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Formação em saúde e micropolítica: sobre conceitos-ferramentas na prática de ensinar Ana Lúcia Abrahão (a) Emerson Elias Merhy (b) As mudanças na formação em saúde, nas últimas décadas, têm estado na agenda da política do Estado brasileiro, no campo metodológico e pedagógico, com propostas de reestruturação dos currículos e maior aproximação com os serviços. A formação no campo da saúde é trabalhada neste artigo a partir de alguns conceitos- ferramentas, articulados a quatro tensões presentes neste campo: formação como movimento de produzir-se; formação como território do trabalho vivo; formação como experimentar e formação como criação. O propósito deste estudo consiste em ponderar as tensões apresentadas a partir dos encontros teóricos, alinhados à produção de ferramentas conceituais com potência para instalar novos modos de exercício na formação em saúde. A análise assinala o potencial criativo, exercido no micropolítico no ato da formação. Como elemento principal, amplia a experiência e a capacidade de enxergar outros ingredientes e outros territórios no agir pedagógico. Palavras-chave: Ensino. Micropolítica. Formação em saúde. (a) Escola de Enfermagem, Universidade Federal Fluminense. Rua Dr. Celestino, 74. Niterói, RJ, Brasil. 24240-660. ana.abrahao@ pesquisador.cnpq.br (b) Faculdade de Medicina, Campus Macaé, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. emerson.merhy@ gmail.com 2014; 18(49):313-24 313 COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO artigos Abrahão AL, Merhy EE. Healthcare training and micropolitics: concept tools in teaching practices. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):313-24. Changes in health education over recent decades have been on the political agenda of the Brazilian government, in the fields of methodology and pedagogy, with projects for curriculum restructuring so as to move closer to healthcare services. Healthcare training is examined in this article starting from some concept tools, with linkage to four tensions present in this area: training as a betterment movement; training as a field of living work; training as experience; and training as creation. The purpose of this study was to examine the tensions presented, starting from theoretical meeting points, aligned with production of conceptual tools with the power to install new practices in healthcare education. The analysis indicates the creative potential that micropolitics has within the training process. As the main element, it expands experience and the capacity to discern other ingredients and other territories within pedagogical action. Keywords: Teaching. Micropolitics. Healthcare education. DOI: 10.1590/1807-57622013.0166

Artigo Micropolitica e Formação Em Saúde (1)

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artigo para pensar as praticas de micropolitica e sa relação com a vida

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  • Formao em sade e micropoltica:sobre conceitos-ferramentas na prtica de ensinar

    Ana Lcia Abraho(a)

    Emerson Elias Merhy(b)

    As mudanas na formao em sade, nasltimas dcadas, tm estado na agenda dapoltica do Estado brasileiro, no campometodolgico e pedaggico, compropostas de reestruturao dos currculose maior aproximao com os servios. Aformao no campo da sade trabalhadaneste artigo a partir de alguns conceitos-ferramentas, articulados a quatro tensespresentes neste campo: formao comomovimento de produzir-se; formaocomo territrio do trabalho vivo; formaocomo experimentar e formao comocriao. O propsito deste estudo consisteem ponderar as tenses apresentadas apartir dos encontros tericos, alinhados produo de ferramentas conceituais compotncia para instalar novos modos deexerccio na formao em sade. A anliseassinala o potencial criativo, exercido nomicropoltico no ato da formao. Comoelemento principal, amplia a experincia ea capacidade de enxergar outrosingredientes e outros territrios no agirpedaggico.

    Palavras-chave: Ensino. Micropoltica.Formao em sade.

    (a) Escola de Enfermagem,Universidade FederalFluminense. Rua Dr.

    Celestino, 74. Niteri,RJ, Brasil. 24240-660.

    [email protected]

    (b) Faculdade deMedicina, Campus

    Maca, UniversidadeFederal do Rio de

    Janeiro. Rio de Janeiro,RJ, Brasil.

    [email protected]

    2014; 18(49):313-24 313COMUNICAO SADE EDUCAO

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    Abraho AL, Merhy EE. Healthcare training and micropolitics: concept tools in teachingpractices. Interface (Botucatu). 2014; 18(49):313-24.

    Changes in health education over recentdecades have been on the political agendaof the Brazilian government, in the fieldsof methodology and pedagogy, withprojects for curriculum restructuring so asto move closer to healthcare services.Healthcare training is examined in thisarticle starting from some concept tools,with linkage to four tensions present inthis area: training as a bettermentmovement; training as a field of livingwork; training as experience; and trainingas creation. The purpose of this study wasto examine the tensions presented,starting from theoretical meeting points,aligned with production of conceptualtools with the power to install newpractices in healthcare education. Theanalysis indicates the creative potentialthat micropolitics has within the trainingprocess. As the main element, it expandsexperience and the capacity to discernother ingredients and other territorieswithin pedagogical action.

    Keywords: Teaching. Micropolitics.Healthcare education.

    DOI: 10.1590/1807-57622013.0166

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    Introduo

    O campo da formao em sade, ao longo das duas ltimas dcadas, vemsendo desenhado e recortado por iniciativas de ordem prtica, poltica epedaggica que traam diferentes formas e modos de como se ensina e seaprende a ser profissional.

    Costuma-se pensar e entender a formao por uma dada cincia, tcnica eracionalista, que aplica diversas tecnologias pedaggicas aos alunos, sob um pontode vista que opera a partir de um saber cientificamente comprovado. Um produtopronto para ser consumido e reproduzido. Um aprendizado que estimula muitopouco o exerccio de autonomia e de crtica, pois parte do princpio de que exporo aluno ao contedo suficiente para a formao. Uma cincia aplicada que,fracionadamente, vai sendo exposta e assumida como centro do aprendizado,com pouca margem para outros tipos de conexes existenciais e de produo deconhecimento, durante o processo de formao. Ou seja, uma baixa capacidadede produzir arranjos pedaggicos que apresentem formas diferentes de aprender eque provoquem outras possibilidades na identificao dos distintos modos de existirque h no mundo. Formas de ensinar e aprender que convivem com sujeitos e osseus modos de vida singulares, que demandam uma ateno to singular, quanto.

    A formao pode ser reconhecida a partir de outro lugar, sob outra perspectiva,que convida o aluno a experimentar, a criticar, a participar da experincia deensinar e aprender. A experincia como aquilo que nos passa, o que nosacontece, o que nos toca. No o que se passa, no o que acontece, ou o quetoca. A cada dia se passam muitas coisas, porm, ao mesmo tempo, quase nadanos acontece1 (p. 22). H aqui uma diferena entre aquilo que vivenciamos e setorna uma experincia em ns, e o que vivenciamos e no nos afeta de modo aexigir novas significaes. H distino entre ser algo que encontra sentido e nostoca, como um acontecimento(c), e aquilo que no nos traz para novos campos desentidos.

    Estamos pensando em uma prtica pedaggica que inclua outras conexespossveis para a formao, que seja um acontecimento. Ou seja, que produzaabalos no campo dos sentidos, na efetuao daquilo que passa e toca no cotidianoda formao, em que os sujeitos (professor-aluno-usurio-profissional) envolvidosbusquem novos significados para dar conta do que acontece a eles. Oacontecimento obriga que possibilidades que julgvamos impossveis, queexcediam nosso sentido do provvel sejam [possam ser] reconhecidas2 (p. 5).

    Pensamos em uma formao que permita a produo centrada na articulaode diferentes saberes, conhecimentos e aprendizados, e no territrio da vivncia/experincia do aluno, partindo desse como sujeito da problematizao da prpriaformao. Outro modo de produo que inclua outras possibilidades para alm dainculcao de um saber cientfico aplicado.

    Assim, chegamos diante de, pelo menos, dois aspectos de ensinar e aprender,presentes no campo da formao. Um vinculado certeza de que, expondo osalunos a um saber cientifico, haver a formao, o aprender. O segundorelacionado a uma prtica pedaggica que promove a emergncia de novossaberes e suas articulaes, os quais o aluno-professor experimenta durante a aoproblematizadora.

    No campo da formao em sade, reconhecemos a convivncia destes doismovimentos atuando ao mesmo tempo e em disputa. Uma perspectiva que colocaa sade como resultado do saber cientfico, da cincia aplicada, com a utilizaode estratgias de normatizao da vida do outro; e outra que deposita, na prticaem sade, as possibilidades de se alinharem os diferentes modos de produo do

    (c) Em Deleuze3, oacontecimento umconceito paradoxal, nosegue o bom senso (quefecha o sentido) e nemo senso comum (que didentidade fixa).Acontecimento o localde troca entre o estadode coisas e o improvvel,o sujeito neste instante tomado, buscandoproduzir algum tipo desentido na efetuao. exatamente por no tersentido em meio quiloque j existe que oacontecimento obriga osentido, fazendo comque o sujeito busquenovos significados paradar conta do queacontece a ele.

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    viver, singulares, e que constituem as maneiras de andar a vida, nos processos deencontros micropolticos entre trabalhadores e usurios4.

    Desenhos que se centram no saber que a prtica em sade resultado dalgica cientificista, classificatria, protocolar, circunscrita em uma produo nicado sofrimento como doena, em que os distintos modos de sofrimento e de existiresto ausentes, juntamente com a produo de territrios(d) identitrios do usurio.

    O ensinar centrado no saber cientfico, de modo exclusivo, produz processosem que o complexo mundo do usurio e daquilo que ele busca nos servios desade, ganha pouca visibilidade e pertinncia. Com muita frequncia,reconhecemos os vestgios desta aprendizagem nos servios, nas produes debarreiras ao acesso dos usurios ao cuidado integral, bem como na centralidadeque a doena ocupa neste processo, com a interdio da apario dos muitossujeitos que h a em potncia, no plano da vida do usurio.

    Os vrios territrios, tomados como campo de experincia prtica, abrem-separa a combinao de diferentes conexes como elemento para a formao. Umprocesso que, ao articular a prtica do trabalho em sade, remete ao desafio deconstruo de artifcios pedaggicos que reconhea a possibilidade das vriasexistncias presentes nesse plano de produo, o qual opera no entre aluno-professor-usurio-profissional de sade.

    O desafio se coloca como pergunta: como reconhecer nesse processo deformao, no campo da sade, ferramentas que, combinadas, transitem pelamultiplicidade e extensividade do campo de foras e dos fluxos que interagemnesse plano? Multiplicidade dada a partir do emprego das ferramentaspedaggicas e do cuidado em ato, e que nos convoca, a cada momento, a umanova ao, principalmente quando nos deparamos com modos de agircompletamente diferentes ante o mesmo usurio.

    E extensividade por esta ao se ampliar e ir em diferentes direes, nohavendo via nica. Alguns autores, do campo da Educao Permanente em Sade,vm demonstrando a potncia de transitar na interface e nos limites disciplinares econstruir espaos de aprendizado em outra perspectiva.

    Essa perspectiva reconhece que a formao em sade transita de formatransversal nos territrios disciplinares, produzindo conhecimento e revelandonovas aproximaes sobre a realidade. As fronteiras se abrem e permitem aaproximao pelo entre, pelos poros6. Este movimento de constituio transversalpara a compreenso do real incorpora diferentes direes em meio s vriasdisciplinas, que podem vir a promover processos coletivos de produo7.

    A transversalidade incorpora um intenso movimento entre os territrios dasdisciplinas. Transversalidade em oposio a uma verticalidade e a umahorizontalidade, que constituem os processos de subjetivao. Processos quemobilizam aes, gestos, afetos e afeces, conhecimentos e verdades queconjugam a nossa existncia. Este movimento aporta a potncia de mobilizarforas, grupos e sujeitos8. Uma possibilidade de aluno-professor ter acessodiferenciado s reas de conhecimento, como uma produo singular, que parteda multiplicidade e no obedece hierarquia das disciplinas. A sua relao com ossaberes oblqua e o resultado inesperado. Com este fim, o processo deformao gera a possibilidade de inaugurar vnculos e trabalhar com aesestabelecidas a partir do encontro entre usurios-profissionais-alunos-professores.

    Reconhecemos a importncia da utilizao de conceitos-ferramentas trataremos disso adiante que possam configurar como elementos que nos levema pensar e a produzir, em ato, arranjos que ativem a mudana no ensinar,aprender na sade, a partir do reconhecimento de que a formao encontra-se emum plano poroso de existncia.

    (d) Este estudocompreende o territrio

    para alm do geogrfico,delimitado fisicamente,

    como o que ultrapassa aslinhas, como sinnimo de

    articulao com outrosmodos de existncia. No

    est dado, ao contrrio,est em construo. Oterritrio sinnimo de

    apropriao e desubjetivao5 (p. 323).

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    O debate, escolhido para este trabalho, adota as disputas no campo da formao em sade e seprope a oper-las a partir de alguns conceitos-ferramentas, tendo como contexto quatro tenses quereconhecemos estarem presentes neste campo: formao como experimentar; formao como ummovimento de produzir-se; formao como territrio do trabalho vivo em ato; e formao como criao.

    Operando nas tenses da formao em sade a partir de conceito-ferramenta

    A escolha de trabalhar as tenses da formao como um movimento de produzir-se; comoterritrio do trabalho vivo em ato; como experimentar; e como criao deu-se pelo fato deidentificarmos as tenses constitutivas que se abrem s potncias e disputas de modos de ensinar eaprender, que so geradas no campo da formao, e, consequentemente, concentram muitosconceitos.

    Entendemos que todo conceito remete a um problema, problemas sem os quais no teria sentido,e que s podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua soluo [...]9 (p. 27-8). Aotrabalharmos as tenses, estamos agindo sobre os conceitos, sobre o campo de experincia que secoloca como um problema do experimentar na existncia. Uma ferramenta que age sobre as verdadesda vida, uma ferramenta para viver o conceito, como vida.

    No sentido de compreender conceito como uma ferramenta, tomaremos o acolhimento, comoexemplo. Se olharmos o acolhimento como um conceito de representao da vida, facilmentechegaremos ao consenso de que, na prtica, precisamos ter escuta durante o atendimento ao usurio,abrir espao na agenda dos servios, construir com a equipe o entendimento de que precisoacolher, no mandar o usurio de volta sem antes ouvir e conduzir a queixa. O conceito acolhimentocomo representao passa, ento, a figurar nos servios como aquele espao para o qual o usurio encaminhado quando chega e no h vaga para ser atendido. Reconhecemos ser uma mudanaimportante no contexto hegemnico da organizao dos servios, mas que mantm a centralidadena doena.

    Tomar acolhimento como conceito-ferramenta nos remete a outra ordem de mudana, que operapara dentro da equipe, provoca e desperta alteraes no corpo e no enunciado do usurio e profissionalde sade, que representa para alm da construo de protocolo de risco; passa a incluir na sua ao oque toca o usurio e o que toca o profissional. O acolhimento adquire a dimenso da nossa prpria aotrabalhador-usurio, existe, portanto, como acontecimento, e no como representao.

    Acolher se transforma em ferramenta e atua sobre a escuta, no mais seletiva e classificatria, masno que opera no ato do encontro, no entre, podendo agir na direo de um escutar incluindo, como umir ao ato da escuta. O acolhimento como processo de encontro intercessor passa a ser o local de trocaentre o estado de coisas e aquilo de que temos dvidas, pelo acontecimento micropoltico que a age.Isso pode implicar a busca da produo de algum outro tipo de sentido na efetuao. Operaracolhimento como ferramenta fazer uso dos novos significados para dar conta do que acontece.

    Assim, viver o conceito passa a se revelar como um problema do experimentar, dos e nosacontecimentos vividos, aquilo que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Constituindo-secomo o local de troca entre o estado de coisas e o improvvel, o inusitado que est presente.Entretanto, a produo de sentido para o sujeito da ao, que se coloca no ato do experimentar, fundamental.

    Viver o conceito como ferramenta na produo de vida remete produo de agenciamentos.Agenciamento10 como a composio de elementos que se fazem presentes durante a relao sejameles os elementos em que ordem for: objetiva, subjetiva, sentimental, sensorial etc. Elementosheterogneos entre si, que incorporam a expresso de vrios contedos.

    Trabalhar conceito como vida agencia os elementos que se fazem presentes na relaousurio-aluno-professor-profissional, em um movimento que vai alargando as possibilidades doexperimentar em diferentes campos de problemas.

    Os elementos heterogneos, presentes no agenciamento, trazem para a cena as disputas dosmecanismos de subjetivao, existentes no campo da formao. Nesse cenrio, possvel identificaruma produo subjetiva que se cristaliza em processos institucionalizados de ensinar, como aulas

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    centradas no saber docente, versus outros modos de subjetivao com uma maiormargem entrada de diversos modos de existncia, como aulas-experimentos queagreguem outras possibilidades de problematizaes e saberes.

    O agenciamento funciona como um grande plano em que elementosheterogneos se apresentam e, por isso mesmo, se confunde durante a relao.Quando estamos operando o conceito, seja como ferramenta ou comorepresentao, os agenciamentos esto presentes. O interessante perceber que alise encontra cravada a disputa de modos de subjetivao, que adquirem sentido ouno nos problemas da vida.

    Modos de subjetivao como

    [...] o espao de relao que se produz no encontro de sujeitos, isto ,nas suas intercesses, e que um produto que existe para os dois emato, no tendo existncia sem este momento em processo, e no qual osinter se colocam como instituintes em busca de um processo deinstituio muito prprio, deste sujeito coletivo novo que se formou.11

    (p. 318)

    Intercesso, em ato, no momento da produo usurio-aluno-professor-profissional. Um inter que produz interveno na arte da formao11. Novos sentidospara o saber, abertos para entrada de outros saberes, para outros regimes de verdadeque encontram lugar durante o processo de formao.

    Nesta ordem de variaes, os conceitos-ferramentas, em seu devir(e), seinscrevem como potncia de produo de conexes e remetem a outros conceitos,produzindo ecos e ressonncias. Com esta imagem se desenha uma provocao,operando na construo de uma formao em sade mais prxima das questes doviver. Produzir, no encontro usurio-profissional de sade-aluno-professor,intercesses com redimensionamento e alargamento do modo de andar a vida e docuidar de si12, com o exerccio de conceitos-ferramentas no ato da formao.

    Formao como experimentao

    A experincia como elemento dinamizador da formao implica colocar-se disposio do exerccio de apreender com e no mundo do trabalho, enquanto umcampo essencialmente micropoltico. A formao nos convoca a experimentardurante o cuidar, durante o ato do trabalho; despertar sensaes e afetosproduzindo-se no cuidado.

    O sentido do cuidar implica processos que se tornem imanentes e referentes smltiplas possibilidades relativas ao encontro. Imanentes, pois tm como ponto departida o prprio encontro; mltiplos, pelas diferentes possibilidades de, no mesmoencontro, identificarmos uma multido de encontros, que passa pela troca de olhar,pela construo e produo de conhecimento, pelas afeces em geral, entre outros.

    Encontros que vamos tendo e fazendo durante a vida; de participar, com o outroe consigo, deste movimento de estar vivo. Um processo que avana na medida emque nos reconhecemos no outro docente-profissional de sade-aluno-usurio emum nico processo de produo. Produo do qu? De subjetivao, de vida produo do cuidado. Um cuidado que implica a produo de encontros, deconexes existenciais em aberto. Cuidado entre vivos, com suas singularidades emultiplicidades, em acontecimento.

    Passamos a vida em encontros, sendo afetados por eles e afetando os outros.Afeces que nos movimentam para a vida, para a produo de um cuidar prpriocom mobilizao de elementos vitais e, tambm, outros processos de afeces que

    (e) Devir, um conceitode Deleuze e

    Guattari9 que remeteao desejo, a fora e a

    potncia presente eque no imitada e

    no est enquadrada.No generalizvel;

    , antes de tudo,fenmenos, evoluo

    de mudana.

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    mobilizam, ao contrrio, muito pouco da nossa potncia de viver. Encontros quepotencializam a vida, no sentido da biopotncia, convocando a potncia da vida nasua dimenso afetiva, cooperativa, do desejo, da inteligncia, em um processoque se atualiza constantemente no contato com o outro. Potncia de vida comoaquilo que provoca e provocado pelos encontros13.

    O cuidado nesta dimenso alarga as possibilidades de escuta, de fala, degestos, de odores, de observao, de toques, de sabores, de olhares, ou seja,amplia os elementos sensveis e de pensamento empregados na produo docuidado. Movimenta e expande, no ato do cuidar, a biopotncia do prprioencontro.

    Permitir que as multiplicidades do plano do cuidado sejam experimentadas eagenciadas pelos mltiplos sujeitos em produo, remete ao entendimento deque cada sujeito multido e que nos constitumos na multiplicidade. A cadainstante nos produzimos diferentes, com gestos, quereres, gostos, opinio, um serdistinto daquilo que ramos antes. O experimentar como ingrediente da formaonos desafia, sobremaneira, a construir estratgias pedaggicas que sejam capazesde deixar vazar as multiplicidades dos sujeitos em um coletivo mltiplo, comencontros precrios. Precrios na sua inconcretude e infinitude, na produo desubjetivao, experimentando no acontecimento14.

    Deixar vazar as multiplicidades remete a experimentar, no interpretando aquiloque nos afeta, mas desabrochando naquilo que nos afeta. Aquilo que nos toca noolhar, na escuta, costumamos traduzir buscando representar as sensaes.Desabrochar nos afetos coloca a sensao daquilo que nos toca, nos passa emoutro lugar, na construo de outros modos de subjetivao presentes na ao doencontro15.

    Experimentar supe um agir, um interagir pelo qual o corpo apreende umcontedo qualquer, isto , lhe confere um sentido. Recupera na memriarecordaes de aes vividas. Um desabrochar nos afetos com o apelo sexperincias passadas que se atualizam no ato do produzir-se em formao.

    [...] para Bergson, o equilbrio encontra-se no jogo entre os doisextremos da experincia humana: nem viver na pura ao, reagindoimediatamente como os animais inferiores, nem viver como umsonhador, evocando lembranas sem vnculo com a situao atual.16

    (p. 30-1)

    O jogo do equilbrio na experincia implica um ato pedaggico que provoquesentido e vnculo sobre a prtica do cuidar. Mobiliza afetos e promove novas rotasde agir pedaggico na formao em sade, a partir da construo de uma caixa deferramenta(f).

    Caixa de ferramenta que remete produo de estratgias e ferramentaspedaggicas que no sejam rgidas demais nem fluidas em demasia. Na formaocomo experimentar, o exerccio de ensinar ganha outra dimenso, seja naenfermaria, ambulatrio, em uma visita domiciliar, enfim, qualquer que seja oplano da experincia no encontro com o outro.

    Adentramos nestes espaos com alguma vivncia, o que nos remete deimediato nossa memria, que, no ato, se atualiza diante do dado real. A partirda, temos uma srie, quase que infinita, de caminhos, como: ficar com aquiloque sabemos, pontuando o nosso rgido saber, com pouca margem paraexperimentar; ampliar um pouco mais com a escuta, abrindo a caixa, masfechando em seguida com a prescrio de modos de controlar a doena.Podemos, ainda, partir da nossa vivncia, incorporando os acontecimentos

    (f) A caixa de ferramentaspara Merhy4 compostados saberes que otrabalhador dispe para aproduo de cuidado emsade, que, quandoutilizada, maior ser apossibilidade de secompreender o problemade sade enfrentado emaior a capacidade deenfrent-lo de modoadequado, tanto para ousurio do servio quantopara a prpriacomposio dos processosde trabalho (p. 57).

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    2014; 18(49):313-24 319COMUNICAO SADE EDUCAO

    presentes na relao que se d neste ato, desabrochando na incerteza da aocomo a nica certeza que temos.

    A formao como experimentao convoca, no ato, aquilo que nos passa, oque nos acontece, que nos toca quando estamos diante de cenrio deaprendizado professor-usurio-profissional-aluno. Convoca-nos a buscar nasexperincias anteriores, na memria, desabrochando o sentido da situao vivida.Sentido como conhecimento, como produtor de perguntas que nos lance paraoutras conexes possveis de serem identificadas e trabalhadas.

    Formao como um movimento de produzir-se

    Formar estar em formao, produo, produzir-se. Tal afirmao implicaprocessos que se tornem imanentes e referentes s multiplicidades do encontro.Ou seja, a partir do encontro, estamos em produo, produo de diferentesformas de ser no mundo, diferentes formas de cuidar de si e do outro.

    O ato da formao convoca vrios meios, no s o conhecimento racional elgico. Convida tambm aquilo que est no entre os sujeitos que participam doprocesso. Elementos que passam a ser produzidos durante o encontro e que noexistam, e incidem no processo pedaggico ou de cuidado e, muitas vezes, noencontram linguagem falada capaz de expressar o seu significado, mas queconferem sentido ao ato(g). Porm, quando se expressam como ideias, adquiremsempre uma dimenso polissmica, habitadas por sentidos diferentes. comumouvir, durante estes encontros, algum dizer: Nossa! Nunca havia pensado destaforma. Ah! Agora entendi. Ou seja, durante o ato, estabeleceu-se um processonico e singular que promoveu a produo de algo que passou a fazer sentido eque no havia antes.

    Produo de processos de enunciao em disputa por outros modos deformao, com agenciamentos que alargam o formar, agindo na biopotncia dosencontros como produo usurio-profissional-professor-aluno. O produzir-se naformao desloca o movimento da dicotomia para a no-dicotomia, nos lana noparadoxo dos encontros e suas variaes intensivas, na sua micropoltica. Nessaconcepo, a pergunta o que se produz? no constitui um produto ao final, masexpande-se em mltiplos processos.

    Produo que se faz na dobra dos encontros. Dobra como o ato em que tornapossvel a produo de subjetivaes a partir de uma relao intercessora, consigomesmo e com outro, em uma produo contnua e no mesmo instante daexperimentao, em ato17. Nos encontros estamos nos produzindo em movimentode dobra, ou seja, em atos que nos remetem para dentro de ns mesmos, junto ena interao com o outro. Um ato que se estabelece a partir das afeces daquiloque nos passa, o que nos toca, nos impulsiona e nos desloca para dentro eprovoca mudanas sobre nossas aes, remetendo-nos a umaproduo diferente da que estvamos construindo anteriormente. Produzindo-seem dobras, em instantes e planos de intensa produo subjetiva.

    Durante o processo de aprender e ensinar, frequentemente, entramos emsituaes das quais difcil reproduzir da mesma forma o que aconteceu.Podemos sair com algo a mais, mas isso no inevitvel. Por exemplo, um grupode usurios que frequenta um determinado servio, ao buscar resolver seusproblemas relacionados a alguma das doenas crnicas no transmissveis, seencontra diante de uma oferta feita pelo servio que, com frequncia, um grupode educao e sade. A princpio, um dispositivo tradicional, normatizado, masque pode ser diferente, pode se transformar em um novo mecanismo deagenciamento coletivo de subjetivao. No espao do inter aluno-usurio-

    (g) Clarice Lispector, noseu livro gua Viva18, nosmostra que, no plano dos

    afetos, passam coisasque no viram linguagemescrita ou falada, mas seinscrevem no corpo. De

    modo semelhante,pensadores como

    Deleuze e Guattari9 eMerhy19, de acordo com

    um certo olhar spinosista,afirmam o mesmo

    sentido.

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    320 COMUNICAO SADE EDUCAO 2014; 18(49):313-24

    professor-profissional, se discute sobre a vida, como estar na vida. Entra-se no exerccio das afeces eno somente de produtos, como a reduo da glicemia, mas, tambm, de constituir-se como modos deviver. Normalmente, nos encontramos diante de provocaes de diferentes ordens que s tm sentidodurante o processo. Dobramos-nos sobre ns mesmos e sobre os outros, o que significa buscar osentido daquela experincia, daquilo que nos impulsiona para a vida. Produzir-se na singularidade docoletivo, no cuidar do outro. Agimos no entre ns.

    Produzir-se na formao em dobra constitui a experimentao aluno-profissional-docente-usurio,dobrando-se sobre e entre as potencialidades, subjetividades dos encontros que se estabelecem nesteprocesso de formao.

    O produzir-se em dobra coloca docentes-alunos-profissionais-usurios como experimentadores deum dentro que dobra e de um fora que desdobra, no interior das relaes de poder da vida, em umcampo intersubjetivo. Segundo Deleuze20 (p. 56), a desdobra no o contrrio da dobra, mas segue asdobras at outra dobra [...], em um movimento intenso que tece rotas e caminhos capazes de produzirintensidades com potncia de redesenhar o cuidado, a partir da desorganizao que provoca naformao, abrindo-se para outros processos, lanando-a para outro plano com outras possibilidades deexistncia, em um contnuo acontecer.

    O movimento do desdobrar-se seguindo at outra dobra, na formao, remete produo deintercesses entre os sujeitos e a intensividade subjetiva, durante a experimentao pedaggica do agir.Um movimento subjetivante do trabalho vivo em que pode haver outros processos, centrados nasrelaes, nos encontros sucessivos entre alunos-professores-usurios-profissionais de sade, emalternativa aos modos cristalizados na lgica da formao como transmisso de saber, enquantoconhecimento racional sistematizado, modos de subjetivao que se estabelecem sobre dobras slidasconstitudas pelo modelo hegemnico no campo da sade.

    No plano da dobra, que desdobra a todo instante, entramos por dentro de processos bemslidos, como a classificao das doenas que enuncia protocolos e dita formas de como viver.Atravessamos processos que nos passam, nos tocam, nos deslocam e convocam a produo deescuta daquilo que vai alm da doena e nos invade com outras formas de produzir sade e vida.Implicam-nos tica e politicamente. Formas que do visibilidade aos sujeitos e aos seus modossingulares de estarem e andarem a vida.

    Isto , plano da micropoltica, dos eixos de foras intensivas, que atualizam, nas suas relaes depoder, como reproduzimos ou no os modos e formas de dominao do outro e de ns mesmos, deprocessos intensos abertos nos encontros, dobra e desdobra dos quais precisamos nos apropriar. H,neste processo, a possvel produo das novidades que remetem a sistemas de interaes complexasentre alunos-professores-usurios-profissionais de sade que merecem ser exploradas na prtica daformao.

    Formao como territrio do trabalho vivo

    Outro conceito-ferramenta diz respeito formao na sade e seu territrio no mundo do trabalho,pois exatamente neste plano que os encontros profissional-aluno-docente-usurio so maismicropolticos e intensos. Sobre territrio, h estudos no campo do cuidado em sade que vmquestionando a ideia de que seja algo rgido e geogrfico. Na realidade, os usurios que frequentam osservios de sade se inserem enquanto territrio existencial de um modo muito singular no campo dasrelaes sociais, culturais e de vida.

    Se observarmos com ateno, tomamos, de um lado, o territrio geogrfico socialmenteestabelecido como o bairro, a cidade e o que h de equipamentos institucionais como referncia:escolas, creches, supermercados, lanchonetes etc., e delimitamos espao fsico entre ruas, avenidas,rios etc. De outro lado, podemos tom-los como resultado das articulaes entre a sociedade, omovimento nos seus mltiplos aspectos: sociais, econmicos, polticos, culturais e outros. A sociedadeest sempre em movimento. A mesma paisagem, a mesma configurao territorial nos oferecem, notranscurso histrico, espaos diferentes21. Estes espaos diferentes conformam espacialidades singularesao territrio.

  • Abraho AL, Merhy EE

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    2014; 18(49):313-24 321COMUNICAO SADE EDUCAO

    Efetivamente, somos um territrio existencial que articula e atravessa, durante o movimento deviver, os aspectos subjetivo e cultural. No nos fixamos no geogrfico. No movimento do territrioexistencial, vamos atrs de ofertas que nos faam mais sentido, situadas em outros espaos materiais eimateriais que no o bairro ou lugar de trabalho22.

    Portanto, o mundo do trabalho um territrio marcado pela presena de muitos elementosagenciadores de subjetivaes, que, como tais, operam em linhas de foras no campo micropoltico dasrelaes intercessoras, que esto presentes no plano da produo da vida e da existncia. Dessa forma,o mundo do trabalho em sade plenamente aberto aos acontecimentos e, por isso,

    [...] o ato do trabalho funciona como uma escola, ele mexe com a nossa forma de pensar ede agir no mundo. Formamo-nos, basicamente, no trabalho por ser o lugar de produo doagir em sade, dos profissionais de sade e dos saberes que so ali produzidos. Esseexerccio cotidiano em si um ato pedaggico.23 (p. 198)

    O trabalho, funcionando como exerccio pedaggico, configura a dimenso da ao do produzir-se,no encontro com o outro. A aproximao do aluno, do docente e do usurio, no mundo do trabalho, aocentro do cuidado, do servio, dos encontros e dos acontecimentos que teimam em colocar o usurio a vida do outro a dar sentido , pela sua configurao territorial, no centro de si, nos pem empermanente questionamento do agir sobre o outro, apontando a possibilidade do agir com.

    Tomemos, como exemplo deste complexo territrio, o que acontece em uma enfermaria entre ousurio acamado, o aluno em formao e o professor. Esta cena pode se dar com a prescrio detcnicas, procedimentos voltados para a melhoria das condies de sade do usurio, que, ao mesmotempo, exige a aplicao de saberes por parte do aluno e sobre o qual o professor, atento, avalia. Aquireproduzimos o conhecimento aprendido sobre uma nica lgica racional centrada nas evidncias dossinais e sintomas. H pouca margem s outras lgicas de conhecimento, pois o exerccio se produz nabusca de evidncias externas que encontra ressonncia na classificao nosolgica.

    Esta cena pode se passar de outra forma, mobilizando outros dispositivos durante a aplicao datcnica dura, as tecnologias leves4 que nos fazem debruar sobre o usurio, buscando outros sentidosalm da doena para que aquela ao possa se estabelecer, ou seja, haver um produzir-se, aluno-docente-usurio. A atitude do aluno se coloca para uma escuta problematizadora, o professor estimula aao de reflexo sobre a questo ao identificar elementos, dispositivos que sirvam para problematizar asituao, que peam outros saberes alm daqueles cientificamente protocolados. Saberes que estosendo agenciados no coletivo e que podem incorporar o usurio e seu mundo como centro da cena,outros territrios existenciais. O encontro produz-se daquilo que brota, desabrocha do entre e atravessado pelo externo. Neste movimento, constitui-se um territrio de intensidades mltiplas eatravessadas pelas necessidades, desejos dos principais atores que circulam no servio. Disputas deprojetos, de planos de cuidados, de planos e atos pedaggicos que passam a instituir novos territrios ea pedir relaes cooperativas pela centralidade da vida no centro dos encontros. Multiplicidadesconstitutivas do territrio do trabalho em sade. A multiplicidade no deve designar uma combinaode mltiplo e de um, mas, ao contrrio, uma organizao prpria do mltiplo enquanto tal, que notem necessidade alguma da unidade para formar um sistema10 (p. 236).

    Nesta perspectiva de constituio do territrio como multiplicidade, h a combinao mltipla deelementos que se fazem presentes no agir pedaggico em produo do trabalho vivo. Trabalho vivo4,aquele que, no exato instante da sua ao, interage com normas, mquinas, tecnologias diversas,dobrando e desdobrando-se em fuga, no campo micropoltico.

    O ato em sade se d em meio existncia efetiva do trabalho vivo em ato, e deste modo implicauma imprevisibilidade que impossibilita, fora do encontro, haver ao. Desse modo, operar sobre oterritrio do trabalho vivo um espao aberto explorao de potncias nele inscritas. Abre aperspectiva de ampliar aes pedaggicas com dispositivos que produzam desvios na formao.

    Um agir constitutivo das disputas, formas e modos de produzir-se, de atualizar a potncia da vida, napotncia da formao. Um desafio interessante a ser enfrentado. Extrapolar territrios, criando novidadesa partir da multiplicidade do coletivo que se expressa durante o trabalho vivo.

  • FORMAO EM SADE E MICROPOLTICA: ...

    322 COMUNICAO SADE EDUCAO 2014; 18(49):313-24

    As disputas no territrio do trabalho vivo so possveis de serem evidenciadas quando, por exemplo,os profissionais de sade (aluno, professor) prescrevem um dado plano de cuidado, com regras bemdefinidas e pautadas em sinais e sintomas, para o andar da vida do usurio. Com frequncia, taisindicaes no so cumpridas, sendo atravessadas por outros planos, projetos de vida e cuidado ditadospelos usurios. Logo, o plano ditado no cumprido. Ora, normalmente, h uma decepo que invadeeste encontro. O profissional se recente pela sua inoperncia e o usurio pela incompreenso daquiloque necessita.

    Projetos e planos, neste territrio, so questionados a cada instante. O interessante incorporar apotncia de vida, reconhecer o territrio existencial do usurio e provocar movimento.

    Formao como criao

    A ltima extremidade da formao que reconhecemos como conceito-ferramenta a criatividade.Imersos no mundo virtual, a capacidade de imaginar e projetar tomada ao extremo. Por outro lado,embota a nossa capacidade criativa vinculada ao experimentar. As formas metodolgicas de ensinar tmse valido muito pouco do exerccio criativo. Na verdade, precisamos inventar um modo diferente deformar que inclua a criatividade.

    Inventar, criar da ordem dos encontros intercessores. Criatividade, na formao, implica estarafinado com outro paradigma que no seja somente o cartesiano, um paradigma que reconhea o realem sua infinita capacidade de combinao de modos de ser, ver e experimentar.

    A habilidade de criar pode ser entendida, fundamentalmente, como autocriao a partir de umprocesso de reconhecimento do outro. Este processo requer, para sua execuo, a espontaneidade domovimento da vida24.

    Se existe um verdadeiro potencial criativo, podemos esperar encontr-lo em conjunto com aprojeo de detalhes introjetados em todos os esforos produtivos, e devemos reconhecer acriatividade potencial no tanto pela originalidade de sua produo, mas pela sensaoindividual de realidade da experincia [...].24 (p. 130)

    Nessa lgica, a criatividade passa a ser relacionada com o estar vivo com os vrios encontrosproduzidos no ato pedaggico. A formao, em seu fazer cotidiano, relaciona-se com o saber inscrito etatuado na experincia do trabalho. Neste jogo, no entre, a espontaneidade, o gesto espontneodurante o ato vivo do produzir-se, revela as formas criativas de ensinar, aprender.

    Consideraes finais

    A utilizao de conceitos-ferramentas refere-se a colocar, no foco das discusses da formao emsade, as vrias intenes e implicaes dos atores envolvidos na micropoltica do ensino e do cuidado.Tomar os conceitos com a finalidade de constituir a matria-prima para a produo de conversa e redescoletivas de contato entre os trabalhadores, usurios, alunos, professores, explorar a potncia que sedesenha no fazer produtivo com os atos pedaggicos.

    O potencial criativo exercido no trabalho vivo da formao em sade representa um territrio queno coloque a doena como ingrediente principal do cuidar, mas amplie a nossa capacidade deconstruo de outros elementos com potencialidade para invadir outros territrios. Representa o sair embusca de experimentar novos territrios existenciais; experincias de formao que se projetam sobreterritrios que mobilizem o contato com outras culturas, com outros modos de existncia, a partir dotrabalho vivo, como agir pedaggico.

    a ferramenta operando com capacidade de provocar rupturas, arranhes nas dobras rgidas ecristalizadas do agir pedaggico que se centra sobre uma nica verdade.

  • Abraho AL, Merhy EE

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    2014; 18(49):313-24 323COMUNICAO SADE EDUCAO

    Colaboradores

    Os autores trabalharam juntos, construindo todas as etapas de produo do texto.

    Referncias

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    2. Lana LCC, Frana RO. Do cotidiano ao acontecimento, do acontecimento aocotidiano. Rev Assoc Nac Prog Pos-Grad Comunic. 2008; 11(3):1-13.

    3. Deleuze G. Lgica do sentido. So Paulo: Perspectiva; 1982.

    4. Merhy EE. Sade: a cartografia do trabalho vivo. So Paulo: Hucitec; 2002.

    5. Guattari F, Rolnik S. Micropoltica: cartografias do desejo. Petrpolis: Vozes; 2000.

    6. Ceccim RB. Educao permanente em sade: descentralizao e disseminao decapacidade pedaggica na sade. Cienc Saude Colet. 2005; 10(4):975-86.

    7. Abraho AL, Teixeira ER. Aspectos metodolgicos do estudo transdisciplinar e dapsicossomtica no cuidado com o corpo. In: Teixeira ER, organizador. Psicossomtica nocuidado em sade: atitude transdisciplinar. So Caetano do Sul: Yendis; 2009. p. 69-89.

    8. Guattari F. Revoluo molecular: pulsaes polticas do desejo. 3a ed. So Paulo:Brasiliense; 1987.

    9. Deleuze G, Guattari F. O que filosofia? So Paulo: Ed. 34; 1982.

    10. Deleuze G. Diferena e repetio. Rio de Janeiro: Graal; 2006.

    11. Merhy EE, Franco TB. Por uma composio tcnica do trabalho em sade centradano campo relacional e nas tecnologias leves. Apontando mudanas para os modelostecnoassistenciais. Saude em Debate. 2003; 27(65):316-23.

    12. Foucault M. A hermenutica do sujeito. So Paulo: Martins Fontes; 2010.

    13. Pelbart PP. Vida capital: ensaios de biopoltica. So Paulo: Iluminuras; 2003.

    14. Deleuze G. Espinosa: Filosofia prtica. So Paulo: Escuta; 2002.

    15. Rolnik S. Micropolticas em atrito [audiovisual]. So Paulo: Instituto CPFL Cultura;2009 [acesso 2012 Out 27]. Disponvel em: http://www.cpflcultura.com.br/site/2009/10/16/integra-micropoliticas-em-atrito-suely-rolnik

    16. Menndez JG. A relao entre percepo e memria: aproximaes e divergnciasentre Freud e Bergson. AdVerbum. 2006; 1(1):23-34.

    17. Merhy EE. O ato de cuidar: a alma dos servios de sade. In: Ministrio da Sade.Secretaria de Gesto do Trabalho e Educao na Sade. Departamento de Gesto daEducao na Sade. Ver-SUS Brasil: caderno de textos. Braslia: Ministrio da Sade;2004. p. 108-37.

    18. Lispector C. gua Viva. Rio de Janeiro: Rocco; 1998.

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    20. Deleuze G. A dobra: Leibniz e o Barroco. So Paulo: Papirus; 2007.

    21. Santos M. A natureza do espao: tcnica e tempo, razo e emoo. So Paulo:Hucitec; 1996.

    22. Campos GWS, Chakour M, Santos RC. Anlise crtica sobre especialidades mdicase estratgias para integr-las no SUS. Cad Saude Publica. 1997; 13(1):141-5.

  • FORMAO EM SADE E MICROPOLTICA: ...

    324 COMUNICAO SADE EDUCAO 2014; 18(49):313-24

    Abraho AL, Merhy EE. Formacin en salud y micro-poltica: sobreconceptos-herramientas en la prctica de ensear. Interface (Botucatu). 2014;18(49):313-24.

    Los cambios en la formacin en salud en las ltimas dcadas han formado parte de laagenda de la poltica del Estado brasileo en el campo metodolgico y pedaggico,con propuestas de reestructuracin de los currculos y una mayor aproximacin a losservicios. La formacin en el campo de la salud se trabaja en este artculo a partir dealgunos conceptos-herramientas, articulados con cuatro tensiones presentes en estecampo: formacin como movimiento de producirse; formacin como territorio deltrabajo vivo; formacin como experimentar y formacin como creacin. El propsito deeste estudio es ponderar las tensiones presentadas a partir de los encuentros tericos,alineados a la produccin de herramientas conceptuales con potencia para instalarnuevos modos de ejercicio en la formacin en salud. El anlisis seala elpotencialcreativo, ejercido en lo micro-poltico en el acto de la formacin. Comoelemento principal ampla la experiencia y la capacidad de ver otros ingredientes yotros territorios en la actuacin pedaggica.

    Palabras clave: Enseanza. Micro-poltica. Formacin en salud.

    Recebido em 20/05/13. Aprovado em 21/11/13.

    23. Merhy EE. Engravidando as palavras: o caso da integralidade. In: Pinheiro R, MattosR, organizadores. Construo social da demanda. Rio de Janeiro: IMS-UERJ, Abrasco;2005. p. 195-206.

    24. Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.