[Artigo] O enigma das interseções (Verena Stolcke)

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O enigma das interseções (Verena Stolcke)

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 336, janeiro-abril/2006 15

    Verena StolkeUniversidad Autnoma de Barcelona

    O enigma das intersees: classe,O enigma das intersees: classe,O enigma das intersees: classe,O enigma das intersees: classe,O enigma das intersees: classe,raa, sexoraa, sexoraa, sexoraa, sexoraa, sexo, sexualidade., sexualidade., sexualidade., sexualidade., sexualidade.A formao dos impriosA formao dos impriosA formao dos impriosA formao dos impriosA formao dos imprios

    transatlnticos do sculo XVI ao XIXtransatlnticos do sculo XVI ao XIXtransatlnticos do sculo XVI ao XIXtransatlnticos do sculo XVI ao XIXtransatlnticos do sculo XVI ao XIX*****

    Dois mundos Deus colocou nas mos de nosso soberanocatlico, e o Novo no se assemelha ao Velho, nem em seu

    clima, nem em seus hbitos, nem em seus habitantes; eletem um outro corpo legislativo, outro modo de governo,sempre porm com o fim de torn-los semelhantes. Na

    Velha Espanha apenas uma casta de homens reconhecida; na Nova, muitas e diferentes

    (Arcebispo Francisco A. Lorenzana do Mxico, de 1766 a1772, citado em Ilona KATZEW, 1996, p. 8).

    AberAberAberAberAberturaturaturaturatura

    Em 1752 um Dr. Tembra do Mxico emitiu a seguinteopinio sobre se um matrimnio desigual poderia ou noser celebrado sem o consentimento dos pais:

    Se a donzela deflorada por uma promessa decasamento to inferior em status, que cause maiordesonra linhagem dele, no caso de ele se casar com

    RRRRResumoesumoesumoesumoesumo: Este artigo aborda as intersees que se desenvolveram no imprio colonial espanholentre relaes de gnero, concepes de sexualidade feminina, honra familiar e a ordem doEstado. So analisadas as formas como as mltiplas normas morais, sociais, jurdicas e religiosasrelativas sexualidade e s relaes entre mulheres e homens interagiram com as desigualdadesscio-polticas na experincia colonial ibrica. O Novo Mundo proporciona um exemploespecialmente claro das intersees dinmicas entre as idias e os ideais contemporneos sobresexo/gnero, raa/etnicidade e classe social que se refletem nos novos sistemas de identificao,classificao e discriminao social que se forjaram na consolidao da sociedade colonialibero-americana. Torna-se exemplo tambm das conseqncias que a moralidade sexual e osesteretipos de gnero prevalentes tiveram para todas as esferas da vida das mulheres.PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: colonialismo ibrico, moralidade sexual, genealogia e honra familiar,mestiagem.

    Copyright 2006 by RevistaEstudos Feministas.* Publicado em MEADE, Teresa A.,and WIESNER-HANKS, Merry E.(eds.). A Companion to GenderHistory. Oxford: Blackwell, 2003.Blackwell Companions to HistorySeries. Traduzido e publicado comautorizao da autora.

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  • VERENA STOLKE

    16 Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006

    ela, do que aquela que recairia sobre ela no caso deela permanecer deflorada (como quando um Duque,Conde, Marqus ou Cavalheiro de conhecida nobrezaseduz uma menina mulata, uma china [descendenteda mistura de negro e indgena com negro1], umacoyota [descendente de ndio e mestia2] ou a filha deum carrasco, um aougueiro, um curtumeiro)... Nestecaso, ele no dever se casar com ela porque a injriapara ele e para toda sua linhagem seria maior do queaquela em que a donzela incorreria ao permanecersem salvao, e deve-se sempre escolher o mal menor[...] pois o ltimo caso uma ofensa individual e nocausa danos para a Repblica, enquanto o primeiro uma ofensa de tal gravidade que ir denegrir umafamlia inteira, desonrar uma pessoa proeminente,difamar e manchar toda uma linhagem de nobres edestruir algo que oferece esplendor e honra Repblica. Mas se a donzela seduzida de statusapenas levemente inferior, de diferena no muitomarcante, de forma que sua inferioridade no causeuma desonra marcante para a famlia, ento, se osedutor no deseja recompens-la, ou se elasimplesmente rejeitar a compensao na forma dedoao, ele deve ser forado a se casar com ela;porque nesse caso sua injria pode prevalecer sobre aofensa infligida famlia do sedutor, j que eles nosofreriam um dano grave com o casamento, enquantoela sofreria se no se casasse.3

    Esta uma das mais eloqentes ilustraes dasintersees que se desenvolveram no imprio colonialespanhol entre relaes de gnero, concepes desexualidade feminina, honra familiar e a ordem do Estado.Na sociedade colonial o corpo sexuado tornou-sefundamental na estruturao do tecido scio-cultural e ticoengendrado pela conquista portuguesa e espanhola e pelasubseqente colonizao do Novo Mundo. Atrecentemente, porm, as/os pesquisadoras/es em geralderam pouca ateno para o papel crucial que o controleda sexualidade das mulheres, por parte do Estado, da Igrejae o domnio dos homens, teve na construo da sociedadecolonial. Neste artigo, vou enfocar minha ateno na formacomo as mltiplas normas morais, sociais, jurdicas ereligiosas relativas sexualidade e s relaes entremulheres e homens interagiram dialeticamente comdesigualdades scio-polticas, na poca em que asociedade colonial estava se estruturando poltica esimbolicamente. A experincia colonial Ibrica permiteassim transcender as justaposies e aliteraesconvencionais dos critrios de identificao de classe, raae gnero. O gnero no trata de mulheres como tais.Refere-se aos conceitos que prevalecem em uma

    1 Nota da autora.2 Idem.

    3 Citado por STOLCKE, 1974, p.101.

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006 17

    O ENIGMA DAS INTERSEES: CLASSE, RAA, SEXO, SEXUALIDADE

    sociedade sobre o que so as mulheres em relao aoshomens enquanto seres humanos sexualmenteidentificados. O Novo Mundo proporciona um exemploespecialmente claro das intersees dinmicas entre asidias e os ideais contemporneos sobre sexo/gnero, raa/etnicidade e classe social que se refletem nos novossistemas de identificao, classificao e discriminaosocial que se forjaram na consolidao da sociedadecolonial bero-americana. Torna-se exemplo tambm dasconseqncias que a moralidade sexual e os esteretiposde gnero prevalentes tiveram para todas as esferas davida das mulheres.

    O imprio colonial espanhol e seu correspondenteportugus foram os pioneiros na expanso europia nafrica e na Amrica, o que para Adam Smith foi o eventomais significativo da histria humana. Seus impriossobreviveram, de maneira mais homognea do quedivergente, at o sculo XIX, quando seus sucessores, osimprios ingls e francs, foram aos poucos adquirindo suafisionomia definitiva. At 1815, Portugal e Espanha no smonopolizaram a expanso martima da Europa, mastambm ensinaram ao Velho Mundo como conquistar ecolonizar vastos territrios no Novo Mundo e tornar lucrativosseus enormes recursos naturais e humanos. As colniasespanholas no Mxico e no Peru foram as primeiras colniasmistas, onde uma minoria de colonos ibricos criou umtipo inteiramente novo, at ento desconhecido, desociedade, composta de toda uma gama de categoriasincomuns de povos, resultante da subjugao dapopulao indgena e da explorao de enormecontingente de escravos negros importados da frica.

    A prtica histrica que se tornou convencional foiexplorar as sociedades coloniais americanas de maneiraisolada. Mas os contrastes entre os projetos e asexperincias de espanhis e portugueses, de um lado, ede ingleses e franceses, de outro, so mais marcantes doque foram suas bvias semelhanas.4 No Brasil, Portugalcriou a primeira plantation, cuja mo-de-obra foi formadapelo maior contingente de escravos africanos jtransportado para as Amricas, sob o controle de umapequena minoria de colonizadores europeus que, comofizeram os espanhis em suas colnias mistas, se esforoupara impor sua civilizao metropolitana, suas instituiese sua cosmologia. Apesar das dificuldades decomunicao e controle, dadas as distncias enormes queseparavam os assentamentos coloniais de suas metrpoles,Portugal e Espanha se obrigaram a um rgido sistema deadministrao direta que contrastou com o posteriorgoverno colonial britnico, muito mais solto.55 David FIELDHOUSE, 1982.

    4 Nicholas CANNY e AnthonyPAGDEN, 1987; e PAGDEN, 1995.

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  • VERENA STOLKE

    18 Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006

    O principal objetivo da empresa colonial era semdvida lucro pessoal e riqueza nacional. Mas num tempoem que a religio era inseparvel da poltica, a IgrejaCatlica teve um papel to importante quanto o da Coroana formao da poltica colonial das Amricas portuguesae espanhola, e tambm nas relaes com os povosindgenas, at ento prtica ou totalmente desconhecidos,e com o contingente de escravos africanos que cresciade forma acelerada. Uma perspectiva transatlntica indispensvel para se compreender e levar em conta opadro scio-poltico que moldava esses novos tipos depovos, bem como o projeto poltico e econmico decolonizao e explorao de recursos humanos e naturaisnos novos territrios nos sculos que se seguiram conquista. Isso porque tal padro era o resultado de umainterao dinmica entre os princpios administrativosmetropolitanos e os valores espiritual-religiosos e sociaisrelativos a honra e hierarquia social, sustentados por ideaisde gnero relativos ao casamento e moralidade sexual.O cdigo moral universalista da Igreja Catlica, reforadopela Contra-Reforma, associou explicitamente virgindadee castidade femininas, honra familiar e proeminncia social,sempre de acordo com a doutrina religiosa da limpiezade sangre. Essa doutrina estruturou poltica, moral esimbolicamente as identidades e hierarquias sociais, bemcomo os seus modos de reproduo, mas tambmestabeleceu novos dilemas polticos e conceituais nasociedade colonial emergente. Para situar a questo degnero no contexto colonial portugus e espanhol, necessrio examinar uma dupla conexo scio-polticahistrica. A conquista americana no aconteceu numvcuo cultural histrico, mas ela deve muito ao passadocultural e social dos prprios colonizadores ibricos. E, porserem construtos scio-polticos, os esteretipos e asrelaes de gnero no podem ser dissociados doambiente scio-poltico e conceitual mais amplo em quese desenvolveram.

    O sexo da conquistaO sexo da conquistaO sexo da conquistaO sexo da conquistaO sexo da conquista

    Nos primeiros anos da conquista, colonos ibricos,oficiais da Coroa e at o clero se apropriaram de terrasindgenas, submeteram a populao local a trabalhosforados nas minas e a servios pessoais de vrios tipos,empenharam-se em colonizar suas mentes e sujeitarammulheres indgenas a todas as maneiras de abuso sexual,o que teve um enorme custo humano e social. Uma dasconseqncias disso foram os deslocamentos em massa eo dramtico declnio da populao indgena, resultantes

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006 19

    O ENIGMA DAS INTERSEES: CLASSE, RAA, SEXO, SEXUALIDADE

    da conquista militar, da disseminao de doenas trazidaspelos colonos e da fome, o que acabou por destruir asbases da organizao scioeconmica local. Outraconseqncia quase imediata da conquista foi amestiagem,6 resultado da explorao sexual feita peloscolonizadores. Em sua Nueva crnica y buen gobierno,relato mpar escrito no incio do sculo XVII a fim de chamara ateno do Rei Phill ip para a brutalidade e aincompetncia dos administradores, o etngrafo andinoGuamn Poma de Ayala, de pai espanhol e descendnciamaterna da nobreza inca, fornece uma descriodetalhada da organizao social, econmica e polticados Andes, enquanto denuncia a destruio queencomenderos, mineiros, administradores e o cleroespanhol estavam promovendo entre a populaoindgena. Os quatrocentos desenhos que ilustram a crnicaretratam cenas chocantes de abuso sexual e trabalhosforados de mulheres indgenas sob o jugo de oficiais daCoroa, colonos e missionrios.7

    No sculo XVII estava claro que o primeiro projetoda Coroa de estabelecer duas repblicas distintas, de ndiose de hispnicos, havia fracassado. Os contatos estreitosque resultaram da explorao da mo-de-obra, dosservios pessoais, e especialmente dos abusos sexuais demulheres indgenas e africanas pelos colonos europeus,produziram um nmero crescente de mestizos (filhos dehispnicos com ndias) e mulatos (filhos de hispnicos comafricanas). A sociedade colonial espanhola logo se tornouum confuso mosaico humano formado por desigualdadesscio-econmicas e legais e por diferenas tnicasperceptveis.

    Ao contrrio da Amrica espanhola, o Brasil foicolonizado de forma muito esparsa at o fim do sculoXVI, quando as fazendas de cana-de-acar,primeiramente no Nordeste, comearam a absorver umnmero crescente de escravos africanos. Logo em seguidacomea a explorao sexual de escravas, no incio aindapouco numerosas, por seus proprietrios. A capitania daBahia, ampla regio que circunscreve a Baa de Todos osSantos, dominada pela cidade de Salvador, capital dacolnia brasileira de 1549 a 1763, tornou-se a primeira emais importante regio de posse de escravos das Amricas.Em meados do sculo XVI as fazendas de cana emexpanso no Recncavo Baiano se tornaram um importanteterminal do trfico de escravos do Atlntico. A mudanado trabalho escravo de ndios para africanos teve razesno s econmicas como tambm geopolticas e culturais.Escravos africanos se firmaram como uma fora de trabalhomais produtiva, por estarem disponveis em abundncia e

    7 Rolena ADORNO e Ivan BOSERUP,2003; e Felipe Guaman POMA DEAYALA, 1980.

    6 inadequado o uso do termomiscigenao para a relaosexual entre colonos europeus ea populao indgena nos doisprimeiros sculos aps a conquistaporque, como mostro mais abaixo,a categoria moderna de raa,e portanto a idia da misturaracial a que a miscigenao serefere, s apareceram no incio dosculo XVIII.

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  • VERENA STOLKE

    20 Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006

    por se sujeitarem a uma disciplina rgida, enquanto arelativamente pequena populao indgena fugia muitofacilmente pela vastido da terra. No s escravos mastambm escravas trabalhavam nos moinhos de cana e noscampos, sempre sob vigilncia masculina, prestandotambm servios domsticos na casa-grande, onde setornavam presas das aventuras sexuais de seus senhores.8

    O retrato seminal, feito por Gilberto Freyre, da benevolnciapatriarcal dos senhores em relao a seus escravos,segundo a qual a explorao sexual de escravas porcolonos portugueses evidenciava uma surpreendenteausncia de preconceito, que distinguia o Brasil da Amricaespanhola colonial, acabou se mostrando uma falcia.9

    No Brasil, de forma semelhante ao que aconteceu naAmrica espanhola, a populao em veloz crescimentode mulatos correspondia na sua maioria a filhos defazendeiros da cana-de-acar; estes engravidavam suasescravas domsticas, raramente se mostrando dispostos alegitim-las pelo casamento. Como apontou Roger Bastide,raa implicava sexo. Quando a mestiagem acontecedentro do casamento ela de fato indica ausncia depreconceito. Mas do modo como a mestiagem ocorreuno Brasil, ela transformou toda uma raa em prostitutas.10

    Antecedentes metropolitanosAntecedentes metropolitanosAntecedentes metropolitanosAntecedentes metropolitanosAntecedentes metropolitanos

    Misturas tnicas no eram novidade para oscolonizadores portugueses e espanhis. A descoberta doNovo Mundo coincidiu com a queda da prevalnciamuulmana em Granada e com a converso compulsriaou a expulso de judeus e muulmanos, processo quearrematou a conquista crist e a unificao poltico-religiosada Espanha. Um sculo depois (1609-1614), os moriscos(muulmanos convertidos) foram igualmente expulsos.

    As inusitadas categorias scio-tnicas que surgiramdo encontro colonial entraram em contradio, no entanto,com os ideais medievais metropolitanos de honrarias,proeminncias e discriminaes sociais tpicas da vidacorporativa. A diferena cultural-moral dos indgenasdesafiou as certezas cosmolgicas e teolgicas dosadministradores das colnias, e os filhos misturados doscolonos estabeleceram novos dilemas legais, polticos ereligiosos. Primeiro os colonizadores empregaram noesculturais da metrpole para entender a realidadeamericana. Com o tempo, aquela dinmica social semprecedentes da sociedade colonial modificou noesmetropolitanas de nobreza, honra social e hierarquia, famliae moralidade sexual.1111 SCHWARTZ e Frank SALOMON,

    1999.

    10 BASTIDE, 1959, p. 10-11.

    9 FREYRE, 1933; e SCHWARTZ,1985.

    8 Stuart SCHWARTZ, 1985.

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006 21

    O ENIGMA DAS INTERSEES: CLASSE, RAA, SEXO, SEXUALIDADE

    Limpieza de sangreLimpieza de sangreLimpieza de sangreLimpieza de sangreLimpieza de sangre sangue de gnero sangue de gnero sangue de gnero sangue de gnero sangue de gnero

    A doutrina teolgica da limpieza de sangre, queestruturou a sociedade ibrica dos fins da Idade Mdia,tinha uma posio central entre os valores scio-culturaismetropolitanos. A noo da limpieza de sangre ganhavaforma a partir da ideologia genealgica que fundamentavao status e as honrarias sociais no nascimento legtimo comoprova de sangue puro, garantido pelo controle doshomens sobre a pureza sexual das mulheres, para assegurarsua virgindade antes do casamento e a castidade depois.A linguagem da limpieza de sangre prevaleceu nasAmricas coloniais portuguesa e espanhola seguramenteat o sculo XIX. Seu sentido simblico na sociedadecolonial comeou a mudar radicalmente, porm, j nosculo XVIII. Muito j foi escrito sobre a aplicao dosestatutos de pureza de sangue pela Inquisio espanholae sobre o ambiente de desconfiana e apreenso que asinvestigaes genealgicas provocaram na PennsulaIbrica.12 Muito menos, porm, se conhece quanto sorigens e ao sentido simblico da lipieza de sangre.

    A doutrina ibrica da limpieza de sangre era algosui generis na Europa no fim da Idade Mdia; trata-se dosistema normativo legal e simblico que possibilitou ocombate a crimes contra a cristandade (os principais sendoo judasmo e o islamismo), introduzido na Pennsula noalvorecer da modernidade. A pureza de sangue eraentendida como a qualidade de no ter como ancestralum mouro, um judeu, um hertico ou um penitenciado(condenado pela Inquisio). As atitudes, justificaes epolticas de incluso e excluso tpicas desse final de IdadeMdia foram definidas em termos religioso-culturais, relativosno s lei cannica como tambm prpria vontadede Deus, o sangue puro autenticando uma f crist genunae inabalvel. A oposio entre pureza e impureza, que noprevia gradao de pureza espiritual, referia-se aqualidades morais. O sangue impuro era entendido comoaquele que carregava a mancha indelvel dadescendncia dos judeus, que mataram Jesus Cristo, e dosmuulmanos, que se recusaram a reconhec-lo como filhode Deus. O sangue era, portanto, concebido como umveculo de pureza da f, que transmitia vcios e virtudesreligioso-morais de uma gerao para outra.13 A purezado sangue era avaliada atravs de investigaesgenealgicas que procuravam determinar a f religiosanum contexto em que o catolicismo, considerado a nicaf verdadeira, era concebido como a origem suprema dosignificado e do conhecimento da ordem da sociedade edo universo. Uma verdadeira obsesso com a genealogia

    12 Albert SICROFF, 1979; MartaSANGUINETTI, 2000, p. 106; eJean-Paul ZIGA, 1999.

    13 ZIGA, 1999, p. 429-434.

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  • VERENA STOLKE

    22 Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006

    enquanto prova da descendncia de ancestrais cristosatravs das geraes imps um nus especial condutasexual das mulheres crists como garantia de origem purae legtima.

    A Inquisio espanhola, como a nica Corte comjurisdio sobre a limpieza de sangre, fazia a mediaoentre os tericos da excluso e o povo, popularizando aidia de que todos os convertidos eram suspeitos. AInquisio foi criada por uma bula promulgada pelo papaSisto IV em 1478, autorizando os monarcas catlicos anomear padres para investigar e punir os herticos,especialmente os convertidos suspeitos de prticaclandestina do judasmo.14

    J em 1348 as leis espanholas Las Siete Partidashaviam declarado os judeus como uma naoestrangeira. A esse estigma seguiram-se vrias leis querevelavam a crescente animosidade aos judeus, como emtoda a Europa. At o sculo XIV judeus e muulmanos viviampacificamente na Pennsula Ibrica, geralmente em estreitaassociao com a Corte e com a nobreza. Mas ento umaonda de ataques s juderas (bairros judeus) e de massacressangrentos de judeus comeou a se espalhar por Castela,Arago, Catalunha, Valncia e Sevilha, em meio a novastenses polticas entre nobres e membros da Corte.15 Paraescapar da perseguio, da perda de propriedade e atda morte, os judeus se viram obrigados, ou a se converterao cristianismo, ou a procurar refgio em Portugal, onde aatmosfera em relao aos judeus era menos repressiva.Em 1449, aps uma nova revolta popular, o primeiro estatutode pureza de sangue foi adotado pelo Conclio de Toledo.Dessa vez a ira popular foi dirigida contra cristos novos(judeus convertidos) abastados, cujas propriedades foramconfiscadas. Considera-se que essa revolta foi detonadapor um novo e pesado imposto cobrado pela Coroa, quealegou ter sido levada a isso por um mercador convertidomuito influente. Em 1536 um ramo portugus da Inquisiofoi fundado e passou a perseguir judeus convertidos aocristianismo.

    Provas de sangue comearam a ser exigidas, demodo que qualquer cargo civil, eclesistico ou militar comalguma distino social ficava restrito a cristos velhos.Alianas via matrimnio entre cristos velhos e cristos novoseram um meio para os ltimos adquirirem status socialdisfarando suas origens. Os estatutos da limpieza desangre exigiam tambm dos cristos a apresentao daprova de sangue para poderem se casar. A Inquisio, noentanto, podia cancelar as autorizaes de casamentosempre que o passado das famlias envolvidas dessemargem a dvidas. Conseqentemente, qualquer pessoa

    14 Henry KAMEN, 1985; e CharlesBOXER, 1978.

    15 David NIRENBERG, 2001.

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006 23

    O ENIGMA DAS INTERSEES: CLASSE, RAA, SEXO, SEXUALIDADE

    nascida fora do casamento se tornava suspeita deimpureza.16

    Obedecendo aos preceitos cristos, a conversoao catolicismo, tido como a nica verdadeira f, poderiaapagar a mancha que estivera impressa nos no-crentes.Atravs do batismo, judeus e muulmanos poderiamequivaler aos gentios.17 Esses gentios eram entendidos nocomo pagos, mas como genunos nefitos, por terem sidoignorantes em relao s leis de Deus at a converso.

    Os estatutos da l impieza de sangre nopermaneceram livres de contestao. Os conflitos entreoficiais da Inquisio, e tambm entre as elites, sobre aaplicao dos estatutos eram intensos, porque a nobreza,tanto quanto as pessoas comuns, costumava antes realizarseus casamentos tambm com muulmanos e judeus; oscristos velhos genunos acabaram assim se tornando muitoraros. No sculo XVII, os desastrosos efeitos polticos dasinvestigaes sobre a pureza de sangue para a unidadepoltico-religioso-nacional do imprio espanhol eram cadavez mais evidentes para muitos pensadores. Os opositoresalertavam sobre as conseqncias econmicas edemogrficas negativas dos estatutos, j que um grandenmero de convertidos fugia da Pennsula. Elescondenavam os estatutos de limpieza de sangre porconsider-los contrrios lei civil ou cannica, e tambm tradio bblica, ao negarem aos convertidos o benefcioda redeno pela purificao do batismo. As opiniesentraram em choque: a pureza de sangue seria umaquesto de prtica religiosa ou se referiria a algum tipo detrao inato, essencial? Apesar dessa discusso, no entanto,tornou-se impossvel para a Espanha se livrar daquilo quese tornou uma ansiedade obsessiva relativa a honrarias edistines sociais, intensificando as preocupaes com ocasamento, com a legitimidade e conseqentemente como controle sobre os corpos das mulheres.18

    A Inquisio espanhola estava em seu apogeu nosculo XVII. Em Portugal, o Santo Ofcio foi dissolvido emmeados do sculo XVIII, e a distino entre cristos velhose novos foi abolida em 1773 pelas reformas pombalinas.Na Espanha dos Bourbons, a Inquisio sobreviveu at oincio do sculo XIX, quando tambm as provas de sanguedeixaram de ser exigidas para o casamento.

    VVVVVelhas idias no Novo Mundoelhas idias no Novo Mundoelhas idias no Novo Mundoelhas idias no Novo Mundoelhas idias no Novo Mundo

    As repercusses das idias metropolitanas de purezade sangue no mundo colonial so mais bem docu-mentadas nas colnias espanholas do que no Brasil,embora a preocupao com a limpieza de sangre tenha

    16 Maria Luiza CARNEIRO, 1988, p.99.

    17 Diaz de Montalvo, citado porKAMEN, 1985, p. 158.

    18 SICROFF, 1979, p. 259-342.

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  • VERENA STOLKE

    24 Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006

    sido parte do cotidiano em ambos os imprios coloniais.De qualquer forma, a Inquisio portuguesa nuncaestabeleceu um tribunal em sua colnia; apenas enviavacomissrios em visitas ocasionais.19 Desde o incio, nem aEspanha nem Portugal permitiram a mouros, judeus, seusfilhos, ciganos, nem [a] qualquer pessoa em desacordocom a Igreja que passasse pelas ndias Ocidentais, emboraum nmero no conhecido de cristos novos tenha de fatoido para a Amrica. Estes foram particularmente para oBrasil, onde encontraram uma discriminao prevista emlei, porm mais amena na prtica, tendo assim maioreschances de passar como cristos velhos e ascender naescala social.20

    Nas colnias ibricas, a doutrina da limpieza desangre permaneceu se referindo a uma qualidade cultural-religiosa at o sculo XVIII. Estudiosos das sociedadescoloniais portuguesa e espanhola tenderam, no entanto,a interpretar a limpieza de sangre como uma ideologiada pureza racial e da excluso desde o incio dacolonizao, sendo os termos raa, etnia e identidadetnica intercambiveis em boa parte da literatura doimprio.21 Na Amrica espanhola a obsesso com a purezade sangue esteve em seu apogeu no sculo XVIII, quandofinalmente sofreu uma importante mudana de significado,precisamente quando estava perdendo fora nametrpole, onde a intensificao do poder real, oracionalismo e as polticas anticlericais, em Lisboa e Madri,colaboraram, depois de 1750, para reduzir o poder e ainfluncia da Inquisio.22

    Em suas anlises dos sistemas de classificao eestratificao social na sociedade colonial emdesenvolvimento, e suas implicaes sobre o gnero,alguns pesquisadores tm privilegiado a raa e/ou a classesocial como princpio estruturador dominante.23 Quanto aisso, reveladora a recente anlise que Ann Twinam24 fezde peties de legitimao do sculo XVIII, dirigidas administrao colonial, em seu estudo sobre a dinmicadas honras sociais, casamento, legitimidade e gnero naAmrica colonial espanhola. Pessoas de nascimentoilegtimo sofriam discriminao social por conta dasincertezas que cercavam sua limpieza de sangre. Twinamteve o grande mrito de prestar ateno aos precedentesmetropolitanos das noes coloniais de identificao ehonra social. Ela indica que no sculo XVIII o elo entrel impieza, legitimidade e honra era plenamenteinstitucionalizado, j que as tradies discriminatrias dahistria espanhola haviam sido absorvidas.25 Mesmo assim,ela no deixa claro o sentido que o sangue tinha a essaaltura na sociedade colonial. Ela na verdade usa as noes

    19 BOXER, 1978, p. 85.

    20 CARNEIRO, 1988, p. 195 et seq.

    21 Kamen sugere igualmente paraa Pennsula Ibrica que aquilo quecomeou como discriminaoreligiosa e cultural se transformou,em meados do sculo XVI, emuma doutrina racista do pecadooriginal da mais repulsiva espcie(KAMEN, 1985, p. 158).

    23 Susan SOCOLOW, 1978; SilviaARROM, 1985; SOCOLOW, 1987;Irene SILVERBLATT, 1987; PatriciaSEED, 1988; Asuncin LAVRIN,1989; Guiomar DUEAS VARGAS,1996; e Mara Imelda RAMIREZ,2000.24 TWINAM, 1999.

    25 TWINAM, 1999, p. 47.

    22 BOXER, 1978, p. 92.

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006 25

    O ENIGMA DAS INTERSEES: CLASSE, RAA, SEXO, SEXUALIDADE

    de raa e de limpieza de sangre indistintamente, comoacontece quando afirma que os estatutos de pureza desangue impediam os ilegtimos e os de raa mista deassumirem cargos na Espanha, j nos fins da IdadeMdia.26 Patricia Seed,27 ao contrrio, mostra que no Vice-Reinado do Mxico, nos dois primeiros sculos aps aconquista, a oposio pr-nupcial dos pais ocorriapredominantemente entre grupos de hispnicos e crioulosscio-economicamente prximos, por motivos de sade,enquanto a limpieza de sangre no era questo prpria auma sociedade estruturada pela raa. S no fim do sculoXVIII, quando a legislao real exigiu explicitamente a provada limpieza de sangre para que a oposio dos pais aocasamento se efetivasse, os motivos para a disputa eram,a sim, a disparidade racial.28 Nos anos 1980, em mais umacontrovrsia sobre a estrutura social colonial, defensoresda viso tradicional de que a identidade tnicacondicionava o posicionamento social do indivduo nosltimos tempos da sociedade colonial criticaramhistoriadores que, como Seed, sustentavam que classe teriase tornado, na poca, to ou mais importante que raa.29

    Schwartz e Salomon, assim como Ziga, sonotveis excees a essa tendncia a-histrica geral deinterpretar a doutrina da limpieza de sangre comoideologia racial. Eles insistiram, com razo, em afirmar que,nos primeiros tempos da era colonial, o uso da linguagemgenealgica de sangue e nascimento para definirfronteiras sociais precisa ser diferenciado do racismomoderno, que s apareceu no sculo XVIII.30

    Por uma srie de razes, nada h de trivial nacompreenso dos sentidos simblicos das categorias deposicionamento social que se desenvolveram na sociedadecolonial ibrica sobre o pano de fundo de seus precedentesmetropolitanos. Primeiro porque a anlise histrica corre orisco do anacronismo ao aplicar ao passado sentidosculturais do presente. As categorias de posicionamento queeu examinei no s possibilitavam a identificao e otratamento da populao indgena e dos escravosafricanos, junto com seus filhos misturados, e no slimitavam suas chances de ascenso social de formapeculiar. Elas tinham tambm conseqncias imediataspara as relaes de gnero. Conforme argumentareiabaixo, na sociedade colonial ibrica durante os doisprimeiros sculos aps a conquista, a doutrina da limpiezade sangre era uma forma cultural-religiosa deposicionamento social e de discriminao. Isso no tornaa hierarquia de honrarias da poca nem melhor nem pior,em termos morais, do que o racismo, mas pe em destaqueseu contexto histrico especfico. Mesmo quando

    26 TWINAM, 1999, p. 47, grifo meu.27 SEED, 1988.

    28 SEED, 1988, p. 330; e DaisyARDANAZ, 1977.

    29 Juan Carlos GARAVAGLIA e JuanCarlos GROSSO, 1994, p. 39-42;e ARROM, 1985.

    30 SCHWARTZ e SALOMON, 1999,p. 443-478; SCHWARTZ, 1995; eZIGA, 1999.

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  • VERENA STOLKE

    26 Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006

    pesquisadores usam o controverso termo raa num sentidomais descritivo do que analtico, isso se torna historicamentetemerrio por esquivar a questo fundamental sobre comoos povos da Amrica entendiam a identidade e a exclusosocial de sua prpria poca.

    Segundo porque os modos de classificao eidentificao social que estruturam uma sociedadedeterminam tambm a forma pela qual sua reproduosocial organizada; o sentido simblico com o qual alimpieza de sangre era estabelecida determinava amaneira pela qual as concepes e as relaes entrehomens e mulheres eram construdas scio-politicamente.Como mostrarei abaixo, sempre que o status social tempor base o nascimento, o sangue, ou seja, adescendncia, em vez de mritos ou aquisies scio-econmicas individuais, o que se torna decisivo para oshomens em suas disputas por honrarias sociais so asmulheres e o controle de sua sexualidade. S as mulheres,afinal, poderiam, nessas circunstncias, certificar que onascimento era legtimo. Como diz o velho adgio, matersemper certa est. Finalmente, interpretar como racistaqualquer ideologia que fundamenta qualidade e statussocial no nascimento, na genealogia, na linhagem ou nadescendncia nos levaria, em ltima anlise, insustentvelconcluso de que todas as sociedades pr-modernas,incluindo aquelas tradicionalmente estudadas porantroplogos, eram organizadas de acordo com a raa.31

    Os novos povos da AmricaOs novos povos da AmricaOs novos povos da AmricaOs novos povos da AmricaOs novos povos da Amrica

    Idias ibricas e ideais de posicionamento socialeram, no entanto, quase imediatamente desafiados noNovo Mundo. Ao contrrio do que acontecia na PennsulaIbrica, nas colnias americanas o jogo entre a metafsicado sangue e as funes scio-econmicas promoveramuma gradao das posies sociais em vrios nveis, aoinvs de uma polaridade estrita entre status social puro ouimpuro.

    Os povos indgenas no se encaixaram facilmenteno esquema classificatrio cultural-religioso da limpieza desangre e muito menos os filhos misturados dos colonos. Osndios eram formalmente considerados vassalos da Coroa,mas se distinguiam dos conquistadores e colonos espanhisem sua conduta moral e em sua crena, sistemas queconflitavam com preceitos religioso-morais cristos. J nosculo XVI a Igreja e as Coroas ibricas proibiram aescravizao de ndios, uma nova categoria inventadapelos colonizadores. Sendo ignorantes em relao sescrituras sagradas, eles eram vistos como menores

    31 NIRENBERG, 2000, p. 42; eSCHWARTZ, 1995, p. 189.

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006 27

    O ENIGMA DAS INTERSEES: CLASSE, RAA, SEXO, SEXUALIDADE

    dependentes, mais ou menos como as mulheres, quedependiam da proteo e da orientao, ou seja, docontrole, de seus homens. As almas pequeas dos ndiosprecisavam da tutela da Coroa e da Igreja, que se tornavamresponsveis por instru-los na nica verdadeira f.32

    Em termos legais, os povos originais da Amricaespanhola e seus descendentes desfrutaram da qualidadede gentios conferida a eles pela Coroa. Como estabeleceuum decreto real em 1697, sua pureza de sangue [...] semmistura ou infeco de outro grupo repudiado reservava-lhes todas as prerrogativas, dignidades e honras desfrutadasna Espanha por aqueles que tinham sangue puro. Asescolas deveriam se estabelecer para ensin-los a lnguacastelhana, e eles deveriam ser evangelizados.33 O fentipoera irrelevante na poca para definir a posio social. Oque importava eram crenas religiosas e condutas morais.S os ndios que se recusavam a se converter ao cristianismotinham sangue impuro, podendo ento ser escravizados.

    No Brasil, o status formal da populao indgena menos claro na pesquisa acadmica disponvel. No Brasilportugus, os ndios parecem no ter recebido a atenoque seus irmos receberam na Amrica colonial espanhola,possivelmente porque, com o aumento do trfico deescravos, sua importncia como fora de trabalho empotencial declinou muito mais cedo do que no caso deescravos africanos. Inicialmente a Coroa e a Igrejaprotegeram-nos da escravido, mas num determinadomomento eles se tornaram um obstculo expanso dafronteira agro-pastoril, o que os condenou ao extermnio.No Brasil, o preconceito de sangue pesava sobre judeus,mulatos, negros e mouros. Os inquisidores no se davamao trabalho de investigar antecedentes de ndios ecaboclos (descendentes de ndios e portugueses), j queeram considerados pessoas absolutamente primitivas,frgeis e infantis. A preocupao com o sangue negro,no entanto, era intensa.34

    Na prtica, a populao indgena e o significativogrupo intermedirio de mestios na Amrica espanholacolonial eram, no entanto, economicamente desprivi-legiados e socialmente discriminados at o fim do sculoXVI. Sua igualdade formal em relao aos hispnicos noevitou que suas terras lhes fossem brutalmente arrancadas,nem que eles acabassem concentrados em povoadosindgenas (pueblos de indios) para serem mais facilmentedisciplinados e explorados como fora de trabalho. Aindaassim eles eram livres. Depois de uma fase de apreenso,a Coroa permitiu casamentos entre ndios e tambmaceitou que hispnicos e seus descendentes se casassemcom ndios e mestios, ainda que fosse para reverter o

    32 PAGDEN, 1982; e GeorgesGUSDORF, 1972.

    33 Richard KONETZKE, 1962, III, 1,p. 66-69 e 21. Ao contrrio dalegislao que regulava direitose deveres dos africanos, que ato sculo XVIII foi extraordi-nariamente repetitiva e escassa,as leis referentes aos ndios eramabundantes. Por exemplo, aCoroa insistia sempre, como em1734, que todas as distines ehonrarias (sejam elas ecle-sisticas ou seculares) atribudasa castelhanos nobres sero ofere-cidas a todos os caciques e seusdescendentes; e a todos os ndiosmenos ilustres e a seus descen-dentes que sejam limpios desangre, sem mistura ou [infeco]de um grupo condenado [...] epor essas determinaes reaiseles passam a ser qualificadospor Sua Graa para qualqueremprego honorfico (KONETZKE,1962, III, 1, p. 217).

    34 CARNEIRO, 1988, p. 216 e 220;e SCHWARTZ, 1996, p. 21.

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  • VERENA STOLKE

    28 Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006

    dramtico declnio das populaes indgenas.35 Na maioriadas vezes, porm, a mestiagem foi resultadopredominantemente de sexo casual ou unies extra-conjugais de espanhis, que em geral no se viam muitoinclinados a se casar com ndias. Como diz um provrbiocolombiano: la palabra de mestizo se entiende deilegtimo (o termo mestio significa nascimento ilegtimo).36

    Embora os mestios derivassem de duas naes puras ecastas, eles eram desdenhados, tornando-se tambmprogressivamente inelegveis para o sacerdcio e para otrabalho pblico honorrio.37 E na segunda metade dosculo XVI eles perderam tambm seus direitos polticos, jque sua lealdade era dividida entre seus pais, geralmenteencomenderos, a quem deviam suceder no comando dasterras, e seus parentes ndios, cujas rebelies algunsmestios apoiavam ou mesmo lideravam.

    O status poltico-cultural de escravos africanos nasociedade colonial tambm se define a partir deprecedentes da metrpole. Mas em contraste com o queaconteceu com os ndios, a escravizao de africanos eraencarada como perfeitamente legtima. Os africanostrazidos ao Novo Mundo como escravos, e seusdescendentes, eram vistos como genuinamente impuros einfectados, por carregarem o peso da horrvel manchado vil nascimento como zambos, mulatos e outras castaspiores, com as quais homens da esfera intermediria ficamenvergonhados de se misturar.38 Enquanto o sangueespanhol era tido como prevalente sobre o sangue ndioaps trs geraes de mestiagem, a mancha do sanguenegro era considerada indelvel.39

    Na Amrica espanhola colonial, o princpio delimpieza de sangre identificava os escravos negros, e todosaqueles suspeitos de descender deles, e os separava doresto da populao. Sangue negro significava sangueimpuro, correspondente a uma contaminao indelveldos africanos que, de acordo com idias de Aristtelesassumidas por europeus, eram inaceitveis na pulitia, ouseja, na civilizao, porque eles descendiam dos africanosnegros brbaros da Guin. Uma fisionomia negra ou mulataera o sinal visvel dessa herana genealgica brbara emtermos culturais e morais.

    Ainda que isso seja pouco conhecido, a escravidofoi parte da sociedade espanhola do sculo XVI,especialmente na Andaluzia.40 Pensadores contempo-rneos, polticos e a Igreja, em Portugal e na Espanha, nosentiram qualquer desconforto moral em relao escravizao de africanos negros, nenhum delesquestionou a justificao aristotlica de sua escravidonatural, ao contrrio do que aconteceu com a escravido

    35 ARDANAZ, 1977, p. 230-236.36 DUEAS VARGAS, 1996, p. 54.37 Henry MCHOULAN, 1981, p. 58.38 KONETZKE, 1962, III, 1, p. 185 e107. A palavra casta, hojeassociada ao sistema de castasindiano, foi introduzida no sul dasia como um conceito ibricoreferente a pessoas definidaspelo sangue. Na Amricaespanhola, casta primeiroindicava o contorno natural dasdesigualdades de poder e destatus entre os colonizadoresespanhis, os ndios e os escravosafricanos. Mas com o tempo, acasta se transformou num termogenrico referente amplacoorte das pessoas misturadas(SCHWARTZ e SALOMON, 1999, p.444).39 KATZEW, 1996, p. 11-12. Katzewcita o seguinte trecho da Ideacompendiosa del Reyno deNueva Espaa (1774), de PedroAlonso OCrouley: [...] lascalidades y linajes de que estascastas se originan; son espaol,indio y negro, sabido es que deestas dos ltimas ninguna disputaal espaol la dignidad yestimacin, ni alguna de lasdems quiere ceder a la delnegro, que es la ms abatida ydespreciada [...] Si el compuestoes nacido de espaol e indio salela mancha al tercer grado,porque se regula que de espaole indio sale mestizo, de ste yespaol castizo, y de ste yespaol sale ya espaol [...]porque se encuentra que deespaol y negro nace el mulato,de ste y espaol morisco, deste y espaol tornatrs, de stey espaol tenteenelaire, que eslo mismo que mulato, y por estose dice y con razn que el mulatono sale del mixto, y antes biencomo que se pierde la porcinde espaol y se liquida encarcter de negro, o poco menosque es mulato. Por lo querespecta a la confeccin denegro e indio sucede lo mismo;de negro e indio, lobo: de ste eindio chino, de ste e indioalbarazado, y todos tiran amulato (KATZEW, 1996, p. 109).40 Aurelia MARTN CASARES, 2000.

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006 29

    O ENIGMA DAS INTERSEES: CLASSE, RAA, SEXO, SEXUALIDADE

    de ndios, que provocou calorosas discusses na Pennsula,em nome de uma imaturidade racional indgena que osseus senhores ajudariam a superar.

    Os portugueses dominaram o trfico de escravos paraa Pennsula Ibrica, que recebeu as primeiras cargas dessecontingente em meados do sculo XV. A maioria dos escravosimportados, por exemplo, para Granada durante a primeirametade do sculo XVI veio da regio ento conhecida comoGuin, que compreendia toda a regio que hoje incluiSenegal, Gmbia, Guin Bissau, Repblica da Guin, partede Mali e Burkina Fasso. Houve tambm escravos berberesmuulmanos capturados por piratas espanhis no norte dafrica. E quando os mouros (muulmanos convertidos) serebelaram na noite de Natal de 1568, 70 anos depois daconquista de Granada pelos cristos, eles tambm setornaram aptos a serem escravizados porque, como o Nnciode Madri escreveu na poca, mesmo batizados eles somais muulmanos do que seus irmos norte-africanos.41 Nosculo XVI a escravido atingiu o pice, com os escravos,na maioria mulheres empregadas em servios domsticos,totalizando 14% da populao de Granada. Os senhoresexploravam suas escravas sexualmente, mas em grau menordo que era comum nas Amricas coloniais. Aos olhos doscontemporneos, no existia casta mais baixa do que ados negros escravos vindos da Guin. Traficantes portuguesesde escravos, em Luanda por exemplo, consideravam osescravos africanos negros como brutos desprovidos decompreenso inteligente e quase, pode-se dizer, seresirracionais.42 Escravos do norte da frica, muulmanosafricanos, tiveram o duvidoso benefcio de pertencer cultura muulmana, que era desprezada aindaque considerada como algo superior em relao aosescravos que vinham da Guin. Escravos negros libertos,negros nascidos livres ou mulatos traziam a mancha de suadescendncia de escravos brbaros. Na viso popular, acor escura de suas peles revelava esse carter culturalmanchado. O nmero de escravos em Granada s decaiua partir do sculo XVIII, poca em que escravos africanosforam ficando cada vez mais numerosos nas plantations dascolnias caribenhas, da Nova Espanha, da costa do Peru eda Colmbia; nessa poca sua importncia econmicacrescia, e a categoria moderna de raa comeava a seestabelecer.

    A moralidade sexual da honra social e doA moralidade sexual da honra social e doA moralidade sexual da honra social e doA moralidade sexual da honra social e doA moralidade sexual da honra social e docasamentocasamentocasamentocasamentocasamento

    O sistema de identificao e classificao socialdesenvolvido na sociedade colonial marcou as relaes

    42 Citado por BOXER, 1963, p. 29.

    41 MARTIN CASARES, 2000, p. 176.

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  • VERENA STOLKE

    30 Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006

    de gnero e a experincia das mulheres. Eu venho insistindoem que, durante os dois primeiros sculos depois daconquista, a limpieza de sangre se referiu mais a qualidadescultural-morais do que a qualidades raciais, j que acategoria moderna de raa foi introduzida apenas no inciodo sculo XIX. Fragilidades culturais e morais podiam serremediadas pela educao. Posteriormente, autoridadesno estudo das raas previam que nenhuma melhoria socialpoderia ser garantida pelo chamado branqueamento.Ainda assim, esses princpios conceitualmente distintos declassificao social tinham em comum que ambosatribuam o status scio-poltico genealogia. A hierarquiasocial era baseada em linhas de descendncia, emborao que se pensava ser transmitido pelo sangue tenhamudado de uma conduta moral-religiosa remedivel paradistines sociais inatas, devidas a manchas indelveis.

    Justamente por se acreditar que a posio socialera determinada precipuamente pela origem genealgica,a norma reprodutiva na sociedade colonial ibrica era ocasamento endogmico entre pessoas de mesmo statussocial. Zelando pela garantia da honra social associada pureza de sangue, as elites coloniais aspiravam casar-seentre si para assegurar a pureza social condicionada aonascimento legtimo de sua prole. Sob tais circunstncias,as ordens inferiores dificilmente poderiam se casar de outraforma. Relaes sexuais entre parceiros de status sociaisdistintos no raro aconteciam fora do casamento. Os filhosilegtimos eram excludos das honrarias sociais doascendente mais bem colocado, normalmente o pai, eento eram criados em casas comandadas pelas mes,de status mais baixo. As elites coloniais reproduziam ocdigo de honra metropolitano, em que a busca por purezadependia daquela moralidade sexual em que a virgindadee a castidade das mulheres apareciam como o valor maior,adaptando tal cdigo ao novo ambiente colonial. Esse eloentre pureza social e virtude sexual feminina era claro numaideologia de gnero que atribua aos homens o direito e aresponsabilidade de controlar os corpos e a sexualidadede suas mulheres. Isso era assim precisamente porque ovalor social de um indivduo, em vez de ser algo adquiridoatravs de aes ou comportamentos, dependiaprimordialmente de seus antecedentes genealgicos. Oshomens podiam obter honrarias sociais atravs de feitoshericos, mas eles precisavam seguir o cdigo de honrapara no perd-las depois, enquanto as mulheres podiamapenas perder sua honra ou virtude.

    O sistema de parentesco da Pennsula Ibrica e daAmrica colonial era bilateral, com as crianas definindosua descendncia tanto pelo pai quanto pela me, alm

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006 31

    O ENIGMA DAS INTERSEES: CLASSE, RAA, SEXO, SEXUALIDADE

    de ser compreendido como relacionado a parentesconsangneos de ambos os ascendentes na mesmamedida. Por ser a origem genealgica traadabilateralmente, o casamento entre pessoas socialmenteequivalentes teve esse papel central na perpetuao dashonrarias sociais. No caso de filhos de unies mistas, noentanto, era sempre o ascendente inferior, independen-temente do sexo, que determinava o status da criana.Como vou mostrar mais abaixo, dada a importnciaatribuda virtude sexual das mulheres para a honra familiar,era inconcebvel a uma mulher da elite se casar, e muitopior, manter uma unio sexual com um homem de purezasocial inferior, porque isso poderia contaminar toda suafamlia. Assim, encontros sexuais mistos eram normalmentehipergmicos (entre homem de classe alta e mulher destatus inferior).

    preciso destacar, entretanto, que, apesar do pesosocial da genealogia na determinao do status social, asociedade colonial nunca teve uma ordem hierrquicaimpermevel e fechada. No sculo XVIII, as sociedadescoloniais portuguesa e espanhola se tornaram umacomplexa e fluida gradao de desigualdades resultadodo jogo entre raa e critrio moderno de classe. Osurpreendente aumento no nmero de peties delegitimao oficial Coroa, particularmente no Caribe eno norte da Amrica do Sul, reflete a intensa preocupaoda elite com a genealogia e com a pureza sangnea,especialmente nas regies onde o nmero de escravosafricanos ainda crescia no fim do sculo XVIII. Casamentoe nascimento legtimos no eram apenas provas daqualidade moral dos ascendentes. A pureza do sangueadquiriu nova relevncia porque os filhos no puros deunies sexuais espordicas e da concubinagem deeuropeus e crioulos com mulheres ndias ou mestias, ouainda com aquelas de descendncia africana, borraramas fronteiras visveis de grupo, num tempo em que o fentipose tornou um indicador importante de qualidade social. Asaspiraes desses filhos misturados ascenso social eramvistas pelas elites como ameaas a sua proeminncia sociale a seus privilgios.43 Mais do que nunca, o nascimentoilegtimo era sinal de infmia, mancha e defeito, comodeclarou um decreto real de legitimao de 1780.44

    Os cuadros de castas produzidos nos anos 1780,predominantemente na Nova Espanha (Mxico), porpintores do cotidiano so sintomticos das agudassensibilidades sociais que trs sculos de mestiagem, emvez de diminuir, serviram s para intensificar. Esses quadrosaparecem normalmente em conjuntos de dezesseis, cadaum retratando um casal com cores de pele e fisionomias

    44 KONETZKE, 1962, III, 2, p. 173.

    43 TWINAM, 1999, p. 258-260.

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  • VERENA STOLKE

    32 Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006

    diferentes, acompanhados de um filho misturado. Essesquadros no apresentam, primeira vista, taxonomiasscio-raciais, mas representam processos de reproduoscio-racial ao documentar mltiplas formas deestabelecimento de misturas coloniais. Os quadrosmostram meticulosamente o grande leque de matizes,texturas de cabelo, vestidos e at condutas morais que oscontemporneos percebiam em meio ao grande nmerode povos de sangue misturado, sugerindo assim acrescente instabilidade social da colnia no que diz respeitoa sua fluidez scio-racial.45 nesse contexto da fluidez sociale da instabilidade que a linguagem da limpieza de sangreobtm nova relevncia, perdendo sua conotao religioso-moral prvia e adquirindo um sentido racial.

    Para dar conta da mudana no sentido simblicoda pureza de sangue para esse sentido racial, e tambmda fluidez crescente da sociedade colonial, temos quenovamente voltar os olhos para a Europa. Ali, adisseminao do individualismo moderno queacompanhou o declnio da monarquia fez surgir novasteorias sobre como os indivduos devem ser agrupadosde acordo com seus aspectos naturais.46 O advento dafilosofia natural experimental na Europa do fim do sculoXVII buscou descobrir as leis naturais que governavam acondio humana e abandonou a ontologia teolgicaanterior. Depois da publicao de trabalhos de William Petty,Edward Tyson e Carl Linnaeus sobre a ordem da natureza,a humanidade deixou de ser um todo perfeito criado porDeus e passou a ser dividida entre dois, trs, talvez mais,graus em potencial de seres humanos, ou seja, raas. Apreocupao dos naturalistas era com seres humanosenquanto criaturas fsicas e enquanto membros desociedades organizadas. A nfase no recaa mais sobrea unidade humana, mas sobre diferenas fsicas e culturais.O interesse em tipos plurais de seres humanos iria ressoarpor geraes atravs de tratados e volumes variados sobreteoria racial e social.47

    Um artigo annimo publicado no Journal desSavants, na Frana, em 1684, percebe um dos primeirosusos do conceito de raa num sentido que se aproxima deseu significado moderno. Seu autor distinguia quatro oucinco espcies ou raas de homens, diferenciadas atravsde caractersticas antropolgicas, sendo cruciais entre estasa cor da pele e o habitat geogrfico, embora o autorhesitasse em conceber ndios americanos como uma raaseparada. O Journal de Savants estava entre os principaisperidicos europeus. O artigo era um sinal dos tempos.48

    Incidentalmente, essa nova noo de raa se desenvolveuparalelamente ao novo modelo bissexual, no qual o tero

    45 KATZEW, 1996; e SCHWARTZ eSALOMON, 1999, p. 493.

    46 Guillaumin citado por Ann LauraSTOLER, l995, p. 37.

    47 Margaret HODGEN, 1964, p. 418et seq.

    48 GUSDORF, 1972, p. 362-363.

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006 33

    O ENIGMA DAS INTERSEES: CLASSE, RAA, SEXO, SEXUALIDADE

    naturalmente torna a mulher fadada maternidade e vida domstica.49 difcil dizer exatamente quando essanoo de raa foi transposta para o Novo Mundo, masno h dvida de que ela o foi, principalmente devido intensa ansiedade das elites coloniais em relao purezagenealgica. Apesar do novo sentido racial, a linguagemda qualidade menos palpvel da pureza de sanguepersistiu nas colnias ibricas, porque no sculo XVIII ofentipo se tornou um signo muito pouco confivel daherana genealgica de uma pessoa.50

    A Igreja, obviamente, no era indiferente aoscostumes ligados ao casamento e ao sexo. At fins dosculo XVIII a Igreja tinha autoridade exclusiva sobre oscasamentos. E sua poltica de casamentos servia apenaspara intensificar as preocupaes das elites coloniaisquanto ao status social. Embora a Inquisio tenha sidocontra os contratos de casamento de cristos velhos comnovos na metrpole, o princpio doutrinal que regulou aprtica eclesistica nas colnias era o da liberdade decasamento, que garantia aos jovens o direito de escolherlivremente suas esposas e rejeitar a oposio dos pais aocasamento por motivos de pureza de sangue. A partir dosculo XVI, porm, h exemplos documentados de quealguns pais tentaram impedir os casamentos de seus filhospor motivos de desigualdade social, a fim de manter apureza da famlia.51 Mas embora a doutrina moral cannicade fazer a virtude sexual prevalecer sobre honrarias sociaistenha desafiado a hierarquia social, a Igreja era liberalapenas na aparncia. A Igreja ignorava desigualdadessociais, mas impunha o mais estrito controle sexual,particularmente sobre as mulheres. Para a Igreja, a virtudesexual feminina virgindade antes do casamento ecastidade depois era o maior de todos os bens morais. Aconseqncia da preocupao da Igreja com a proteoda virtude moral era portanto o controle sexual: a salvaoda alma dependia da submisso do corpo aos preceitosreligioso-morais. Mesmo assim a Igreja nunca conseguiuerradicar a explorao sexual de mulheres consideradasde baixa posio social e sangnea, e os religiosos,notrios por seus prprios abusos sexuais nas colnias, nocumpriam estritamente esses preceitos. Apesar de tentativasisoladas de casar casais que viviam em pecado, uniessocialmente desiguais eram, na maioria, consensuais como eram chamadas eufemisticamente na poca. Issoteve outras conseqncias. Hoje est perfeitamenteestabelecido que oportunidades e experincias demulheres diferem de acordo com o nvel social reservadoa elas na sociedade. Ao exaltar a virtude sexual, a Igrejafomentou a discriminao de diferentes tipos de mulher

    51 SEED, 1988, p. 75-91.

    50 STOLCKE, 1974.

    49 Thomas LAQUEUR, 1990, p. 155.

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  • VERENA STOLKE

    34 Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006

    em termos sexuais: de um lado, mulheres abusadassexualmente por homens que, devido ao alto status social,no se casariam com elas (essas eram posicionadas emum status inferior e, mais do que isso, penalizadas porestarem, assim, vivendo em pecado mortal); de outro,mulheres virtuosas (de famlias respeitveis) cuja sexualidadeera severamente controlada por homens em nome dafamlia e da pureza social.

    Em meados do sculo XVIII, no entanto, a Igreja seviu ameaada por dois lados. Ela enfrentou o Estado, queestava limitando os tradicionais poderes eclesisticos e osprivilgios econmicos da Igreja, e tambm entrou emchoque com a Coroa quanto jurisdio sobre os efeitoscivis de casamentos considerados desiguais. As coroasibricas aprovaram uma nova legislao sobre casamentosque refletia suas preocupaes com a livre escolha decnjuges pelos jovens, e com isso a Igreja passou a encarardificuldades cada vez maiores para defender o casamentolivre contra a oposio pr-nupcial dos pais. Uma leiportuguesa de 1775 reforou um decreto de 1603 queautorizava os pais a deserdar a filha que se casasse semconsentimento, estendendo a exigncia de consentimentopaterno aos filhos homens. Na Espanha, Charles IIIpromulgou a Sano Pragmtica de 1776 que, do mesmomodo, buscou prevenir o abuso dos contratos decasamentos desiguais por filhos e filhas. Essas leis suprimirama livre escolha de casamentos, enquanto o Estado assumiao controle. Da em diante, os casamentos s puderam serrealizados com consentimento paterno, ficando os filhossob ameaa de serem deserdados, de acordo com oconsagrado princpio patrimnio pelo matrimnio.52

    Pode ser paradoxal que as coroas portuguesa eespanhola tenham introduzido simultaneamente suas formasseveras de controle sobre o casamento num tempo de reformapoltica e modernizao, quando o princpio de statusgenealgico de limpieza de sangre, alm de tudo, perdiavalidade na Pennsula Ibrica. Mas absolutamente nada temde atpico o fato de as reformas de secularizao liberal seremacompanhadas de novos controles sociais. portantoplausvel ver nessas leis de casamentos uma tentativa, porparte do Estado, de conter as potenciais conseqnciassociais das reformas num clima poltico que em toda Europaj estava ameaando hierarquias sociais estabelecidas.

    Na Amrica espanhola, como j mencionado, oprincpio da limpieza de sangre foi retomado. Em 1778, orei estendeu a Sano Pragmtica s colnias,

    considerando que efeitos iguais ou piores so causadospor esse abuso [de casamentos desiguais] em meus

    52 STOLCKE, 1974; e MurialNAZZARI, 1991, p. 130 et seq.

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006 35

    O ENIGMA DAS INTERSEES: CLASSE, RAA, SEXO, SEXUALIDADE

    reinos e nos domnios das ndias, levando em contaseu tamanho, a diversidade de classes e castas de seushabitantes [...] e o srio dano que vem sendoexperimentado em meio a essa liberdade absoluta edesordenada com a qual os casamentos vm sendocontratados por jovens impetuosos e desajustados deambos os sexos.

    Excludos da Sano Pragmtica estavam mulatos,negros, coiotes [filhos de africanos e ndios] e indivduos decastas e raas assumidas e publicamente reputadas comotais, que presumivelmente no tinham qualquer honra quevalesse a pena proteger.53 Tendo a Coroa portuguesabuscado refgio no Brasil, o Brasil seguiu a lei de matrimniosportuguesa de 1775, que foi incorporada ao CdigoCriminal do Imprio de 1831.54

    No sculo XVIII, juzes brasileiros ainda sepreocupavam com a igualdade entre parceiros para ocasamento, mas como Murial Nazzari mostrou, em relaoa So Paulo, essa preocupao mudou no sculo XIX,quando a idia de igualdade das esposas j perdia aimportncia que teve em sculos anteriores; apreocupao passou ento a ser a competncia do maridopara sustentar a esposa.55 Ao contrrio do que acontececom Cuba no sculo XIX, no h infelizmente informaodisponvel sobre o Brasil quanto aos efeitos da desigualdadescio-racial sobre o casamento, e tambm parece no terhavido proibio legal de casamento inter-racial.

    A implementao da Sano Pragmtica espanholaencontrou dificuldades considerveis nas colniasespanholas. Vrios decretos reais adicionais relativos acasamentos desiguais se seguiram ao de 1778 para resolverconflitos entre a Coroa e autoridades coloniais quanto poltica de casamentos. O problema crucial, nessemomento, era o casamento inter-racial. No incio no estavaclaro se apenas pessoas de idade legal e reconhecidanobreza, ou se pessoas de sangue puro em geral,precisavam de autorizao oficial para se casar commembros das castas. Um decreto de 1805 resolveu essaquesto exigindo que todas as pessoas de reconhecidanobreza e de reconhecida limpieza de sangre que, tendoatingido a maioridade, desejarem se casar com ummembro das ditas castas (negros, mulatos e outras) sedirigissem s autoridades civis coloniais, que poderiamconceder ou negar as licenas correspondentes, enquantondios e mestios puros [eram] livres para se casar combrancos ou hispnicos.56 Isso no era apenas equivalentea uma virtual proibio do casamento de hispnicos oucrioulos com os negros e seus descendentes: o casamentointer-racial se tornou um problema de Estado. O que estava

    53 KONETZKE, 1962, III, 1, p. 438-442.

    54 NAZZARI, 1991, p. 132.

    55 NAZZARI, 1991, p. 138-139.

    56 KONETZKE, 1962, III, 2, p. 826.

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  • VERENA STOLKE

    36 Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006

    em questo no eram s os interesses das famlias, mastambm a estabilidade da ordem social.

    Cuba foi a mais valiosa das colnias espanholas nosculo XIX. Em seu apogeu econmico como produtor deacar, o pas explorou uma populao escrava quecrescia, tornando-se o lugar privilegiado da aplicaodessa legislao sobre o casamento, ainda que o rigordas autoridades coloniais na proibio do casamento inter-racial tenha variado. Particularmente na primeira metadedo sculo, era freqente pais dissidentes discordarem emrelao limpieza de sangre. Repetidas vezes eles falavamda absoluta desigualdade do casal, de sua prpriareconhecida pureza de sangue e da mancha evidentee transcendental em sua reputao, da degradao dosfilhos e da desgraa e insatisfao que o casamentotraria famlia. Nas colnias espanholas, a estabilidadesocial representava a preservao da hierarquia socialfundada no jogo entre as condies relativas a escravido,qualidade racial e virtude sexual feminina.57

    No sculo XIX, a pureza de sangue era usada nosentido racial moderno para distinguir pessoas de origemafricana/escrava daquelas de origem europia/livre.Pessoas livres de cor eufemismo cubano para pessoasde descendncia africana eram porm igualmentediscriminadas. No entanto, no caso de pardos (mulatos)nascidos livres, a proibio do casamento inter-racial eraaplicada com grande lenincia por terem eles escapadomais evidentemente da cor negra e da escravido.58 Corde pele e classe eram combinadas na determinao dostatus social da pessoa. Pele clara e sucesso scio-econmico podiam amenizar a mancha genealgica dadescendncia de escravos at um certo ponto. No eramfreqentes os casamentos entre homens brancos e mulheresde cor, como forma de oposio concubinagem, masas autoridades permitiam-nos a homens brancos de poucosrecursos se eles quisessem se casar por amor ou paralegitimar uma relao sexual anterior e o filho delaresultante.

    Como j foi indicado, a sociedade colonial no erauma ordem hierrquica impermevel. A parafernlia legalsobre o matrimnio era necessria justamente porque,apesar da preocupao com a limpieza de sangre,sempre houve mulheres e homens brancos prontos adesafiar a ordem poltico-racial e seus valores sociais emorais, casando-se contra as recomendaes da tradio.Havia limites, porm, para a compensao do status racialpelas conquistas econmicas em relao ao casamento.A endogamia scio-racial era a forma de casamentopreferida, oficialmente e socialmente, entre brancos e

    57 MARTINEZ-ALIER, 1974, p. 15.

    58 MARTINEZ-ALIER, 1974, p. 76.

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006 37

    O ENIGMA DAS INTERSEES: CLASSE, RAA, SEXO, SEXUALIDADE

    pessoas de cor em Cuba no sculo XIX. A maioria doscasamentos obedecia a esse padro. Mas quando umcasal jovem decidia desrespeitar as normas estabelecidas,podia solicitar s autoridades civis uma licena suplementarde casamento, compensando a objeo dos pais, oupodia, mais dramaticamente, fugir para casar. Ao encararo fait accompli da perda da virtude sexual da mulher, erade se supor que os pais achassem muito mais difcil mantersuas objees iniciais. Mas quando o casal era visto comopertencendo a uma raa diferente, os pais brancos emdesacordo geralmente preferiam tolerar uma filhadesonrada a deixar que sua linhagem fosse poluda. Umpai branco argumentou quanto a isso da seguinte forma:

    [O pretendente teve] a audcia inconcebvel de seduzir,levar e talvez at estuprar uma moa branca de respeito[...] tornando-se assim culpado, aos olhos da lei, deuma ofensa extremamente grave, uma ofensa do tipoque exige ser levada diante das cortes da Ilha de Cubaa qualquer custo. Este um pas em que, dadas suascircunstncias excepcionais [isto , a escravido], torna-se necessrio que a linha divisria entre os brancos eas raas africanas seja muito bem demarcada, porquequalquer tolerncia, que em alguns casos pode serelogivel, trar desonra s famlias brancas, revolta edesordem ao pas, e talvez at o extermnio de seushabitantes; [ele] nunca aprovar um casamento de suafilha com um mulato, porque isso estaria recobrindouma mancha com outra muito maior e ainda maisindelvel; ao contrrio, melhor elas engolirem a dore a vergonha em silncio do que autoriz-laspublicamente.59

    Tais desafios ao status quo social indicam que,paralelamente norma da hierarquia scio-racial tpicade uma sociedade escravocrata, existia um ideal deliberdade individual, de liberdade de escolha. Esse idealliberal moderno de liberdade individual, enraizado nanoo de igualdade bsica de todos os humanos vindada renascena europia, era a raison dtre da ideologiada limpieza de sangre, tanto no sentido religioso-culturalprvio quanto no sentido racial posterior, que serviu parajustificar e dar conta da desigualdade social real. Apesardas diferenas regionais, o ethos universalista cristo,segundo o qual todos os seres humanos seriam iguais diantede Deus, dominou a sociedade ocidental mais ou menosat o sculo XVIII. Desde ento, o iluminismo europeuestabeleceu uma mudana conceitual que foiprogressivamente substituindo a ontologia teolgica anteriorpelo ideal secular segundo o qual todos os seres humanosnascem livres e iguais perante a lei. Mas ambos os conceitos

    59 STOLCKE, 1974, p. 113.

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  • VERENA STOLKE

    38 Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006

    de humanidade foram constantemente contrariados pelarealidade das desigualdades sociais. De acordo com oprincpio genealgico da limpieza de sangre, cujo sentidohistrico est sempre mudando, a desigualdade social, emvez de resultar do acesso desigual a recursos econmicose ao poder, era vista como algo que est no sangue.Assim, se desde o incio os valores poltico-morais igualitriospossibilitavam mudanas na ordem social desigual, aideologia da l impieza de sangre desqualificavamoralmente essas potenciais mudanas e as neutralizavapoliticamente ao atribuir a hierarquia social, seja lei divina,seja s diferenas naturais fsicas e/ou raciais. Era oelemento ideolgico igualitrio que fornecia tambm abrecha para aqueles casais que, diante da oposio dospais, sentiam-se encorajados a fugir para casar. Embora aendogamia fosse a norma prescrita para perpetuar o statusquo hierrquico, o casamento inter-racial, mesmocondenado, de fato ocorria excepcionalmente, justoporque o consenso em relao legitimao da ordemsocial e da endogamia racial estrita era nulo.

    Que conseqncias essas concepes genealgicasde pureza social e status tm para as mulheres e para asrelaes de gnero? Aqui a linha geral de meu argumentopode ser reiniciada. Sempre que o posicionamento socialnuma sociedade hierrquica atribudo ao nascimento e descendncia, e enquanto o sexo no puder ser dissociadoda gravidez, ser essencial para os homens da elite controlara sexualidade de suas mulheres a fim de garantir areproduo adequada de seu status social atravs de umcasamento apropriado. Na sociedade colonial do sculoXVIII, o casamento intra-racial aparecia como a forma idealde casamento, a partir da norma segundo a qual no podehaver casamento se no h igualdade de linhagem.60 Aexplorao sexual por homens, embora muito danosa paraa mulher envolvida, literalmente no trazia qualquerconseqncia para a honra da famlia. Ao reforar a noometafsica do sangue como veculo do prestgio familiar ecomo ferramenta ideolgica usada para salvaguardar ahierarquia social, o Estado, numa aliana com as famliasque exigiam sangue puro, submetia suas mulheres a umargida vigilncia de sua conduta sexual enquanto seus filhosse deleitavam livremente com mulheres consideradas sincalidad. A desdenhada imagem da mulata, sntese damulher irresistivelmente sedutora e moralmente depravada,eximia homens brancos de qualquer responsabilidade,culpando em vez disso a mulher. O ditado cubano do sculoXIX no hay tamarindo dulce ni mulata seorita (no existetamarindo doce, nem mulata virgem) expresso dramticadessa lgica de gnero distorcida. O valor moral especial

    60 STOLCKE, 1974, p. 134.

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006 39

    O ENIGMA DAS INTERSEES: CLASSE, RAA, SEXO, SEXUALIDADE

    atribudo virtude sexual das mulheres no se devia, noentanto, a suas caractersticas sexuais biolgicas especficas.A sexualidade feminina se tornou to valiosa porque ascircunstncias scio-ideolgicas permitiram s mulheres opapel crucial de transmissora dos atributos de famlia degerao a gerao. Os homens, como guardies dasmulheres da famlia, assumiam a funo de cuidar datransferncia socialmente satisfatria desses atributos, atravsdo controle estrito da sexualidade das mulheres. Oconfinamento domstico das mulheres e sua subordinaogeral em outras esferas sociais eram conseqncias de suacentralidade reprodutiva. E isso era assim porque, como bemobservou um jurista espanhol do sculo XIX, s as mulherespoderiam introduzir bastardos no casamento. Entendia-se obastardo como uma criana ilegtima nascida de umarelao sexual ilcita entre parceiros que, de acordo comas normas sociais, no poderiam se misturar.

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  • VERENA STOLKE

    40 Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 14(1): 15-42, janeiro-abril/2006 41

    O ENIGMA DAS INTERSEES: CLASSE, RAA, SEXO, SEXUALIDADE

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  • VERENA STOLKE

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    A New WA New WA New WA New WA New World Engendered: Intersections.orld Engendered: Intersections.orld Engendered: Intersections.orld Engendered: Intersections.orld Engendered: Intersections.The Making of the Iberian Transatlantic Empires XVI to XIX CenturiesAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: This article approaches the intersections developed under the colonial Spanish empireamong gender relations, feminine sexuality concepts, family honor and State regulation. Theway the multiple moral, social, juridical and religious norms in relation to sexuality and relationsbetween women and men interacted with the social/political inequalities in the Iberian colonialexperience will be analyzed. The New World provides a particularly clear example of the dynamicintersections between contemporary ideas and ideals about sex/gender and race/ethnicity andsocial class that became manifest on the new identification systems, classification and socialdiscrimination forged in the consolidation of the Iberian American colonial society. It also becomesan example of the consequences that the sexual morality and the prevailing gender stereotypeshave had in all the aspects of womens lives.Key WKey WKey WKey WKey Wordsordsordsordsords: Iberian Colonialism, Sexual Morality, Genealogy and Family Honor, Mestizage.

    Traduo: Luiz Felipe Guimares SoaresReviso da Traduo: Snia Weidner Maluf