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O Papel de Controle da Boa-Fé Objetiva na Interpretação Contratual: Breve análise à luz dos sistemas Brasileiro e Português Alexandre Oheb Sion RESUMO: O presente trabalho procura analisar o papel de controle praticado pela boa- fé objetiva, mediante o estudo de tratamentos típicos concebidos pela doutrina, examinando a sua operabilidade e acolhimento na praxe dos tribunais, sob a ótica do sistema luso-brasileiro, para o controle de atos tidos como exercícios inadmissíveis de direitos subjetivos. Para tanto, utiliza-se, como ponto de partida, alguns institutos concebidos pela doutrina a esse título, como o “venire contra factum” “proprium”, “exceptio doli”, “suppressio”, “surrectio”, “tu quoque” e “duty to mitigate the loss”. ABSTRACT: This paper aims to analyze the role of control of objective good faith through study of typical treatments conceived by doctrine, assessing their operability and reception by courts under the optics of the luso-brazilian system, for control of acts considered as inadmissible exercise of subjective rights. Therefore, some institutes conceived by doctrine for this purpose are used, such as “venire contra factum proprium”, “exceptio doli”, “supressio”, “surrectio”, “tu quoque” and “duty to mitigate the loss”. PALAVRAS-CHAVE: BOA-FÉ OBJETIVA –– FUNÇÃO DE CONTROLE – ABUSO DE DIREITO – VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM – EXCEPTIO DOLI – SUPRESSIO – SURRECTIO – TU QUOQUE – DUTY TO MITIGATE THE LOSS.

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O Papel de Controle da Boa-Fé Objetiva na Interpretação Contratual:

Breve análise à luz dos sistemas Brasileiro e Português

Alexandre Oheb Sion

RESUMO: O presente trabalho procura analisar o papel de controle praticado pela boa-

fé objetiva, mediante o estudo de tratamentos típicos concebidos pela doutrina,

examinando a sua operabilidade e acolhimento na praxe dos tribunais, sob a ótica do

sistema luso-brasileiro, para o controle de atos tidos como exercícios inadmissíveis de

direitos subjetivos. Para tanto, utiliza-se, como ponto de partida, alguns institutos

concebidos pela doutrina a esse título, como o “venire contra factum” “proprium”,

“exceptio doli”, “suppressio”, “surrectio”, “tu quoque” e “duty to mitigate the loss”.

ABSTRACT: This paper aims to analyze the role of control of objective good faith

through study of typical treatments conceived by doctrine, assessing their operability

and reception by courts under the optics of the luso-brazilian system, for control of acts

considered as inadmissible exercise of subjective rights. Therefore, some institutes

conceived by doctrine for this purpose are used, such as “venire contra factum

proprium”, “exceptio doli”, “supressio”, “surrectio”, “tu quoque” and “duty to

mitigate the loss”.

PALAVRAS-CHAVE: BOA-FÉ OBJETIVA –– FUNÇÃO DE CONTROLE –

ABUSO DE DIREITO – VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM – EXCEPTIO

DOLI – SUPRESSIO – SURRECTIO – TU QUOQUE – DUTY TO MITIGATE THE

LOSS.

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SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO: A BOA-FÉ OBJETIVA E A FUNÇÃO DE

CONTROLE NOS CONTRATOS - 2. CONSECTÁRIOS DA BOA-FÉ NA

INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL E O PAPEL DE PREVENÇÃO DO ABUSO DE

DIREITO - 2.1. Venire contra factum proprium - 2.2. Exceptio doli; 2.3. Suppressio -

2.4. Surrectio - 2.5. Tu quoque - 2.6. Duty to mitigate the loss – 3. CONCLUSÃO –

4.BIBLIOGRAFIA

1. INTRODUÇÃO: O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E A FUNÇÃO DE

CONTROLE NOS CONTRATOS

O Princípio da Boa-Fé é vetor axiológico que opera no sentido de conferir à

conduta das partes retidão no exercício dos seus direitos, bem como no modo em que se

relacionam entre si. Nesse sentido, preconiza que a relação obrigacional deve ser

desenvolvida com o escopo de se preservarem os direitos dos contratantes na

consecução dos fins avençados, sem que a atuação das partes infrinja os preceitos éticos

insertos no ordenamento jurídico.

Esse entendimento foi expressamente tutelado pelo legislador brasileiro quando

da promulgação do Código Civil Brasileiro de 20021, atualmente em vigor, o qual

consigna, em diversos momentos, a aplicabilidade efetiva da noção de boa-fé. Com

efeito, a título de exemplo, merece destaque o quanto disposto no artigo 113 do Código

Civil Brasileiro de 2002, segundo o qual “os negócios jurídicos devem ser interpretados

conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. ”

Disposição semelhante é albergada pelo Código Civil Português vigente, que

dispõe, em seu art. 227.º, que “quem negoceia com outrem para conclusão de um

contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as

regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra

parte.”

1O Código Civil Brasileiro anterior, de 1916, trazia diversos dispositivos que tratavam da boa-fé (v.g. arts. 112, 1.002, 1.073, 1.404, 1.405, 1.438, 1.443 e 1.444). Assim, como o Código de Processo Civil Brasileiro de 1973 (arts. 14, 17 e 630). Sem embargo, antes mesmo do CC/16, o Código Comercial Brasileiro, de 1850, já havia tratado, ainda que de forma tímida, da boa-fé, como se observa da leitura do seu art. 131: “Art. 131 - Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases:1 - a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras;”. Outros diplomas normativos brasileiros também tratam do instituto: v.g. Código de Defesa do Consumidor de 1990, art. 4º, III e art. 51, IV.

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Como se vê, o Princípio da Boa-Fé assume considerável magnitude em ambos os

ordenamentos jurídicos2, a merecer nada menos que a sua própria positivação e

objetividade como consagração expressa do seu sentido moral e profundo, exprimido

pelo mandamento de que “cada um fique vinculado em fé da palavra dada, que a

confiança que constitui a base imprescindível de todas as relações humanas não deve ser

frustrada nem abusada e que cada um se deve comportar como é de esperar de uma

pessoa honrada.3

Isso porque, como cediço, a dignidade da pessoa humana é simultaneamente valor

e princípio, constituindo elemento decisivo na afirmação de qualquer Estado

Democrático de Direito, assumindo proporção de cláusula geral, apta a condicionar e

conformar todo o tecido normativo.4 Destarte, em se tratando de sistemas abertos, em

que a supremacia axiológica é dirigida pela dignidade da pessoa humana, o Direito Civil

e as respectivas Constituições dos Estados mantêm intenso vínculo dialógico, com

repercussão material imediata dos princípios que lhes são comuns.5 6

2 Também em outros ordenamentos alienígenas consagra-se expressamente a boa-fé, v.g. – Código Civil italiano de 1942 – “Art. 1337 - Trattative e responsabilità precontrattuale - Le parti, nello svolgimento delle trattative e nella formazione del contratto, devono comportarsi secondo buona fede” / Código Civil Espanhol de 1974 – art. 7o, I - Artículo 7, 1. “Los derechos deberán ejercitarse conforme a las exigencias de la buena fe”. A boa-fé também teve acolhida nos países da common law, como se constata no Código Comercial Uniforme americano (UCC): "Cada contrato ou obrigação no quadro da presente lei impõe uma obrigação de boa-fé no adimplemento ou execução do contrato". Define, o próprio Código, o significado de boa-fé: "good faith means honesty in fact in the conduct or transation concerned". 3 VASCONCELOS, Pedro Pais de – Teoria Geral do Direito Civil. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2014. p. 21. 4 ROSENVALD, Nelson; Farias, Cristiano Chaves de. Direito das obrigações. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, págs. 61 e 62. 5 Ibid. 6 O UNIDROIT (International Institute for the Unification of Private Law - Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado Internacional – 63 países membros, entre eles Portugal e Brasil - Organização intergovernamental independente, com sede em Roma, cujo objetivo consiste em estudar os meios de harmonizar e de coordenar o direito privado entre os Estados e de preparar gradualmente a adoção por estes de uma legislação de direito privado uniforme), cujo art. 2.1.15 estabelece a proibição de negociações contrárias à boa fé, determinando que: “Article 2.1.15 (Negotiations in bad faith) - 1. A party is free to negotiate and is not liable for failure to reach an agreement. 2. However, a party who negotiates or breaks off negotiations in bad faith is liable for the losses caused to the other party. 3. It is bad faith in particular, for a party to enter into or to continue negotiations when intending not to reach an agreement with the other party.” (UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts. Rome: International Institute for the Unification of Private Law, 2004. [Em linha]. [Consult. 06 Nov. 2015]. Disponível em http://www.unidroit.org/english/principles/contracts/principles2010/integralversionprinciples2010-e.pdf )

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É nesse diapasão que a boa-fé é sentida como a concretização do princípio da

dignidade no campo das obrigações e, por essa razão, não deve ser relegada pelas partes

no decurso da relação contratual. Destarte, a repressão a condutas que eventualmente

violem a boa-fé, como autêntica regra de procedimento, impõe-se como concretização

aos preceitos éticos que norteiam o ordenamento jurídico.

A objetividade da boa-fé nos ordenamentos brasileiro e português, assim, constitui

um modelo de conduta social ou um padrão ético de comportamento, que impõe,

concretamente, a todo o cidadão, que na sua vida social atue com honestidade, lealdade

e probidade. É necessário aduzir, entretanto, que boa-fé objetiva não se confunde com a

boa-fé subjetiva, sendo esta última o estado de consciência ou de crença do indivíduo de

estar agindo em conformidade com as normas do ordenamento jurídico.

A objetividade que lhe é ínsita nos dois sistemas, destarte, constitui modelo ideal

de conduta, que se exige de todos os integrantes da relação obrigacional (seja devedor

ou credor) na busca do correto adimplemento da obrigação, que é a sua finalidade

última.7

Sem embargo, não raras vezes, no cenário negocial, verifica-se a prática de atos

jurídicos escusos mascarados de aparente legalidade, conduzidos a título de suposto

exercício regular de direito, mas que, contudo, invectivam frontalmente a boa-fé

presumida na relação entabulada entre as partes, na medida em que excedem

manifestamente os limites do razoável.

É nesse sentido que a boa-fé objetiva exerce sua função de controle, impondo

limitação ao exercício dos direitos subjetivos, estabelecendo para as partes, conforme

assumam a posição de credor ou devedor, ao exercer o seu direito, o dever de aterem-se

aos limites traçados pela boa-fé, sob pena de incorrerem em uma atuação antijurídica.

Veda-se, assim, o abuso de direito em todas as fases da relação jurídica obrigacional,

conduzindo a sua exigibilidade (pretensão) ou o seu exercício coativo (ação).

Desta feita, para a consecução e remate do presente trabalho, desenvolver-se-ão,

mais adiante, os tratamentos típicos concebidos pela doutrina, analisando a sua

operabilidade e acolhimento na praxe dos tribunais sob à ótica do sistema luso-

brasileiro, para o controle de atos tidos como exercícios inadmissíveis de direitos

subjetivos.

7 SUPERIOR Tribunal de Justiça. Acórdão com o n° REsp 1200105/AM, de 19 de junho de 2012. Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma.

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Para tanto, tomar-se-á, como ponto de partida, a doutrina de vanguarda liderada

pelo Prof. Dr. Menezes Cordeiro, o qual sintetiza, em seis tipologias, as situações em

que tem sido colocada a ocorrência do abuso do direito, a saber: venire contra factum

proprium, exceptio doli, suppressio, surrectio, tu quoque, as inalegabilidades formais e

o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.

Entretanto, no âmbito da doutrina em comento, para propósitos metodológicos

filiar-nos-emos às cinco primeiras figuras, às quais acrescentaremos o instituto do duty

to mitigate the loss, que embora em princípio possa parecer estranho às tipologias aqui

mencionadas, é albergado atualmente pela mais lídima doutrina moderna.

2. CONSECTÁRIOS DA BOA-FÉ NA INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL E O

PAPEL DE PREVENÇÃO DO ABUSO DE DIREITO

Ante o exposto no tópico precedente, verifica-se como a boa-fé objetiva

apresenta diversos papéis fundamentais no sistema de direito positivo, entre os quais,

primordialmente, o de vedar o exercício inadmissível de posições jurídicas, também

denominado “abuso de direito”.

Predita figura remonta a períodos longínquos, tendo sido percebida já no Direito

Romano. Todavia, sua sistematização, mediante emprego de elementos objetivos para

sua aferição, somente ocorreu nas legislações concebidas no decurso do século XX.8

No ordenamento brasileiro, a noção de abuso de direito foi incorporada de forma

expressa com a promulgação do Código Civil Brasileiro de 2002, o qual dispôs em seu

art. 187 que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede

manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou

pelos bons costumes”.

No Direito português, a base jurídico-positiva do abuso do direito reside no

artigo 334°, o qual preconiza que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o

titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou

pelo fim social ou económico desse direito”.

8 LEITE, Danielle Moraes. Teorias Consectárias do Abuso de Direito. Rio de Janeiro: Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Monografia para obtenção do título de Pós-Graduação em Direito. p.5.

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Conforme observa Judith Martins-Costa a propósito, no Código Civil Português

vigente, o art. 334º resultou do art. 281 do Código Civil grego, assim concebido: “O

exercício é proibido quando exceda manifestamente os limites postos pela boa-fé, pelos

bons costumes ou pelo escopo social ou econômico do direito”.9

Ela prossegue asseverando que o codificador grego, no entanto, nada inventara,

antes sabendo aproveitar e combinar manifestações legislativas e doutrinárias de outros

sistemas: da codificação suíça e, sobretudo, da doutrina alemã, retira a referência aos

bons costumes e à boa-fé, enquanto o artigo 71 do Projeto franco-italiano das

Obrigações lhe cedeu a referência ao fim social e econômico do direito.

Note-se que a despeito do fato de o Código Civil Brasileiro dispor de forma mais

precisa, relativamente ao Código Português, acerca do instituto do abuso de direito, o

diploma legal encontra suas próprias raízes em Portugal. Com efeito, a predita fórmula,

importada do Código Civil Grego, resultou por ser transposta para o Código Civil

brasileiro, que, segundo Menezes Cordeiro, intentou resolver, no tocante à

sistematização do exercício jurídico, “algumas das incongruências sistemáticas

apontadas” ao Código Civil Português.10 Do exemplo português decorreu, assim, a

implementação do art. 187 ao Código Civil Brasileiro de 2002.

O dispositivo legal a que se alude, como visto, assume feição expressa de

configurar a própria ilicitude, de modo que os seus contornos refletem de forma

cristalina o caráter objetivo ínsito à boa-fé no ordenamento brasileiro, na medida em que

lhe confere operabilidade e factibilidade no caso concreto. Disso resulta reconhecer que

a boa-fé objetiva assume um papel preponderante na manutenção da confiança

emergente da relação entabulada entre as partes, bem como no balizamento de eventuais

ilicitudes perpetradas por uma das partes na relação contratual.

Por essas razões, na medida em que a boa-fé preconiza, no escopo de preservar a

higidez da relação, a lealdade e a cooperação entre as partes, haverá de ser preservada a

essência de eticidade que compõe a base da relação e, logo, o respeito as legítimas

expectativas que o decorrer do desempenho contratual suscitar em cada uma das partes.

9 MARTINS-COSTA, Judith. Os Avatares do Abuso do direito e o Rumo indicado pela Boa-Fé [Em linha]. [Consult. 06 Nov. 2015]. Disponível em http://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/12/Costa-Judith-Os-avatares-do-Abuso-do-direito-e-o-rumo-indicado-pela-Boa-Fe.pdf. 10 MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil Português. I. Parte Geral. Tomo IV. Coimbra, Almedina, 2005, p. 13.

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Assim sendo, no plano da eficácia, a boa-fé, superposta à confiança legítima

aventada na relação contratual, indica as variadas possibilidades técnicas de coibição do

exercício de direitos e poderes formativos quando violadores de uma confiança

legitimamente suscitada. Essa violação implicará ilicitude por exercício inadmissível

(abuso), como ocorre, por exemplo, nas situações tipificadas que serão tratadas de

forma mais detida nos tópicos subsequentes.11

2.1. Venire contra factum proprium

A locução latina venire contra factum proprium, em acepção literal “dirigir-se

contra fato próprio” ou que na acepção real traduz a ideia da “vedação do

comportamento contraditório”, representa tratamento típico do exercício de uma posição

jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente,

como bem assenta Menezes Cordeiro, dando esteio ao entendimento de Weber.12

Segundo preconiza o instituto, a ninguém é dado contrariar comportamento

anteriormente adotado de forma habitual, desde que, evidentemente, este tenha uma

função orientativa, ou seja, na medida em que induza a conduta dos sujeitos ou implique

tomada de decisão por uma das partes.

Destarte, na exata proporção em que é informação relevante e necessária para o

agir, o ato próprio vincula, de modo que não pode ser contrariado, sob pena de a

mudança súbita de orientação quebrar a lealdade que norteia a relação jurídica

entabulada entre as partes e, logo, afrontar a própria boa-fé que lhe é fundamental.13

Para a sua concreta aplicação e incidência, assim, observar-se-á a cumulação de

quatro pressupostos, quais sejam: um comportamento, a geração de uma expectativa, o

investimento na expectativa gerada14 ou causada e o comportamento contraditório ao

inicial, que se toma como ponto de referência. 15

11 MARTINS-COSTA, Judith. Op. cit. 12MENEZES CORDEIRO, Antonio. Da Boa Fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2013. p. 742.13 PENTEADO, Luciano de Camargo. Figuras Parcelares da Boa-Fé Objetiva e Venire Contra Factum Proprium. [Em linha]. [Consult. 06 Nov. 2015]. Disponível em www.flaviotartuce.adv.br/artigosc/Luciano_venire.doc 14 Conforme salienta Luciano de Camargo Penteado (op. cit.), a propósito, o investimento a que ora se alude não é necessariamente econômico, mas muitas vezes com este caráter, no sentido da continuidade da orientação outrora adotada, que após o referido arco temporal, é alterada por comportamento a ela contrário. 15 PENTEADO, Luciano de Camargo. Op. cit.

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Restando caracterizado o panorama circunstancial acima delineado, com a

incidência concomitante dos quatro pressupostos elencados, restará caracterizado o

exercício inadmissível do direito subjetivo e, logo, a necessidade de saneamento

mediante controle operado pela boa-fé objetiva. A propósito dos seus efeitos, cumpre

transcrever lição de Paulo Mota Pinto:

“O principal efeito será o da inibição do exercício de poderes jurídicos ou direitos, em contradição com o comportamento anterior. Por outro lado, a proibição de comportamento contraditório torna ilegítima a conduta posterior, podendo assim, constituir o agente numa obrigação de indenizar, designadamente por violação de uma obrigação (no caso, por exemplo, de o comportamento posterior contraditório visar a cessação dos efeitos de um contrato). Pode acontecer, contudo, que a conseqüência seja a eventual constituição de uma obrigação do agente.”16

Como se vê, o tratamento do venire contra factum proprium, na qualidade de

figura parcelar da boa-fé objetiva, impõe balizamento pragmático à conduta das partes,

tendo o condão até mesmo de transmudar comportamento habitual em verdadeira

obrigação, de modo a satisfazer legítima expectativa das partes e a se preservar a

lealdade ínsita à relação jurídica.

Note-se, por oportuno, que a aplicação da precitada vedação não encontra

amparo unicamente na seara contratual, dirigindo-se também à seara extracontratual e

imiscuindo-se no corpo de todo o ordenamento jurídico, a exemplo do que ocorre no

ordenamento brasileiro. Com efeito, a vedação ao comportamento contraditório assume

feição normativa tão forte que transcende o próprio direito material, aplicando-se,

também, à esfera processual do direito.

Nesse sentido já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça brasileiro, quando

decidiu que "o princípio da boa-fé objetiva proíbe que a parte assuma comportamentos

contraditórios no desenvolvimento da relação processual, o que resulta na vedação do

venire contra factum proprium, aplicável também ao direito processual"17

16 PINTO, Paulo Mota. Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório (Venire Contra Factum Proprium) no Direito Civil. In Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Volume comemorativo, 2003, p. 305. 17 SUPERIOR Tribunal de Justiça. Acórdão com o n° REsp 1280482/SC, de 07 de fevereiro de 2012. Relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma.

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Ainda, em relação jurídica de natureza tributária conduzida entre o fisco e um

contribuinte, este tribunal superior invocou a mesma espécie de tratamento em favor do

administrado, para entender que “assim é que o titular do direito subjetivo que se desvia

do sentido teleológico (finalidade ou função social) da norma que lhe ampara

(excedendo aos limites do razoável) e, após ter produzido em outrem uma determinada

expectativa, contradiz seu próprio comportamento, incorre em abuso de direito

encartado na máxima nemo potest venire contra factum proprium.”18

No que concerne à sua aplicação prática na seara contratual, em interessante

julgamento levado a cabo pelo Supremo Tribunal de Justiça português, percebe–se

também sua imediata aplicação prática.19 No caso concreto, houve a celebração de um

contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, por escrito particular

(sendo na altura exigível escritura pública), mas tendo sido executado durante mais de

17 anos, sem nunca ter sido posta em causa a sua validade. A despeito disso, a cedente,

sob argumento de vício de forma, invocou a nulidade do instrumento, embora decorrido

o precitado lapso de execução contratual.

A 6ª seção, assim, sob relatoria de Pinto de Almeida, entendeu que a alegação de

nulidade aventada colidia intoleravelmente com a boa fé e os bons costumes,

defraudando as legítimas expectativas e a confiança da cessionária, fundadas em tal

situação. Ainda, consignou o Tribunal que “nestas circunstâncias, a invocação da

nulidade formal, não tendo outro propósito que não seja o de a cedente se libertar de um

vínculo que se tornou para si desvantajoso, traduz inaceitável venire contra factum

proprium, abuso do direito que torna inoperante aquele vício formal.”

Como se vê de todo o exposto, bem como dos acórdãos acima transcritos, a

proibição do comportamento contraditório relaciona-se ao sentido profundo do direito20,

na medida em que mantém hígidos os atos jurídicos levados a cabo, sendo entendimento

consubstanciado de forma inequívoca pela doutrina e pela jurisprudência.

18 SUPERIOR Tribunal de Justiça. Acórdão com o n° REsp 1143216/RS, de 24 de fevereiro de 2010. Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Seção. 19 SUPREMO Tribunal de Justiça – Acórdão com o número 796/08.1TVPRT.P1.S1, de 09 de julho de 2012. Relator Fernando Bento.20 PINTO, Paulo Mota. Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório (Venire Contra Factum Proprium) no Direito Civil. In Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Volume comemorativo, 2003, p. 269.

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2.2. Exceptio doli

A exceptio doli, ou exceção de dolo, é outro desdobramento com conteúdo de

controle sobre exercício de posições jurídicas inadmissíveis, os chamados “abusos de

direito”.

Nesse sentido, trata-se como exceção, no direito substantivo, a situação jurídica

pela qual a pessoa adstrita a um dever pode, licitamente, recusar a efetivação da

pretensão correspondente, tendo como mais característico o fator de não implicar

impugnação da pretensão, mas sua própria paralisação por fatores de natureza

adventícia.21 O dolo, por sua vez, é expressão plurissignificativa no Direito Civil,

podendo ser resumido como a situação do agente que direta, necessária ou

eventualmente dirige o seu comportamento contra uma norma jurídica.22 Logo, a

exceptio doli se traduz na potestade de repelir pretensão da contraparte, posto ter essa

incorrido em dolo.23

Como explica Canaris, a propósito da doutrina da confiança, "o doloso provoca,

na outra parte, a impressão de que o negócio é eficaz e assume, assim, a confiança

desta: deve responder, pois, pela situação de confiança obtida"24. A base positiva da

confiança está na prescrição geral e objetiva da boa-fé, merecendo, portanto, a devida

tutela mediante balizamento, também, dos atos que eventualmente constituam-se em

dolo.

No que concerne à exceção propriamente dita, Menezes Cordeiro aponta que o

Direito Romano, na tradição do Direito comum, reconhecia um papel duplo na exceptio

doli, mediante duas exceções diferenciadas25: em uns casos, o defendente alegava a

prática, pelo autor, de dolo, no momento em que a situação jurídica levada a juízo se

formara: consistia essa modalidade na exceptio doli praeteriti ou specialis.

21 MENEZES CORDEIRO, António. Da Boa Fé no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2013. pags. 719 e 720. 22 O Código Civil Português assim conceitua o dolo, em seu art. 253. °: “’1. Entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante." 23 MENEZES CORDEIRO, António op. cit. p. 721. 24 Ibid. 25 Ibid.

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Noutros, o réu contrapunha à ação o incurso do autor em dolo, no momento da

discussão da causa, sendo o que se convencionou denominar exceptio doli generalis. A

exceptio doli generalis, doravante, passou a ser apontada como meio de proteção contra

as injustiças obtidas à custa da boa-fé, tendo sido prática mantida na jurisprudência do

século XIX. Entretanto, como aduz o referido autor, o tipo regulador do exercício

indevido de direitos designado "exceptio doli generalis" é um tipo fluido, muito

extenso, de compreensão escassa, que foi merecendo uma utilização decrescente por

parte da jurisprudência e um certo desinteresse da doutrina26, caindo em verdadeiro

desuso nos dias atuais, ao menos quanto ao instituto originalmente considerado.

De fato, a exceção de dolo não tem sido comumente aplicada no Brasil de forma

consciente, conquanto alguns cogitem tratar-se de recurso interessante na paralisação do

exercício de alegados direitos subjetivos em sentido amplo, nos casos não claramente

subsumíveis ao venire ou ao tu quoque, a ser tratado posteriormente.27 Ademais, a

admissão da exceptio doli generalis parece restar prejudicada pela previsão específica

do art. 145 et seq. do Código Civil Brasileiro,28 os quais preveem a anulabilidade do

negócio entabulado mediante dolo.29

No direito português, igualmente extraordinária parece-nos sua aplicação

hodiernamente. Contudo, entendemos pertinente a transcrição de excerto de acórdão do

Supremo Tribunal de Justiça português a propósito, in verbis:

26MENEZES CORDEIRO, op. cit. p. 740.27PENTEADO, Luciano de Camargo. Op. cit.28 DUARTE, Ronnie Preuss. Boa-Fé, Abuso de Direito e o Novo Código Civil Brasileiro.. In TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson, coord. –Obrigações e contratos: contratos: princípios e limites (Coleção Doutrinas Essenciais; v. 3) – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. Pag.922 29“Art. 145. São os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando este for a sua causa. Art. 146. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo. Art. 147. Nos negócios jurídicos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela o negócio não se teria celebrado. Art. 148. Pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou. Art. 149. O dolo do representante legal de uma das partes só obriga o representado a responder civilmente até a importância do proveito que teve; se, porém, o dolo for do representante convencional, o representado responderá solidariamente com ele por perdas e danos. Art. 150. Se ambas as partes procederem com dolo, nenhuma pode alegá-lo para anular o negócio, ou reclamar indenização.

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“Quanto à boa fé: neste preceito, consagrou o legislador a boa fé no seu sentido objectivo, ou seja, enquanto padrão ético de conduta. O que quer dizer que, no exercício de um direito subjectivo, enquanto momento relacional, o sujeito jurídico deve actuar com honestidade – “honeste agere” –, como pessoa de bem, não devendo ter um comportamento que, face à sociedade, seja visto inequivocamente como desonesto: não é aceitável, designadamente, que o titular do direito o exerça com base numa actuação ilícita (“tu quoque”), possibilitando-se, nesse caso, uma reacção tradicionalmente designada por “exceptio doli ”30

Sem embargo, o caráter vago da exceptio doli possibilita-lhe um campo muito

amplo de ação, que vem permitir ao juiz a assunção de um papel e de uma atitude quase

pretórios na busca da justiça material se não usada com a devida cautela, conforme bem

salienta Pedro Pais de Vasconcelos.31

Talvez resida aí a razão de o instituto haver se tornado tão incomum, dando

lugar à sua substituição por outros tratamentos tipificados para o exercício inadmissível

de direito, como o venire contra factum proprium ou o tu quoque, por exemplo, que

dele diferem-se por linha tênue. Não obstante haver caído em desuso, a exceptio doli

assume relevante papel histórico na concepção de um direito calcado nos sustentáculos

da boa-fé, sendo um dos responsáveis pelo papel de controle que o instituto hoje assume

nos ordenamentos sob exame.

2.3. Suppressio

A expressão “suppressio” é mais uma classificação dada para o termo originário

alemão “Verwirkung”, que denomina o fenômeno da supressão de determinadas

faculdades jurídicas em razão do decurso do tempo. Com efeito, encontrando esteio nas

acepções da confiança legítima, legítima expectativa ou “princípio da confiança”, a

cessação do exercício de uma faculdade por lapso considerável implicaria a perda da

aptidão jurídica de fazê-lo, em evidente homenagem à boa-fé. Destarte, consiste a

suppressio em desdobramento do venire contra factum proprium que se configura na

inércia, omissão ou não-exercício do direito, pelo seu titular, por um período

prolongado, resultando na impossibilidade do referido exercício tardiamente, na medida

em que implicaria colidir frontalmente com os limites impostos pela boa fé.

Sobre a sua origem, cumpre transcrever lição de Menezes Cordeiro, in verbis:

30SUPREMO Tribunal de Justiça – Acórdão com o número 866/05.8TCGMR.G1.S1, de 28 de maio de 2013. Fernandes do Vale.31VASCONCELOS, Pedro Pais de – op. cit. p. 238.

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“Foram [...] as perturbações económicas causadas pela primeira grande guerra e, sobretudo, pela inflação, que levaram à consagração dogmática definitiva da suppressio. No primeiro caso, registraram-se alterações imprevisíveis nos preços de certas mercadorias, ou dificuldades acrescidas na realização de determinados fornecimentos. Em consequência dessas alterações, o exercício retardado de alguns direitos levava a situações de desequilíbrio inadmissível entre as partes. O segundo, através do chamado direito da valorização monetária, marcaria, pelas aplicações permitidas à suppressio, a sua consagração definitiva.”32

Essa proteção, assim, decorre do princípio da boa-fé objetiva, o qual, em se

tratando de relações jurídicas, sobretudo empresariais, deve ser conjugado com as

práticas indicativas da regularidade das condutas no mercado, conforme bem leciona

Judith Martins-Costa.33 Precisamente por isso, merece aplicação prática no cenário

contratual, conforme já restou reconhecido na seara jurisprudencial.

A título exemplificativo, em julgamento carreado à Terceira Turma do Superior

Tribunal de Justiça brasileiro34, restou aplicado propriamente o instituto em comento.

No caso concreto, tratava-se de ação de cobrança de multa prevista em contrato de

promessa de compra e venda de combustíveis e produtos derivados, sob a alegação de

que o posto de gasolina não adquiriu a quantidade mínima prevista no contrato. Na

hipótese vertente, a autora havia permitido, por quase toda a vigência do contrato, que a

aquisição de produtos pelo posto de gasolina ocorresse em patamar inferior ao pactuado.

Posteriormente, decorridos quase 5 (cinco) anos do contrato, cujo prazo total era de 76

(setenta e seis) meses, a autora propôs a ação de cobrança da cláusula penal.

Assim, o tribunal entendeu que, segundo o instituto da suppressio, o não

exercício de direito por seu titular, no curso da relação contratual, gera para a outra

parte, em virtude do princípio da boa-fé objetiva, a legítima expectativa de que não mais

se mostrava sujeito ao cumprimento da obrigação, presente a possível deslealdade no

seu exercício posterior. Destarte, apresentava-se desleal a exigência, ao fim da relação

contratual, do valor correspondente ao que não foi adquirido, com incidência de multa.35

32 MENEZES CORDEIRO, op. cit. pags. 798-801. 33 MARTINS-COSTA, Judith. Critérios para Aplicação do Princípio da Boa-fé Objetiva - com ênfase nas relações empresariais.. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, págs. 201-202. 34 SUPERIOR Tribunal de Justiça. Acórdão com o n° REsp 1374830/SP, de 23 de junho de 2015. Relator Ministro Ricardo Villas Boas Cuêva, Terceira Turma.35 A propósito, cf. também: REsp 953.389/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/2/2010, DJe de 15/3/2010 - REsp 1.190.899/SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 6/12/2011, DJe de 7/2/2012

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Referida decisão foi alicerçada em construção doutrinária e jurisprudencial, bem

como em interpretações teleológica e sistemática do Código Civil Brasileiro. A despeito

disso, há quem diga que, no Brasil, tanto quanto em Portugal, é de rejeitar a

possibilidade de reflexo do tempo nas relações jurídicas, fora das hipóteses

expressamente contempladas em lei, como no caso dos institutos da decadência e

prescrição36. Entretanto, sentimo-nos compelidos a discordar dessa posição, na medida

em que, como dito alhures, tratando-se de sistemas abertos, em que a supremacia

axiológica é dirigida pela dignidade da pessoa humana, o Direito Civil e as

Constituições mantêm intenso vínculo dialógico, com repercussão material imediata dos

princípios que lhes são comuns.

Não é por outra razão que o próprio Supremo Tribunal de Justiça português

também já acolheu expressamente a aplicabilidade do instituto, nos mesmos termos, em

alguns de seus julgados. Entre eles, aduzimos, a título de ilustração, revista37 em que se

discutia situação em que a ré, sem oposição da autora, vinha explorando, na cidade de

Amarante, desde 1993, o seu estabelecimento comercial de sapataria, sob a

denominação “Sapataria Carocha, Unipessoal, Ldª”, na mesma rua em que a autora

explorava o seu, sob a denominação “Sapataria Carocha”, vendendo, igualmente,

produtos de sapataria. E o tribunal assim entendeu:

“A omissão, a inércia, fomentam a confiança na situação induzida pelo comportamento omissivo, pelo que o exercício de direitos em contradição é abusivo por violador do princípio da boa-fé suposto na proibição do abuso do direito. 5. A passividade da Autora, não reagindo ao uso de marca confundível com a sua, por uma empresa concorrente, durante pelo menos onze anos, constitui tolerância de uso de marca por esse concorrente, pelo que sendo tão dilatado o período de violação do direito, depreende-se, razoavelmente, que pelo seu silêncio contemporizou com uma situação a que agora, sem invocar quaisquer circunstâncias relevantes supervenientes pretende obstar, em desconsideração pela expectativa e confiança adquiridas pela Ré em que tal direito não seria exercido. 6. A actuação da Autora, atento o objectivo que visa com a acção, ao fim de largos anos de inércia, aparece à luz da boa-fé e do fim social e económico do direito que pretende exercer, como violadora do princípio da segurança, pelo não deve ser atendida, não na modalidade de venire contra factum proprium, mas na modalidade da “suppressio” do direito da Autora que assim deverá ser penalizada pela sua injustificada passividade, durante pelo menos onze anos.”38

36DUARTE, Ronnie Preuss. Op. cit.. Pag.92037SUPREMO Tribunal de Justiça – Acórdão com o número 627/06.7TBAMT.P1, de 11 de janeiro de 2011. Relator Fonseca Ramos.38 Ibid.

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Destarte, bem se vê que a despeito de opiniões divergentes, a exemplo da de

José de Oliveira Ascensão, segundo o qual a suppressio é inadmissível no direito

português39, o fenômeno encontra, de fato, aplicabilidade na prática judiciária. Com

efeito, na medida em que se traduz em consectário direto da boa-fé objetiva, impõe

reconhece-la, também, como instrumento operante no exercício da função de controle

do abuso de direito eventualmente perpetrado no decurso de relações contratuais.

2.4. Surrectio

De forma mais ou menos inversa ao que se opera na incidência da suppressio, a

surrectio (Erwirkung) expressa o surgimento de uma posição jurídica em razão da

boa-fé alheia. Com efeito, há "surrectio", quando um indivíduo, por força da boa-fé

alheia, vê surgir na sua esfera uma possibilidade que, de outro modo não lhe assistiria.

Como se vê, ao passo em que o controle do ato abusivo de suppressio opera no

sentido da inadmissão do exercício de um direito subjetivo em razão do seu não

exercício durante considerável lapso, a surrectioopera em sentido diverso. Conforme

explica Luciano de Camargo Penteado a propósito, se, por exemplo, ocorre

distribuição de lucros diversa da prevista no contrato social, por longo tempo, esta

deve prevalecer em homenagem à tutela da boa-fé objetiva. Trata-se do surgimento do

direito a esta distribuição – surrectio – por conta da sua existência na efetividade

social.40

A origem do instituto, assim, é a mesma que norteia o funcionamento da

suppressio, sendo ambos pautados pelos efeitos do decurso do tempo no campo

obrigacional.

Igualmente operável, nesse sentido, afigura-se a surrectio no âmbito do

controle do exercício inadmissível de posições jurídicas. A propósito, o Superior

Tribunal de Justiça brasileiro, no julgamento do Recurso Especial 953.389/SP (3ª

Turma, de relatoria de Nancy Andrighi, DJe de 15/3/2010), muito bem coloca:

39 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil: Teoria Geral. Vol. 3. Coimbra: Ed. Coimbra, 2002, pags. 291-292. 40 PENTEADO, Luciano de Camargo. Op. cit.

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“A terceira função do princípio da boa-fé objetiva limita o exercício de direitos pelas partes, em hipóteses em que tal exercício viole o postulado da boa-fé, considerado como um standard jurídico. [...] A surrectio [...], consubstancia a possibilidade de surgimento de um dever contratual originalmente não previsto no instrumento, pelo comportamento reiterado das partes no sentido da assunção desse dever.”

Esse entendimento foi reiterado em julgamento de 201341, no qual se discutia

questão concernente a prestação de alimentos. In casu, a autora vivia em união estável

com o réu por aproximadamente 8 anos, mantendo, à época, padrão de vida bastante

elevado. A união estável foi desfeita mediante escritura pública levada a registro perante

o competente Cartório de Registro Civil, na qual, além de se disciplinar a divisão do

patrimônio do casal, a companheira/autora renunciou, expressamente, a seu direito à

percepção de prestação pecuniária a título de alimentos.

Não obstante a renúncia aos alimentos, o ex-companheiro, após a separação,

permaneceu pagando, pelo período aproximado de um ano, o valor de R$ 50.000,00

(cinquenta mil reais) a título de alimentos à ex-companheira, vindo abruptamente a

interromper esses pagamentos posteriormente.

Na ocasião, a relatora entendeu que, em princípio, a renúncia impossibilita o

pleito de novos alimentos, mas não impossibilita que a parte a quem a renúncia

beneficie os preste por liberalidade. E prossegue afirmando que tal liberalidade pode

decorrer de uma necessidade isolada, ou de uma necessidade mais duradoura. Poderia,

assim, implicar a intenção de prestar alimentos apenas nesses momentos de necessidade,

ou uma obrigação de prestá-los sempre. Não seria, pois, vedado em direito, que a parte

que perdeu o direito aos alimentos pela renúncia, venha a recuperar esse direito por

força de um novo compromisso, assumido pela parte contrária consubstanciado na

prática reiterada de determinado comportamento.42 A título de conclusão, consigna a

relatora:

41 SUPERIOR Tribunal de Justiça. Acordão com o n° REsp 1143762/SP, de 22 de maio de 2012. Relatora Ministra NANCY Andrighi Relator p/ Acórdão Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma. 42 Necessário observar, no entanto, que se tratando o caso vertente do próprio direito aos alimentos, irrenunciáveis a teor do disposto no art. 1707 do Código Civil Brasileiro, avultam-se outras circunstâncias de necessária observância, como, por exemplo, o binômio necessidade (do alimentando) e possibilidade (do alimentado), passíveis de serem suscitados a qualquer tempo como fatores ensejadores da prestação de alimentos.

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Para a hipótese dos autos assume importância - sempre se analisando a matéria, frise-se, em "status assertionis" - o instituto da surrectio. Se efetivamente comprovado pela autora que, não obstante sua renúncia aos alimentos manifestada em escritura pública, seu ex-companheiro tenha decidido assumir, por vontade própria, reiteradamente, a obrigação de lhe prestar alimentos em valor fixo por longo período de tempo, gerando-lhe a expectativa de que tal postura implicaria uma desistência quanto ao efeito liberatório decorrente da renúncia anterior, seria possível, ao menos em princípio, ponderar que esse dever, originariamente não previsto no acordo de dissolução da união estável, tenha sido gerado num ambiente de boa-fé objetiva.

Destarte, percebe-se, de forma cristalina, que a geração de legítima expectativa,

suscitada por uma parte em relação à outra, implica surgimento de obrigação oponível à

contraparte. Assim também entendeu o Tribunal da Relação de Coimbra em

julgamento43 sob relatoria de Hélder Roque, cujo excerto transcreve-se abaixo:

“O exercício do direito, pelo réu, de constituir uma hipoteca, a seu favor, sobre o prédio da autora, sem pagar a dívida de que aquela era garantia e de, em sede de reclamação de créditos, inicialmente reclamar uma quantia muito superior daquela que representava o valor do mútuo dado à autora, viola o princípio da boa-fé, representando um acto abusivo, ilegítimo, na modalidade da “surrectio”, que determina a nulidade do contrato de constituição da hipoteca voluntária”

No caso em comento, o efeito de controle exercido pela boa-fé na coibição do ato

abusivo na modalidade da surrectio foi de ainda maior rigor, implicando a própria

nulidade do contrato celebrado, no entendimento do relator.

Assim, necessário concluir que os tratamentos da suppressio e da surrectio,

enquanto formas de tutela da confiança concitada em outrem por um determinado

comportamento, pressupõe manutenção da coerência na conduta. Por isso, não importa

se por não exercer o direito, o seu titular queria ou não renunciar a tal direito,

importando, sim, que a esse comportamento possa ser legitimamente associado um

determinado significado perceptível pelo comum dos destinatários.44

43 TRIBUNAL da Relação de Coimbra – Acórdão com o número. 1868/06, de 11 de julho de 2006. Relator Hélder Roque.44 TRIBUNAL da Relação do Porto – Acórdão com o número nº 4949/10.4TBVFR.P1, de 03 de abril de 2004. Relator Aristides Rodrigues de Almeida.

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2.5. Tu quoque

Segundo o professor António Menezes Cordeiro “tu quoque” (também tu!) 45exprime a máxima segundo a qual a pessoa que viola uma norma jurídica não pode,

depois, e sem abuso: - ou prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente; - ou exercer

a posição jurídica violada pelo próprio; - ou exigir a outrem o acatamento da situação já

violada”.46

Especificamente, destarte, a fórmula tu quoque atua impedindo que o violador de

uma norma pretenda valer-se posteriormente da mesma norma antes violada para

exercer um direito ou pretensão47, consagrando o entendimento de que a ninguém é

lícito fazer valer um direito em contradição com a sua anterior conduta interpretada

objetivamente segundo a lei, segundo os bons costumes e a boa-fé, ou quando o

exercício posterior se choque com a lei, os bons costumes e a boa-fé, como ditam os

dispositivos pertinentes do Código Civil Brasileiro e do Código Civil Português. A

título de ilustração de aplicação prática, aduzimos excerto de julgado48 do Superior

Tribunal de Justiça brasileiro em que, tendo aposto visto falso em nota promissória, o

próprio emitente veio, posteriormente, a pleitear judicialmente a declaração de nulidade

do título pelo vício de forma.

Em resposta, a Terceira Turma do tribunal bem observou que o alegado vício

não poderia ser suscitado por quem lhe deu causa, entendendo pela aplicação:

“da 'teoria dos atos próprios', como concreção do princípio da boa-fé objetiva, sintetizada nos brocardos latinos 'tu quoque' e 'venire contra factum proprium', segundo a qual a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior ou posterior interpretada objetivamente, segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé.”49

45 Alguns defendem, embora não haja unanimidade (há quem entenda ser apenas uma lenda), que a expressão encontra sua origem na frase tu quoque, Brute, fili mi (Até tu, Brutus, meu filho?) que teria sido dirigida a Brutus por Júlio César, no momento de sua morte, conforme descreve Charles F. Lhomond. Também Shakespeare registrou o dramático momento em sua peça Julius Caesar, conquanto com expressão diversa, dotada de mesmo sentido: et tu Brute? (Até tu, Brutus?). (PEREIRA, Vitor Pimentel. A Fórmula Tu Quoque: Origem, Conceito, Fundamentos e Alcance Na Doutrina E Jurisprudência. [Em linha] Consulta em 16 de nov. de 2015. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/viewFile/9882/7744. 46 MENEZES CORDEIRO, António. Op. cit.pags. 837-838. 47 MOTA, Maurício; KLOH, Gustavo. Transformações Contemporâneas do Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 209 48 SUPERIOR Tribunal de Justiça. Acórdão com o n° REsp 141.879/SP, de 13 de novembro de 2012. Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. 49 A propósito, cf. também: REsp 1.040.606/ES.

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Tal entendimento também é amparado pela praxe judiciária portuguesa,

notadamente no julgamento do processo sob o n° 349/06.8TBOAZ.P1.S1, pelo

Supremo Tribunal de Justiça Português, sob relatoria de Alves Velho, em que se

consigna que:

“a invocação do abuso de direito não pode redundar, com subversão do escopo das exigências de forma, em mero instrumento de convalidação de negócios que a lei declara inválidos. Os efeitos da invalidade por vício de forma podem, apesar disso, ser excluídos pelo abuso de direito, mas sempre em casos excepcionais ou de limite, a ponderar casuisticamente, em que as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo”.

Conquanto não tenha o acórdão referido assentado expressamente a aplicação, in

casu, da modalidade de controle sob tu quoque, é evidente enquadrar-se nesta espécie a

alegação de nulidade por quem, tendo celebrado negócio jurídico e vendo-se às voltas

com o desejo de eximir-se das obrigações contraídas, alega a sua invalidade.

A convalidação, nesse sentido, representa verdadeira consagração da boa-fé

objetiva, promovendo a integração do negócio jurídico para preservar a aplicação, ao

negócio, dos standards éticos pré-concebidos pelo ordenamento jurídico.

2.6. Duty to mitigate the loss

O “duty to mitigate the loss”, de origem anglo-saxônica, prevê que as partes, em

razão de contrato ou de lei, tomem as medidas necessárias e possíveis para que eventual

dano não seja agravado. Muito embora seja tido comumente como dever, a doutrina

chama atenção para o fato de que no sistema jurídico da common law, o duty to mitigate

the loss corresponde a uma norma que, conjuntamente com outras, determina o valor da

indenização da vítima de um dano contratual ou mesmo extracontratual.50

50 DIAS, Daniel Pires Novais. O Duty to Mitigate the Loss no direito civil brasileiro e o encargo de evitar o próprio dano. In TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson, coord. –Obrigações e contratos: contratos: princípios e limites (Coleção Doutrinas Essenciais; v. 3) – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. Pag.693.

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Desse modo, não obstante a terminologia empregada, importa reconhecer que a

parte a quem a perda aproveita não pode permanecer deliberadamente inerte diante do

dano, na medida em que sua inércia imporá gravame desnecessário e evitável ao

patrimônio da outra, circunstância que infringe os deveres de cooperação e lealdade,

conforme, inclusive, restou reconhecido, no âmbito dos tribunais superiores brasileiros,

em decisão do Superior Tribunal de Justiça, que primeiramente acolheu a aplicabilidade

do instituto no âmbito do direito civil brasileiro.51 Desde então, o duty to mitigate the

loss tem ganhado força perante os tribunais brasileiros, inclusive relativamente a danos

experimentados na seara extracontratual.

Nos tribunais portugueses, o duty to mitigate the loss também encontra esteio,

tendo sido aplicado em casos concretos levados à apreciação do Supremo Tribunal de

Justiça. Em decisões recentes, o tribunal bem assentou que “não falta quem, no caso de

dano evolutivo, defenda o princípio normativo da boa fé- que deve estar subjacente a

toda a ordem jurídica e às relações sociais juridicamente relevantes (quer contratuais,

quer extracontratuais) impõe certas obrigações aos que nelas participam (como no caso

dos autos, a lesada) uma das quais é o chamado dever de mitigar e diminuir os danos ou,

pelo menos de conter o seu agravamento.”52

Ainda, consignou a 2ª seção, sob relatoria de Fernando Bento, que os deveres

laterais são deveres de comportamento ligados ao crédito indenizatório, impostos pela

boa-fé, como o seja a existência de um dever, a cargo do lesado, de atenuar e mitigar ou,

pelo menos, não agravar as consequências do dano, deixando prolongar o tempo de

imobilização para depois reclamar a indenização correspondente, sobretudo nos casos

em que a responsabilidade civil permanece controvertida.53

51 SUPERIOR Tribunal de Justiça. Acórdão com o n° REsp 758.518/PR, de 17 de junho de 2010. Relator Ministro Vasco Della Giustina (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), TERCEIRA TURMA. 52 SUPREMO Tribunal de Justiça – Acórdão com o número 353/08.2TBVPA.P1.S1, de 30 de abril de 2015. Relator Tavares de Paiva. 53 SUPREMO Tribunal de Justiça – Acórdão com o número 549/05.9TBCBR-A.C1.S1, de 12 de dezembro de 2012. Relator Fernando Bento.

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Como se vê, o duty to mitigate the loss, porquanto consectário direto dos deveres

conexos à boa-fé, impõe o encargo de que a parte a quem a perda aproveita não se

mantenha inerte diante da possibilidade de agravamento desnecessário do próprio dano,

na esperança de se ressarcir posteriormente com uma ação indenizatória;

comportamento que afrontaria, a toda evidência, os deveres de cooperação e de

eticidade preconizados pelos ordenamentos.54

Destarte, a aplicabilidade do instituto no âmbito dos tribunais brasileiros e

portugueses, seja na seara contratual ou extracontratual, demonstra que o direito civil

moderno passa por fenômeno de aplicação concreta também deste instituto, como

decorrência lógica do princípio da boa-fé objetiva, de modo que a ninguém é dado tirar

proveito da sua própria inércia quando, podendo agir para mitigar danos suportados,

nada fez nesse sentido.

54SUPERIOR Tribunal de Justiça. Acórdão com o n° REsp 1325862/PR, de 05 de setembro de 2013. Relator Ministro Luís Felipe Salomão, Quarta Turma.

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3. CONCLUSÃO

A função integrativa e de controle da boa-fé, tendo por fontes, especialmente, os

arts. 113 e 422 do Código Civil Brasileiro, bem como o art. 334º do Código Civil

Português, permite a identificação concreta, em face das peculiaridades próprias de cada

relação contratual, de novos deveres, além daqueles que nascem diretamente da vontade

das partes.

Destarte, juntamente aos deveres primários da prestação, exsurgem deveres

secundários ou acidentais da prestação e, até mesmo, deveres laterais ou acessórios de

conduta. Na sua função de controle, a boa-fé objetiva impõe limitação ao exercício dos

direitos subjetivos, estabelecendo para a parte, ao exercer o seu direito, o dever de ater-

se aos limites, traçados pela boa-fé, sob pena de uma atuação antijurídica, consoante

previsto no art. 187 do Código Civil Brasileiro e no art. 334º, do Código Civil

Português.

É visando à prática aplicação dos conceitos ora esposados que a doutrina

concebeu, notadamente sob lume trazido pelo Prof. Menezes Cordeiro, o tratamento

típico dos exercícios inadmissíveis de posições jurídicas, sob as formas do venire contra

factum proprium, exceptio doli, supressio, surrectio e tu quoque. Adicionalmente,

concluímos pela pertinência de se trazer, a título de tratamento tipificado do abuso de

direito, a figura do “duty to mitigate the loss”, a qual parece-nos, também, um

mecanismo eficiente para o controle do abuso exercido mediante deliberadas omissão

ou negligência.

No que concerne à aplicação prática de referidos fenômenos, verifica-se que é

com base no esteio legal e doutrinário, conferido ao controle do abuso de direito pelas

codificações em comento, que os tribunais brasileiros e portugueses vêm zelando pela

concreta aplicação dos institutos sob exame, como forma de preservação da cooperação

e da eticidade preconizadas por ambos os sistemas para o regular desempenho da

relação contratual, de forma justa e condizente com o princípio da confiança e da

legítima expectativa, a dignidade da pessoa humana, bem como com os fins sociais e

econômicos do direito.

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