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Revista Crítica de Ciências Sociais, 66, Outubro 2003: 81-116 ANÍBAL FRIAS Praxe académica e culturas universitárias em Coimbra. Lógicas das tradições e dinâmicas identitárias 1 As culturas estudantis e universitárias em Portugal, muito pouco estudadas, são objecto de descrição e análise a partir do caso exemplar de Coimbra. Torna-se para tal necessário defini-las e entendê-las dentro de um quadro metodológico, social e histórico. Com- preender a Praxe académica pressupõe articular a Academia e a Universidade, apreen- didas na sua evolução mútua ou paralela como dois universos indissociáveis, ainda que autónomos. É necessário igualmente ter em conta os usos internos à Academia e as posições políticas, reflectidas parcialmente nas críticas à Praxe como as provenien- tes das Repúblicas, bem como os interesses económicos, com a repercussão do turismo sobre as “tradições” a conduzir à institucionalização e patrimonialização destas. Todas estas dimensões permitem fazer luz sobre as lógicas e as dinâmicas sociais de um fenómeno complexo em forte expansão, apesar dos excessos e das contestações recen- tes ecoadas e amplificadas pelos media. Introdução Mesmo num mundo secularizado e desencantado, não há decerto instituições que não ultrapassem o quadro de uma racionalidade funcional. A Universi- dade de Coimbra é, a este respeito, um exemplo particularmente esclarece- dor. Neste sentido, a Praxe Académica garante a esta entidade social a sua dimensão simbólica. Associada aos estudantes, a Praxe Académica não é, de resto, senão a parte mais visível dos actos cerimoniais da comunidade universitária. Esta configuração complexa de práticas rituais, formais e festivas, acompanhada por uma constelação de imagens, de objectos e de mitos, confere ostensivamente à Universidade os sinais de uma singularidade reivindicada e de uma exemplaridade muito pouco estudada. A Universidade de Coimbra, ou mais precisamente o Studium Generale (Estudo Geral), foi “fundada” no dia 1 de Março de 1290, em Lisboa, pelo rei D. Dinis. 2 Até 1911, na Primeira República, permanece a única Univer- 1 Manifesto o meu reconhecimento aos estudantes da Universidade de Coimbra, que generosa- mente me confiaram as suas palavras e experências. Uma primeira versão deste artigo beneficiou dos comentários do Prof. Joaquim Pais de Brito. Quero agradecer aos Profs. João Arriscado Nunes, que coordenou a minha investigação no CES, e Elísio Estanque, pelo convite que me dirigiu para participar no presente número. 2 A data é objecto de discussão entre os historiadores. Sobre o mito das “origens” da Universidade, ver Ruegg (1996: 4 e ss).

Artigo em revista de autoria de anibal frias

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  • 1. Revista Crtica de Cincias Sociais, 66, Outubro 2003: 81-116ANBAL FRIASPraxe acadmica e culturasuniversitrias em Coimbra.Lgicas das tradies e dinmicas identitrias 1As culturas estudantis e universitrias em Portugal, muito pouco estudadas, so objectode descrio e anlise a partir do caso exemplar de Coimbra. Torna-se para tal necessriodefini-las e entend-las dentro de um quadro metodolgico, social e histrico. Com-preender a Praxe acadmica pressupe articular a Academia e a Universidade, apreen-didas na sua evoluo mtua ou paralela como dois universos indissociveis, aindaque autnomos. necessrio igualmente ter em conta os usos internos Academia eas posies polticas, reflectidas parcialmente nas crticas Praxe como as provenien-tes das Repblicas, bem como os interesses econmicos, com a repercusso do turismosobre as tradies a conduzir institucionalizao e patrimonializao destas. Todasestas dimenses permitem fazer luz sobre as lgicas e as dinmicas sociais de umfenmeno complexo em forte expanso, apesar dos excessos e das contestaes recen-tes ecoadas e amplificadas pelos media.IntroduoMesmo num mundo secularizado e desencantado, no h decerto instituiesque no ultrapassem o quadro de uma racionalidade funcional. A Universi-dade de Coimbra , a este respeito, um exemplo particularmente esclarece-dor. Neste sentido, a Praxe Acadmica garante a esta entidade social a suadimenso simblica. Associada aos estudantes, a Praxe Acadmica no ,de resto, seno a parte mais visvel dos actos cerimoniais da comunidadeuniversitria. Esta configurao complexa de prticas rituais, formais efestivas, acompanhada por uma constelao de imagens, de objectos e demitos, confere ostensivamente Universidade os sinais de uma singularidadereivindicada e de uma exemplaridade muito pouco estudada. A Universidade de Coimbra, ou mais precisamente o Studium Generale(Estudo Geral), foi fundada no dia 1 de Maro de 1290, em Lisboa, pelorei D. Dinis. 2 At 1911, na Primeira Repblica, permanece a nica Univer-1 Manifesto o meu reconhecimento aos estudantes da Universidade de Coimbra, que generosa-mente me confiaram as suas palavras e experncias. Uma primeira verso deste artigo beneficioudos comentrios do Prof. Joaquim Pais de Brito. Quero agradecer aos Profs. Joo Arriscado Nunes,que coordenou a minha investigao no CES, e Elsio Estanque, pelo convite que me dirigiu paraparticipar no presente nmero.2 A data objecto de discusso entre os historiadores. Sobre o mito das origens da Universidade,ver Ruegg (1996: 4 e ss).
  • 2. 82 | Anbal Friassidade, com excepo para a de vora, cuja existncia decorre entre 1557 e1759. Ser por diversas vezes transferida para Lisboa; de 1308 a 1338 e de1354 a 1377 tem a sua sede em Coimbra, onde vem a ser defitivamenteinstalada em 1537 por vontade de D. Joo III, que a sujeita a uma profundareforma sob a influncia do Humanismo. constituda por quatro facul-dades: Teologia, Cnones, Leis e Medicina, segundo a ordem hierrquicaestabelecida. As alteraes de envergadura em matria de pedagogia e dearquitectura, introduzidas pelo Marqus de Pombal nos Statuts de 1772,inspiram-se nas ideias racionalistas das Luzes. 3 A Praxe Acadmica, que em Portugal designa as tradies estudantis,refere-se, em primeiro lugar, s diversas humilhaes, mais ou menos ritua-lizadas, que os estudantes mais antigos, os doutores, impem aos maisnovos, os caloiros. A limitao de uma tal noo esfera da coaco e relao doutor/caloiro assinalada pelos trs smbolos da Praxe: a moca,a tesoura e a colher de pau. A Praxe Acadmica refere-se igualmente, oureferia-se, a brincadeiras por vezes violentas, a comportamentos ldicos epardicos: troas, partidas, piadas, de que do testemunho as Memriasdos antigos estudantes. Esta restrio da Praxe deve incluir os registos subjec-tivo e representacional: o do vivido e o das percepes variveis, segundoos grupos e as pocas. Contudo, a prpria natureza destas tradies, comoveremos, que evolui imagem da Universidade e da sociedade. Tal como aPraxe, a tradio, a cultura e os rituais que a definem ou com os quais identificada no so processos bvios. A Praxe Acadmica actual constitui, no seu conjunto, um objecto so-cial total, segundo o sentido de Marcel Mauss (1983: 274). Com efeito,este fenmeno complexo e multiforme participa do ritual, do ldico, dofestivo, do jurdico, do econmico, do artstico, do poltico; associa prticas,objectos, uma gria, insgnias, gestos, palavras, literaturas, formas grficas,elementos sonoros; implica inmeros indivduos, grupos entidades e organis-mos. A Latada e a Queima das Fitas, que dela fazem parte, so aconteci-mentos sazonais que regulam o calendrio universitrio, se no mesmo o dacidade. necessrio incluir tambm as repblicas no campo da culturaacadmica, uma vez que estas possuem as suas prprias regras; se, nos diasde hoje e de um modo geral, as repblicas so sobretudo crticas em relao Praxe, at aos anos de 1960 foram o local do exerccio de actos praxsticos.As tradies letradas ultrapassam largamente os seus aspectos ldicos e osprprios estudantes. Pese embora as aparncias, estas tradies marcam3 Sobre Pombal, ver a ltima sntese acerca do assunto dirigida por Arajo (2000); sobre a Uni-versidade de Coimbra no sculo XVIII pr-pombalino, ver Fonseca (1995); sobre a histria daUniversidade em Portugal, consultar a sntese em curso (AA. VV., 1997).
  • 3. Praxe acadmica e culturas universitrias em Coimbra | 83profundamente o espao-tempo dos estudos, as sociabilidades e a prpriainstituio, desenhando os contornos variveis de um territrio acad-mico, da vida universitria e local, das representaes, das maneiras de sere, por fim, do homo academicus (Bourdieu, 1984). A Praxe, tal como ascerimnias professorais, participa, em contrapartida, da definio social, seno institucional, da Universidade de Coimbra, dos seus actores, de algunsdos seus costumes, do seu territrio ou dos seus mitos (Cruzeiro, 1990). O presente artigo tem uma dupla finalidade: determinar as principaisdimenses sociais da Praxe Acadmica e de algumas das cerimnias univer-sitrias a partir da observao emprica das suas manifestaes contem-porneas, e delinear a sua dinmica social e histrica.I Pressupostos tericos: lgicas e dinmicas das tradiesEntre os registos que permitem compreender a lgica social da Praxe e asua dinmica histrica, consideraremos dois registos principais, cada umdeles com dois eixos: por um lado, a homologia Universidade/Academia ea articulao entre as regras e as prticas, e, por outro lado, as estratgiasidentitrias entre estabelecimentos de ensino superior em Portugal, assimcomo a questo da Praxe e dos seus crticos.Lgicas da Praxe1. Universidade/AcademiaEm Portugal, a palavra Academia refere-se aos estudantes (universitrios,em primeiro lugar) eventualmente agrupados em torno de uma AssociaoAcadmica e constituindo, a diferentes nveis segundo as pocas e os locais,uma sociedade dotada de autonomia e centrada em sociabilidades e cultu-ras mais ou menos homogneas e partilhadas. 4 Paralelamente s cerim-nias professorais, a Praxe Acadmica constitui o registo cultural dos estu-dantes. Muitos dos seus elementos materiais e simblicos derivam dasprticas institucionais. Embora autnoma, a sociedade estudantil retira daUniversidade uma parte da sua lgica social. Esta lgica a de uma ordemhierrquica e distintiva. possvel perceber e distinguir duas fontes princi-pais das tradies estudantis, para l das que so fabricadas e transmitidasno seio da Academia: uma provm da instituio universitria (capa e batina,ttulo de doutor, apadrinhamento, anel, cores, hierarquia, oratria, etc.) e aoutra est ligada aos meios popular e rural (roubos e enterros rituais, alga-zarra, fado, msicos, procisses, lcool, comportamentos de honra e ven-4 Sobre a noo de Academia, ver Prata (2002: 23-25).
  • 4. 84 | Anbal Friasdetta, tipos populares: tricanas e futricas, etc.). Estas influncias soobjecto de uma apropriao dinmica, e mesmo criativa, pela juventudeestudantil, atravs de desvios de sentido e de emprstimos, e tambm pelavia do humor, da caricatura, do grotesco, da farsa, da crtica ou ainda dasublimao potica, musical ou teatral. Por outras palavras, atravs da suacultura herdada e, em parte, hbrida, a Academia absorve, de uma certaforma, os contributos externos, sejam eles universitrios ou populares.Esta especificidade faz da Praxe a filha da Universidade, relao da qualretira a sua coerncia estrutural e uma grande parte dos seus elementosmateriais e dos seus comportamentos rituais e festivos.2. Regras e prticasPrestar ateno s Praxes de curso, percebidas nos seus pormenores e nasua realizao concreta, favorece a comprenso do seu significado social.Essas aces podem ser confrontadas com as regras contidas nos dois ltimosCdigos da Praxe (1993 e 2001). Este confronto permite avaliar a fora dasprescries escritas e os desvios das prticas relativamente s regras. Osdesvios como, de resto, os ajustamentos no se verificam rigorosamenteentre a regra escrita e a prtica dos indivduos, mas entre o quadro situa-cional das prticas, implicando conhecimento, valores e interesses, e a repre-sentao que um indivduo ou um grupo tem dessas regras. Estes desviosvo desde a aplicao letra, pelo menos intencionalmente (com a refern-cia explcita ao Cdigo ou antes, ao conhecimento que dele se tem), at transgresso ou mesmo inveno de comportamentos, passando pela de-sactivao ou abandono dos ritos tradicionais. o caso das humilhaes(caneles, palmatoadas) que decorriam, at 1900, sob a Porta Frrea, a viade acesso figurando um arco de triunfo ao espao histrico da Univer-sidade. Estes actos foram abandonados na sequncia de crticas intra e extra--acadmicas (i.e. mediticas), traduzindo uma alterao das sensibilidadescolectivas. O abandono de um comportamento que caiu em desuso nopertence ao mesmo registo, no parece obedecer s mesmas razes a queobedece uma rejeio individual ou colectiva motivada de determinadoselementos ou do conjunto das tradies se, por acaso, isso alguma vezfoi possvel. A este respeito, seria necessrio estabelecer tipos e graus dedesvios, apontando os respectivos efeitos. Consideremos apenas um exem-plo. O hbito de julgar os caloiros no espao das repblicas, imagemdo julgamento do tribunal universitrio no tempo do foro acadmico 5, aca-5 O foro acadmico era uma jurisdio universitria, com um tribunal, uma priso e uma polciaprprios, em vigor at 1834.
  • 5. Praxe acadmica e culturas universitrias em Coimbra | 85bou com o movimento anti-Praxe da crise acadmica de 1969. Contudo,na dcada de 1990, algumas tertlias 6, contornando simultaneamente a con-testao da Praxe pelas repblicas e a autoridade do Conselho de Veteranos(o rgo guardio da Praxe), reactivaram aquela tradio, mas deslocan-do-a para casas particulares. Do mesmo modo, o ltimo Cdigo, datado de2001, reconfigurou as regras do Julgamento do Caloiro, alargando o direitode exercer este ritual s casas comunitrias 7, como os Cow Boys, que, nosendo reconhecidas pelo Conselho das Repblicas, o podem ser, no entanto,pelo Conselho de Veteranos. A observao das mudanas induzida por duas hipteses. A primeiraprende-se com o facto de que, segundo a etnometodologia, uma regra stem sentido reapropriada, isto , compreendida, nomeada e praticada. oque Alain Coulon designa por praticalidade da regra (1997: 156). A segun-da diz respeito prpria natureza das tradies que, longe de se trans-mitirem mecanicamente, sem alteraes, so, pelo contrrio, dinamizadaspela sociedade onde se encontram ancoradas. Em vez de se conservaremidnticas, so ajustadas e reinvestidas, no plano social e simblico, pelos(ou por alguns) membros da comunidade onde esto (re)activadas e vivas no sem uma parte de esquecimento. Mas so, de facto, os registos dasprticas e das regras que obedecem a razes sociais e a modalidades cogni-tivas distintas.Dinmicas da Praxe1. Processo scio-histricoO aparecimento nos textos, por volta de 1860, da palavra Praxe traduzmais do que uma simples deslocao de sentido. Desde essa data, a PraxeAcadmica rene numa mesma unidade semntica os comportamentos carac-tersticos, e at a dispersos, do universo acadmico. Esta expresso sintticae sui generis emerge, devido a um aumento da concorrncia entre a velhaUniversidade de Coimbra e outros estabelecimentos de ensino superior,tcnico-cientficos, ento criados em Lisboa e no Porto (Cruzeiro, 1979).6 A tertlia uma espcie de crculo ou de clube informal, onde os estudantes se renem porafinidades afectivas ou por Faculdades, a fim de conviverem, conversarem, beberem, tocareminstrumentos musicais ou praticarem actos de Praxe, como a formao de uma trupe. Emboraas tunas acadmicas, pela sua natureza convivial e cultural, se aproximem das tertlias, possuemcontudo um carcter mais institucional, pelo facto de serem sediadas na Associao Acadmica deCoimbra (AAC) e pela realizao de espectculos de msicas e cantos tradicionais.7 Estas casas, apesar de funcionarem de forma comunitria, no so repblicas. Por isso, no gozam,nem do prestgio, nem das vantagens socioeconmicas, nem de todas as prerrogativas praxsticasdas repblicas.
  • 6. 86 | Anbal FriasUma competio que se acentua depois da instaurao da Repblica, coma criao das Universidades de Lisboa e do Porto em 1911, e, sobretudo,depois do 25 de Abril de 1974, com a multiplicao das Universidades Novase dos Institutos Politcnicos 8, em busca de uma legitimidade e de uma alma. A crise acadmica de 1969 9, apesar de se desencadear em Coimbra, temrepercusses nacionais. Durante as manifestaes colectivas, elementos tradi-cionais como o fado, transformado em balada ou canto de intervenocom Zeca e Adriano, o luto acadmico (greve s aulas), traduzido no usoda capa e batina completamente fechadas, ou ainda o hino acadmico, colec-tivamente entoado no fim de um cortejo silencioso, em 1968, em comemo-rao da Tomada da Bastilha 10, constituram vectores federativos daAcademia e, simultaneamente, as marcas de uma cultura de oposio,conforme a expresso de Lus Reis Torgal (1999: 252). A partir de 1969, esobretudo depois do 25 de Abril de 1974, os costumes acadmicos so glo-balmente rejeitados, juntamente com o poder fascista que os havia assimi-lado. As repblicas, ou seja, as casas comunitrias de estudantes, que desem-penharam um papel central nos conflitos da dcada de 1960, procedem auma tabula rasa relativamente a uma parte dos seus arquivos, frescos muraise outros objectos deixados pelas geraes anteriores (cf. infra). Entre 1978e 1980, alguns elementos da Praxe Acadmica foram reactivados. Esta res-taurao, que despertou a polmica e at mesmo o conflito, desenvolveu--se em vrias etapas: em 1978, com a ressurreio do fado, o qual havia sidoparcialmente destronado, desde o incio dos anos de 1960, pelo canto deinterveno (Frias, 2003b); com o apoio da direco social-democrata daAAC, surge, em 1979, uma Semana Acadmica, uma Queima das Fitasdisfarada (Lamy, 1990: 834); e, sobretudo, em 1980, com a realizao deuma Queima das Fitas pblica, o regresso da capa e batina e das Praxes.A implantao, nos anos de 1980/1990, nas novas Universidades e nas es-colas de ensino superior, de Praxes hbridas, onde os emprstimos do modelocoimbro se associam a traos locais, conduz a projectos identitrios e aestratgias distintivas 11.8 Desde 1974, o nmero das Universidades Novas, pblicas e privadas, mais de uma dzia; osInstitutos contam-se s centenas, na sequncia do acentuado aumento do nmero de estudantes(de ambos os sexos) e de Licenciaturas (Barros apud Estanque e Nunes, 2002: nota 1).9 Cf. Cruzeiro (1989).10 Trata-se de um episdio sucedido em 25 de Novembro de 1920, quando alguns estudantessitiaram o espao reservado aos professores, situado junto da AAC. Este acontecimento foi signifi-cativamente reactivado no perodo contestatrio, tal como, por exemplo, O Badalo, o jornal dasrepblicas ressurgido em 1965.11 Para um exemplo de estratgia identitria no caso da Universidade de Braga, ver a nossa DEA(Mestrado), Frias (1992).
  • 7. Praxe acadmica e culturas universitrias em Coimbra | 87 A anlise scio-histrica mostra que as tradies estudantis e, de umaforma mais abrangente, a Universidade, foram alvo de alteraes nos seuscontedos, nas suas prticas e nas suas representaes (Frias, 1998a).O que particularmente verdadeiro em relao ao perodo que se situaentre o final do sculo XIX e os nossos dias. Estas alteraes ocorrem emduas vertentes imbricadas. A primeira interna s transformaes da insti-tuio (e do campo) universitria e prpria dinmica, por vezes conflituosa,de qualquer tradio ou instituio. A segunda reflecte as transformaessociais e polticas da sociedade portuguesa, do ponto de vista das normas edos valores acadmicos.2. Praxe/Anti-PraxeO sentido e a finalidade da Praxe devem ser, como sucede com qualquerobjecto social, relativizados nos planos histrico e sociolgico, assinalan-do-se a variao das significaes sociais, segundo as pocas e os grupos,segundo os costumes e os interesses em questo. No sendo assim, corre-seo risco de cair num discurso incontrolado e essencialista, nem sociolgiconem histrico. O Mestrado em Sociologia de Antnio Revez sobre a Praxe de vora,acumula estas ambiguidades metodolgicas, dada a precria aplicao doprincpio weberiano que distingue entre a relao com os valores (inclu-dos no objecto) e os juzos de valor na relao (pessoal) com o objecto.Assim, como concluso do seu inqurito, o autor (Revez, 1999: 306) enun-cia o seguinte: a Praxe eborense , como as outras, reaccionria, conserva-dora, retrgrada, anti-democrtica, hierrquica, paternalista, disciplinadora,tradicionalista, integracionista, crist, culpabilizadora e castigadora, anti-quada, sexista, organicista, formalista, normativa, e maniquesta. Numaperspectiva mais ampla: tentar compreender o jogo dos comportamentospraxistas e antipraxistas pressupe, antes de mais, reconhecer umamaior complexidade na oposio praxista/antipraxista 12, demasiadamenteredutora e dualista, procedendo a uma seriao das crticas e dos tipos derelao com a Praxe, no seio da Academia. Considerando a vivncia estu-dantil, o uso da capa e batina no suficiente, s por si, para marcar umaadeso ou um afastamento relativamente Praxe; o mesmo se pode dizer,alis, da simples participao na Queima das Fitas que, tendo-se tornadona festa da Academia, solicita toda a gente. Assim, por exemplo, o uso dacapa e batina por parte de um membro de uma seco cultural, musical ou12 No sendo explicativa, esta oposio permanece, contudo, operante nas tomadas de posio nointerior da Academia.
  • 8. 88 | Anbal Friasdesportiva da Associao Acadmica de Coimbra (AAC) obedece, antes demais, aos hbitos internos das respectivas seces, tornando obrigatrio ouso do fato tradicional por ocasio das representaes. Fora do espaoacadmico a seco est, com efeito, em representao em todos os senti-dos da expresso: devido ao espectculo pblico que d e porque funcionacomo uma delegao da AAC, tornando-se, no estrangeiro, numa espciede embaixada da Universidade. O mesmo acontece quando se trata, comovimos, de contestaes colectivas (cf. o luto acadmico em 1969, ou as mani-festaes da ACC em Lisboa, etc.). A capa assume um sentido diferente,conforme seja usada como uma marca tradicionalista ou simplesmente iden-titria no seio da Academia, ou como um sinal de identificao relativa-mente s outras Universidades. O que ocorre, pois, uma separao, rela-tiva, entre um uso comum, prprio de um grupo constitudo, e uma reivin-dicao ideolgica de valores praxistas, distintivos e hierrquicos. Por outro lado, a compreenso dos fenmenos Praxe e anti-Praxe edas suas gradaes (indiferentes, praxistas, etc.) exige uma particular aten-o ao modo como os indivduos e os grupos (ou os media) chegam ouno a um consenso na criao das categorias e das classificaes, e nadelimitao das fronteiras social, semntica, territorial, temporal, tica. por isso que, at a um certo ponto, as crticas da tradio e a tradio dascrticas constituem um outro eixo dinmico da Praxe Acadmica.3. Violncia, Escola e crticas aos rituais estudantisA explicao das reaces sociais s tradies estudantis absolutamenteevidente. Essa explicao tem que ver, em parte, com as transformaesestruturais ocorridas nos anos de 1960/1980 no seio da Universidade osseus pblicos, as suas funes, as suas imagens , com o investimento e aimplantao local da instituio escolar ou universitria, com os usos sociaisdas tradies, com as sensibilidades colectivas em matria de violncia, coma evoluo do sistema dos valores fundadores dos comportamentos. As pr-ticas rituais estudantis, as suas normas reguladoras e os seus excessosso inseparveis da Escola nomeadamente da Universidade onde sedesenvolvem, e da globalidade da sociedade. Esto ligadas aos cdigos eaos costumes scio-histricos em vigor entre uma populao jovem, celi-batria e durante muito tempo masculina, e s sensibilidades colectivas emmeio urbano. Por outro lado, neste domnio como em qualquer outro, nopoderia existir um grau de violncia zero, nem um critrio normativoabsoluto. A violncia estudantil, seja ela ritualizada ou transgressora, simblica,psicolgica ou fsica, no pode ser dissociada da que esteve em vigor durante
  • 9. Praxe acadmica e culturas universitrias em Coimbra | 89muito tempo na instituio escolar e da qual talvez apenas subsistam, nosdias de hoje e em alguns pases, sanes e punies atenuadas e sem relaocom a superfcie corporal a que se dirigiam os castigos de antigamente. Seas sevcias e a violncia fsica legtima, a da instituio, se suavizaram recen-temente, a Escola do sculo XIX descrita por Jean-Claude Caron (1999)como um meio violentgeno, incluindo entre os estudantes, imagem deoutros meios sociais. A prpria histria da Escola apresenta disso a marcaou o estigma: A violncia foi sempre o familiar modo de expresso dapopulao das faculdades e das grandes escolas (Coutin, 1969: 9). Os estudantes e a Escola devem ser situados no todo social e nos seusnveis de sensibilidade, embora as formas e as expresses da violncia esco-lar obedeam a determinadas modalidades particulares. E isto, por trsrazes: apesar de autnoma, a Academia integra a Universidade, sujeitan-do-se s suas normas pedaggicas; muitos conflitos da Academia, como jse viu, so o resultado de reaces contra medidas disciplinares da Univer-sidade (excluses, reprovaes); alguns hbitos e objectos da instituioso alvo de uma apropriao pelos estudantes, tal como a autoridade peda-ggica dos mais velhos sobre os mais novos, os castigos escolares adminis-trados com um dos smbolos da Praxe a colher de pau ou, antigamente, apalmatria utilizada pelos professores. A palmatria, objecto simblico eestatutrio, incarnou durante muito tempo a autoridade e a funo do mes-tre. com a palmatria que ele aponta as letras do alfabeto no quadro, queapruma os corpos e os espritos, que marca o ritmo dos exerccios. Integradoe ajustado ao mundo regulamentado e ordenado da aula, este instrumentofoi identificado positivamente com o acto educativo, do mesmo modoque o livro ou o ditado; h que situ-lo, alm disso, numa cultura materialda sala de aula, ao lado da carteira, do giz, dos cadernos, dos mapas e dasimagens. A contestao da Praxe em Portugal no coisa recente. Em textos quedatam da primeira metade do sculo XVIII, j alguns estudantes atacam,por vezes em forma versificada, as assuadas rituais ou verbais: caneles einvestidas. Por seu lado, Antnio Verney e Antnio Ribeiro Sanches suge-rem, para o primeiro caso, um rigoroso castigo, sem excluir a pena capitalcontra os que incomodam os novatos 13, sugerindo, para o segundo, o fimdas brbaras e indecentes investidas, feitas com violncia e sem respeito,estando os agressores armados como para o assalto a um castelo (Sanches,1959: 144). Note-se, antes de mais, que o conjunto do mundo acadmicoque se v atravessado por conflitos e turbulncias, de que a disputatio, essa13 Citado por Prata (2002: 255, nota 769).
  • 10. 90 | Anbal Friasarma oratria, enquanto exerccio oral formalizado, , sem dvida, apenasum gnero particular derivado e muito eufemstico do assalto verbal: osletrados imitavam no seu espao os torneios de armas dos bellatores. Os textos falam de tumultos entre estudantes de diferentes colgios ouregies de origem, referindo-se, por vezes, a tumultos entre nationes, deconflitos que, implicando dois indivduos, eram frequentemente alargados,por solidariedade, aos grupos respectivos, de desordens entre professores,de rixas em que se defrontavam os escolares solidrios com a autoridadereitoral ou docente, ou com a populao urbana. As razes abrangemquestes de honra e de hierarquia; tm que ver com o identitrio, o territrioou simplesmente com a vontade do momento. Sob o termo muito geral deviolncia assim considerada no mbito do aparelho judicirio (dondeprovm a maior parte dos documentos sobre estes excessos consignadosou sancionados) podem distinguir-se as agresses fsicas de defesa ou deofensa, seja com a ajuda de uma arma (nos meios aristocrtico e letrado),seja com um pau ou apenas com a mo (o que ocorre frequentemente como povo). Estes comportamentos anmicos regulamentados e estas manei-ras expressivas da agresso resultam de uma justia ou de um sentimentode justia privada, individual ou colectiva, que a honra ou o interesse de-terminam. A violncia exprime-se tambm por provocaes verbais que,pelas consequncias sociais, so de natureza ldico-ritual ou verdadeirosdelitos de palavra que levam priso da Universidade; exprime-se aindapor gestos e olhares em forma de provocao, com as inevitveis conse-quncias. Todo o sculo XVIII, e mesmo depois, apesar das proibies que se repe-tem a partir dos sculos XV e XVI, est marcado por acertos de contassangrentos entre bandos escolares armados, que transportam para o espaodos estudos os conflitos e a ciznia: o Rancho da Carqueja, em 1720-1721(Fonseca, 1995: 410-417), o Rancho dos Doze, em 1737 ou ainda em 1803.Em 7 de Janeiro de 1727, o rei D. Joo V suspende as prticas rituais, devi-do s mortais investidas aos novatos. O elemento estrutural que explica umtal comportamento tem que ver com a quase impunidade, que se estendiaaos respectivos criados e famlias, dos universitrios face justia real, im-punidade que, de facto, lhes era garantida pelo foro acadmico desde1309 at 1910, se no mesmo at aos dias de hoje. As descries de 1740--1745, contidas na compilao Anno Noticioso e Historico, mostram homenscheios de violncia (Delgado, 1991: 238). Na poca, as palavras-chave asso-ciadas aos estudantes em particular e a determinados jovens citadinosem geral so: turbulentos, desenvoltos, abusadores, furiosos. Note--se que os termos desonesto e escandaloso, que figuram muitas vezes
  • 11. Praxe acadmica e culturas universitrias em Coimbra | 91nos textos histricos, nomeadamente nos Estatutos da Universidade, nose referem a actos cruis, mas a desordens sociais. O seu sentido , depropsito, suficientemente fluido para abranger toda a espcie de ilegali-dades. A transgresso de um estatuto ou de um estado, a no conformi-dade em matria de costumes estabelecidos, so do domnio do registo daviolncia simblica: ser surpreendido, de noite, com uma mulher de vidaescandalosa constitui uma dupla afronta s autoridades, pelo facto de deso-bedecer regra do recolhimento depois do anncio das vsperas e pelapresena de mulheres suspeitas na Alta; andar sem o tradicional fato negroou usar cores e tecidos proibidos ou imprprios da sua condio, pelomenos desde os Estatutos de 1503; andar pelas ruas com um nmero dema-siado ou insuficiente de criados contraria o decoro e at mesmo a etiqueta;o que insulta (assalto verbal) algum detentor de uma certa considera-o incorre numa sano, etc. Estas atitudes extravagantes expem osrespectivos infractores a uma pena gradual da reprimenda multa e priso. Os comportamentos estudantis oscilaram, de resto, durante muitotempo, entre a sociabilidade viril exacerbada entre grupos de iguais (desa-fios, bravatas, vaidade) e a anomia (dos roubos s injrias e ao homicdio),entre as contestaes ruidosas e a conflitualidade ldica integradora. Durante o sculo XIX, a tendncia para a atenuao das prticas vio-lentas no meio universitrio. Entre os factos e a percepo dos factosmanifesta-se uma intolerncia acrescida em relao aos excessos colectivos,particularmente em relao aos que atingem a propriedade alheia: corpofsico ou espao privado. Mas, perante as crticas em particular, a prticacorrente do imposto que obriga o caloiro a pagar um tributo, a fim de inte-grar a Lusa Atenas, parece atenuar-se, vindo a ser alvo de crticas e depoisproibido em 1848 (Cruzeiro, 1990: 178, nota 1); no mesmo sentido, a opiniopblica, em processo de se constituir, pe em causa as troas (piadas, insul-tos): Elas dariam origem a conflitos graves e a funestas consequncias,vindo a ser condenadas na imprensa e em outros sectores da opinio(Roque, 1991: 262). Contra uma certa impunidade praticada pelos tribu-nais relativamente aos estudantes e s suas Praxes (Coimbra, 1991: 329), ojornal O Conimbricense, de 3 de Agosto de 1886, afirma o seguinte, referin-do-se s troas: Sabemos at que ponto o fogo e a verdura da mocidadelevam exaltao, mas o que se viu no so divertimentos tolerveis, masselvajaria (apud Coimbra, 1991: 330). De violentas que eram, estas troastransformaram-se lenta e parcialmente em chalaas e em cenas ldicas, nofinal so sculo XIX (Coelho, 1902; Costa, 1925). Esta passagem das agressesfsicas aos assaltos verbais assinalada por um contemporneo (Carvalho,1902: 5, 9-10) que refere que a Praxe academica[sic] uma sobrevivn-
  • 12. 92 | Anbal Friascia e uma codificao da velha selvajaria atenuada; informa que as cace-tadas e os caneles so uma coisa felizmente, hoje quase extinta; e acres-centa: durante esta prtica, os veteranos fazem uma prudente distinoentre os caloiros valentes e os que so raquticos, atxicos e tsicos. Estadistino decerto o sinal de uma nova prudncia e sensibilidade, maspode ver-se a tambm um indcio de outra ordem: o de uma moral viril demistura com a honra, que reaparece nas palavras pronunciadas pelo doutorde uma trupe (17/10/2001) perante as lgrimas de um caloiro rapado:por ser caloiro no se menos macho. Durante todo o sculo XIX, prolongaram-se as crticas Praxe e aosseus aspectos menos aceitveis. Nesse sentido, Jos de Arruela, da Faculdadede Direito, publica entre 1902 e 1906 vrios panfletos em tom anti-praxista;em 1905, cria um Grupo estudantil de recepo aos novos alunos que, emvez dos rudes caneles, das pastadas e dos rapanos, organiza actividadesfestivas e musicais, e prope lanar flores aos caloiros. Recebe o apoio deprofessores republicanos. A partir da poca liberal, as tradies acadmicascristalizaram sua volta posies polticas: republicanos contra monrqui-cos/catlicos. Esta bipolarizao repetiu-se no seio da Academia, por voltade 1928-1929, entre integralistas, apoiantes do golpe de Estado de Maiode 1926, e a rea dos progressistas. Estes ltimos, num manifesto anti-pra-xista, datado de 31 de Outubro de 1928, referem-se a uma Praxe anacr-nica, brutal, hipcrita, cobarde e inqua (Nobre, 1945: 78). Em 1957-1959, os anti-praxistas (Vara, 1958) confrontaram-se com ospartidrios da Praxe a comear pelo prprio redactor do ento recenteCdigo da Praxe (Andrade, 1959). Na poca, o jornal Dirio de Lisboa noti-ciou estes debates que, no entanto, ficaram confinados Academia. deassinalar um gesto simblico: um decreto em latim macarrnico, emitidoem 1959 pelo Conselho de Veteranos, faz de Flvio Vara, que ousara contes-tar os princpios da Praxe, um futrica: Hoc indigena consideratus futricadebet esse (apud Andrade, 1959: 57). Estas tenses redobraram durante operodo fortemente contestatrio que precedeu e se seguiu crise acadmi-ca de Fevereiro de 1969. Contudo, este esquema dual e, alm disso, firma-do numa base poltica, revela-se menos pertinente para explicar a dimen-so das querelas infra-acadmicas, a partir dos finais dos anos de 1950.E isto porque, depois de 1956, entra-se num novo esprito cultural dedefesa da tradio e, simultaneamente, de oposio (Torgal, 1999: 250).At 1969, data do principal conflito que ops a Academia, quase unanime-mente, ao regime governamental, a tradio rejeitada, mas, por outro lado,alguns dos seus aspectos como o fado, a capa e batina, o hino acadmico,a caricatura ou dos seus rgos como os Conselhos dos Veteranos e das
  • 13. Praxe acadmica e culturas universitrias em Coimbra | 93Repblicas participam no combate, com o objectivo de unificar e mobili-zar. De tradicionalista, enquanto virada para um passado intencionalmentevalorizado, conservado ou mitificado, a tradio torna-se num motivo deprogresso, ficando associada esperana da luta. A Praxe ou as imagens que cada um tem dela voltou a irromper nocenrio meditico (jornais, revistas, televises) e poltico, chegando at aogabinete do Ministro da Educao e at Assembleia da Repblica, emJaneiro de 2003. Logo nos primeiros dias de Janeiro, o Pblico 14 publicauma informao sobre a queixa feita por uma aluna do primeiro ano daEscola Superior de Sade de Macedo de Cavaleiros, pertencente ao Insti-tuto Piaget. A referida aluna enviara uma carta ao Ministrio, na qualdenunciava as humilhaes a que fora sujeita, no mbito das Praxes prpriasdo incio do ano escolar (simulaes sexuais, roupa tirada). As autoridadesda Escola aplicam-lhe sanes, e testemunhos publicados de colegas sus-tentam que ela exagerou os factos, acrescentando ainda que a sua frequn-cia das aulas irregular. designada uma inspeco oficial, cujas conclusesso cautelosas: os factos dizem respeito a danos de natureza civil, masno so do domnio dos crimes de natureza pblica (in Dirio de Coimbra,30/01/2003). Algum tempo depois, a aluna apresenta queixa nos tribunais.O jornal nacional que divulgou os factos, ou antes a informao, imedia-tamente secundado por toda a imprensa escrita e audiovisual. O Jornal deNotcias (27/03/2003) fala de agresses [que] constituem um caso de pol-cia. As crticas aos abusos voltam ordem do dia, assim como a defesa dastradies. A iniciativa isolada desta aluna teve o poder de, um pouco portodo o lado e no seu prprio estabelecimento de ensino, encorajar outrasatitudes de rejeio ou de recurso, ainda que, de um modo geral, essasatitudes permaneam marginais. Durante cerca de dez dias consecutivos, as opinies, as tomadas deposio, as polmicas do cidado comum ao estudante, do (anti-)praxistaao poltico foram divulgadas em vrias dezenas de artigos de jornal, nastelevises, em revistas, at em sites da internet. Entre os contra, os ter-mos utilizados foram os seguintes: irracionais, bbedos, primitivos,mastodontes; falou-se de instintos e de comportamento primrio eirreflectido, servindo-se da Praxe e dos praxistas como insulto dirigidoa seres do passado e feitos de instintos. Uma doutora, leitora do Pblico(11/01/2003), refere-se a estes rituais de imbecilidade, aos fatos acadmi-cos to tradicionais quanto ridculos, a essa cerimnia reaccionria que 14 Ver tambm as edies dos dias seguintes, at ao fim do ms de Janeiro (e depois). Este casosurge num contexto de pedofilia no interior de um estabelecimento escolar catlico, que provocouuma certa comoo, na proporo da sobremediatizao de que foi alvo.
  • 14. 94 | Anbal Friasa Queima das Fitas, a atrasados mentais. A polmica faz aparecer outraslinhas de demarcao, como Lisboa contra o provincianismo de Coim-bra (Pereira in Pblico, 9/01/2003), reactivamente defendido por uma lei-tora de Coimbra (Pblico, 11/01/2003), ou ento os problemas ligados sUniversidades, aos estudantes e sociedade, os seus valores em extino,para uns (Joo Almeida na Assembleia da Repblica, deputado do PP), ouo seu inaceitvel elitismo, para outros (Neves, in Pblico, 12/01/2003, dou-torando no ISCTE). Este alarido tem consequncias na forma (recodifi-cao) e, a prazo, sem dvida, no contedo dos costumes e dos rituais, umavez que, em 30 de Abril de 2003, o Instituto Piaget assinou, a nvel nacional,um protocolo sob a forma de uma carta de princpios orientadores nasAcademias do Instituto. Este protocolo uma carta de valor tico, poisdestina-se a regulamentar os comportamentos no sentido de uma duplaconformidade: face ao regulamento interno da instituio escolar e face lei republicana. O seu contedo claro: ao assinar este protocolo, a federa-o acadmica do Instituto Piaget compromete-se a pr em prtica as medi-das eventualmente necessrias adequao dos princpios institucionaliza-dos nos cdigos da Praxe acadmica adoptados por cada uma das associa-es de estudantes (in Expresso, (21/04/2003). Em consequncia, at reviso dos cdigos da Praxe, a Praxe est suspensa. Entretanto, a Escolasuspendeu 25 estudantes que infringiram esta deciso administrativa, aoorganizarem, na noite de 15 para 16 de Maio de 2003, um tribunal dePraxe de que resultaram agresses dos alunos mais velhos sobre os caloiros(Expresso, 21/05/2003. Este e outros exemplos mostram que, nestes ltimos anos, a referncia lei republicana se tornou insistente. As remisses para uma instncia doEstado, com um grau cada vez maior de legitimidade e cada vez mais nor-mativa, apontam para uma autoridade racional-legal e externa. Na quali-dade de regulamentador, um tal modelo rejeita os comportamentos marca-dos pela violncia privada e at ilegal, no mbito das cerimnias de ini-ciao e da Praxe.II Culturas universitriasExiste hoje em Coimbra um conjunto de cerimnias bastante diversas, queimplicam a totalidade ou, mais frequentemente, uma parte do corpo docente:abertura solene do ano lectivo, defesa de tese, imposio das insgnias, dou-toramento honoris causa, funerais, comemoraes, missas, protocolos, etc.Referir-nos-emos apenas a uma: o cortejo universitrio. O cortejo universitrio uma das manifestaes mais espectaculares(para um olhar externo) do corpo docente, onde se misturam o cerimonial,
  • 15. Praxe acadmica e culturas universitrias em Coimbra | 95a demonstrao de poder, a afirmao e o controlo reiterada de umaidentidade letrada e de uma ordem interna. A forma, a hierarquia e os ele-mentos constituintes deste desfile 15 quase no evoluram desde o incio dosculo XVI, com excepo do ponto de partida do seu percurso ou emmatria do fato estatutrio. Excepo feita tambm, evidentemente, no querespeita aos contextos nacional, social e universitrio profundamente trans-formados, o que no deixa de ter consequncias no sentido destas cerim-nias, como no das tradies em geral. Esta perenidade relativa, pelo menosna forma ou na inteno (dos discursos), em si mesma significativa. Umtal desfile tem lugar e repete-se hoje, e com maior frequncia ainda antes de1910, nas grandes ocasies: abertura solene do ano universitrio marcandoum novo ciclo temporal, doutoramento honoris causa e, antigamente, nacerimnia de defesa de tese 16 ou no funeral de um membro da corporao.Os professores, situados no cortejo segundo a hierarquia das Faculdades e,dentro destas, por ordem de obteno do grau de doutor (nos dois casos,portanto, segundo um critrio de antiguidade histrica ou temporal), usamostensivamente o seu fato doutoral. Saem, em silncio, da Biblioteca Joanina(da Capela, antes de 1910) e dirigem-se, a passo lento e com ar grave, aoritmo de uma msica solene executada pela orquestra da Universidade,para a grande Sala dos Capelos, esse espao sagrado (Torgal, 1993b: 633).Um tal espao, retirado do mundo profano e fechado sobre a lite dos profes-sores, desenha uma verdadeira cosmologia que ordena os seres, os lugares,os gestos, as palavras, os sinais. Os membros do colgio dos doutroresocupam o seu respectivo lugar em torno dos catedrticos, segundo a mesmaordem do desfile. Nesse local elevado, no corao da Universidade, onde,noutros tempos, a regra exigia que se falasse em latim (Via Latina), essalngua do saber e do segredo (Waquet, 1998), os professores repartem-seainda segundo o duplo princpio da antiguidade. Mas, desta vez, esta ordeminterna opera em funo de uma orientao espacial: a do lugar ocupadopela cadeira-trono do Reitor. Este lugar/posio est no princpio de umaordenao espacial, social e simblica. O Reitor, a ttulo da sua preeminn-cia universitria, est autorizado a presidir s cerimnias e aos destinos docorpo acadmico que incorpora, at no uso neutro da cor negra congrega-dora do seu fato. O complexo conjunto de prticas rituais, formais e festivas reforadopor uma constelao de imagens (de reis, de reitores, de postais), de designa-es (Lusa Atenas, Alma Mater, colina sagrada, cidade dos doutores), de15 Sobre um exemplo codificado de desfile acadmico, ver Clark (2002).16 A propsito do contexto histrico e poltico da defesa de tese, consultar Torgal (1993a); sobre aanlise detalhada do seu cerimonial, ver Frias (2003).
  • 16. 96 | Anbal Friasfiguras tutelares (Minerva, rei D. Dinis, o fundador, esttuas alegricas,Rainha Santa Isabel), objectos-signo (selo, livro, ceptro, bandeira, cores,fato, aliana) e de mitos do domnio da Histria Sacra, das histrias lendriase do religioso. A Universidade est, pois, longe de se reduzir a uma instituio do saber,com uma finalidade pedaggica, com a funo de atribuio de diplomas ecolao de graus, bem como de produo e transmisso de um saber esco-lar orientado dos professores para os estudantes. Pedagogia, diplomas,graus, saber, professores, estudantes so noes, alis, que tmde ser relativizadas num plano histrico e cultural, devendo o mesmo seraplicado prpria noo de Universidade. Considerada num sentidoamplo, a educao um campo de comportamento simblico (Sapir, 1967:53). Por isso, a Universidade pode ser encarada como um mundo culturalespacialmente ancorado e estruturado por um conjunto de interaces com-plexas, de saberes, de saber-fazer e de saber-ser, de valores e de usos, decrenas e de sinais de reconhecimento, de solidariedades, de hierarquias,de conflitos. Estes traos dependem de uma identidade, mais ou menospartilhada e consensual, que marca os contornos e a natureza da sociedadeuniversitria, irredutvel a um saber (mesmo letrado) e a pessoas de saber(Verger, 1997). Uma comunidade acadmica forma uma espcie de aldeiaintelectual, to fechada sobre si mesma como a maior parte dos aglo-merados rurais (Geertz, 1999: 195). Os seus habitantes, permanentes ousazonais, no estabelecem apenas relaes profissionais, mas tambm pol-ticas, morais, pessoais, de linguagem (uma disciplina tem a sua gria e oseu estilo). No seio do cosmos universitrio, cada rea do saber constitui-se em tornodo que Thomas Kuhn designou por matriz disciplinar, inculcando hbitosou, melhor, favorecendo a (des)abituao atravs de disposies cientficas,assim como sociais, com a importncia do manual onde os jovens investiga-dores aprendem o ofcio. A aprendizagem processa-se, de resto, tanto deuma forma explcita, como segundo uma pedagogia do silncio. Estemtodo veicula modos totais de transmisso e prticas fundadas no con-tacto directo e duradouro entre o que ensina e o que aprende (Bourdieu,1992: 193). Relaes construdas, quer directamente, nesses locais comunsdo saber que so as salas de aula, colquios ou laboratrios, ou ento atravsde suportes multimedia e de reunies inter ou transdisciplinares. Comono admitir, com efeito, pelo menos como hiptese, que um tal universosocialmente estruturado e prolongado no tempo tendo em conta a tota-lidade do curso escolar-universitrio age como uma poderosa fora forma-dora de hbitos?
  • 17. Praxe acadmica e culturas universitrias em Coimbra | 97III Preparativos da Praxe de curso: o exemplo da Faculdade de PsicologiaApesar da sua fora prescritiva e da sua legitimidade (junto dos praticantesda Praxe), o Cdigo da Praxe no poderia abranger a gama completa dosactos de Praxe, nem mesmo confundir-se com eles, porque a prtica daregra de uma ordem diferente da regra da prtica. Antes de abordar o desenrolar efectivo e pblico das Praxes de curso,ser interessante acompanhar de perto os bastidores de um tal fenmeno,atravs do exemplo seleccionado da Faculdade de Psicologia, cuja escolhaficou a dever-se ao acaso dos encontros no terreno, que conduziram a opor-tunidades de observao. E isto por vrias razes. A primeira baseia-se nahiptese de uma socializao estudantil ocorrendo a montante da realiza-o concreta dos rituais, entre os quais a Praxe de curso, a Latada e o Cortejoda Queima das Fitas. A segunda permite ver em aco, no apenas umsaber-fazer, com as respectivas hesitaes e execues, mas tambm umaPraxe sendo colectivamente fabricada, no entusiasmo dos preparativos e,por vezes, das interpretaes divergentes e at dos conflitos. Uma outrarazo prende-se com a observao da parte que cabe, por um lado, espon-taneidade e informalidade, e, por outro lado, da que corresponde aosprocedimentos e medidas de natureza organizativa, o que decorre, cadavez mais, de uma racionalizao dos comportamentos tradicionais. Poste-riormente a jusante , ser possvel observar os efeitos no contedo, assimcomo na forma, dos rituais e das sociabilidades estudantis a que leva umatal organizao. Finalmente, tratar-se- de aferir, no fim do processo daPraxe de curso, incluindo preparativos e realizao efectiva, a adequaoou o desvio entre o que proposto, o que abandonado ou afastado e oque se faz realmente, ao mesmo tempo que se questionar o sentido destesajustamentos, abandonos ou distores. A Praxe de Psicologia fica a cargo, no quadro do ncleo de Faculdade(Nepce), de uma Comisso Responsvel pela Organizao da nossa Praxe.Da observao minuciosa das operaes discursivas, tcnicas, prticas oucognitivas desencadeadas por esta comisso organizadora da Praxe de curso,salientam-se vrios pontos importantes, em matria de Praxe. O primeirodiz respeito existncia e prpria designao de comisso organizadora.O enunciado, tal como o objecto, apontam para uma lgica de gesto, condu-cente a uma racionalizao dos actos de Praxe e, por fim, pela sobrecodi-ficao a que estes ficam sujeitos, sua institucionalizao. Este processoreflecte-se, justamente, nas palavras comisso que remete para uma lgi-ca tcnico-burocrtica e organizao que sugere a ideia de uma ordeme de um sistema de normas reguladoras de costumes e de comportamentos.
  • 18. 98 | Anbal FriasPor isso, a coordenao da semana de Praxe passa i) por uma cronome-tragem do tempo, que deixa pouco espao para desvios, para o cio e parao acaso, e segundo a qual se marcam as horas de encontro comeamos s10 horas 17 , se calcula a durao das actividades amos um dia inteiro,almovamos ou das sequncias rituais com 4 ou 5 provas aguentamosde manh; depois do almoo, 5 minutos de aquecimento; ii) por pr-inscriesformais para as reunies ou jantares o jantar para quem se inscrever;iii) pela preocupao com pormenores, pois est previsto dar a cada caloiroum saco de sobrevivncia com uma garrafa de gua, toalhas de papel, umsaco de plstico para no poluir a cidade; iv) pela cartografia de que emergemvisitas tursticas aos stios mais emblemticos, os mais simblicos dos percur-sos acabar no jardim da AAC ou lugares de Praxe se no temos lugarque chegue vamos para o Jardim Botnico; v) por uma ordem de naturezasequencial a partir da o que fazemos? ou de natureza organizativa obrigatrio haver 1 doutor para 2 caloiros; vi) pelas negociaes e ora-mentos 3.500$/grupo; o ano passado discutimos com O Pratas [um cafda Alta] antes de passar por l 2 ou 3 dias depois; vii) por um acerto dasprovas e dos dias ltima pergunta antes de chegarmos Alta; segunda-feira,dia da besta; viii) por uma espectacularizao fazer uma coisa tipo mostrade caloiros com cantar, strip tease, declarao vida; pois temos que fazeralguma coisa original A aplicao destas prescries obedeceu a outras lgicas, as da prticaou as do acaso meteorolgico, o que conduziu, sem dvida, realizaoespontnea de uma Praxe flexvel, pelo menos em parte, identificvelcom o investimento emocional dos actores: se a cronologia foi razoavel-mente respeitada, o calendrio previsto sofreu ligeiras alteraes, abran-dou-se o rigor do tempo calculado e at cronometrado, os jogos foram porvezes improvisados, a aula fantasma planeada teve de ser suprimida devido ausncia do professor cmplice, ou a visita turstica encurtada por causada chuva. No entanto, apesar destes imponderveis e destas falhas, as moda-lidades organizativas, presentes escala de uma Faculdade (como da AACe do Conselho de Veteranos), modificam, normativamente, o contedomaterial da Praxe em geral e da Praxe de curso em particular. Esta interfe-rncia manifesta-se ao nvel i) de uma inflexo ldica e eufemstica emdetrimento das humilhaes mais ou menos pesadas, inflexo essa refor-ada pela corrente crtica, tanto interna, como externa ao mundo acadmico:neste ano, arrastar os caloiros pelo corredor para os sujar consideradodemasiado degradante; adoptada a expresso big caloiro em substituio17 Os itlicos remetem para as prprias palavras dos estudantes.
  • 19. Praxe acadmica e culturas universitrias em Coimbra | 99de big besta, demasiado insultante; ii) da considerao pela vontade docaloiro ou pelo abrandamento das penalidades: queres beber, bebes; meterfitas cor de laranja volta do pescoo melhor que cordas; iii) dos percursosdo gnero rallye e das visitas tursticas (no h provas, s passeio), onde asprovas ldico-rituais so acompanhadas pelo consumo socializante de umcopo e pela descoberta do lugar. Estes ajustamentos modificam tambm a natureza da Praxe. Em primeirolugar, ao efectuarem uma separao (parcial) entre a submisso/humilhaoe a socializao/integrao, o ritual acadmico atenua-se, metamorfoseando--se at num momento ldico e festivo: um grande dia, como diz a coordena-dora. Note-se que a Praxe est significativamente a cargo da comisso des-porto e tempos livres. Em seguida, e correlativamente, ao redefinir a cate-goria de caloiro. Se este continua a ser insultado ou coagido, os doutoresfazem acompanhar as suas invectivas e manifestaes de poder de toda umasrie de sinais, como o esboo de um sorriso ou o uso particular da capa ebatina, remetendo para uma metalinguagem. Estes sinais tm, normalmente,como efeito a neutralizao do valor de verdade primeira das injrias ehumilhaes (carga negativa, violncia), precisamente por essas provocaese esses excessos se encontrarem inseridos numa lgica de tipo ldico e ritual.Quando no o prprio quadro situacional imanente, constitudo pelasinteraces regulamentadas dos actores, a orientar a interpretao mica ea reaco adequada, induzida pelo sentido do jogo e a forma ritualizadadas respostas. Se o caloiro relegado para o domnio da animalidade(besta) ou identificado com uma criana de mama (presena das fraldas,do bibero, etc.), os mais velhos concedem-lhe de boa vontade alguns direi-tos, como os de ter uma palavra e uma vontade que lhe permitam (formal-mente) recusar as humilhaes ou at declarar-se contra a Praxe. 18 Almdisso, estes desvios materializam uma rearticulao, no s da relao dou-tores/caloiros, mas tambm da bipolarizao, at ao momento compostapor elementos exclusivos, tradio/modernidade. Neste ltimo caso, se atradio est genericamente presente enquanto norma ideolgica posi-tiva (vamos com a tradio) ou negativa (so preconceitos) 19, ela torna-se,tanto na prtica como nas intenes, passvel de ser modificada (podes mode-lar com a tradio), ou mesmo adaptada, sem que o seu esprito sejanecessariamente alterado (pelo menos, assim se pensa). A afirmao de18 Em outros locais, como em vora, pode ver-se o indcio de uma relativa democratizao dasregras da Praxe na passagem, ocorrida nos ltimos anos, do estatuto de Notvel indefectvel,isto , veterano vitalcio, para a eleio pelos outros Notveis.19 Segue-se o dilogo completo: Saias [da capa e batina] por cima do joelho! E porqu isso mal? B***, tradio! So preconceitos.
  • 20. 100 | Anbal Friastradies, devidamente ajustadas aos nossos dias de hoje est presente,pela primeira vez, no Cdigo da Praxe de 1993 (p. 14). Mesmo se essastradies, como observmos, quase no evoluem ao nvel dos Cdigos, umaafirmao como a referida constitui um sinal, ou um efeito retroactivo, deum contexto de crescente indiferena e, simultaneamente, de contestaoda Praxe, tanto externo como interno Universidade. 20 O que, finalmente, tem como consequncias alterar a dinmica datradio, agindo por imitao/distino a todos os nveis (entre Universida-des, entre Faculdades, entre cursos (temos de fazer alguma coisa original), einterferir nos planos temporais: concretamente, as referncias operantes,as que so reactivadas ou as que so rejeitadas pelos estudantes, remetempara o ano passado ou, no mximo, para dois ou trs anos antes. Umlimite cronolgico que se confunde com a prpria experincia que os estu-dantes tm da Praxe e da sua presena na Universidade. Com base numconhecimento mtuo favorecido pelo curso e por ocasio de uma reuniopreparatria onde circulam palavras, recordaes e projectos, elabora-seum conjunto de histrias praxsticas individuais. Um tal horizonte, feito deexperincias vividas colectivamente, forja uma profundidade de memriaque, em termos da operatividade presente, toda de superfcie, por assimdizer. Sinal da modernidade, uma tal atenuao talvez indcio de umadestradicionalizao dos valores sociais ligados ao passado, em bene-fcio de um tempo presente (hedonista) ou das promessas de um futuro(profissional, existencial) que, como se diz, os estudantes tm sua frente.IV Praxes de cursoA abertura solene da Universidade de Coimbra d incio, cerimonialmente,a um novo ciclo de estudos: em torno de S. Lucas, desde a Idade Mdia, nodia 18 de Outubro. Do mesmo modo, pode ver-se na concentrao dasPraxes de curso, nomeadamente na Semana de recepo ao caloiro, noms de Outubro, e, sobretudo, na Latada 21, no princpio de Novembro,um limiar simblico e temporal que anuncia um novo ciclo praxstico.Este limen pode variar, embora ligeiramente, segundo os lugares e a suahistria. o caso da Universidade de vora, onde o 1. de Novembro, Dia20 Cf. os conflitos entre as repblicas e os praxistas, nos anos de 1980; esta oposio crtica esthoje reactivada com as Marias em Coimbra, com o M.A.T.A. (Movimento Anti-Tradio Acadmica)em Lisboa, ou com a Ovelha Negra, agora Garfo, em Braga. Esta mudana visvel na introduodo Manual do Caloiro onde, desde h uma dezena de anos, aparecem referncias aos deveres e,tambm, aos direitos dos novos alunos, at iniciativa estratgica, por parte de estudantes contraa Praxe da Faculdade de Letras de Coimbra, em 2001, de distribuir um Manual do Primeiranista.21 No possvel, no mbito deste artigo, desenvolver o conjunto das festas e rituais acadmicos:Latada, Queima das Fitas, rasgano, etc. Ver Frias (2003a).
  • 21. Praxe acadmica e culturas universitrias em Coimbra | 101da Universidade, isto , da sua fundao em 1559, concentra, simulta-neamente, cerimnias institucionais, rituais acadmicos (Chocalhada,A largada do sapato), um juramento dos estudantes perante o reitor 22na Sala de Actos, um cortejo, o baptismo das bestas promovidas nessedia a caloiros no Claustro Maior, e o direito de todos os estudantesusarem a capa e batina. 23 Em Coimbra, a partir das inscries dos novos alunos, antes mesmo doincio das aulas e da abertura cerimonial da Universidade, as Praxes decurso invadem a Alta da cidade, onde se situa a Universidade. Como emoutros locais, o ms de Outubro concentra a maior parte das Praxes. Trata--se, pois, de um fenmeno simultaneamente regular (cclico) e peridico,embora estas Praxes possam, em princpio (mas, de facto, quase nunca),estender-se durante todo o ano universitrio. Esta primeira srie de rituaisde tom ldico, funcionando como rito de passagem (Frias, 1998b), obe-dece s trs sequncias lgico-temporais determinadas por Arnold VanGennep (1981): ritos de margem (isolamento, morte social), ritos de pr prova (testes escolares, aprendizagens, iniciaes, resistncia fsica e aolcool) e ritos de integrao (apadrinhamento, baptismo, comensalidades).Trata-se de comportamentos estereotipados que ho-de renovar-se e esten-der-se por todo o curso universitrio, at ao ritual do rasgano, que marcao fim dos estudos e a entrada no mundo real dos adultos e da vida socialnormal. A Praxe de curso, imagem dos outros rituais, alterna os mo-mentos solenes com outros mais ligeiros (Leach, 1982: 135). Possui asua prpria temporalidade sagrada, que adia o tempo profano dos estudos:a Universidade funciona em marcha lenta, sem que um novo ciclotenha ainda realmente arrancado. Isto acontece, embora a comisso daPraxe de curso procure impor um calendrio cronolgico secularizado eracionalizado. Pode acontecer que vrias Praxes de curso ocorram no mesmo dia,enchendo a Alta de grupos de doutores e de caloiros de diferentes reasou Faculdades, que se deslocam cantando e gritando. Estes grupos for-mam-se sobre uma base unissexuada, ou congregando rapazes e raparigasdoutore/as com os/as seus/suas caloiro/as igualmente misturados. Nestecaso, a regra determina que a Praxe, no sentido de aco de praxar, sejaefectuada entre pessoas do mesmo sexo, conforme o Cdigo da Praxe de22 Este juramento sem dvida um vestgio e um desvio do acto obrigatrio para todos os novosestudantes, at 1910, de procederem a um juramento no momento de serem integrados na corpo-rao dos mestres e estudantes.23 Dados retirados do Cdigo da Praxe de vora, intitulado C.E.G.A.R.R.E.G.A. (1987), e deconversas mantidas no terreno.
  • 22. 102 | Anbal Frias1993 (art. 250) 24, embora distintas hierarquicamente, enquanto, por cos-tume, so os caloiros do prprio curso a ser praxados. Uma observaoatenta permite perceber a evoluo da atitude dos caloiros e o processo deaprendizagem dos elementos sonoros do ritual (cnticos, grito de curso,hino). Estes dois aspectos so orientados pela ideia de que a passagem deuma relativa apreenso, por parte dos nefitos, a uma adeso mais ou menosunnime s regras do jogo favorecida pela assimilao do contedo doritual, portanto a sua compreenso (imanente), assim como pela assimi-lao da forma normal de interaco com os mais velhos, at ao ponto delhes caber a iniciativa, sem contudo subverter as funes hierrquicas pr-prias de cada indivduo ou, antes, dos grupos (como, aconteceu, por exem-plo, com uma Praxe de curso da Psicologia). O desenrolar das aces revela um percurso orientado, que nestes lti-mos anos se tornou num itinerrio previamente planificado e enquadradopelos mais velhos. A trupe parte da Faculdade a que pertence e dirige-separa lugares semi-pblicos e centros simblicos: Largo da Porta Frrea,Praa D. Dinis, Praa da Repblica. Este priplo ritual, feito de gestos codi-ficados e de expresses sonoras, age como marca cultural de um territrio,ancorado na Alta, e como espacializao de uma entidade acadmica (Frias,2002a). Trata-se de um verdadeiro percurso, no sentido de Michel de Cer-teau: da tomada de posse prtica de um espao convertido em territrio.Esta apropriao colectiva de um permetro que se circunscreve caminhando com as suas polaridades, os seus eixos, os seus centros varia no tempo,segundo as geraes e a morfologia urbana. Em parte imprevveis e espon-tneas, as deambulaes acabam por desenhar, a prazo, uma cartografiatopogrfica e simblica: uma geografia da Praxe (Lamy, 1990: 396). Este quadro temporal restrito corresponde a uma Praxe de curso familiar,circunscrita ao espao ntimo de uma Faculdade, at mesmo de um ncleo.Contrasta com a densidade histrica, se no mtica, de uma Praxe maiscula que circula, um facto, a outros nveis, em outros espaos e, de bomgrado, revelada a estranhos. Esta Praxe a das instituies universitriase praxsticas: est presente nos discursos autorizados do Reitor, do Dux, dopresidente da AAC ou de praxistas. 2524 Observe-se uma evoluo nos costumes, no que respeita a este ponto, entre o Cdigo de 199 e ode 2001: este ltimo texto, numa preocupao de igualizao (relativa) dos sexos face Praxe,suprimiu este artigo. O que no significa que o hbito no se mantenha. O ltimo Cdigo da Praxe,em uso de facto desde 2002, ser posteriormente assinalado C.C., salvo indicao em contrrio.25 No raro ouvir estas figuras oficiais, em situaes formais (discursos intra-acadmicos, profe-ridos nos media ou dirigidos ao Governo), referirem-se a uma especificidade da Universidade deCoimbra (reitor), abrangendo, num todo nico, a histria da instituio, a Academia, o estudantede Coimbra, o esprito acadmico e as tradies tpicas. Assim, o antigo presidente da AAC,
  • 23. Praxe acadmica e culturas universitrias em Coimbra | 103V Caractersticas das repblicasAs repblicas estiveram durante muito tempo associadas praxe, trans-mitindo os seus costumes atravs das geraes, muito embora aps 1980 amaioria delas se tenha distanciado dos rituais praxistas ou de alguns dosseus aspectos. Numa primeira aproximao, as repblicas de Coimbra so casascomunitrias de estudantes, autnomas e auto-administradas, cujos mem-bros esto ligados por laos econmicos e afectivos. Se possvel estabelec-er uma continuidade histrica entre as casas de estudantes e as actuais rep-blicas, existe sempre o risco de cair no anacronismo e no a-historicismo.Com efeito, tudo muda neste domnio, imagem do que sucede com aUniversidade e com a globalidade da sociedade. O que se modifica so ostipos de estrutura, o grau de independncia e de institucionalizao, oshbitos internos, o estatuto dos residentes, as formas de relao, as cara-ctersticas do estudante a comear pelo nome de repblica, que, segundose cr, aparece nos textos apenas no incio do sculo XIX, sob a influnciado perodo liberal, embora existam, em Coimbra, casas alugadas a estu-dantes desde o princpio do sculo XVI. 26 Uma repblica tem a dimenso de uma casa, por vezes espaosa. habi-tada por um nmero de pessoas que vai de 6 a 10, aproximadamente. A estenmero, preciso acrescentar 2 a 7 comensais que partilham as refeies.Apesar de existirem quartos duplos, os quartos individuais tornaram-senorma. Acontece que duas camas num mesmo quarto sejam ocupadas porum recm-chegado e por algum mais antigo. Favorece-se assim a adaptaodo que chegou por ltimo ao esprito da casa e aos seus membros. De ummodo geral, uma casa comporta, para l dos quartos, um ou dois quartosde banho, uma sala comum para receber as visitas e passar os seres, umabiblioteca e uma cozinha onde, numa grande mesa, se fazem as refeiesem comum. Todas as casas adoptaram uma forma autnoma de gesto, quefunciona rotativamente. Esquematicamente, h ministros das finanas,dos assuntos externos, etc.; os semanais (chamados kayds na repblicaHugo Capote, numa entrevista ao jornal Pblico (23/10/1999), fala da Praxe como sendo o resul-tado de sete sculos de vivncia acadmica. A identidade acadmica encontra-se naturalizada,uma vez que, quando chega a Coimbra, o aluno herda uma espcie de cdigo gentico, que o fazperceber o sentido e a essncia de todas as prticas. O Cdigo da Praxe de 1993 (p. 7) pe emrelevo, a este respeito, uma vivncia especial e diferente, gerada e desenvolvida em Coimbra aolongo de sculos e geraes; uma Academia de Coimbra [que] a personificao de uma culturanica () que vincula as geraes ou uma Praxe [que] uma das tradies da Universidadede Coimbra, e como tal representa uma das belezas desta academia secular. Termos ou expressescomo estes vivncia, ao longo de sculos, geraes, cultura nica veiculam uma visodo mundo universitrio unitria e continusta.26 Sobre a histria do alojamento de estudantes na Europa, ver Frias (2002b).
  • 24. 104 | Anbal Friasdos Pr-Kys-To) encarregam-se de pr a mesa ou de ajudar a cozinheira 27,e um/a administrador/a (chamado Shrif na Bota-Abaixo) gere a alimen-tao durante um ms. Acontece que uma nica tarefa, como o telefone ouo oramento, seja assumida por cada um dos membros, segundo uma lgicarotativa: a vez. Uma vez por semana, uma ou duas pessoas encomendame fazem entregar nos Servios Sociais da Universidade alimentos compra-dos com 50% de desconto. 28 Todos os anos uma casa organiza um cen-tenrio ou, de dez em dez anos, um milionrio para comemorar o diada fundao da repblica. Nessa ocasio, regressam alguns dos antigosmembros para partilhar uma refeio, um ou vrios copos, e para reencon-trar um ambiente festivo e amigvel entre as geraes actuais e das outrasrepblicas. frequente que se organizem ento actividades culturais comrecurso msica (fado, cantos ao desafio), poesia ou a exposies 29. As casas so alugadas a entidades particulares por um montante muitobaixo: entre 25 e 50 euros mensais. Algumas constituram-se em associa-o, desde a dcada de 1990. A maior parte mista h menos de 25 anos.Em 2002 existem vinte sete repblicas, duas das quais so femininas: RosaLuxemburgo, fundada em 1972, e Marias do Loureiro, em 1993. Algunstestemunhos referem-se, aparentemente, a repblicas femininas que teriamexistido a partir dos anos de 1920. Este facto parece ser corroborado pelotexto de uma viajante francesa da mesma poca (Jean-Javal, 1931). Aten-dendo a alguns dos traos referidos, como as tarefas rotativas e a autonomia,estas residncias parecem-se, de facto, com uma repblica. provvel queessas casas funcionassem imagem das repblicas masculinas, mas talvezcom um nvel mais baixo de turbulncia e bebida. O que faz transparecer algica do dual code, que distingue, consoante o sexo masculino ou femi-nino, os comportamentos sociais e os valores colectivos atribudos a essescomportamentos. As casas femininas, locais de uma actividade catlica, tive-ram de se estruturar, de facto, por mimetismo, mas sem que as raparigasfrequentassem as casas dos rapazes. Esta separao verifica-se, alis, na vidaacadmica em geral, uma vez que as raparigas no usam o fato tradicional,a capa e batina, e quase no participam nas Praxes nem na Queima dasFitas, antes de 1950, altura a partir da qual se verifica o aumento da frequn-27 Algumas repblicas no tm cozinheira (chamada cumadre, maneira de Ouro Preto, noBrasil), quer por opo (as Marias, incluindo os elementos efectivos e experincia, revezam-sesemanalmente na cozinha), quer para favorecer um maior envolvimento dos membros na casa eeconomizar [Pr-Kis-To, Ninho dos Matules), quer porque problemas passageiros de ordemfinanceira impedem o pagamento do salrio cozinheira.28 Nos actuais Galifes, o caloiro da casa deve ir, durante um ano, buscar o po s cantinas, emsinal de obedincia.29 Sobre a repblica como lugar esquecido de uma produo cultural e esttica, ver Frias (2002c).
  • 25. Praxe acadmica e culturas universitrias em Coimbra | 105cia feminina nos estudos superiores. Na realidade, apenas as repblicasmasculinas so reconhecidas e legtimas, incluindo nas memrias oral eescrita dos antigos. Uma expresso de Dionysia de Mendona vai, de resto,ao encontro de uma tal hiptese: A residncia dos Palcios Confusos, aque s vezes chamvamos a nossa Repblica, como aparece aqui e acolno nosso Dirio. Portanto, a palavra repblica aqui uma designa-o de convenincia e restringe-se apenas aos membros, no sendo difun-dida, alm disso, seno num registo escrito, interno e privado. A residncia estudantil tradicional de Coimbra caracteriza-se por umaforma de vida colectiva e por uma comunidade de sentimentos. O espritode solidariedade e de fraternidade no impediu, antigamente, a existnciade uma hierarquia entre os membros, e hoje no impede as diferenas esta-tutrias. Antes de 1969, o ttulo de presidente ou Mor (de majus: maior)constitui a marca de uma hierarquia respeitada. Esta baseia-se na antigui-dade que, por sua vez, legitima o exerccio de uma autoridade tradicional, maneira da hierarquia no seio da Praxe Acadmica ou da Universidade.O critrio de antiguidade de residncia permite ao Mor escolher o seu quartoou, talvez, ser o mais ouvido nas reunies da casa; na repblica dos Fan-tasmas e numa reunio de casa, o seu voto conta mais do que o dos outros(mas este um caso isolado). Ao atenuar-se, a sua autoridade tornou-se,contudo, mais de ordem moral. O Mor faz parte dos elementos efectivosque so definitivamente aceites por unanimidade, por ocasio de uma vota-o em reunio de casa, onde funciona uma real democracia participativa.Depois de uma discusso com o candidato casa e de uma votao porunanimidade entre os elementos efectivos, o novo elemento fica expe-rincia (ou cabide na repblica do Rap-Txo) de seis meses a um ano.Finalmente, o nome de uma repblica, a repblica Spreit--Furo porexemplo, designa a entididade residencial e, ao mesmo tempo, a unidadeformada pelos seus habitantes o conjunto dos elementos experincia edos efectivos, com excepo dos comensais. A estes indivduos que residem e comem no que eles consideram ser a suacasa, preciso acrescentar os comensais, que apenas partilham as refeiescolectivas. Amigos ou, ento, viajantes de passagem encontram facilmente aporta aberta (no sentido prprio, at h pouco tempo), uma refeio e umacama: so convidados, do mesmo modo que os amigos de um dos elemen-tos da casa vm partilhar uma refeio. A chamada para as refeies faz-sesimplesmente com a ajuda da voz ou ento graas a um sino, a que se segueo anncio gritado: palha (seus animais)!. O ltimo estudante inte-grado, portanto experincia, geralmente um caloiro de casa. A suadesignao pode variar: o menino do povo nos Bota-Abaixo ou o homem
  • 26. 106 | Anbal Friasda palha no Palcio da Loucura. Actualmente, a designao de caloiro,do mesmo modo que outras manifestaes da Praxe, pode ser recusada. oque acontece, nomeadamente, nas repblicas Marias do Loureiro, Inkas ouPr-Kys-To. Se o ltimo a ser integrado se torna num elemento igual dosoutros (embora, na qualidade de nefito, ele esteja l para aprender e saberouvir, segundo as palavras de um Mor), at ao ano de 1960 ocupou o nvelinferior da hierarquia interna. Esta posio ingrata faz recair sobre ele astarefas menos agradveis e, por parte do grupo, as humilhaes mais oumenos rituais, mas no destitudas de humor e brincadeira. Em Coimbra, a palavra repblica tem um sentido genrico. Desde1948, data da criao do Conselho de Repblicas (CR) 30, distinguem-setrs tipos de repblicas, com uma conotao ligeiramente hierrquica.O que depende, tambm neste caso, da antiguidade da casa enquanto re-pblica. Por ordem crescente, trata-se do solar, da repblica (propriamentedita) e da real repblica. Foi assim que o solar Marias do Loureiro passoua repblica, em 16 de Julho de 2003, na sequncia de um Conselho deRepblicas reunido na Pr-Kys-To. Os ltimos Estatutos do CR, refundi-dos em 1986, aboliram a distino hierrquica entre estas trs categorias decasas. Deste modo, se o solar tem o direito de participar e de votar num CR,no o pode convocar, diferentemente do que sucede com os outros doistipos de casa. No entanto, pode passar estrategicamente por uma casa ami-ga ou, a fortiori, pela repblica sua madrinha 31, a fim de tratar de assun-tos e de defender os interesses respeitantes ao conjunto das casas, ou detomar colectivamente uma posio social ou poltica sobre uma determi-nada questo, como a das propinas nos anos de 1990. A atenuao da hierar-quia entre estas entidades residenciais visvel, por exemplo, no facto decertas repblicas terem conservado o nome de solar, como os Kapangas.Ao mesmo tempo, a expresso ao servio da Praxe, presente nos primei-ros Estatutos do CR, em 1948 (art. 1), desapareceu com o movimento con-testatrio das tradies e das hierarquias (acadmicas e sociais) em 1969 e,sobretudo, em 1974. A partir desta data, o conjunto da Praxe Acadmicaque fica suspenso, incluindo, no que respeita s repblicas, o CR. Nessaaltura, a designao de repblica foi substituda por outras, como comu-na. Esta radicalizao verificou-se tambm na adopo de nomes de heris30 Sobre o Conselho de Repblicas, cf. Frias (2002b).31 No momento do projecto de lei sobre a despenalizao do aborto em Portugal, em 1998, asMarias puderam assim convocar um CR, graas ao apoio dos seus vizinhos e padrinhos, os Baco.Note-se que o apadrinhamento entre casas resulta do facto de que, para passar a solar e depois arepblica, a casa candidata apresentada por uma repblica reconhecida, durante um CR. Umatal medida refora ou tece laos feitos de entreajudas, visitas recprocas e, eventualmente, derelaes amorosas que podem resultar em casamento.
  • 27. Praxe acadmica e culturas universitrias em Coimbra | 107revolucionrios, como o de Rosa Luxemburgo, escolhido num perodo forte-mente politizado (1972). A oposio Praxe levou, actualmente, a umaespcie de separao se no oposio entre a Praxe, nomeadamente oConselho de Veteranos que a representa, e o CR. Os trs Cdigos da Praxe de Coimbra (1957, 1993 e 2001) referem-se repblica como o conjunto de estudantes que vivem em comunidadedomstica. Esta definio demasiado ampla, uma vez que, em Coimbra,existem casas que no so repblicas, mas onde se vive em comunidadedomstica, como o caso dos Cow Boys. Por outro lado, os Symbas, emboraostentem o nome de solar desde 1962, perderam o ttulo de repblica eo lugar no CR, por razes de ordem poltica que datam dos anos de 1960.A definio dos Cdigos , alm do mais, incompleta, porque, para queuma repblica exista tem de ser votada e reconhecida pelo CR, sem preen-cher necessariamente todas as condies formais, nomeadamente a inau-gurao oficial, previstas pelo Cdigo (1993: arts. 201 e 202). As repblicas desempenharam um papel activo durante os conflitosacadmicos de 1961 e 1969, no tempo do Estado Novo. Agiram como espa-os de proteco a opositores (Mrio Soares faz uma conferncia na re-pblica dos Kgados, em 1969), atravs do jornal O Badalo ou da criaode uma lista nica e unitria. Esta lista permitiu que os estudantes ganhas-sem as eleies para a Associao Acadmica (AAC), em 1961, contra aComisso Administrativa imposta pelo Governo, desde meados dos anosde 1930. Alberto de Sousa Martins ou Celso Cruzeiro, entre outros leadersda contestao de 1969, eram repblicos. Entre 1969 e 1974, as repbli-cas passaram de um praxismo cultural a um anti-praxismo que, na poca,era de conotao poltica. Em 1982 e 1986, o Estado tomou medidas nosentido de proteger as repblicas, reconhecendo-lhes um valor patrimoniale, em relao a algumas, financiando obras de restauro. Cada casa tem o seu nome. Este pode partir de um jogo de palavras(Pr-Kys-To, Kgados, Bota-Abaixo, Fantasmas, Rs-Te-Parta, etc.), daorigem geogrfica dos membros (Corsrios das Ilhas, Solar dos EstudantesAoreanos, Kimbo dos Sobas, Farol das Ilhas), pode referir-se loucura, bebida ou ao jogo (Palcio da Loucura, Baco, Bota-Abaixo, Trunf-Kopos),ao meio (Ninho dos Matules), a valores de virilidade (Galifes), s mu-lheres (Ay--Linda, Spreit--Furo, Boa-Bay-Ela) ou cozinha (Rap-Txo).A identidade nominal pode ainda ter origem num acontecimento histricoou numa personagem poltica (5 de Outubro, Rosa Luxemburgo), numareferncia extica (Inkas) ou, simplesmente, no lugar ocupado: Marias doLoureiro, Repblica da Praa, Solar do Kuarenta ou Solar do 44. Note-seque esta ltima foi promovida a repblica durante um CR em 2002.
  • 28. 108 | Anbal Frias Todas as repblicas possuem uma bandeira negra onde so visveis o nomee um logotipo inspirado numa viso humorstica, na Praxe (as Marias ou asRosas), na bebida, nas mulheres, etc. Por vezes, acrescentada a expressopraxstica Dura Praxis, sed Praxis. Mas algumas casas, como as Marias ouos Kgados, j pensaram em retir-la. Todas possuem um grito: E-K-A,para os Kgados, A-R-R-E, para a Boa-Bay-Ela ou H gua!, para osPr-Kys-To. 32 As repblicas distinguem-se igualmente pelo hino respec-tivo. Sirva como exemplo o da Boa-Bay-Ela: Estas meninas de agora / Boaslascas a valer / Suspiram de hora a hora / Passam a vida a dizer / Que a maltamais agradvel / Desta Coimbra to bela / a malta formidvel / E pira-midvel / Da Boa-Bay-Ela. Neste exemplo representativo, co-existem a afir-mao identitria, a valorizao da casa e a afirmao de um ethos masculinoremetendo para um perodo em que os estudantes eram a maioria na Uni-versidade e os nicos a residir nas repblicas. Acrescente-se uma refernciaa Coimbra e a uma particularidade da repblica (cf. Piramidvel). Por fim, possvel dar uma definio mais completa de repblica, pelomenos na verso conimbricense e actual. Pode ser caracterizada a partir devrios critrios convergentes, marcados pelo signo do vnculo. Assim, umarepblica de estudantes uma casa comunitria que assenta na co-habitaodos seus membros efectivos e experincia, masculinos e/ou femininos,e na qual se integram os comensais. Esta co-presena de pessoas agrega-das (colegas de curso, conterrneos, indivduos recomendados) prolonga-senuma linha geracional: os antigos. A repblica favorece um elevado nme-ro de interaces individuais ou de grupo, e uma forma de cooperao par-ticipativa e rotativa. Esta cooperao econmica faz-se acompanhar de umestilo de vida e de uma confraternidade que se identifica com um companhei-rismo convivial. Aos laos de reciprocidade e a uma tica de confiana, queunem os membros entre si, acrescenta-se o sentimento de pertencer a umamesma casa. Esta constitutiva de uma unicidade intra e inter-geracional.As repblicas ligam-se entre si atravs do Conselho de Repblicas e, nor-malmente, por relaes mtuas de natureza amigvel, intelectual ou cultural.VI PatrimonializaoOs costumes no aparecem como tradies, maneira de um objectoface a um sujeito, perante os olhos dos actores que os vivem e, de algumaforma, os encarnam. Pertencendo, antes de mais, ao mbito das experinciascolectivas, estes costumes tm a plasticidade e a informalidade do vivido, e32 O estilo e o ritmo destes gritos derivam sem dvida do grito acadmico nacional F-R-A que serve de modelo a outros. Veja-se, por exemplo, in extenso, o grito dos Kgados: KAKA/ KEKE / KIKI / KOKO / KUKU / Kgados (3 vezes) / Aguenta o gado.
  • 29. Praxe acadmica e culturas universitrias em Coimbra | 109obedecem s regras implcitas da prtica. Ora, o mesmo no se verifica comuma Praxe Acadmica tradicional e, a fortiori, tradicionalista. Em Coimbra, h discursos individuais e institucionais que concebi-damente se referem a uma Praxe Acadmica que se confunde com a hist-ria da Universidade. Um determinado uso social e abuso cientfico datradio pode levar, passando do substantivo substncia, como dizWittgenstein, a consider-la nica e eterna. Mas a anlise socio-histricafaz aparecer variaes e distines. Dos fins do sculo XIX at actuali-dade, tudo mudou em matria de Praxe Acadmica, paralelamente ao quesucedeu com a instituio universitria e as suas cerimnias. As transformaes manifestam-se em vrios registos e segundo intensi-dades variveis. Podemos indicar, esquematicamente, as etapas importantese observar as principais modificaes. Estas mudanas verificam-se no aban-dono efectivo de certos elementos: por desuso (levar os caloiros no burro;roubos de patos 33; desaparecimento de palavras, como candeeiro ou for-migo 34, e de referncias tricana); por moda (gorro) 35; devido lei (capae batina e cerimnias universitrias, em 1910), s crticas contra os exces-sos estudantis (canelo na Porta Frrea, patente, hierarquias) ou devido atransformaes morfolgicas (sociabilidades na Rua Larga, antes dasdemolies de 1940, Queimdromo, desde 2000). Tambm ocorrem novi-dades por emprstimo pardico (Latadas, por volta de 1880; Centenrioda Sebenta em 1899, retomado sob a forma do Enterro do Grau em 1905 e,depois, da Queima das Fitas); por criao (fado, tunas, hino, livro de fina-listas), por inovao dos organizadores (reunio de todas as Faculdades naQueima de 1926, introduo do baile de gala em 1933 e de um Sarau), porimitao e iniciativa de um curso (cartola e bengala, venda da pasta) 36. Por33 Um velho fresco mural situado na repblica dos Pr-Kis-To d testemunho de tal costume.Estes roubos rituais foram hoje substitudos pelo furto de sinais de trnsito.34 Candeeiro designava, antigamente, o quartanista, em referncia vela de que ele se serviapara estudar (como gria escolar, o termo aparece j em 1792, no Palito Mtrico); formigo eraaplicado ao estudante de teologia.35 O gorro veio de Lisboa por volta de 1730, ficou mais curto (como a batina) e mais raro entre astradies por volta de 1880, de acordo com Coelho (1902: 127), e ressurgiu em 1943 (Soares,1985a: Novembro), por ocasio, segundo parece, da reconstituio de cenas histricas para umfilme. Hoje, so sobretudo alguns raros veteranos que o usam.36 Para desenvolver apenas este aspecto, Soares (1985b: 356-357) refere que, no dia da sua reu-nio de curso (uma semana depois da sua formatura!), o curso do V ano mdico que usou fitaslargas no ano lectivo de 1931-32, teve grande importncia na criao de costumes acadmicos avenda da pasta () e tambm na reafirmao de outros costumes antigos. o caso, nomeada-mente, da inveno do uso das cartolas na festa da Queima de 1932. A bengala e a cartola sointroduzidas por ocasio de uma fotografia de curso tirada nas escadas da capela da Universidade,em que os condiscpulos usam trajes respeitveis, com chapu alto, coco, chapus de reviro,bengalas e outros acessrios de vesturio, a lembrar individualidades prestigiadas e respeitveisque se tivessem formado ainda no sculo XIX.
  • 30. 110 | Anbal Friasoutro lado, verificam-se alteraes no calendrio de um evento (em 1949, aLatada passa de Maio para Novembro, a Queima das Fitas antecipada de26 para o princpio do ms de Maio), nos itinerrios (a Queima das Fitasestende-se da Alta Baixa), no financiamento das festas (sponsoring), napublicitao das actividades (marketing, media, a Queima das Fitas torna--se numa festa da Academia e da cidade), na forma dos acontecimentos(a passagem de uma algazarra espontnea para uma Latada carnavalizada,preparada e uniformizada), na reificao dos costumes (codificao e folclo-rizao da Praxe), na utilizao poltica dos costumes (luto acadmico, cantode interveno, comemorao da Tomada da Bastilha) ou at mesmo nasua rejeio depois de 1969-1974. So ainda observveis algumas variaes por restrio (os alunos do liceu j no usam capa e batina desde o fim dadcada de 60, tal como j no so praxados na qualidade de bichos) oupor extenso s raparigas, quer da Praxe em geral, mas adaptada e monos-sexuada (trupes, rasgano, etc.), quer da capa e batina emblemtica, a partirdo Cdigo de 1957. A estas alteraes, necessrio acrescentar a passagemde uma esfera para outra, com a deslocao ou extenso do registo dasprticas ou das experincias concretas para o das imagens discursivas ouescritas, perenizando em traos tpicos elementos desaparecidos, comoa tricana, ou fixando idealmente formas passadas de sociabilidade, como abomia. Finalmente, em pouco mais de um sculo, assiste-se a uma reconfi-gurao do sentido dos objectos ou da sua representao (a capa e batinaigualitarista torna-se distintiva e hierrquica) , das imagens do estudante(do cbula e do urso ao elegvel) e do contexto universitrio e social (dabomia literria ao desemprego dos licenciados). Estes pontos de referncia cronolgicos e esta histria positivista permi-tem apenas estabelecer a srie dos elementos factuais e a sua variao em matria de tradies acadmicas. Mas no so explicativos em si mesmos.H dois conceitos que nos podem permitir esclarecer a trama histrica daPraxe Acadmica e das suas mecanismos sociais. Em primeiro lugar, o da patrimonializao. Esta noo articula uma dupladinmica global. A primeira tem por base um processo de legitimao queconfere um valor artstico, histrico, cultural, ideal ou simblico a umaconstruo, a um objecto, a uma prtica ou a um espao. A segunda assentana valorizao social de uma determinada entidade, reconhecendo-lhe uminteresse local, nacional ou global. H que acrescentar a este procedimentoformal uma lgica de natureza museolgica, que consiste numa poltica deconservao e numa encenao de objectos culturais ou artsticos, des-tinados a serem representados e contemplados. depois de uma operaosocial deste tipo, em que se mistura uma poderosa carga de sagrado e deconvico, que um patrimnio fica definido e visvel. Esta dinmica deter-
  • 31. Praxe acadmica e culturas universitrias em Coimbra | 111mina igualmente uma certa forma de o desfrutar com regras e com umolhar estetizante. E, ao mesmo tempo, implica um tipo de administraoracional dos bens culturais ou materiais (Frias, 2001). A ideia de patrimonializao remete para uma outra: a de objectificao,proposta por Richard Handler (1988). Este segundo conceito define o pro-cesso de transformao de uma cultura num objecto representado, deordem material ou no. E isto, graas a uma descontextualizao, a umatransferncia de sentido e mesmo a uma alterao de lgica, em particularcom a constituio de um folclore, de um museu acadmico ou de umpatrimnio (Frias, 2002d). Finalmente, as noes de patrimonializao ede objectificao ajudam a delimitar o sentido e o alcance do processo deestetizao, processo este que, alis, engloba os anteriores (Frias e Peixoto,2002). Estes conceitos permitem compreender a evoluo da PraxeAcadmica que, em pouco mais de um sculo, passa de costumes vividos epraticados a tradies admiradas, lamentadas ou criticadas e, maisrecentemente, a tradicionalismo. Os comportamentos rituais e as cerimnias encontram na Alta histricae na Universidade uma parte da sua significao e as condies da sua per-formance. As tradies acadmicas favorecem um jogo de espelhos, onde ocolectivo se reflecte idealmente e se d a ver atravs da imagem controladade uma comunidade pacificada. Alta e Praxe constituem tambm o subs-trato e a substncia donde flui a carga simblica de que a Universidade sealimenta, tanto mais quanto maior a tendncia para se racionalizar. Umtal processo foi, sem dvida, desencadeado desde o aparecimento da Praxe.Recentemente acelerou-se, sob o peso crescente das tecnologias e com aemergncia de uma relao instrumental entre os estudantes, transforma-dos em utentes, e a Alma Mater, reduzida a uma instituio distribuidorade diplomas em massa. Este desencantamento fez-se, pois, acompanharde uma desritualizao e de uma dessacralizao da Universidade. Noentanto, desde os anos de 1980 que se assiste, se no a uma ressimboliza-o, pelo menos em Coimbra a uma restaurao, e, nas outras cidadesuniversitrias, a uma inveno dos costumes acadmicos. O reforo dastradies no mbito escolar acentua o processo de patrimonializao dascidades, que optam pela via do tradicionalismo ao tornarem-se cada vezmais codificadas, institucionalizadas e at folclorizadas.ConclusoSe a anlise a que se procedeu parece ter um efeito de desencanto relativa-mente ao esprito acadmico, a explicao racional, relativista e causal,por si s, no pode apagar o intenso halo de imagens e afectos que rodeia aPraxe Acadmica. Isto, porque o vivido possui o seu sentido prprio e a
  • 32. 112 | Anbal Friassua fora de inrcia. Este vivido resiste menos a um suposto mistrioirredutvel da vida social perante as pretenses objectivistas da cincia, doque tentativa, por parte do socilogo, de encontrar a explicao dos com-portamentos colectivos e dos seus mecanismos. Uma iluso difundida situa o incio da Praxe Acadmica numa pocarecuada. A mesma lgica, misturando convices e representaes colectivas,considera a actual Universidade uma instituio fundada por D. Dinis.Estes mitos, alimentados, possuem decerto uma razo e tm a sua eficcia.Baseiam-se na aparncia de um continuum material ( Alta; Pao das Escolas),textual (biografias e Cdigos; Estatutos e cronologias) e espiritual (espritoacadmico; Alma Mater). Estes trs registos funcionam como suportes estra-tgicos de uma memria social selectiva. A reactivao de histrias localizadas num espao social e imaginrio(Alta, rua Larga, repblicas, Porta Frrea, Penedo da Saudade, etc.); a publi-cao institucional da parte histrica dos arquivos da Universidade, obrasfundadoras de estudantes e Cdigos regulamentadores das tradies; final-mente, a referncia a um halo de sacralidade que envolve os doutores, osmestres, a Universidade ou Coimbra tudo isto forja uma identidadeacadmica e universitria. Ancorado na linha do tempo, sobre a qual opresente e o passado parecem interpenetrar-se, este pr