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Diálogo Canoas n. 18 jan-jun 2011 ENTRE ESTRATÉGIAS E TOMADAS DE POSIÇÃO, BUSCAS PARA COMPREENDER UM PROCESSO DE INCUBAGEM Leandro R. Pinheiro Vera Schmitz Resumo O artigo analisa o processo de incubagem de empre- endimentos econômicos solidários, partindo do caso de um grupo formado por mulheres atuantes no ramo de costura. As problematizações propostas, aqui, narram buscas meto- dológicas para compreender as tomadas de posição dessas trabalhadoras, visando a diálogos educativos. Destacamos, de um lado, as articulações micropolíticas na comunidade e, de outro, os procedimentos para formação de preços de pro- dutos adotada pelas trabalhadoras, como aspectos práticos a indicar tomadas de posição produzidas historicamente, aven- tando a hipótese de congruências destas com as ambiências de trabalho em que essas mulheres têm se situado. Palavras-chave Formação, Tomadas de Posição, Estratégias, Incu- bagem BETWEEN STRATEGY AND POSITION, SEEK TO UNDERSTAND AN INCUBATING PROCESS Abstract The article analyzes the incubating process of solidarity economic enterprises on the case of a women’s p. 145 - 170 Revista Diálogo 18.indd 145 29/9/2011 13:50:46

Artigo Incubagem Ecosol - DiáLogos 18

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Análise de processo de incubagem de empreendimentos solidários.

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    entre eStratGiaS e tomaDaS De poSio, BuSCaS para CompreenDer um proCeSSo De

    inCuBaGem

    Leandro R. PinheiroVera Schmitz

    ResumoO artigo analisa o processo de incubagem de empre-

    endimentos econmicos solidrios, partindo do caso de um grupo formado por mulheres atuantes no ramo de costura. As problematizaes propostas, aqui, narram buscas meto-dolgicas para compreender as tomadas de posio dessas trabalhadoras, visando a dilogos educativos. Destacamos, de um lado, as articulaes micropolticas na comunidade e, de outro, os procedimentos para formao de preos de pro-dutos adotada pelas trabalhadoras, como aspectos prticos a indicar tomadas de posio produzidas historicamente, aven-tando a hiptese de congruncias destas com as ambincias de trabalho em que essas mulheres tm se situado.

    Palavras-chaveFormao, Tomadas de Posio, Estratgias, Incu-

    bagem

    BETWEEN STRATEGy AND POSITION, SEEK TO UNDERSTAND AN INCUBATING PROCESS

    AbstractThe article analyzes the incubating process of

    solidarity economic enterprises on the case of a womens

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    group who work with sewing. The issues raised by this paper present methodological searches used to understand this employees turn taking, aiming educational dialogues. First, we remark the communitys micro-political articulations; then, on the other side, we highlight the procedures for the establishment of the product prices assumed by the workers as a practical aspect that points out turn takings which were historically produced and suggesting the hypothesis of agreement with the working environment characteristics in where these women have been situated.

    Key wordsTraining, Turn taking, Strategies; Incubating.

    1 INTRODUO

    O texto que segue traz problematizaes acerca do processo de incuba-gem de empreendimentos econmicos solidrios, focando a anlise nas relaes construdas entre as integrantes de um dos grupos incubados e a equipe, que constitumos na incubadora. O cotidiano de acompanhamento alvo de anlise, aqui, perguntando pela dimenso educativa das prticas, que efetivamos em campo.

    Para tanto, narramos nosso dilogo com um grupo de quatro mulheres, que visavam a constituir um empreendimento no ramo de costura. Moradoras de um bairro de periferia, com reduzidos ndices de renda e escolaridade, e cuja populao encontra-se em situao de elevada vulnerabilidade social, essas trabalhadoras se situam num quadro social de insero feminina precarizada no mercado, perpassada pela necessidade de subsistncia. Opo da equipe da incubadora, o trabalho com tal segmento se coaduna ao fomento economia solidria e s prticas de autogesto, solidariedade e cooperao que esta encerra.

    Apropriando-se de contribuies de autores, como Bourdieu, Josso e Morin, propomos algumas provocaes concernentes compreenso da formao

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    dos sujeitos com os quais dialogamos. O aporte que construmos desde tais ins-piraes nos instigou a narrar a interao produzida na comunidade supracitada, visando a compreender, neste nterim, as tomadas de posio das trabalhadoras, que apoivamos, e a conceber as possibilidades de dilogos educativos num processo de incubagem.

    Para cumprir nosso intento, apresentaremos, na sequncia, o lugar de onde falamos e o recorte, que adotamos para narrar o processo em questo. Traremos depois os referentes, que orientaram nossa abordagem, e o entendimento sobre a noo de formao, como concepo associada compreenso das tomadas de posio. Problematizaremos, ento, nossa permanncia em campo, ao interagirmos com as integrantes do empreendimento e a comunidade prxima.

    2 CONTEXTO DE AO: INCUBAGEM E COMUNIDADE

    O processo narrado neste texto decorre das atividades desenvolvidas pela incubadora social da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), So Leopoldo/Brasil, onde, entre tcnicos e estagirios de ensino superior, preocupvamo-nos em promover iniciativas de gerao de trabalho e renda na perspectiva da economia solidria. A equipe de nove pessoas possua uma forma-o multidisciplinar, incluindo as reas de administrao, servio social, cincias contbeis, direito, comunicao social e educao.

    Os grupos incubados se distribuam em servios de alimentao, costura e confeco, artesanato, reciclagem de resduos slidos e produo de eventos, com integrantes em faixa etria bastante elstica, envolvendo jovens e adultos. A caracterstica comum aos empreendimentos incubados era a condio em-brionria em que se encontravam quando selecionados para incubagem. Isso foi uma opo da incubadora, com vistas a trabalhar junto a populaes com elevados nveis de vulnerabilidade social e com forte necessidade de organizao poltica e produtiva.

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    Cada uma das cinco iniciativas era acompanhada sistematicamente por um tcnico e uma estagiria, contando com apoio eventual dos demais integrantes da incubadora, conforme as demandas dos empreendimentos. A incubagem era organizada de modo a constituirmos relaes dialgicas inspiradas nas prticas da educao popular (FREIRE, 1996), construindo passo a passo os saberes necessrios gesto do trabalho. Embora tivssemos como medida inicial situ-armos a perspectiva de economia solidria e iniciarmos diagnsticos e planeja-mentos participativos, o cotidiano de acompanhamento tomava rumos diversos e at instveis, segundo caminhavam as necessidades individuais de subsistncia, os conflitos interpessoais, as aprendizagens coletivas, os servios prestados pelo

    grupo e as interaes que seus membros mantinham com suas comunidades de pertencimento. No intuito de garantirmos a permanncia do trabalho e estabele-cermos aprendizagens significativas, procurvamos partir dos desafios cotidianos

    e seguir alimentando a proposta de constituir um empreendimento de economia solidria.

    Tomando, aqui, as consideraes de Gaiger (2006), quando integramos nossas atividades promoo da economia solidria, estamos considerando um campo de iniciativas que, em formatos variados, almeja um carter coletivo na gesto, na posse dos meios de produo e no processo de trabalho, minimizan-do a presena de relaes assalariadas e provocando o envolvimento com os problemas da comunidade e com as questes da cidadania (GAIGER, 2006, p. 515). Estamos falando de um conjunto de propostas com incidncia em vrios continentes e articuladas a diversos movimentos sociais. Neste nterim, o fomento a tais empreendimentos encontra lugar no Brasil junto a instituies de ensino superior, organizaes no-governamentais e instncias estatais1.

    1 Seriam exemplos a Rede de Incubadoras Tecnolgicas de Cooperativas Populares (ITCP), a Rede Interuniversitria de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho (UNITRABALHO), o Cen-tro de Aperfeioamento Multi Profissional (CAMP) e/ou a Secretaria Nacional de Economia Solidria.

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    Dentre as iniciativas que acompanhvamos, optamos por abordar o processo desencadeado junto a um grupo de mulheres, que trabalha no ramo de costura e confeco, produzindo, na maioria dos casos, peas de corte simplificado,

    como bolsas, camisetas e bandeiras. O nmero de integrantes no empreendimento variou consideravelmente no perodo em anlise, de forma que consideraremos uma composio de quatro pessoas, que, ento, mostrou-se a mais estvel2.

    As mulheres com quem dialogvamos residiam num bairro de periferia de So Leopoldo, cidade pertencente Regio Metropolitana de Porto Alegre e ao Vale do Rio dos Sinos, cuja ocupao original se deve a imigrao de alemes no sculo xIx. Essas trabalhadoras, contudo, eram oriundas de municpios me-nores, do interior do Rio Grande do Sul. A vinda de suas famlias para a atual localidade ocorreu na busca de trabalho e na expectativa de melhores condies de vida. Suas atuais residncias estavam localizadas numa rea cujos moradores possuam reduzidos nveis de escolaridade e renda, vinculados, muitas vezes, a ocupaes informais do mercado de trabalho. A construo das moradias nessa vila se articula existncia de uma cooperativa habitacional, a qual se filiaram

    muitos dos residentes. Essa cooperativa apoia o empreendimento em questo, cedendo espao fsico e, ocasionalmente, encomendando servios, ainda que nem todas as integrantes sejam cooperativadas.

    As trabalhadoras possuam idade entre 45 e 55 anos. Apresentavam pou-co tempo de escolaridade, sendo que duas delas conseguiam ler com facilidade.

    2 Aventamos a hiptese que a instabilidade na formao do grupo, comum tambm a outros em-preendimentos incubados, deve-se aos elevados nveis de vulnerabilidade social, destacando-se a urgncia dessas mulheres em atender necessidades materiais bsicas, cedendo a uma habitual contratao precarizada em empresas locais. E, cabe sinalizar j de antemo, a constituio de empreendimentos desde suas condies mais bsicas (equipamentos e recursos para capital de giro, saberes tcnicos e organizao autogestionria) parece demandar um tempo de matura-o e desenvolvimento desproporcional aos ritmos e urgncias das comunidades com as quais dialogamos. Essa questo no ser alvo de anlise no texto, mas gostaramos de assinalar sua relevncia para futuras problematizaes.

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    J o trato com nmeros era mais disseminado. Suas famlias eram compostas de dois a trs filhos, sendo que uma delas era casada na poca. Mais recorren-temente, as trajetrias de trabalho incluam passagens por indstrias de calado e faces txteis, com laos de assalariamento bastante precarizados e instveis, mas que teria lhes oportunizado aprendizagens na rea de confeco. Apenas uma das integrantes no tinha tal experincia, parcialmente compensada por um curso tcnico oportunizado pela incubadora e, tambm, por habilidades domsticas, que nos parecem culturalmente disseminadas, interpondo uma questo de gnero.

    O grupo apresentava caractersticas comuns ao contexto de aumento do percentual de arranjos familiares chefiados por mulheres, em que estas acumu-lam tarefas domsticas e atividades externas destinadas subsistncia familiar, concentrando-se em servios precarizados, como recorrente no Brasil, segundo analisa Bruschini (2007). O Mapeamento da Economia Solidria (SENAES, 2006) indica, inclusive, o predomnio de mulheres entre os membros de pequenos em-preendimentos, muitas vezes, configurados como alternativas de sobrevivncia

    para populaes vulnerabilizadas.

    Retratado minimamente o contexto do trabalho, nossa narrativa se res-tringir ao dilogo estabelecido com essas mulheres ao longo do processo de incubagem construdo entre abril e setembro de 2008, quando efetivamos oficinas

    e reunies regulares com o grupo, em algumas de suas residncias ou na sede do empreendimento (localizado no mesmo bairro). Contudo, antes de resumir nossa caminhada e as problemticas, que a perpassaram, cabe tratar das opes tericas, que orientaram nossa abordagem3.

    3 Os referentes trazidos, aqui, remontam a elaboraes decorrentes do curso de doutorado, a partir do dilogo com outros sujeitos, mas so aportados, aqui, numa reinterpretao congruente com a interao disposta no texto.

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    3 ARTICULAES TERICAS SOBRE FORMAO E TOMADAS DE POSIO: ENSAIOS PARA UM MTODO

    Ao concebermos o processo de incubagem desde uma perspectiva edu-cativa, consideramos oportuno apropriarmos a noo de formao. Dessa ma-neira, essa categoria aportada como provocadora para pensarmos um conjunto minimamente coerente de tomadas de posio e interpretaes impetradas pelos sujeitos sociais, cuja delimitao , ainda assim, varivel, conforme a interao com o contexto. Esse um posicionamento epistemolgico em anlise em nosso trabalho, mas condensa uma intencionalidade educativa articulada ao propsito poltico mobilizatrio, que encerra o estmulo economia solidria.

    Os sentidos atribudos pelas trabalhadoras s prticas de solidariedade, reciprocidade, autogesto, ou mesmo economia solidria, podem variar conforme suas trajetrias e as estratgias, que o contexto lhes demanda (GONALVES, 2008). Acreditamos na necessidade de reconhecer tais interpretaes, pois estas encerram tomadas de posio com as quais dialogamos e que, mesmo quando desejamos alterao das relaes de trabalho institudas, precisamos compreend-las como parte da organizao das integrantes do grupo em relao ao contexto, onde atuam.

    As leituras e as argumentaes que encontramos apresentavam, em muitos casos, a noo de formao com um direcionamento, isto , como formao para, explicitando uma intencionalidade ou uma aplicabilidade prtica (formao humana, religiosa, profissional, dentre outras).

    A abordagem que gostaramos de retratar, aqui, encontrou os primeiros enunciados nas contribuies de Tanguy (1997), dado o tensionamento proposto formao como prtica construda social e historicamente, em diversas moda-lidades. A intencionalidade (formativa) estaria presente em vrias prticas, mas a autora as analisa como expresses de determinada situao conjuntural.

    A intencionalidade e as caractersticas do processo de formao tm sua contingencialidade reconhecida na medida em que concebemos, ento, sua articu-

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    lao a prticas e relaes socialmente datadas, historicamente provisrias. Como afirma Batista (2001), compreender a formao [...] implica o reconhecimento

    das trajetrias dos homens e mulheres, bem como exige a contextualizao hist-rica destas trajetrias, assumindo a provisoriedade das propostas de determinada sociedade (BATISTA, 2001, p. 136).

    Assim, propomo-nos a analisar a prtica formadora como um espao de relaes relativamente circunscrito, que comporta uma condio inacabada e lacunar, em funo de sua provisoriedade histrica, do trnsito dos sujeitos por espaos diferentes e da pluralidade de pertencimentos sociais.

    Nesse ponto, podemos trazer as articulaes que elaboramos, at o mo-mento, entre o princpio de auto-eco-organizao, proposto por Morin (2001), e a noo de formao. Tambm nas linhas que seguem, apresentaremos algumas articulaes tericas, citando Bourdieu (1996; 2000) e Josso (2004).

    3.1 UMA CONCEPO DE FORMAO: INTERPRETAES E TOMADAS DE POSIO

    [...] os seres vivos so seres auto-organizadores, que no param de se autoproduzi-rem e, por isso mesmo, despendem energia para manter sua autonomia. Como tm necessidade de retirar energia, informao e organizao de seu meio ambiente, sua autonomia inseparvel dessa dependncia; por isso que precisam ser concebidos como seres auto-eco-organizadores. (MoRiN, 2001, p. 95)

    A noo de auto-eco-organizao tem nos provocado a relativizar leituras reprodutivistas da formao, concebendo a interao entre sujeitos e coletividade num movimento de estruturao e reconstruo, no qual as pessoas reorganizam seus saberes, conforme a distribuio de poder circunstancial. Nesse sentido, torna-se significativo o esforo de conhecer os sujeitos e seu cotidiano, para

    compreend-los nas suas interpretaes do mundo e das atividades de trabalho, que os rodeia.

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    A noo de auto-eco-organizao instigou-nos a considerar as vivncias construdas pelo sujeito como parte histrica de si (numa trajetria) e como auto-delimitadoras da interpretao. Isto , o que se conta agora parte de uma forma de estar na relao com os outros construda no correr da vida, mas acionada conforme me auto-eco-organizo no presente.

    [...] a interpretao narrativa e espontnea do itinerrio de vida comporta uma dimenso imaginria, porque se trata de uma releitura do passado na tica do ques-tionamento, dos projetos, dos desejos e das perspectivas de vida inscritas no presente, no passado e nas projees, mais ou menos conscientes de um futuro prximo ou longnquo [...]. (JOSSO, 2004, p. 253)

    O que narramos sobre ns seria resultado de um tensionamento entre o que aprendemos em nossas circunstncias de vida e o esforo de afirmao de

    nossa identidade, numa produo autoreferente. Agir, refletir, contar so cons-trues de um sujeito, que vive conhecendo-se e reconstruindo-se nas relaes, de maneira que a formao seria movimento de reorganizao de pressupostos, valores de conduta e vnculos com discursos sociais4.

    No correr de tal movimento, preciso considerar as vivncias narradas como aquelas significativas, interpretadas como desafiadoras, pois estas tero

    exigido certa organizao dos jeitos de ser, dos hbitos e, alm disso, podero ter instaurado rupturas na forma de interagir com as pessoas, com o mundo. Nas palavras de Josso (2004):

    [...] a recordao-referncia pode ser qualificada de experincia formadora, porque o que foi aprendido (saber-fazer e conhecimentos) serve, da para frente, quer de referncia a numerosssimas situaes do gnero, quer de acontecimento existencial nico e decisivo na simblica orientadora de uma vida. (JOSSO, 2004, p. 40)

    4 A intensidade do processo narrativo e na reorganizao da formao de um sujeito precisa ser analisada na interpenetrao desta com o contexto em que atua. As narrativas podem ser to mais provisrias quanto mais o ambiente interpe apelos, dependendo ainda da disponibilidade das pessoas em receb-los. No podemos pressupor mudanas e provisoriedade. Entendemos ser mais frutfero e rigoroso metodologicamente observar que interaes o campo emprico enseja.

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    Conforme argumentamos, a anlise da formao considera a elaborao presente, que o sujeito faz sobre sua trajetria. Mas, de maneira complementar, procuramos observar ainda as prticas integradoras s instncias concretas dos contextos de atuao, como constituintes da formao e tensionadores das nar-rativas construdas pelos trabalhadores. E, nesse caso, apoiamo-nos nas contri-buies de Bourdieu (1996; 2000) acerca das condies objetivas e das relaes de poder, que constituem o processo formativo.

    Esse autor nos fala de certa relao encantada com um jogo que o produto de uma relao de cumplicidade entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espao social (BOURDIEU, 1996, p. 139-140), referindo a ligao entre sujeitos e campo de ao. Assim, Bourdieu prope que o espao social se reconstri em ns, gerando instrumentos para a naturalizao e, tambm, para a reflexo do convvio, de forma que nos configuramos como estruturas estru-turadas e estruturantes das relaes sociais. Seramos, em parte, resultado das relaes objetivas que vivemos, compartilhando socialmente prticas e interesses.

    Assim, nossa participao no espao social e nas prticas formativas, que esteinstaura, se daria a partir de relaes de disputa, conforme o quantum de poder sobre o campo (num dado momento) e, mais precisamente sobre o produto acumulado do trabalho passado, logo sobre os mecanismos, que con-tribuem para assegurar a produo de uma categoria de bens (BOURDIEU, 2000, p. 134). Estruturalmente articulados ao campo5, estabelecemos estratgias de disputa pelos recursos disponveis no locus de atuao.

    Assim, o autor fundamenta uma perspectiva, que salienta a interdepen-dncia de nossa formao s condies concretas, que nos envolvem. Mantivemos noes aportadas pelo autor que nos lembrassem de nossos laos com o contexto

    5 [...] Espao onde as posies dos agentes se encontram a priori fixadas, o campo se define como o locus, onde se trava uma luta concorrencial entre os atores em torno de interesses especficos, que caracterizam a rea em questo. (ORTIZ, 1983, p. 19).

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    e com as relaes de poder, como era exemplo, ento, a expresso tomada de po-sio. Encontrvamos trilhas para uma anlise de posicionamentos, que indicasse articulaes com a construo social dos espaos de ao. A partir do contraste entre as narrativas pessoais e destas com nossas prprias leituras da realidade, concebamos condies sociais de produo coletiva do lugar que vivencivamos juntos, educandos e educadores.

    No contraste de referenciais, passamos a contemplar a formao como um processo de resultados provisrios, imerso num conjunto de interaes organizadoras, tensionadas por normatizaes institucionais e reinterpretaes subjetivas e grupais, tomando as tomadas de posio dos sujeitos como constru-es singulares a partir do que se apreende dos contextos de atuao.

    4 PARA COMPREENDER RELAES: SOBRE O DILOGO EM CAMPO

    No tnhamos tcnicas definidas a priori; a partir das primeiras semanas de interao, fomos elencando e criando possibilidades para o dilogo. Siste-maticamente, as notas em relatos foram alvo de anlise, no intuito de criticar e reorganizar a caminhada. Entendemos que, assim, aproximvamo-nos de uma autoanlise de nossas inferncias e explicaes (conforme sugere Morin, 1999), reorientando procedimentos para compreender as aes dos sujeitos.

    Nesse sentido, comeamos citando uma provocao de Brando (2003), que ainda trazemos conosco:

    [...] o que fazer quando eu sou aquilo que desejo conhecer e interpretar? [...] O que fazer quando eu fao parte daquilo que desejo compreender e interpretar? (BRANDO, 2003, p. 51)

    Quando comeamos o acompanhamento, em abril de 2008, o grupo havia sido recomposto depois da desistncia da maioria das integrantes. Restara

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    apenas uma das mulheres, que o compunham. O motivo alegado para evadirem era a interferncia da cooperativa habitacional na gesto do empreendimento, afetando a autonomia das trabalhadoras.

    O empreendimento possua o maquinrio necessrio para o trabalho6 e es-tava alocado numa sala alugada pela cooperativa, que, tambm, havia se incumbido de constituir a, ento, nova formao do grupo. Quando assumiram o trabalho, era perceptvel a expectativa preponderante em relao gerao de renda.

    Nossas explicaes iniciais acerca da perspectiva de economia solidria, que nos movia e deveria balizar o trabalho dos empreendimentos incubados, pareciam ter sido entendidas e aceitas, mas a construo de atividades autogestio-nrias e solidrias no cotidiano assumiu uma dinmica complexa, entrelaada por necessidades materiais, demandas comunitrias e tomadas de posio arraigadas nas trajetrias profissionais daquelas mulheres.

    amos semanalmente sede do grupo. Em nosso trajeto, percebamos o fim do asfalto dando lugar a ruas repletas de buracos, sem meio fio, ladeadas por

    casas de madeira ou alvenaria com acabamento por concluir. Algumas cercas de madeira e crianas brincando pela rua completavam o cenrio. Entrvamos na vila e, chegando sede do empreendimento, encontrvamos as mulheres senta-das frente das mquinas de costura. Ali ficavam enquanto conversvamos. Na

    maioria das vezes, iniciavam contando os fatos ocorridos na ltima semana: os pedidos novos, os acordos para pagamento da energia eltrica junto cooperativa, suas solicitaes de apoio da incubadora. As demandas eram vrias e tentvamos propiciar algumas parcerias junto universidade, que qualificassem o trabalho

    6 As mquinas foram cedidas por uma organizao no-governamental e pelo Programa de Incluso Produtiva desenvolvido pelo Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome e pelo Programa Naes Unidas para o Desenvolvimento MDS/PNUD, do qual o Tecnosociais-Unisinos fez parte. O grupo foi beneficiado mediante vinculao incubagem.

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    do grupo7. O atendimento das solicitaes inclua capacitaes cujos resultados imaginvamos estratgicos para o empreendimento e, tambm, necessidades urgentes relativas ao atendimento da clientela e ao pagamento de despesas.

    Neste nterim, tentvamos articular ainda uma proposta de planejamen-to participativo do empreendimento. Todavia, a possibilidade de descrevermos um plano foi entrecortada, vrias vezes, pela dinmica poltica comunitria e pela urgncia na gerao de renda. Em meio s oscilaes de curso, logramos construir uma caminhada, que mantivera no horizonte a proposta de formar um empreendimento autnomo, na medida em que fortalecamos laos de confiana

    entre as mulheres e a equipe da incubadora.

    Para efeito desta anlise, abordaremos duas prticas desenvolvidas: a busca por entender a insero do empreendimento nas dinmicas micropolticas de sua comunidade; e o desenvolvimento de artifcio didtico para aprendizagem da composio de preos dos produtos. Essas iniciativas sero abordadas por entendermos serem as que melhor expressam nosso intento de compreender as tomadas de posio das trabalhadoras com quem dialogvamos.

    4.1 EMPREENDIMENTO E COMUNIDADE

    Em nossas primeiras conversas com o grupo, insistamos no reconhe-cimento de motes distintos do estritamente produtivo para integrao entre as trabalhadoras, ao passo que elas citavam sua necessidade de renda e a inteno de permanecer no grupo se este oportunizasse recursos a curto prazo. Pedidos trazi-dos pela cooperativa habitacional alimentavam a esperana de ganhos. Atuvamos apoiando o clculo de preos, atividade para a qual no se sentiam habilitadas e que precisava de resoluo imediata quando do atendimento de pedidos.

    7 Seriam exemplos cursos de incluso digital, mdulos tcnicos de costura, elaborao de materiais de comunicao e divulgao.

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    Depois de um ms de reunies, iniciamos um diagnstico das necessidades gerais do empreendimento. Fizemos entrevistas individuais e um grupo de discus-so para levantarmos demandas e potencialidades. Nas interlocues individuais, visualizamos, tambm, as disputas existentes, incluindo a o descontentamento do grupo em relao liderana informal, que havia se institudo. Essa trabalhadora vinha negligenciando os posicionamentos das colegas nas tomadas de decises, alm de ocupar lugar na diretoria da cooperativa habitacional, organizao com qual o grupo tinha interaes bastante conflituosas8.

    O processo de planejamento participativo fora interrompido, dada a necessidade de dialogarmos com representantes da cooperativa, definindo mais

    claramente papis no apoio ao empreendimento. Estvamos no segundo ms de incubagem quando aconteceu a reunio. Alm de nossa presena, contvamos com as integrantes do grupo e o presidente da cooperativa. No que tange s questes prticas, no obtivemos grandes avanos, mas as conversas enunciaram tomadas de posio, que no percebamos antes. De um lado, observamos que a cooperativa adotava uma prtica poltica de barganha em relao aos acordos, apoiando-se numa dimenso temporal. Afirmava o apoio ao grupo, deixando su-bentendido condicionamentos. Dizia apoiar sem esclarecer objetivamente como. Assim, a conversa interpunha possibilidades futuras queles, que necessitavam, sem, no entanto, formalizar compromissos.

    De outro lado, presenciamos as trabalhadoras do grupo orientando-se para solicitaes pontuais, relativas a encomendas da cooperativa, enquanto preferiam evitar a exigncia de que a mesma explicitasse um acordo de apoio duradouro ao

    8 Poderamos citar como exemplo o acordo para pagamento da energia eltrica consumida pelo empreendimento. A cooperativa havia assumido o compromisso de faz-lo, mas normalmente atrasava a destinao do recurso e deixava transparecer dvidas quanto inteno de manter o compromisso, instaurando certa tenso ao lembrar da dependncia financeira do grupo. Outra circunstncia tensa decorria na necessidade do empreendimento, em situao incipiente, usar notas fiscais cedidas pela cooperativa, que administrava a situao, dispondo as mesmas dvidas.

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    empreendimento (conforme tinham reclamado em nossas reunies). Percebemos, a partir daquele momento, que as relaes instauradas pelo grupo, com a coope-rativa e tambm nossa equipe, situavam-se num campo de articulaes voltado ao presente, ao mais imediato, mas esboando um futuro sem formaliz-lo em contratos explcitos e/ou prescritos.

    Em nosso entendimento, no se tratava de imediatismo, mas sim de uma tomada de posio coerente com o contexto comunitrio, onde atuam, constituda por estratgias, que visavam a ampliar fontes de recursos e bases de ao. Aventamos a hiptese, ento, de que as condies materiais precrias e a informalidade e instabilidade dos laos dos quais participam (com destaque ao mercado de trabalho e s situaes de subsistncia) ambientam estratgias na formao de redes de ao (mais ou menos duradouras) com foco na garantia de condies de subsistncia e consumo imediatas, com projees cumulativas discretas, mas existentes.

    Assim, o embate direto com a cooperativa, exigindo cumprimento de acordos, no seria oportuno. Seguindo essa racionalidade, parecia mais recomen-dado manter um vnculo virtual, administrado passo a passo. Visualizvamos situaes semelhantes, tambm, em outros grupos, quando o trabalho dos em-preendimentos era atravessado por atividades pontuais de complementao de renda ou de ganhos significativos para as trabalhadoras. No faziam opo entre

    vnculos, tentavam fazer uso de todas as possibilidades. Nesses casos, a associao de recursos oriundos de articulaes diversas viabilizava conquistas cumulativas, graduais, sem exigir do interlocutor o que ele possivelmente no ofereceria, dada a assimetria de poder em jogo9.

    9 Tentavam fazer uso de todas as possibilidades quando, por exemplo, por uma participao poltico-partidria eventual deixavam as atividades do empreendimento, retornando tempos depois. Com essas articulaes, garantiam recursos que suas atividades de trabalho usuais no oportunizariam a curto prazo, como o pagamento dos servios para obter carteira de habilitao ou a verba para o telhado de uma residncia: situaes de incluso precarizada, que estamos produzindo em nossa sociedade.

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    Passado mais um ms, a relao entre empreendimento e cooperativa entrou em nova tenso. Por dificuldades financeiras, no seria mais possvel

    manter o aluguel do prdio ocupado pelo grupo de confeco, sendo solicitado s mulheres, que ocupassem um espao a ser adaptado no depsito de materiais da cooperativa. Ali, esta pretendia reunir todos os grupos de gerao de trabalho e renda, que apoiava.

    O conflito foi instaurado a partir do momento em que as trabalhadoras

    no demonstraram interesse em se transladar para o local indicado. Segundo nos comentavam, essas mulheres eram contrrias s exigncias da cooperativa de participarem de um rodzio noturno de vigilncia do prdio, que visava a zelar pelas mquinas instaladas num bairro cujo risco e violncia eram reconhecidos pela prpria comunidade. poca, a diretoria afirmava a necessidade da parti-cipao de todos os grupos em funo da falta de recursos para pagamento de servio externo.

    Em nossas conversas com o grupo, demonstravam, tambm, outras crti-cas: diziam considerar o lugar insalubre (o espao possua problemas de ventilao e iluminao) e temiam que a diretoria da cooperativa, dada a proximidade fsica, resolvesse interferir na gesto do grupo. Passamos por um perodo de impasses e negociaes em que nenhuma das partes parecia ceder. As mulheres passaram a nos receber em suas casas para nos contar os ocorridos da semana. As residncias se tornaram o territrio de acolhida de nossos encontros, quando falavam de seu interesse em alcanar independncia da cooperativa, buscando local prprio para a produo, e em encontrar novas interfaces para comercializao de produtos. A conjugao de fatos referentes relao, que estabeleciam com a cooperativa parece t-las levado a desejar autonomia, o que trazia congruncia com a pers-pectiva de nosso trabalho de incubagem.

    No curso de tais conflitos, a trabalhadora, que liderava o grupo decidiu deix-lo, permanecendo, porm, vinculada diretoria da cooperativa. Sua sada reconfigurou a relao com a equipe da incubadora: passamos a perceber as mu-

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    lheres mais disponveis nossa participao e ainda mais resistentes interao com a cooperativa.

    Alm disso, a receptividade daquelas trabalhadoras em suas residncias nos sinalizava que a relao construda conosco dava sinais de mudana. Acreditamos, nesse sentido, a necessidade de ressaltarmos a importncia da regularidade de acompanhamento, estendido por longo perodo de tempo. A consolidao de laos de confiana foi fundamental para que inicissemos dilogos, que rupturassem,

    na interao conosco, a dinmica de maximizao de possibilidades menciona-da acima, fortalecendo as possibilidades para produzirmos comprometimentos mtuos com a iniciativa de gerao de trabalho e renda.

    Difcil determinar o tempo necessrio para construo de tais condies, mas percebemos que a intensidade dos fatos ocorridos em decorrncia dos conflitos com a cooperativa, acompanhada de demonstrao nossa de apoio

    autonomia de trabalho dessas mulheres, fortaleceu certa comunho de propsitos e a experincia de um compromisso relacional mtuo. Nossas conversas passa-ram a tratar de outras dimenses de suas vidas, e no s de questes produtivas relativas ao empreendimento, possibilitando-nos conhecer com mais detalhes suas trajetrias de trabalho e os sentidos atribudos quele espao de insero.

    Resumidamente, poderamos afirmar a condio de trnsito e instabilidade,

    que perpassava aquelas narrativas. A condio de migrantes em busca de trabalho, com passagens por vrias cidades e locais de moradia. Ademais, a informalidade da maioria dos vnculos com o mercado, iniciados bastante precocemente, por volta dos 10 anos de idade, e acompanhados de uma presena fragmentada na escola. E a importncia afirmada dos filhos e da famlia, que, tambm, interpunha

    demandas e necessidades nas buscas de labor.

    Percebamos que a gerao de renda era fundamental naquele contexto e, sobretudo no incio, era o principal argumento de vinculao daquelas traba-lhadoras, mas, medida que nos conhecamos, eram acrescentados os desejos de

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    consumo, a importncia do convvio naquele grupo, a relevncia afetiva daquela ocupao quando de perdas na famlia (muitas vezes, por casos de violncia).

    Aquele empreendimento assumia mltiplos sentidos entrelaados, consti-tudos desde suas trajetrias. Assim, alimentvamos a expectativa de que a filiao

    ao grupo deixasse de ser apenas mais uma das vinculaes pecunirias necessrias, para uma atividade de mltiplos vnculos coletivos.

    Depois de cinco meses de incubagem, comevamos a conhecer a for-mao das mulheres daquele coletivo, compreendendo as tomadas de posio construdas por elas. Eram ainda pistas a trilhar, mas j indicavam algumas dis-posies a constituir suas formas de interpretar e agir no contexto.

    Voltando s negociaes e aos conflitos instaurados junto cooperativa,

    depois de mais de um ms, o grupo acabou recuando em seus propsitos. Embora tenha procurado por um novo local e tentado buscar novos pedidos comerciais, houve impeditivos estruturais autonomia do grupo. O mais importante deles, a impossibilidade de o empreendimento emitir nota fiscal, dada sua condio ainda

    embrionria e informal, situao qual inviabilizaria uma ciso com a cooperativa, j que esta intermediava as transaes contbeis em nome do grupo, considerando este uma de suas iniciativas de gerao de renda10.

    Continuamos o processo de incubagem, na expectativa de que possamos fortalecer o grupo e garantir sua independncia financeira no longo prazo. Essa

    situao interps, porm, uma questo sobre a conduo de polticas pblicas voltadas criao de pequenos empreendimentos econmicos solidrios, que vale registrar aqui.

    Uma das grandes dificuldades das iniciativas incubadas se assenta nos li-mites comercializao. Essas pessoas, por sua condio de origem, no possuem uma rede de contatos, que viabilize o consumo de suas mercadorias e, alm disso,

    10 A cooperativa, alm de sua finalidade habitacional, continha a prestao de servios em seu estatuto.

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    as exigncias relativas formalizao-manuteno do empreendimento impossi-bilitam que acessem um mercado formal de comercializao. H que se discutir a necessidade de construirmos variados canais para circulao dos produtos de empreendimentos econmicos solidrios, acompanhados dos processos de incu-bagem; do contrrio, fragilizam-se nossas propostas de trabalho pela dificuldade

    de visualizarmos horizontes de viabilidade.

    4.2 SABERES E PRTICAS: O EXEMPLO DA FORMAO DE PREOS

    Para concluir a narrativa de nossas buscas para compreender as tomadas de posio do coletivo de mulheres, trazemos um exemplo de nossas tentativas em colaborar na formulao dos preos dos artigos produzidos, que iniciamos ao final do perodo observado neste texto, depois que as relaes com a cooperativa

    deixaram de ser o alvo principal de ateno do grupo.

    Desejvamos que as trabalhadoras aprendessem a orar valores para sua produo e o fizemos buscando entender como elas calculavam preos para algu-mas bolsas. Normalmente, contavam com apoio de funcionrios da cooperativa ou de nossa equipe para definir preos a clientes, mas, em situaes emergenciais,

    acabavam por negociar valores sem apoio externo. No vnhamos logrando xito, ademais, quando tentvamos ensinar-lhes o clculo usual na administrao e/ou cincias contbeis, ainda que procurssemos trazer esses saberes em exemplos e palavras mais simples, no surtia efeito o uso de frmulas de geometria bsica para estimar a rea e a quantidade de tecido utilizada.

    Percebemos que efetuar uma espcie de adaptao daquela sequncia lgica de operaes, simplificando ou trocando termos, no resultava em com-preenso por partes daquelas pessoas. Consideramos a hiptese de que estavam numa condio em que a operacionalizao do clculo de quanto custaria uma bolsa seguia outra organizao, coerente com a interao que tinham estabelecido

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    at o momento com suas prticas de trabalho. Os parmetros definidos no mbito da educao formal (nos quais nos apoivamos) integraram suas atividades, mas numa bricolagem com outros artifcios.

    Ao longo de uma oficina de aprendizagem, essas mulheres nos ensinaram

    que chegavam ao preo com os seguintes passos: tomavam a medida da bolsa desejada a partir de um modelo trazido pela cliente e, segurando a fita mtrica

    estendida, sobrepunham-na ao tecido, visualizando quantas peas poderiam ser extradas de um metro do mesmo; dividiam o preo do metro pelo nmero de bolsas; e, for fim, duplicavam o valor, supondo o dispndio de horas de trabalho,

    chegando ao preo do artigo. Quando o oramento deveria ser dado de imediato, sem tempo para tal conjunto de operaes, faziam uma espcie de estimativa intuitiva, baseada na equivalncia de tamanho com outras peas j feitas.

    Aquela frmula de clculo supunha conhecimentos de costura aprendidos em suas passagens pela indstria txtil, que indicava em que sentido o corte do te-cido poderia ser feito e, logo, o nmero de peas provvel. Tambm faziam uso de um parmetro bastante usual no mercado para definio de custo de mo-de-obra

    em servios informais (equivalncia com o dispndio de matria-prima), sendo que, nesse caso, a aritmtica tinha seu uso configurado numa multiplicao simples.

    Mas esse formato, bastante apoiado em estimativas visuais, no conside-rava outros elementos, que compunham o custo da produo, e cuja participao em cada unidade menos expressiva, como era o caso do consumo de energia eltrica ou do uso de linhas de costura. E, em casos de oramentos dados de imediato, a variao de preos dos tipos de tecidos ou o nvel de acabamento solicitado eram negligenciados, o que acarretava perdas para as trabalhadoras, em funo do custo de matria-prima mais elevado ou do nmero de horas de trabalho superior ao esperado inicialmente.

    Almejvamos aproximar nossos saberes e, ento, comeamos a busca de um artifcio metodolgico. Decidimos montar uma tabela de custos, que ficasse

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    exposta na sede do empreendimento e que contemplasse a maioria dos tamanhos de bolsas encomendadas11. Era importante que aquela ferramenta fosse constru-da pelo coletivo. Assim, elencamos os tipos de artigos mais recorrentes, listando (verticalmente) seus tamanhos numa folha de papel pardo e, ento, passamos a verificar a quantidade de peas possveis por metro, utilizando o mtodo das tra-balhadoras. Considerando e registrando (horizontalmente) os preos dos tecidos mais utilizados, teramos o custo da principal matria-prima em cada tipo de bolsa.

    Esse processo, ainda no concludo, depender, tambm, da realizao de estimativas de custo de outros insumos (energia eltrica, depreciao de equipamento, gasto de linhas e adereos, etc.) e da incluso da remunerao das horas trabalhadas. Imaginamos que estes dois aspectos (insumos e mo-de-obra) poderiam ser estipulados na construo de valores padronizados, a serem gerados em novas oficinas. Cada um deles seria somado estimativa de custo de tecido,

    formando o preo a ser disposto em negociao.

    Visualizamos alguns desafios na continuidade dessa aprendizagem. Pri-meiramente, precisamos seguir buscando caminhos para que as trabalhadoras participem da construo dos custos dos produtos, a cada insumo, da definio

    do nmero de horas necessrias e da conjugao final do preo. E, nesse sentido,

    acreditamos necessrio trazer os cdigos formais de aritmtica ao processo, in-terpretando os usos que tais mulheres j fazem deles. Acreditamos que essa seria uma construo a exigir considervel tempo de dedicao, ainda, por se predispor a respeitar a organizao prpria delas e a provocar aprendizagens significativas.

    Sentimos, ainda, que, alm de uma caminhada articulada s demandas sentidas pelas trabalhadoras, precisamos interpor educativamente provocaes

    11 No queramos, com isso, esgotar o conjunto de produtos, mas apenas criar um artifcio de aprendizagem significativo, atento s demandas cotidianas do trabalho, estimulando essas tra-balhadoras a calcularem os preos de seus produtos sem depender necessariamente do apoio de terceiros.

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    sobre os rumos do empreendimento, discutindo coletivamente sua insero eco-nmica e poltica. Aqui, visualizamos a necessidade de retomarmos a proposta de um planejamento participativo do empreendimento, sustentando, agora, em compromissos resultantes do convvio.

    5 CONSIDERAES E PROVOCAES FINAIS: SOBRE PESQUISAS E TEMPOS

    O processo de incubagem, descrito ao longo do texto, demanda algumas condies estruturais quando pensado em sua continuidade. Parece pertinente intensificarmos a integrao de polticas pblicas, em especial aquelas concer-nentes ao trabalho e educao, para que possamos associar a gerao de renda apropriao de cdigos e conhecimentos necessrios conduo do empreen-dimento (e o acesso escola reala sua importncia aqui) e, tambm, a processos reflexivos-formativos sobre os sentidos atribudos ao trabalho.

    Outro aspecto a considerar a necessidade de uma imerso mais intensa na comunidade. O trabalho feito, at aqui, deixou inquietaes e curiosidades acerca da organizao comunitria, perguntando por outros aspectos a incidir sobre a constituio de um empreendimento econmico solidrio. A proximidade ao cotidiano talvez nos oportunizasse novas compreenses sobre as tomadas de posio daquelas trabalhadoras, mas essa condio faria sentido somente se arti-culada a uma concepo de fomento incubagem, que privilegiasse a dimenso temporal, reconhecendo efetivamente as peculiaridades de um trabalho educativo e mobilizatrio realizado junto a populaes em situao de elevada vulnerabili-dade social (conforme o relatado acima).

    Uma dimenso do trabalho a ser problematizada as possibilidades de reflexividade sobre nossa metodologia na incubagem. Faz-se necessrio construir

    prticas regulares no s de socializao do que fazemos em campo, mas de anlise e questionamentos das tomadas de posio que produzimos, ponderando nossos

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    parmetros na compreenso do outro. Nesse sentido, dentro do esforo terico-metodolgico que realizamos, gostaramos de deixar uma provocao final, relativa

    s temporalidades, que concebemos e influenciam as prticas desenvolvidas por

    ns, educadores. As consideraes de Santos (2002) sero os referentes nesse intento, por nos parecerem proposies instigantes para sujeitos desejantes da construo de condies de vida efetivamente democrticas.

    Tomemos algumas das crticas de Santos (2002) concernentes produo acadmica. Para o autor, a compreenso ocidental do mundo tem legitimado seu poder desde uma concepo de tempo peculiar, que tende a contrair o presente e expandir o futuro. Essa racionalidade agiria pressupondo abrangncia e presena totalizantes para sua interpretao do mundo, de maneira que outras racionalidades tendem a ser negadas ou classificadas como inferiores, atrasadas ou exticas. O

    tempo presente torna-se um momento passageiro, resultante de um passado cujas caractersticas so dispostas mirando preponderantemente as potencialidades do tempo futuro (esperado, planificado). Na perspectiva criticada pelo autor, negli-gencia-se possibilidades existentes no presente, em vrios contextos, organizadas em temporalidades e propsitos sociais distintos do suposto progresso capitalista.

    A sociologia das ausncias procura, ento, a expanso do presente, visando a reconhecer experincias sociais distintas das quais tomamos de forma natura-lizada no sistema social, que produzimos. O prprio Santos (2002) comenta o exemplo do olhar que, por estar vinculado a uma organizao linear de tempo, ao ver uma pessoa cultivar a terra com uma enxada no consegue enxergar nela seno o campons pr-moderno. Assim, assinala a necessidade de rompermos nossas categorizaes, vislumbrando organizaes sociais e temporais distintas, como totalidades no concebidas dentro dos parmetros, que nos so habituais.

    A questo a considerar, ento, diz respeito racionalidade e ao tempo, que organiza nossas prticas de incubagem: conhecer as interpretaes em dilogo e reconhecer relaes de poder e categorizaes, que, tambm, ns acabamos impondo. Muitas vezes, o trabalho do educador encontra-se atrelado a instncias

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    institucionais, que pautam ritmos e resultados (via determinao de financia-mentos e exigncias de produtividade), respondendo a objetivos administrativo-burocrticos e poltico-econmicos diferentes e divergentes do fluir necessrio

    a um educar reflexivo voltado compreenso das formas de organizao das

    comunidades com as quais dialogamos; atento maturao de laos de confiana

    e pertencimento nos grupos.

    Quando estamos em campo, podemos observar relaes diferentes com o tempo. Muitas das disputas e das barganhas polticas, que tivemos oportunidade de presenciar por ocasio da incubagem, tendiam a acordos orientados ao aten-dimento parcial de necessidades imediatas, mas contendo compromissos virtuais numa espcie de promessa tcita de novas conquistas. Um representante poltico local e uma moradora poderiam combinar alianas e cumplicidades, organizando o tempo de produo de suas vidas de uma maneira diferente, por exemplo, da acumulao individual oriunda da carreira no trabalho assalariado. Essa situao, como outras possveis, traz uma realidade cuja compreenso necessitaria de imer-so comunitria, demandando interao e dedicao reflexiva intensas.

    O tempo sob o qual o processo de incubagem organizado pode confi-gurar um artifcio de poder, e, mesmo com intenes emancipatrias, realizaes associadas a funcionamentos institucionais lineares e produtivistas tendem a oferecer limites polticos e epistemolgicos, que precisamos reconhecer.

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