inclusion of mental patients into society, but it is necessary to guarantee the effective exercise of their basic rights as citizens, for them to circulate in your city. But how to get around the city, where prejudice and misinformation insulate and perpetuate the stigma of "crazy" as incompetent and dangerous? Does society could learn to live with difference? How would you know if this learning, the idea that people have the "insane", ie the social representations of madness were built along the historical process? Through these questions is that this work emerged. Thus, the purpose of this paper is to reflect on the above issues and also provide a chance for the adults of the future might have other representation about madness. For this proposal appears to reflect the issue of possible social representation of madness, as well as its stigma and construction of these concepts in the course of times, telling a little about the history of madness.

1. Keywords: Madness, social representations, stigma, mental illness patient

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INTRODUÇÃOA visita do psiquiatra italiano Franco Basaglia ao Brasil em 1978/1979, produziu

uma forte influência na trajetória da nossa reforma psiquiátrica. De acordo com Amarante (2006),

em 1989 iniciou-se um trabalho revolucionário na cidade de Santos influenciado pela visita de

Basaglia. Em uma clínica psiquiátrica dessa cidade foram implantadas novas maneiras de lidar com

pessoas em sofrimento psíquico, como os núcleos de atenção psicossocial (Naps) abertos 24 horas,

sete dias por semana. Foram criadas oficinas de trabalho para geração de renda dos ex-internos,

além de cooperativas de trabalho e de diversos projetos culturais de inserção social. Desta forma,

com várias medidas inovadoras na saúde mental, a reforma psiquiátrica no Brasil foi se

transformando em prática social e política antes mesmo de virar lei. Ainda em 1989, Paulo Delgado,

deputado federal, apresentou um projeto de lei de sua autoria (3657/89) que seguindo o exemplo de

Basaglia na Itália, pedia a superação do modelo asilar-manicomial. Depois dessa iniciativa, várias leis

do mesmo tipo foram aprovadas em diversos estados brasileiros, e várias experiências para suprimir

as estruturas manicomiais foram implantadas em todo o país, dando início ao movimento intitulado

hoje como “luta antimanicomial”.Atualmente o país conta com quase mil serviços de

saúde mental abertos, de acordo com Amarante (2006). Esses serviços funcionam

de maneiras diferenciadas em cada região do Brasil, possuindo equipes

multidisciplinares, envolvendo vários setores sociais e não apenas o setor da saúde.

Sem dúvida, vivemos um grande avanço nessa área.A luta antimanicomial no Brasil

mudou muito o contexto de vida dos portadores de sofrimento mental em nosso país. Ela trouxe

muitas ações efetivas para a inclusão do portador de sofrimento mental, abrindo espaços para

discussões, como os Fóruns de Saúde Mental com a participação da sociedade, do poder público e

também dos próprios usuários da rede de saúde mental e seus familiares. A “loucura” passou a fazer

parte da cidade, pois o paciente outrora enclausurado nos hospitais psiquiátricos passa a conviver

com a família, com os vizinhos, a comunidade. Ele passa a ser usuário do sistema substitutivo. Assim,

firma-se uma política nacional antimanicomial, que concebe o portador de sofrimento mental como

sujeito e cidadão. Muito se tem feito para a inserção dos portadores de sofrimento mental na

sociedade, mas torna-se necessário garanti-lhes o efetivo exercício dos direitos básicos como

cidadãos, para que possam circular em sua cidade. Mas como circular na cidade, onde o preconceito

e a desinformação o isolam e perpetuam o estigma do “louco” como incapaz e perigoso? Será que a

sociedade poderia aprender a conviver com a diferença? Como seria esse aprender se o saber, a

idéia que as pessoas têm do “louco”, ou seja, as representações sociais sobre a loucura foram

construídas ao longo do processo histórico? Através desses questionamentos é que surgiu este

trabalho. Assim, a proposta deste texto é fazer uma reflexão sobre as questões acima e também

apresentar uma possibilidade para que o adulto do futuro possa vir a ter outra representação sobre a

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loucura.Para esta reflexão faremos um percurso sobre o conceito de representação

social, bem como da construção do conceito da loucura e seu estigma no decorrer

das épocas, relatando um pouco sobre a história da loucura. Em seguida abordaremos

ainda como reflexão uma possível prática educativa para crianças e adolescentes

que incluísse o tema loucura no ensino fundamental, para que de alguma forma a

loucura se torne assunto de escola. Na vida tudo se aprende então aprender a

conviver com as pessoas portadoras de sofrimento mental pode ser possível, uma

vez que haja esclarecimento e discussão desses assuntos desde a mais tenra

idade.Possíveis Representações Sociais da Loucura e sua EstigmatizaçãoSe perguntarmos às

pessoas o que é loucura, ou o que é ser louco, poderemos ver que falar ou

conceituar a loucura não é tão fácil para as pessoas e que às vezes, na maioria

delas, as respostas vêm de discursos já prontos, vindas do imaginário coletivo, ou

melhor, muitas idéias que temos sobre a loucura vêm de conceitos sociais, ou seja,

de idéias comuns das pessoas que pertencem a uma sociedade. Desta forma

podemos afirmar como Montero (1979) que “[...] a sociedade, nos diferentes

momentos de sua organização pensa a loucura e define seus loucos.” (MONTERO,

1979, p.2). Desta forma podemos perguntar quais seriam os critérios que nossa

sociedade utiliza para definir a loucura, ou mesmo o que é ser louco para a nossa

sociedade? Desta forma, antes de fazer um percurso histórico sobre a construção

das idéias sobre a loucura, abordaremos brevemente sobre o conceito de

representação social. De acordo com Oliveira & Werba (1994), as representações

sociais são teorias sobre saberes populares e do senso comum, elaboradas e

partilhadas coletivamente, com a finalidade de construir e interpretar o real, ou seja,

para compreender e controlar a realidade social. Desta forma como dito acima, estes

saberes seriam provenientes do senso comum, que corresponde a uma forma de

pensamento mais natural e espontâneo, como as conversas cotidianas, sendo um

pensamento livre, porém estes pensamentos são “[...] fortemente influenciados pela

tradição e pelos estereótipos de linguagem” (MOSCOVICI, 1978, p. 96). Assim,

esses saberes populares são cunhados a partir dos processos históricos das

sociedades, sendo no caso deste estudo, a sociedade ocidental.O conceito de

representação social é mencionado pela primeira vez por Moscovici, em seu estudo

sobre a representação social da psicanálise. Moscovici (1978) retoma o conceito

proposto por Durkheim e o remodela a partir de duas vertentes: os estudos

piagetianos de representação da criança, e os trabalhos de Freud sobre as teorias

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sexuais infantis. Também contribuíram para a criação da teoria das representações

sociais a teoria da linguagem de Saussure, e a teoria do desenvolvimento cultural de

Vigotsky. Segundo Perrusi (1995), Moscovici introduziu a teoria das representações

sociais na psicologia social, na década de 1960, com a sua pesquisa sobre a

Representação Social da Psicanálise, como mencionado acima. Assim, para esse

autor, representação social é uma modalidade de conhecimento particular que tem

por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos. De

acordo com Oliveira & Werba (1994), o estudo da representação social é muito

importante, pois ele busca conhecer o modo de como um grupo humano constrói um

conjunto de saberes que expressam a identidade de seu grupo social, as

representações que ele forma sobre uma diversidade de objetos, tanto próximos

como remotos, e principalmente o conjunto dos códigos culturais que definem, em

cada momento histórico, as regras de uma comunidade. Desta forma, as

representações sociais determinam a visão de mundo e a reação às pessoas e às

coisas. Ao perguntamos como as pessoas constroem representações sobre a

loucura, podemos dizer, embasados nos conceitos acima, que as representações

sociais e a rede de significações sobre a loucura e sobre o adoecer psíquico são

construções produzidas a partir da articulação ente o individual e o social e ainda

entre o pessoal e o coletivo. Neste sentido, para se estudar como este processo

acontece faz-se necessário um pequeno percurso pela história da loucura, pois

como bem salienta Moscovici (1978) os saberes populares são gerados a partir dos

processos históricos.Breve histórico da loucuraFoucault aponta ao longo de sua

obra a Doença mental e psicologia, que foi somente no começo da era clássica que

a loucura tornou-se exclusivamente uma forma de erro, de desvio. Antes do século

XIX, a experiência da loucura no mundo ocidental era bastante polimorfa; e seu

confisco na nossa época pelo conceito de "doença" não deve iludir-nos a respeito de

sua exuberância originária. Sem dúvida, desde a medicina grega, uma certa parte no

domínio da loucura já estava ocupada pelas noções de patologia e as práticas que a

ela se relacionam. (FOUCAULT, 1994. p.76). Porém, para os gregos não se

esgotava aí seu sentido; na sua crença de que seu destino era comandado pelos

deuses, a loucura tinha um sentido de místico, de revelação, sem nenhuma

conotação pejorativa. Os gregos não descartaram o sagrado, presente em todas as

manifestações humanas. Assim, na antiguidade, os comportamentos bizarros, ou

seja, a loucura era vista sobre três óticas diferentes: uma como sendo obra da

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intervenção divina, outra como resultado dos conflitos das paixões do homem,

mesmo que permitidos ou impostos pelos deuses, e na última como conseqüências

de disfunções somáticas, causadas pelos humores. Desta forma, pode-se concluir

segundo afirma Pessoti (1994) que Homero concebe a loucura sobre o enfoque

mitológico-religioso; nas tragédias a loucura, como desvarios do comportamento

humano, passa a ser concebida, principalmente nas obras de Eurípedes, com o

enfoque passional e psicológico e finalmente, Hipócrates e Galeno, consolidam a

idéia organicista da insensatez ou da des-razão.De acordo com Foucault (2008),

durante e até o final da Idade Média, a loucura fazia parte da vida cotidiana,

circulando livremente por todos os espaços sociais. Não havia uma preocupação

médica com o louco nem tampouco com seu isolamento. O grupo de pessoas

excluídas eram os leprosos, que eram ao mesmo tempo temidos e sacralizados; sua

doença era símbolo da cólera e da bondade de Deus, uma vez que a doença era

para o leproso o caminho para a purificação e a salvação.Ainda na Idade Média a

loucura passa a ser identificada à possessão demoníaca, tendo essa idéia originada

na formação doutrinária cristã, uma vez que neste período da história a igreja

católica romana se fortalece, fazendo com que o mundo medieval ocidental se torne

predominantemente cristão. Conforme se consolidava o poder do cristianismo, as

divindades que não faziam parte do culto cristão e aqueles que não professavam

como tais, eram considerados pagãos e hereges, sendo assim considerados

partidários ou instrumentos do demônio. Portanto, todo comportamento incomum,

segundo o pensamento dessa época, era considerado possessão demoníaca. Com

o advento do Renascimento, profundas mudanças culturais marcaram também uma

diferença na maneira de perceber a loucura. Os loucos, muitas vezes, eram

embarcados e encerrados em uma nau errante de cidade em cidade, o que para

Foucault (2008) tem um sentido simbólico de exílio ritual. Embarcá-los seria purificá-

los e assegurar que partiriam para longe.Na época da Reforma Protestante (Sec.

XVI), ainda persistiu o caráter de religiosidade ligado à loucura, embora mudanças

do sistema produtivo que ocorreram neste período tenham feito com que o indivíduo

considerado louco fosse percebido de modo diferente, como improdutivo, portanto,

indesejável. A nova ordem passou a ser a de excluí-lo do meio social. Desta forma,

em meio ao século XVII, em toda a Europa foram criados estabelecimentos para que

os loucos fossem internados, assim os hospitais gerais e Santas Casas de

Misericórdias, funcionavam como o espaço de recolhimento de toda ordem de

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marginais. De acordo com Sterian (2001) essa internação que agrupava com os

loucos, os portadores de doenças venéreas, os libertinos e muitos criminosos, criou

uma exclusão e uma assimilação da loucura com as culpas morais e sociais,

mantendo-se até hoje uma ligação muito próxima desta com aquela, assim como o

paralelo da filiação da loucura à bruxaria ou à obras demoníacas.De acordo com

Sterian (2001), a internação nesses asilos não tinha nenhum caráter ou vocação

médica, ou seja, a causa da internação não era para tratamento médico, pois não

havia ainda critérios patológicos, mas sim para excluir da sociedade. O saber sobre

a loucura não era diferente das outras categorias marginais, mas “o critério que

marca a exclusão desta está referido à figura da desrazão”. (AMARANTE, 1995,

p.24), assim a fronteira para inserir ou não alguém dentro dos asilos, era a que se

referia à ausência ou não de razão. A preocupação com critérios médicos ainda não

fazia parte deste período.É com o advento da Revolução Francesa, com prevalência

da ordem burguesa, do estabelecimento dos direitos de cidadãos que o poder

jurídico não sabe mais como legislar sobre a loucura, é que a medicina inicia sua

apropriação. O criminoso que transgride a lei pode ser julgado, porém, como culpar

alguém que não tem noção da transgressão que comete? É nesse lugar de aliada da

ordem social que a medicina adota a loucura como seu objeto de estudo científico. É

também a partir daí que a internação passou a adquirir o sentido de intervenção

médica, ou seja, o internamento ganhou características médicas e terapêuticas.De

acordo com Sterian (2001) foi inaugurado um humanismo e uma ciência positivista,

tanto na psiquiatria, quanto na medicina com as contribuições de Pinel na França,

Tuke, na Inglaterra; Wagnitz e Riel, na Alemanha. Surgiram, então as primeiras

classificações de doenças mentais. Sem ter uma localização orgânica de lesão, a

loucura ganharia o estatuto de doença como sendo um desvio do ideal de

sociabilidade, em falhas na vontade e desvios nos instintos. Desta forma, o

tratamento só poderia consistir em reintegrar o indivíduo dentro das normas sociais,

moralizar sua vontade, regular seus instintos. Essa idéia surge com Pinel, que

estabelece assim a doença como problema de ordem moral e então inaugura-se um

tratamento da mesma forma, como o descrito acima.Assim, “[...] a caracterização do

louco enquanto personagem representante de risco e periculosidade inaugura a

institucionalização da loucura pela medicina e a ordenação do espaço hospitalar por

esta categoria profissional” (AMARANTE, 1995, p.24). Para um melhor entendimento

de sua afirmação, Amarante (1995) cita Denise Dias Barros que salienta que a idéia

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de periculosidade social ao conceito de doença mental, estabelecido pela medicina,

criou uma relação entre punição e tratamento, trazendo como conseqüência a tutela

do louco para o saber médico. Isto possibilitou a instituição das práticas manicomiais

e por fim a segregação e a morte da fala do louco, pois sua fala “perde qualquer

caráter de verdade” (SILVEIRA, 2000, p.39).No século XIX, ou melhor, na segunda

metade deste século, a psiquiatria passa a ser o referencial de verdade em relação

ao que é ou não é doença mental. Já no período pós-segunda guerra, instaura-se

cenários para alguns projetos de reforma psiquiátrica que de certa forma foram

antecessores da reforma psiquiátrica contemporânea. Segundo Amarante (1995)

após a Segunda Guerra, novas questões são colocadas no cenário mundial em

relação a instituição asilar, ao saber psiquiátrico, dando assim, início à várias

reformas posteriores à reforma de Pinel.Este breve percurso sobre as várias

concepções da loucura no processo histórico, vem elucidar para nós um pouco de

entendimento sobre as representações sociais da loucura, na atualidade. Sendo o

conceito de loucura ainda nebuloso e de explicação difícil, ele é ligado a uma

condição de estranheza por ser um fenômeno no qual não se tem uma compreensão

plena ou domínio, e os porquês não foram completamente elucidados, assim

pertence à ordem do desconhecido e tudo o que é desconhecido, segundo

Moscovici (1978), motiva as pessoas a criar representações sociais. Para Perrusi

(1995) o saber comum, ou senso comum, tem duas maneiras de se relacionar com

um conhecimento social; a primeira estaria associada a experiência primária,

embasada na tradição e na cultura com o objeto; a segunda estaria relacionada à

objetivação de um conhecimento científico em uma representação social, ou seja,

sua relação com o objeto social é mediada pela representação que surge alicerçada

no conhecimento científico. Desta forma, para Perrusi (1995) a representação social

de loucura, está ligada também aos médicos psiquiatras, pois para ele a psiquiatria

tem legitimidade social, sendo assim, o modelo médico é a matriz principal das

representações da doença mental existentes no senso comum, aliados à tradição e

à cultura das idéias sobre a loucura. Portanto, a idéia de perturbação mental,

distúrbio cerebral, doença da cabeça, doença dos nervos, sistema nervoso e

nervosismo, ao termo fora de si, mal estar psíquico, distorção da realidade, além de

configurar a loucura como algo que se inscreve dentro do próprio indivíduo (cérebro,

mente, nervos) e não como exterior a este, mas no organismo; podem ser conceitos

construídos a partir de uma representação social da loucura baseado nas idéias de

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construção de representação social afirmadas por Perrusi (1995).Portanto, cada

indivíduo possui internalizadas as normas de condutas ditadas por seu meio social,

que o orientam quanto ao modo adequado de comportar-se. Quando alguém age

fora dos padrões estabelecidos, como por exemplo, nos quadros maníacos, surge

necessidade de explicar tais manifestações. A loucura e os conhecimentos

científicos sobre ela são, então, conectados à noção de que a pessoa se torna

diferente, estranha, outra pessoa, ou seja, é ancorada no conhecimento próprio do

senso comum sobre o referido fenômeno. Assim, o conceito de loucura se liga e é

inserido ao conceito preexistente, enraizando-se socialmente. O objeto representado

(loucura) adquire significado através da representação social da loucura (a pessoa

fica fora de si) e passa a ser utilizada como sistema de interpretação do meio

social.A partir deste breve percurso pelas possíveis representações sociais da

loucura, podemos perceber que muito dos estigmas da loucura na atualidade vêm a

partir das representações sociais sobre a mesma. O EstigmaO termo estigma, de

acordo com com Goffman (1998), teve sua origem na Grécia antiga como um sinal

corporal para evidenciar algo extraordinário ou mau sobre o indivíduo que o

apresentava. Para Goffman (1998), existem três tipos de estigmas; as abominações

do corpo (deformidades físicas), as culpas de caráter individual (vontade física,

paixões tirânicas ou naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, distúrbios

mentais, prisão, vício, alcoolismo, homossexualidade, desemprego, tentativa de

suicídio, comportamento político radical) e estigmas tribais (raça, nação e religião),

estes estigmas aparecem com a mesma característica social: um indivíduo que

poderia ter sido recebido na relação social, possui um traço que o afasta daqueles

que o encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus.

Assim os ditos “normais” acreditam que alguém com um estigma, não é

completamente humano, então fazem vários tipos de discriminações, e muitas

vezes, até sem pensar, reduzem as chances de vida do estigmatizado.A loucura é

um tema que provoca pensamentos ambíguos nas pessoas, pois ao mesmo tempo

em que se tenta explicá-la e entende-la, também se procura manter um certo

distanciamento dela. Muitas vezes ela é vista como um enigma, algo indecifrável,

impenetrável, e ininteligível. O preconceito contra o doente mental, contra a sua

família, não só contribuem para a exclusão social de milhares de pessoas que ficam

impedidas de exercer normalmente sua capacidade profissional e pessoal, como

também dificulta a busca de informações preventivas e até mesmo a constatação

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precoce de doenças relevantes que precisam ser diagnosticadas e tratadas. O

preconceito também dão origem ao estigma da doença mental.De acordo com a

Sociedade Brasileira de Psiquiatria Clínica, o estigma é quando se rotula alguém

não pelo que é realmente ou sente, mas pela idéia que se tem dela, assim pode

referir-se a alguém com um transtorno mental como “louco”, “leso” ou “nóia”,

reforçando o estigma da loucura, e causando mais sofrimento à estas pessoas. O

uso de rótulos marca e desqualifica uma pessoa, essa marca é o que chamamos de

estigma, desta forma as pessoas estigmatizadas passam a ser reconhecidas pelos

aspectos negativos associados a esta marca, ou rótulo. O estigma nasce da

desinformação e pelo preconceito, e faz com que surja uma onda de discriminação e

exclusão social. Assim as pessoas que sofrem de transtornos mentais são tratadas

com desrespeito, desconfiança e medo, por causa do estigma e da discriminação. O

estigma atrapalha o processo de reconhecimento e aceitação da doença, provoca

vergonha, derruba a auto-estima dos portadores de sofrimento mental e com isso

prejudica também a sustentação de um projeto de reinserção social, como por

exemplo, a retomada dos estudos e ou trabalho e a circulação social. O preconceito

contribui para perpetuar o isolamento e o sofrimento dos doentes mentais bem como

de seus familiares. E o preconceito contra o portador de sofrimento mental na

maioria das vezes é por falta de informação. Por esta razão é que a Reforma

Psiquiátrica Brasileira juntamente com a Luta Antimanicomial tem como proposta os

serviços abertos e substitutivos ao manicômio, buscando práticas inclusivas e

lutando contra práticas segregacionistas. Porém, apesar de estar estabelecida em

Conferências de Saúde Mental, apoiada por vários poderes públicos e por

movimentos sociais, a idéia de descentralizar os hospitais psiquiátricos nem sempre

é compartilhada pela população. Para uma ReflexãoMuito se tem feito para acabar

com o estigma da loucura, para inserir o portador de sofrimento mental no cotidiano

e garantir-lhe os direitos como cidadão. Porém não basta, para garantir a inserção

dos portadores de transtornos mentais, apenas os projetos assistenciais. É

necessário garantir à eles o efetivo exercício dos direitos básicos como cidadão,

para que o mesmo possa circular em sua cidade. Mas como circular na cidade, onde

o preconceito e a desinformação fazem com que a sociedade o isole e perpetue o

estigma do “louco”, como incapaz e perigoso? Embora persistam ainda idéias

baseadas nos modelos antigos, herança de um olhar preconceituoso em relação à

loucura, tudo indica que caminhamos para estratégias para pensar a loucura de um

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modo diferente, e principalmente para olhar o portador de sofrimento mental como

um sujeito que pode sim viver fora dos hospitais psiquiátricos. Essas estratégias

cada vez mais irão ganhar espaço, e então será necessário pensar práticas que

incluam essas idéias no cotidiano das pessoas, principalmente daquelas que

pertencem ao presente e terão opiniões no futuro, como as crianças.A formação das

pessoas e a informação podem gerar questionamentos e sensibilização, que

poderão levar as pessoas a desconstruírem conceitos e preconceitos que há muito

são perpetuados e compartilhados uns com outros, bem como construir novos

conceitos. Nesse sentido percebe-se que o esclarecimento sobre questões

polêmicas, pode mudar opiniões e transformar conceitos. Então, pensando assim, a

educação escolar pode vir a ser uma possibilidade para inclusão desses temas na

sala de aula, pois a educação escolar não é totalmente suficiente, mas é necessária,

pois a escola é um agente de transformação.A cultura e a educação para a inclusão

social dependem de cidadãos educados nesse sentido e de uma sociedade que

exerça, através de todos os seus membros, os valores da inclusão. Esta concepção

nos aproxima da educação para o futuro e para a cidadania, proposta pela lei que

regulamenta o ensino no Brasil, ou seja, os Novos Parâmetros Curriculares

Nacionais (PCN), que para cumprir os objetivos da educação de formação integral

do cidadão, estabelece que um dos temas transversais deva contemplar as

diferenças, o preconceito e a igualdade entre os seres humanos, dentro do contexto

escolar, promovendo um ensino que contemple todos os assuntos cotidianos. Para a

inclusão desses temas, pode-se buscar na metodologia da transversalidade1, um

possível caminho para a inclusão do tema loucura na educação. Os temas

transversais envolvem um aprender sobre a realidade, na realidade e da realidade,

destinando-se a um intervir na realidade para transformá-la. Outra característica

desses temas é que abrem espaço para saberes extra-escolares. Na verdade, os

temas transversais prestam-se de modo muito especial para levar à prática a

concepção de formação integral da pessoa. Desta forma a transversalidade pode ser

considerada como o modo adequado para o tratamento destes temas. Eles não

devem constituir uma disciplina, mas envolver toda a prática educativa. Para se

trabalhar com a transversalidade é preciso que haja um empenho sistemático,

1 A transversalidade é um modo de trabalhar o conhecimento dos temas atuais, da realidade da vida humana, dentro das várias disciplinas que constituem o currículo escolar.

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contínuo, abrangente e integrado no decorrer de toda a educação.A inclusão dos

temas transversais tem o aparato dos novos Parâmetros Curriculares Nacionais

(PCN) do Ensino Fundamental, que estabelecem seis temas transversais a serem

trabalhados durante todo o processo de ensino/aprendizagem, a saber: ética, meio

ambiente, saúde, trabalho e consumo, orientação sexual e pluralidade cultural. No

tema Ética são abordadas várias questões, inclusive a conivência com as

diferenças, para que se construa a compreensão e a tolerância com as mesmas.Na

própria escola tem-se o convívio com as diferenças. A escola hoje, de acordo com a

nova Lei de Diretrizes de Base (LDB), tem de abrir suas portas para todas as

crianças, incluindo autistas, casos de déficits cognitivos, portadores de necessidades

especiais, TDAH e por que não aos ditos “maluquinhos”, com comportamentos

estranhos e às vezes até rotulados de “inaceitáveis”. Por isso o convívio com as

diferenças já é uma realidade dentro do contexto escolar, e a postura que os que ali

se encontram tomarem em relação às diferenças é que formarão os alunos que

estão neste contexto. Daí o pensar a educação sobre a loucura dentro do contexto

escolar através dos temas transversais. Temas que têm tamanha relação com a

vida, com o cotidiano, certamente aparecem nos momentos mais inesperados e o

professor deve estar preparado para não desperdiçar ocasiões que muitas vezes

são preciosas.A partir da metodologia dos temas transversais, abre-se a

possibilidade da doença mental, ser abordada dentro do contexto escolar; e também

contemplando a proposta de Morin (2001), em seus sete saberes necessários para

a educação do futuro, onde salienta o ensinar para a compreensão. Sendo a

compreensão o meio e o fim da comunicação humana, a educação para a

compreensão pretende uma reforma das mentalidades, onde se faça do

entendimento interpessoal uma saída para a barbaridade da incompreensão. Desta

forma, faz-se necessário estudar a incompreensão a partir de suas raízes, suas

modalidades e seus efeitos, pois enfocaria as causas do racismo, da xenofobia, do

desprezo, podendo ser um caminho, para que as idéias preconcebidas e

preconceituosas sobre a doença mental comece a mudar.O que se propõe nesta

reflexão é uma tolerância e uma convivência com o portador de sofrimento mental,

mas uma tolerância e uma vivência construída a partir da aprendizagem de cada

um. A tolerância vem da disposição de buscar a verdade em comum, com

independência de todo tipo de interesse. Essa vontade suscita em nós uma atitude

de simplicidade, que nos leva a admitir que, quando conhecemos algo estamos na

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verdade, porém não na verdade absoluta, total.Temos razão em defender nossa

verdade com firmeza e entusiasmo, mas erramos quando consideramos nossa

opinião como um ponto vista único sobre a realidade tratada. Então, necessitamos

de outros para ir conhecendo a realidade mais plenamente, de mais e mais

perspectivas. Para isso é necessário adotarmos uma atitude de respeito e deixar

que a realidade se nos vá manifestando em tudo que é e implica. Esta manifestação

ou desvelamento vem através da educação. Para tanto é necessária uma educação

criativa, o que nos permite a metodologia da transversalidade, para introduzir o tema

loucura na educação infantil. Uma educação criativa possibilita uma liberdade

criativa, acolhendo as possibilidades para o desenvolvimento pessoal das crianças,

levando-as a descobrir que um modo de se criar a verdade é promover

convivências, e que o poder que essa verdade me traz não coage e sim promove, ou

seja, promove convivências sadias, fundamental para pensar o futuro com as novas

propostas inclusivas e educativas salientadas por Delors2 na explanação dos quatro

pilares da educação; e de Morin3 na proposta dos setes saberes da educação do

futuro.Em relação à loucura, há muito saber dado e legitimado pela sociedade, ou

melhor, vivenciado e autenticado pelo adulto. Por isso, apesar de saber que muito

dos saberes infantis, estão baseados em conceitos adultos e que as crianças

também criam seus conceitos, pensei numa possibilidade que contemplasse a

educação infantil e que incluísse nessa educação o tema loucura. Meu propósito foi

estabelecer entre as crianças um novo paradigma sobre o conceito loucura. Mas

meu empreendimento não contempla um saber dado, consumado, porém que

levasse pelo menos a questionamentos entre as crianças, para que elas a partir dos

2 Jacques Delors, francês, é o presidente da comissão internacional sobre a educação para o século XXI, antigo ministro da Economia e das Finanças, antigo presidente da Comissão Européia. Em 1998 as Edições Unesco Brasil lançaram um livro intitulado “Educação um tesouro a Descobrir – Relatório da Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI”, coordenado por Jacques Delors. Este relatório estabeleceu os quatro pilares da educação contemporânea, que são: Aprender a ser, a fazer, a viver juntos e a conhecer; constituindo aprendizagens indispensáveis e sendo integrados aos eixos norteadores da política educacional em todos os países.

3 Com o objetivo, entre outros, de aprofundar a visão transdisciplinar da educação, que a Unesco solicitou a Edgar Morin que expusesse suas idéias sobre a educação do amanhã. Edgar Morin aceitou o desafio e escreveu um texto da mais profunda reflexão, que sabiamente intitulou de Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro.

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próprios questionamentos construíssem conceitos e aprendizagens diferentes sobre

a loucura.A proposta para uma reflexão sobre essa possibilidade de mudança na

construção de novas idéias sobre a loucura, não tem a pretensão de trazer uma

solução para a questão da inclusão do portador de sofrimento mental, mas apenas

uma possibilidade, e são nas possibilidades que todos os profissionais que atuam na

Saúde Mental vêm trabalhando e conquistando resultados.REFERÊNCIAS

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