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340 Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 Cronistas, autores de contos, novelas e roman- ces e escritores de muitos matizes e origens já – por muitas vezes e maneiras – falaram (e escreveram) do mito da página em branco. Do mito da primeira pági- na que resiste, tão pacífica quanto heroicamente, ao desejo do que pretende marcá-la, modificar sua bran- ca pureza, com os sinais da escrita. Palestrantes que querem conspurcar essa imaculada limpidez também podem passar por essa experiência difícil. E uma das maneiras pelas quais se pode romper essa resistência ao nascimento ou, ao menos, contornar, digamos, esse “sintoma” é falar dele. Com isso, admito duas coisas. A primeira é que a escrita, essa escrita de agora, é uma forma de defen- der-me da competência do auditório. Competência cuja outra face é minha sensação de fragilidade dian- te de uma tarefa suposta maior que minhas forças e que terá olhos e ouvidos argutos e poderosos a obser- var minha tentativa. A segunda coisa a admitir é que, desde logo, me declaro sob a proteção, jesuíta e maiús- cula, de São Michel de Certeau, que tanto me ajudou a compreender que, como o que se inscreve nesta pá- gina, a história é uma escrita e, eu, reverente, sob este signo combaterei. A história intelectual é uma ponderável rede dis- posta e dispersa em alguns decênios de reconheci- mento acadêmico. Proporei apenas alguns dos pon- tos que me parecem especialmente atraentes não apenas por sua estética, por sua beleza de construção, mas, também, por sua ética, ou seja, pela posição que ocupam na luta, sem fim, contra as máscaras da tota- lidade totalitária. As relações desses traços de um grande edifício terão uma articulação com a história da educação bra- sileira. Para tanto, conto com a intervenção dos espe- cialistas que aqui se reúnem e que, gostaria, me aju- dassem a “contrapontuar” o eixo central da minha explanação. * * * Na história das idéias, uma primeira observação que se poderia fazer seria quanto à sua duração. Mui- História intelectual e história da educação* História intelectual e história da educação* História intelectual e história da educação* História intelectual e história da educação* História intelectual e história da educação* Luiz Felipe Baêta Neves Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia * Artigo redigido a partir da exposição realizada no Grupo de Trabalho História da Educação na 28 a Reunião Anual daANPEd (Caxambu, MG, 16 a 19 de outubro de 2003).

Artigo Luiz Felipe

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História intelectual e história da educaçãoLuiz Felipe Baêta Neves

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Luiz Felipe Baêta Neves

Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006

Cronistas, autores de contos, novelas e roman-ces e escritores de muitos matizes e origens já – pormuitas vezes e maneiras – falaram (e escreveram) domito da página em branco. Do mito da primeira pági-na que resiste, tão pacífica quanto heroicamente, aodesejo do que pretende marcá-la, modificar sua bran-ca pureza, com os sinais da escrita.

Palestrantes que querem conspurcar essaimaculada limpidez também podem passar por essaexperiência difícil. E uma das maneiras pelas quaisse pode romper essa resistência ao nascimento ou, aomenos, contornar, digamos, esse “sintoma” é falardele. Com isso, admito duas coisas. A primeira é quea escrita, essa escrita de agora, é uma forma de defen-der-me da competência do auditório. Competênciacuja outra face é minha sensação de fragilidade dian-te de uma tarefa suposta maior que minhas forças eque terá olhos e ouvidos argutos e poderosos a obser-var minha tentativa. A segunda coisa a admitir é que,

desde logo, me declaro sob a proteção, jesuíta e maiús-cula, de São Michel de Certeau, que tanto me ajudoua compreender que, como o que se inscreve nesta pá-gina, a história é uma escrita e, eu, reverente, sob estesigno combaterei.

A história intelectual é uma ponderável rede dis-posta e dispersa em alguns decênios de reconheci-mento acadêmico. Proporei apenas alguns dos pon-tos que me parecem especialmente atraentes nãoapenas por sua estética, por sua beleza de construção,mas, também, por sua ética, ou seja, pela posição queocupam na luta, sem fim, contra as máscaras da tota-lidade totalitária.

As relações desses traços de um grande edifícioterão uma articulação com a história da educação bra-sileira. Para tanto, conto com a intervenção dos espe-cialistas que aqui se reúnem e que, gostaria, me aju-dassem a “contrapontuar” o eixo central da minhaexplanação.

* * *

Na história das idéias, uma primeira observaçãoque se poderia fazer seria quanto à sua duração. Mui-

História intelectual e história da educação*História intelectual e história da educação*História intelectual e história da educação*História intelectual e história da educação*História intelectual e história da educação*

Luiz Felipe Baêta NevesUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia

* Artigo redigido a partir da exposição realizada no Grupo

de Trabalho História da Educação na 28a Reunião Anual daANPEd

(Caxambu, MG, 16 a 19 de outubro de 2003).

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tas vezes, elas parecem-nos familiares, muito próxi-mas a nós mesmos, ao nosso tempo. As palavras têmmaterialidade própria, quase atemporal; as mesmaspalavras ou, se preferirmos, os mesmos significantespodem ser lidos em inscrições de monumentos deantigas civilizações, em discursos latinos, em livrosde Montaigne, em palavras de Disraeli ou em nove-las de televisão.

Essa, por vezes, longuíssima duração é o fio con-dutor de leituras – ou escutas – que oscilam ambiva-lentemente diante da história. Ora (leituras e escutas)parecem reconhecê-la ao (con)fundi-la com a exten-são temporal, ora parecem negá-la ao reificar os sig-nificantes que passam a se transformar em evidênci-as, sinais auto-suficientes de si mesmos. Naqueleprimeiro momento, há uma “saturação histórica” queparece, no segundo momento, resultar em umareificadora negação da história.

Podemos fazer um breve exercício de peso, papele função que damos às palavras, às idéias e a suas “dis-posições” discursivas com o auxílio de uma passagemque transcrevo livremente e diz o seguinte: para queuma “história histórica” da literatura fosse escrita seriapreciso reconstituir o meio, pesquisar quem e para quemescrevia; quem lia e por que. Seria necessário investi-gar que tipo de formação os escritores receberam, omesmo devendo ser feito com os leitores.

O trecho continua em uma percuciente lista detarefas a cumprir, tarefas que mostram bem a presen-ça dos cuidadosos procedimentos da antropologia emtrabalhos de uma história que nos parece contempo-rânea a nós próprios. E que, arrisco, atribuiríamos quera um “senso comum cultivado”, tal a sua faculdadede parecer... consensual e familiar, quer, em uma se-gunda hipótese, a autores já consagrados e que, nosúltimos vinte anos, aproximadamente, vincaram, a seumodo, a história intelectual, a história das idéias – ede suas possibilidades de leitura, de circulação, derecepção, de interpretação. Poderíamos, sem muitohesitar, apontar para historiadores que, tendo estabe-lecido novos temas – ou novas maneiras de constituí-los –, foram decisivos para a própria história da edu-cação enquanto prática teórica.

Aposto que pensaríamos em Roger Chartier(1996, 1998) ou Robert Darnton (1980, 1992). A his-tória que eles fizeram e fazem ainda está quente, saí-da há pouco de sua imaginação teórica criativa e ope-rosa. Ocorre que, como em um ardil, como uma peçaque os próprios atores/historiadores pregam a si mes-mos, ... o texto é de 1941, não está em nenhum trata-do posto que é uma recensão e seu autor é, ninguémmenos, que Lucien Febvre (1992).

Se nos dermos conta de forma produtiva dessepequeno ardil, provocado pelo momentâneo oculta-mento do “primeiro autor”, voltaremos, benfazeja-mente, os grandes intérpretes da peça que nos prega-ram ao se confundirem, fundindo suas falas “contra”eles mesmos. O texto de Febvre tem uma validadeque extrapola seu tempo, sua época de produção ori-ginária. Mas, dito isso, não estamos dizendo que essaprodução não pode ser historicamente estudada e com-preendida “lá”; estamos dizendo que suas afirmaçõesforam reapropriadas, decênios depois de escritas, porcolegas que deveriam ser bebês quando um grandepatriarca da nova história estava produzindo o textoque parafraseei.

Nossa peça imaginária pode ser vista como umaencenação teatral “real”: o texto é (supostamente) omesmo, mas a cada dia em que é representado... ele éoutro. A idéia de repetição é fértil em ensinamentos;talvez o mais difícil de ser apreendido – o aceito – é queas repetições não são uma reiteração do Mesmo. Pelomenos, não necessariamente ou majoritariamente. A re-petição é, lembremos, decisiva na história da psicanáli-se. E os que se analisaram – ou a estudaram... – sabemda angústia que se instala no paciente ao imaginar queestá “se repetindo”, “não diz nada de novo”, “a terapianão avança”. O psicanalista, contudo, sabe que a cadavez que aquele suposto Mesmo é dito ele se enquadra,interage, com uma situação que é nova; afinal “cadasessão é uma sessão”, assim como cada dia de encena-ção de uma peça de teatro é diferente dos outros.

Há, pois, (uma) conjuntura que se articula, dife-rencialmente, a (uma) estrutura; nem estruturas sãoossaturas aistóricas nem conjunturas são meros “re-flexos” epifenomênicos das estruturas.

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A história da educação no Brasil dá-nos um exem-plo “clássico” da questão da temporalidade de quetrato. Durante boa parte do século XVI, os missioná-rios jesuítas lançavam mão de um proselitismo nô-made. Era nômade porque imaginava que a repetiçãode certas palavras sagradas ou de certos comporta-mentos era sinal de conversão definitiva. E, assim,poderiam levar adiante o verbo divino. Essa repeti-ção não tem a ver com a das nossas consideraçõesanteriores porque a repetição dos indígenas, vista pornós, era transcendente não só porque significara umMesmo conhecimento eternamente estabelecido mas,também, porque não repetiam palavras ou comporta-mentos históricos e, sim, oriundos do dogma, do di-vino, do celestial. O momento da repetição era o doconhecimento da Verdade e, nesse imaginário, não sepode enunciar a Verdade sem a conhecer.

Sabemos todos que o combate dos soldados deCristo, nesta terra dos papagaios e em outras, mudoude estratégia e táticas de conversão, mas, infelizmen-te, é impossível desenvolver isso agora, a repetição,nessa e em outras acepções, foi (é?) decisiva para acompreensão das práticas pedagógicas entre nós.

* * *

Na história intelectual, ilustração (paradoxalmen-te) esclarecedora é a dada por qualquer fundamentalis-mo. O fundamentalismo religioso, visto como “fenô-meno genérico”, é exemplar na negação de dois póloscapitais do debate moderno em história que são a in-terpretação e a relatividade – e ambos, voltaremos.

A leitura fundamentalista do texto sagrado não ointerpreta nem o contextualiza. O texto é “auto-sufi-ciente”; é transparente, não aceitando o que quer quese possa chamar de mediação. Ele é “auto-evidente”;sua leitura dispensa comentários porque sua origemnão é histórica; ele é igual a sua origem, sagrada e“fora do tempo”, ele é como uma eterna repetição do“mesmo”.

Não é difícil imaginar, na história política dasidéias, a complexa, ou mesmo impossível, soluçãopara o diálogo e/ou o estabelecimento de acordos que

envolvam grupos ou Estados de caráter fundamenta-lista. O estabelecimento de pautas de conversação ou,no caso da história do ensino, o pluralismo concei-tual em políticas pedagógicas públicas tornam-se ta-refas de execução penosa (para dizer o mínimo) quan-do está suposta uma Verdade única – e um povo eleitopara guardá-la ou, o que é mais grave, expandi-la.

Mesmo em países de tradição democrático-liberal, há cristalizações fundamentalistas, de maiorou menor duração e poder, de que é exemplo paradig-mático o ensino de uma história humana criacionistaou científica e as interdições e tolerâncias que sãogeradas nos Estados Unidos.

As relações do que denominei de “cristalizações”com estruturas de poder – e de saber – dominantes ouabrangentes demandam, sem dúvida, análises inter-disciplinares sofisticadas. Não apenas porque impli-cariam trabalho que se poderia classificar em seusresultados finais como transdisciplinares, mas pelocândido fato de levar à esfera pública algo que, por eem princípio, a ela não pertenceria, qual seja: a análi-se, histórica e culturalmente determinada, do sagra-do, do intangível, do que ao humano transcende.

Se não acreditássemos que a negação fundamen-talista da interpretação é... uma interpretação e queela pode ser historicamente observada, simplesmenteestaríamos impedidos de escrever a história intelec-tual no que esta possa ter de mais vivo e promissor.

* * *

Lembro-me de um momento de meu período,longo, de trabalho no Instituto de Estudos Avançadosem Educação da Fundação Getúlio Vargas, no Rio deJaneiro. Momento que, sendo tão breve e ocasional,tem uma curiosa permanência na minha memória.Enquanto aguardava alguém, em uma sala da admi-nistração, vi, pousada em uma mesa, uma dissertaçãode mestrado sobre Lourenço Filho. Creio que seintitulava As idéias pedagógicas de Lourenço Filho,ou algo semelhante. Abri o volume para ver o sumá-rio do trabalho mais para passar o tempo do que porqualquer motivo vindo do interesse profissional ou

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da curiosidade que pudesse ter pelo assunto. Volte-mos ao inesquecível sumário: compunha-se de, se lem-bro bem, uma introdução, cinco capítulos e uma con-clusão. Os quatro primeiros capítulos ocupavam-se,sucessivamente, da situação econômica, do quadrosocial, das estruturas de poder e dos antecedentes his-tóricos da pedagogia lourenciana. O quinto capítulotratava do objeto precípuo da dissertação: as idéiaspedagógicas de Lourenço Filho. Era, tal capítulo, umresumo digamos neutro, do que o pensador brasileiroconsideraria como as principais questões da educa-ção e de seu papel no Brasil.

A conclusão pouco concluía e buscava, penso,atender a uma exigência (suposta) metodológica e aobom-tom acadêmico.

O que talvez seja a razão da perduração “mítica”dessa dissertação em mim deriva de seu caráter tor-nado simbólico, ou: ela é o símbolo de uma enormegama de artigos, dissertações e teses – que, penso, éuma constelação de estrelas que perderam a luz masnão a existência física.

Em que penso? Penso que nossa simbólica dis-sertação é um esforço de enquadrar o pensamento deLourenço Filho em uma “perspectiva histórica”. Ora,o que foi feito foi falar de “história” durante quatrocapítulos para mostrar como as idéias são “reflexo”ou “superestrutura” ou x de alguma coisa que baseia –ou emoldura, encaixa – o que o pensador pôde expri-mir. Quando dele se vai falar, vemos que, de fato, elefoi expulso da história; a história não está nos seustextos. Eles não são observados em sua constituiçãomesma que é historicamente compreensível em seusenunciados, em sua participação em uma trama deenunciados, em sua relação com instituições, edito-ras, leitores, na articulação da trajetória intelectualdo autor na cena brasileira. E assim por diante...

O incômodo que essa posição me causou – mecausa – não tem, por óbvio, nenhuma idiossincrásicafobia pessoal quanto à contextualização de textos oude expressões oralmente apresentadas. Tem a ver, taldesconforto, com a suposição de que a história “pára”quando o texto começa. De modo geral, essa é a piorherança que os “novos historiadores” receberam do

passado. Uma sucessão freqüentemente contínua, semcortes, disrupções, esgarçamentos ou rupturas deidéias. E... autores, vidas-e-obras, que se sucedem ecujo conhecimento é beneficiado substancialmente pornoções, que deveríamos olhar mais de perto, como,por exemplo, as de influência ou geração.

A escrita da história social das idéias ou da inte-lectualidade ou do imaginário tem, justamente, naanálise de contextos alguns de seus debates mais pro-dutivos. Quer pensemos em Quentin Skinner (1978,1996) e seu contextualismo lingüístico ou em ReinhartKoselleck (1997) e sua história dos conceitos. Ou,mesmo, na hermenêutica crítica de Paul Ricoeur(1983-1985, 1986) ou nas acuradas, trabalhosas, quan-do não surpreendentes e luminosas análises conjun-turais de Roger Chartier (1996, 1998) ou RobertDarnton (1980, 1992). Ou, ainda, na devastadora crí-tica de Michel Foucault (1966) ao amálgama, justifi-cado, que faz da história tradicional das idéias e suaproposta de uma arqueologia do saber, e de uma sin-gular genealogia histórica. Ou no historicismo prag-matismo combativo de Richard Rorty (1992).

Relembro que falei de debater; não há um “blo-co monolítico” constituído pelos chefes de escolasteóricas que mencionei. Eles têm momentos de alian-ça e antagonismo, mas isso não nos impede de perce-ber “campos semânticos comuns” e... inimigos emcomum que ajudam a constituição do que podería-mos chamar de coincidência/convivência de opostos.

Vou tocar em alguns dos itens que julgo maisrelevantes e mobilizadores para a compreensão dahistória intelectual que, antes tarde do que nunca, de-finiria provisoriamente como um intercruzamento ou,aditivamente, um entrecruzamento de elementos dahistória das idéias, da história das mentalidades e dahistória cultural.

A história, trate ela de que período tratar, é umahistória do nosso tempo, das opções teóricas que hojefazemos para constituir uma fatia de um trecho tem-poral passado. Quem constitui alguma coisa do sécu-lo XVII o faz a partir de uma escolha conceitual, quenão é arbitrária ou injustificada, com base no estadoatual de uma dada questão em nosso tempo. Michel

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de Certeau (1975) dizia alguma coisa próxima a: asfontes são uma restrição a nossos projetos e, assim,penso, são um conjunto, não apenas de informações,como nos cansamos de ouvir, mas um conjunto delimitações à expansão de nossos desejos (narcísicos)de conhecer. A observação seminal de De Certeau alia-se ao combate daquilo que se poderia chamar “erromáximo” do historiador, de qualquer especialidade,que é o anacronismo.

Quando digo que a história é sempre a do pre-sente não estou me posicionando como um empiricistaque sonha em fazer “aplicações”. Não, não é paraaplicar uma “teoria” sobre uma “realidade”, como selinguagens fossem capazes de “verificar” coisas; oconceito de cão não ladra, diria Spinoza. O que pre-tendo é evitar “o erro máximo” que mencionei. Oanacronismo é um exercício de poder abusivo porqueatribui a autores e obras intenções e significados quesequer poderiam ter imaginado em seus contextosoriginários de formulação. Ou seja, é preciso que ob-servemos o mais próximo possível o século XVII, porexemplo, para que possamos, o mais que pudermos,evitar um jogo de posições em que se acaba por pro-duzir uma mitologia daquele século, que passa a serum século XXI disfarçado ou caricatural.

É preciso que conheçamos o contexto lingüísticodo seiscentismo, sendo decisivo que aliemos a com-preensão do significado de uma proposição ao usoque dela é feito na conjuntura que se analisa. Esseexercício de extrema curiosidade e atenção é um exer-cício de aproximação e um exercício de afastamento.Aproximamo-nos do século XVII não para descobrirum momento da história do Mesmo, do novo ideali-zado Ocidente; fazemos isso para que nos possamosdar conta da distância, da diferença que nele encon-tramos. Tal diferença terá, entre outros efeitos bené-ficos, o de evitar que naturalizemos discursos de hojee que possamos por à prova nossas próprias hipótesessobre o “outro” período.

Podemos contrastar tal posição com a de um his-toriador de grande influência como Arthur Lovejoy(1970), que isolava “unidades de idéia” e as seguiaatravés de séculos.

John Pocock (2001) evita os efeitos desse ana-cronismo tão arraigado com a proposição seguinte:relações entre a gramática, que permitem as váriasconstruções lingüísticas de um determinado períodoe, em contrapartida, os desempenhos específicos ve-rificados no seu anterior, constituiria o objeto privile-giado da análise do discurso político.

A busca da compreensão de situações escolhidasem um passado mais ou menos recuado não se con-funde com a perquirição de “fatos originais/originá-rios” que poderiam ser descobertos em sua verdadeprimeira, como o faria um ingênuo arqueólogo ama-dor que encontrasse, por uma “descoberta”, o vestí-gio “comprovador de uma civilização”... ou o “eloperdido”. O que podemos fazer é comparar horizon-tes interpretativos que sempre serão impuros porquehistóricos e filhos de contingências... demasiado hu-manas.

Richard Rorty (1992) chama a atenção para arelativa imprecisão de qualquer tradução. Mesmo omelhor tradutor compara palavras, expressões, dis-cursos que estão marcados por suas vinculações so-ciais e culturais. Não há “equivalência pura” porquehaverá sempre uma teia, um “tremor” histórico quefaz do tradutor – de palavras ou culturas – alguémque procura a melhor correspondência relativa entreas línguas “tremidas” que põe em contato.

Reinhart Koselleck (1997) critica a transferênciadescuidada para o passado de expressões modernas,contextualmente determinadas e a prática da históriadas idéias de tratá-las como constantes, articuladas emfiguras históricas diferentes mas elas mesmas funda-mentalmente imutáveis. Como em um bizarro casamen-to entre essências que, em se deslocando no tempo, seligam a diferentes quadros históricos.

Referências bibliográficasReferências bibliográficasReferências bibliográficasReferências bibliográficasReferências bibliográficas

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LUIZ FELIPE BAÊTA NEVES, doutor em antropologia pelo

Museu Nacional e com pós-doutorado na Universidade de Paris V, é

professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), atuan-

do no Instituto de Psicologia. Publicações mais importantes: O com-

bate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios: colonialismo e

repressão cultural (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978) e

Transcendência, poder e cotidiano nas cartas de missionário do pa-

dre Antonio Vieira (Rio de Janeiro: Atlântica Editora/EDUERJ, 2004).

Pesquisa atual: “Imaginação social e profetismo no padre Antonio

Vieira”. E-mail: [email protected]

Recebido em novembro de 2005

Aprovado em fevereiro de 2006

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Resumos/Abstracts/Resumens

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especialidad cultural, que marca a laescuela xakriabá.Palabras claves: educación indígena;cultura escolar; antropología de laeducación

Francisco José Calazans Falcon

História cultural e história daeducaçãoO artigo analisa a separação entre ahistória cultural e a história da educa-ção. Examinando obras a partir dosanos de 1970, verifica a importânciacrescente da história cultural e a au-sência quase completa de trabalhosrelativos à história cultural da educa-ção. Aborda questões disciplinares einstitucionais, mas tambémhistoriográficas, que concorrem paraa exclusão de determinadas discipli-nas, como a história da educação, doâmbito de trabalho do historiador.Durante a década de 1980, detectamaior interesse pela história da edu-cação e por sua inserção nas perspec-tivas historiográficas. Focaliza algu-mas questões que interessam aoshistoriadores e aos historiadores daeducação: as relações entre história ecultura; a tentativa de considerar ahistória cultural em duas perspecti-vas: uma que lhe atribui o recorte eanálise de objetos culturais, e outraque privilegia os pressupostos meto-dológicos, abordando tanto as práti-cas sociais como as suas representa-ções, de acordo com concepções dasdiversas teorias sociais. Conclui quea história cultural é um campo multiou interdisciplinar, não apenas umtipo de abordagem, nem apenas umnovo espaço ou dimensão do real, eenfatiza a necessidade de uma refle-xão mais sistemática sobre a educa-ção como um tema/objeto de investi-gação necessário à compreensão daformação cultural de uma sociedade.Palavras-chave: história cultural;história da educação

Cultural history and the history ofeducationThe article analyses the separationbetween cultural history and the historyof education. It verifies the growingimportance of cultural history and thealmost complete absence of studies onthe cultural history of education basedon an examination of works starting inthe 1970s. It deals with disciplinary,institutional and historiographicquestions which contribute to theexclusion of determined subject areaslike the history of education in the ambitof work of the historian. It detects agreater interest in the history ofeducation during the 1980s, and in itsinsertion in historiographicperspectives. It focuses on somequestions which are of interest tohistorians and historians of education:the relation between history andculture; the attempt to consider cultu-ral history from two perspectives – onewhich attributes to it the separationand analysis of cultural objects and theother which privileges methodologicalpresuppositions dealing with both so-cial practices and theirrepresentations, in accordance withconceptions from diverse socialtheories. It concludes that culturalhistory is a multi or interdisciplinaryfield, not simply a kind of approachnor a new space or dimension ofreality and emphasizes the need for amore systematic reflection on educationas a theme/object of investigationnecessary for understanding the cultu-ral formation of a society.Key-words: cultural history; history ofeducation

Historia cultural y historia de laeducaciónEl artículo analiza la separación entrela historia cultural y la historia de laeducación. Examinando obras a partirde los años de 1970, se verifica laimportancia creciente de la historia

cultural y la ausencia casi completa detrabajos relativos a la historia culturalde la educación. Aborda cuestionesdisciplinares e institucionales, perotambién historiográficas, queconcurren para la exclusión de deter-minadas disciplinas, como la historiade la educación, del ámbito de trabajodel historiador. Durante la década de1980, detecta un mayor interés por lahistoria de la educación y por suinserción en las perspectivashistoriográficas. Focaliza algunascuestiones que interesan a los historia-dores y a los historiadores de laeducación; las relaciones entrehistoria y cultura; la tentativa de con-siderar la historia cultural bajo dosperspectivas; una que le atribuye el re-corte y análisis de objetos culturales, yotra que privilegia los presupuestosmetodológicos, abordando tanto lasprácticas sociales como suspresentaciones, de acuerdo conconcepciones de las diversas teoríassociales. Concluye que la historia cul-tural es un campo multi o interdiscipli-nar, no apenas un tipo de abordage, niapenas un nuevo espacio o dimensiónde lo real, y enfatiza la necesidad deuna reflexión más sistemática sobre laeducación como un tema/objeto deinvestigación necesario a lacomprensión de la formación culturalde una sociedad.Palabras claves: historia cultural;historia de la educación

Luiz Felipe Baêta Neves

História intelectual e história daeducaçãoO texto começa por tratar do uso ana-crônico de palavras e idéias. Tal usocaracteriza-se por uma rigidez na inter-pretação da linguagem, que acaba porse fixar nos significados correntes naépoca em que se escreve a história.Essa reificação do discurso tende a des-considerar as possíveis significações

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Resumos/Abstracts/Resumens

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das palavras no período histórico, maisou menos distanciado, que estudamos.As palavras podem repetir-se, mas suasformas de apropriação são virtualmenteinfinitas; a escrita da história é a “com-paração” da posição teórica que esco-lhemos com a história das fontes quenos foram legadas. A história da educa-ção deve, assim, ser observada na pró-pria constituição de seu discurso e nãoem “contextos” que acabam por ser orepositório exclusivo do tempo.Palavras-chave: história intelectual;história da educação

Intellectual history and history ofeducationThe text begins by dealing with theanachronistic use of words and ideas.This use is characterized by rigidity inthe interpretation of language whichends by being fixed in the meaningscurrent in the epoch in which thehistory is being written. The reificationof discourse tends not to consider thepossible meanings of words in the moreor less distant historical period whichwe study. Words can be repeated buttheir forms of appropriation arevirtually infinite: the writing of historyis the comparison of the theoreticalposition which we choose with thehistory of the sources which we inherit.The history of education ought to beobserved in the very formation of itsdiscourse and not in “contexts” whichend by being the exclusive repositoryof time.Key-words: intellectual history, historyof education

Historia intelectual y historia de laeducaciónEl texto comienza por tratar del usoanacrónico de palabras e ideas. Taluso se caracteriza por una rigidez enla interpretación del lenguaje, queacaba por fijarse en los significadoscorrientes en la época en que seescribe la historia. Esta reificación deldiscurso tiende a desconsiderar los

posibles significados de las palabrasen el período histórico, más o menosdistanciado, que estudiamos. Laspalabras pueden repetirse, pero susformas de apropiación son virtualmen-te infinitas; la escrita de la historia esla “comparación” de la posición teóri-ca que escojemos con la historia de lasfuentes que nos fueron legadas. Lahistoria de la educación deve, así, serobservada en la propia constitución desu discurso y no en “contextos” queacaban por ser archivos exclusivos deltiempo.Palabras claves: historia cultural;historia de la educación

Piotr Trzesniak

As dimensões da qualidade dosperiódicos científicos e sua presençaem um instrumento da área daeducaçãoMencionam-se as circunstâncias doambiente acadêmico que envolvem anecessidade de avaliação de periódicoscientíficos. Propõe-se o desdobramentoda qualidade dos periódicos em quatrodimensões, duas já consagradas (técni-co-normativa, ou forma, e de finalida-de, ou conteúdo) e duas novas (proces-so produtivo e de mercado). As quatrotêm sua independência discutida, sãoconceituadas, discriminadas eexemplificadas, citando-se casos emque são empregadas na prática. Analisa-se também um instrumento de avalia-ção de periódicos empregado pela áreade educação pela óptica das quatro di-mensões, nelas situando cada um dos32 itens que o instrumento apresenta.Conclui-se com uma reavaliação “pós-aplicação” do desdobramento propos-to; propostas de modificações no ins-trumento analisado, tendo em vista daanálise dele efetuada; e uma rápida in-trodução às eventuais vantagens deempregar-se a visão das quatro dimen-sões também no âmbito dos periódicoseletrônicos.

Palavras-chave: qualidade de periódi-cos científicos; avaliação de periódicoscientíficos; periódicos científicos ele-trônicos

Dimensions of the quality ofscientific journals and their presencein an evaluation instrument for thefield of educationWe refer to the circumstances of theacademic environment which requirethe evaluation of scientific journals.We suggest the deployment of thequality function of these journals infour dimensions, two of which arewell known (standardization or form,and purpose or content) and twowhich are new (production processand customer evaluation). Theindependence of the four dimensionsis discussed, together with theirconcepts, the way they can beevaluated in practice and examples ofentities which effectively use them. Aninstrument for the evaluation ofscientific journals, used by the field ofeducation, has each one of its 32items analysed from the fourdimensional optic and associated withone or more of the latter. We concludewith (i) a “post-application”discussion on the deployment; (ii)proposals for changes that can bemade to the evaluation instrumentexamined, bearing in mind theanalysis carried out; and (iii) a quickintroduction to the eventualadvantages of also employing the fourdimensional approach in the ambit ofelectronic journals.Key-words: quality of scientificjournals; evaluation of scientificjournals; electronic scientific journals

Las dimensiones de la calidad de losperiódicos científicos y su presenciaen un instrumento en la área de laeducaciónSe mencionan las características delambiente académico que envuelve lanecesidad de evaluación de periódicos