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13 Sociedade e Cultura, v. 4, n. 2, jul./dez. 2001, p. 13-30 AS PROPOSTAS DE COTAS PARA NEGROS E O RACISMO ACADÊMICO NO BRASIL * José Jorge de Carvalho ** Resumo Neste texto, oriundo da transcrição de palestra proferida no dia 15 de agosto de 2002, ocasião em que foi lançado o Projeto Passagem do Meio: Qualificação de Alunos(as) Negros(as) para Pesquisa Acadêmica na UFG, o autor defende a necessidade de cotas nas universidades federais, a fim de que o quadro de ausência de alunos negros no ensino superior seja revertido. A argumentação é dirigida ao convencimento do quadro docente dessas universidades, uma vez que serão os professores dessas instituições que terão de decidir acerca da adoção das ações afirmativas nas universidades. Palavras-chave: Ação Afirmativa; Cotas; Universidades Federais. Primeiro eu gostaria de conectar esta fala com a última vez que falei aqui para mostrar o quanto já avançamos em relação à discussão que tivemos há três anos. A discussão sobre ações afirmativas nas universidades brasileiras ainda é muito pontual. A dívida da classe acadêmica com a tentativa de implementação de medidas de reparação é uma dívida altíssima e que apenas começa, de uma certa maneira, a ser equacionada. Mas, em um curto espaço de tempo, em apenas três ou quatro anos, certamente avançamos mais do que o fizemos em décadas. Embora seja um processo lento, podemos fazer uma leitura positiva pela seguinte razão: estamos construindo um espaço de discussão que vai ser difícil que o fechem. Eu acho que vai ser mais difícil a partir de agora silenciar a questão da ausência dos negros na universidade. * Palestra proferida na UFG no dia 15 de agosto de 2002, na ocasião do lançamento do Projeto Passagem do Meio: Qualificação de Alunos(as) Negros(as) para Pesquisa Aca- dêmica na UFG. ** Professor do Departamento de Antropologia da UnB, proponente das políticas de cotas para negros naquela instituição.

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Artigo que relata as contribuições do sistema de cotas para a educação brasileiroa.

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  • 13Sociedade e Cultura, v. 4, n. 2, jul./dez. 2001, p. 13-30

    AS PROPOSTAS DE COTAS PARA NEGROSE O RACISMO ACADMICO NO BRASIL*

    Jos Jorge de Carvalho**

    Resumo

    Neste texto, oriundo da transcrio de palestra proferida no dia 15 de agosto de2002, ocasio em que foi lanado o Projeto Passagem do Meio: Qualificao de Alunos(as)Negros(as) para Pesquisa Acadmica na UFG, o autor defende a necessidade de cotas nasuniversidades federais, a fim de que o quadro de ausncia de alunos negros no ensinosuperior seja revertido. A argumentao dirigida ao convencimento do quadro docentedessas universidades, uma vez que sero os professores dessas instituies que tero dedecidir acerca da adoo das aes afirmativas nas universidades.

    Palavras-chave: Ao Afirmativa; Cotas; Universidades Federais.

    Primeiro eu gostaria de conectar esta fala com a ltima vez quefalei aqui para mostrar o quanto j avanamos em relao discussoque tivemos h trs anos. A discusso sobre aes afirmativas nasuniversidades brasileiras ainda muito pontual. A dvida da classeacadmica com a tentativa de implementao de medidas de reparao uma dvida altssima e que apenas comea, de uma certa maneira, aser equacionada. Mas, em um curto espao de tempo, em apenas trs ouquatro anos, certamente avanamos mais do que o fizemos em dcadas.Embora seja um processo lento, podemos fazer uma leitura positiva pelaseguinte razo: estamos construindo um espao de discusso que vai serdifcil que o fechem. Eu acho que vai ser mais difcil a partir de agorasilenciar a questo da ausncia dos negros na universidade.

    * Palestra proferida na UFG no dia 15 de agosto de 2002, na ocasio do lanamento doProjeto Passagem do Meio: Qualificao de Alunos(as) Negros(as) para Pesquisa Aca-dmica na UFG.

    ** Professor do Departamento de Antropologia da UnB, proponente das polticas decotas para negros naquela instituio.

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    Ento eu quero mostrar o que temos no momento, como era antese depois para analisar mais detalhadamente a situao das universidadesfederais.

    Na verdade, a grande barreira que o vestibular esta formaabsurda de excluso do vestibular universalista brasileiro comea aquebrar este ano, no ano de 2002. A UERJ (Universidade do Estado doRio de Janeiro) e a UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense)adotaram um vestibular que no mais universalista. Como vocs devemsaber, por um decreto do governador e da Cmara Estadual do Estadodo Rio de Janeiro, o processo seletivo da turma de 2003 reservar 50%das vagas para os alunos egressos de escola pblica e 40% das vagaspara os alunos afro-descendentes.

    Como se sobrepem os alunos de escola pblica e os alunos afro-descendentes, isto significa que a UERJ e a UENF no esto mais abertassomente ao mercado dos cursinhos. No podemos separar o ingressonas universidades do mercado dos cursinhos. A vaga do vestibular noBrasil tem um valor. A no ser em casos muito excepcionais, podemosat chegar a descobrir quanto custa uma vaga numa universidadebrasileira: em tempo e em dinheiro.

    Pela primeira vez, isso comea a mudar por meio dessas decisesno Estado do Rio de Janeiro. A outra notcia tambm bastante espetacular, a deciso do Conselho dos Professores da Universidade Estadual daBahia (Uneb). Na Universidade Estadual da Bahia, 40% das vagas detodos os ncleos esto reservadas para afro-descendentes na graduaoe na ps-graduao. Essa modificao j ser implementada no processoseletivo da turma de 2003. Isto significa que a deciso na Uneb maisampla do que na UERJ e na UENF.

    Alm dessas modificaes no plano estadual, gostaria decontinuar mencionando o quadro geral das universidades estaduais paradepois ver como esto as federais.

    Vocs devem saber que a Universidade Estadual do Mato Grosso(Unemat) tem se dedicado formao de indgenas. Nesta universidade,foi formada uma turma de 200 ndios, que esto cursando o primeiro ano:120 ndios do Estado do Mato Grosso e 80 do resto do pas.

    A Universidade Estadual do Paran, tambm por um decretoestadual, tem de reservar duas vagas de cada um dos cursos de todos osseus ncleos para os ndios do Paran.

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    Fiquei sabendo ontem que a Universidade Estadual do Amazonascomea a ter algumas aes no sentido da construo de uma universidademais diversa. Comeam a ser assinados alguns convnios para a formaode ndios para que eles ingressem na Universidade Estadual do Amazonas.

    As duas universidades metodistas, a Unimesp (UniversidadeMetodista de Piracicaba) e a Umesb (Universidade Metodista de SoBernardo), que so duas grandes universidades particulares do Brasil,reservaram cinco vagas e cinco bolsas cada ano para negros. Ainda pouco, mas de qualquer forma uma sinalizao que vem no sentido daampliao das oportunidades para a populao negra brasileira. H dese notar que uma medida implementada por uma denominao religiosano pas, pelas igrejas luteranas.

    Apesar de pontual, ainda podemos mencionar as aes daEducafro. Essa entidade, que dirigida pelo frei Davi Raimundo Santos,consegue bolsas de estudo para alunos negros e carentes. uma polticada Educafro unir sempre negros e carentes. As suas atuaes so maisincisivas nas universidades catlicas, nas PUCs; mas a Educafro, atravsdo frei Davi, tem conseguido bolsas em instituies ligadas a outrasdenominaes religiosas, como a Metodista de So Bernardo.

    Diante deste quadro, podemos dizer que a grande barreira nestemomento para uma interveno anti-racista no Brasil so as universidadesfederais. Para mim, no h dvida quanto a isso, quanto mais participode debates, mais fica claro o quanto de resistncia existe na categoriados professores universitrios. Por muito tempo eu imaginei que a lutapela ao afirmativa deveria ser construda em cima da demonstraoda ausncia de alunos negros nas universidades brasileiras.

    Mas, na verdade, eu penso que a argumentao deve ser dirigidapara o convencimento dos professores. Por qu? Porque os professoresso uma corporao, um segmento de poder com uma ideologia prpria,com um acesso direto ao poder e com uma capacidade de reproduzir aelite brasileira. O Estado entrega aos professores universitrios 95% dopoder de reproduzir a elite. Ento, quem vai modificar o perfil racial daelite brasileira sero os professores universitrios, toda a presso dascotas para negros tem de ser colocada em cima dos professoresuniversitrios. Inclusive a prpria resistncia do ministro pequena diantedo poder que os professores teriam. Se os professores fazem uma greve

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    e derrubam o ministro, eles poderiam perfeitamente adotar cotas mesmose o ministro no quisesse.

    Ento preciso balancear, por um lado, a interveno dosprofessores universitrios nesta luta contra o racismo no Brasil e, poroutro, a conivncia com o racismo. Assim, gostaria de enfatizar que preciso compreender o racismo acadmico e este somente pode sercompreendido no momento que compreendermos a classe dos profes-sores universitrios e a maneira como eles se comportam diante doracismo brasileiro.

    Nunca se discutiu tanto a excluso dos negros nas universidadesbrasileiras como tem sido feito nestes dois ltimos anos. O Brasil estsendo pressionado de fora para dentro, assim como o regime do apartheidda frica do Sul tambm foi. claro que houve uma grande luta internacapitaneada por Nelson Mandela, mas no podemos perder de vista quea presso externa foi essencial para que o apartheid fosse eliminado,no devemos esquecer que a frica do Sul foi pressionada por meio deembargo econmico durante dcadas. Mesmo em pases racistas comoa Inglaterra, uma parte da populao inglesa pressionava o governo paradesenvolver aes contra o regime da frica do Sul. Sem dvida nenhuma,parte da luta para acabar com o apartheid se deveu ao papel desem-penhado pela comunidade internacional, enquanto uma outra parte sedeveu a uma luta interna de negros e brancos anti-racistas.

    No ano 2000, o Brasil foi finalmente pressionado pela comunidadeinternacional a mostrar que tipo de relao racial ns temos aqui. Porqu? Porque os nossos professores passavam o tempo todo no exteriordizendo que ns tnhamos uma democracia racial, que aqui tinha umamestiagem, que ns no tnhamos racismo. No quero citar nomes,mas algum dia eles vo aparecer no papel. Uma quantidade de professoresque andou dando conferncias nos Estados Unidos, na Inglaterra, naFrana, contando uma mentira l fora, a saber, que aqui as relaesraciais eram timas, que o problema eram os Estados Unidos e a fricado Sul. O Estado brasileiro preparou uma elite para mentir sobre anatureza do pas no exterior.

    Entretanto, no ano de 2000, depois que uma leva de intelectuaisacadmicos, sobretudo norte-americanos, veio ao pas, descobriu-se queo que esses professores brasileiros falavam no exterior no condizia coma realidade. Esses intelectuais estrangeiros que nos visitaram disseram,

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    em suma, que a realidade no Brasil, no que diz respeito s relaes raciais, bem pior do que o que fora apresentado. Conseqentemente, pressio-naram o Brasil a preparar um perfil a ser apresentado na reunio mundialcontra o racismo na frica do Sul. Essa interpelao do exterior levou oIpea a juntar dados que muitas pessoas j sabiam sobre as nossas relaesraciais. S que esses dados apareceram na mdia, aqui est a novidade.Assim, muitos jornalistas, que provavelmente no tinham a clareza sobreesses dados porque sempre confiaram no que os professores universitriosdiziam, se surpreenderam com o grau de desigualdade racial entre ns.Logo, esses dados do Ipea foram decisivos para a ampliao da discussode polticas pblicas de combate s desigualdades entre ns. Ento, oprofessor Roberto Martins, diretor do Ipea, se tornou uma figura conhecidanacionalmente porque ele andava pelo Brasil inteiro. Ele projetava naparede uns grficos impressionantes sobre a excluso racial. Todos osdados relativos ao emprego, sade, escolaridade revelavam que quem negro s leva desvantagem no Brasil. Os dados do Ipea so irrefutveis.Eu nunca vi em nenhum lugar ningum que tenha conseguido desmontaresses dados, ningum que minimamente tenha se apresentado paracontra-argumentar. J se vo mais de dois anos que esses dados estosendo distribudos pelos jornais, na televiso e em todos os lugares.

    Ento, a conferncia de Durban certamente ajudou a luta anti-racismo no Brasil. Muitos que diziam que ns no tnhamos racismo secalaram ou no encontraram mais oportunidades para se pronunciar coma mesma liberdade que se pronunciavam antes.

    Desses dados do Ipea e dos que foram divulgados recentemente,eu menciono os seguintes:

    O provo revela que apenas 2% da populao universitria brasi-leira so alunos negros, ou seja, o exame oficial do Ministrio da Educaorevela a excluso do negro do sistema de ensino no Brasil.

    Outro dado surpreendente o de que num curso como Odontologia,um curso chamado de prestgio, que garante altos salrios, apenas 0,7%dos alunos que se formaram no ano 2000 eram negros, pretos e pardosjuntos. Ou seja, Odontologia um curso branco. O mesmo pode ser ditopara o curso de Medicina e Direito, para citarmos apenas dois. Medicina um curso completamente branco, Direito um curso branco.

    A UnB no sabe quando foi a ltima vez que teve um aluno negrona Medicina, no se sabe se foram trs, quatro ou cinco anos atrs. J

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    perguntei aos professores, que no tm nem memria de quando tiveramum aluno negro. Existem professores na UnB que nunca viram um alunonegro na frente deles na sala de aula. Os professores das Faculdades deSade, de Jornalismo, de Direito, de Relaes Internacionais, de Medicina,de Odontologia nunca viram um aluno negro. Nesses cursos no entramnegros.

    A partir desses dados, eu gostaria de perguntar o seguinte: comoest o Brasil comparado com esses outros lugares? Ns estamos pioresdo que a frica do Sul. A frica do Sul foi por muito tempo o lugar dehorror das relaes raciais e o Brasil seria o paraso das relaes raciais.

    Porm, na frica do Sul, qualquer campus universitrio maismultirracial do que a UnB, do que a UFG, do que a Unicamp, do que aUSP. Imediatamente, aps o apartheid, os campi se tornaram multirra-ciais. Isso fcil de vocs constatarem, s entrar em qualquer site dasuniversidades sul-africanas, acessar determinado departamento, e veronomes de origem holandesa e inglesa, nomes de origem africana e indiana.Assim, a partir dos nomes vocs deduziro que h a presena de descen-dentes de indianos, de negros e brancos de origem holandesa e inglesanas universidades sul-africanas. Com dez minutos de pesquisa, vocsvero que as universidades da frica do Sul so mais multirraciais queas nossas. Ento essa idia de que somos melhores do que os sul-africanosacabou. Se estendermos o olhar para o corpo discente das universidadesbrasileiras e da frica do Sul, constataremos a mesma coisa, a saber, omaior nmero de negros entre os africanos.

    Vo para os Estados Unidos, a mesma coisa! Vocs conseguiroidentificar os afro-americanos, pois todas universidades americanasexpressam a porcentagem racial dos seus quadros, porque isso umacoisa que conta moral e financeiramente para elas. As universidades eos colleges tm de provar que so multirraciais, porque isso um pontoimportante para legitim-los junto s fontes financiadoras de pesquisa.Uma grande preocupao das universidades norte-americanas reside naconstruo de uma imagem favorvel aos grupos socialmente margina-lizados, isto , elas se preocupam profundamente em transmitir a imagemde que elas so inclusivistas, isto um valor para essas universidades.

    Vou falar mais claramente dos Estados Unidos, que eu sei que um pas to crucial na nossa vida, posto que nos impe uma refernciacentral.

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    Nos anos 60 e 70, os nossos cientistas sociais, os nossos idelogos,sempre diziam que o Brasil era um lugar integrado, um lugar multirracial,que tinha democracia racial, enquanto os Estados Unidos eram um pasde segregao racial, racista, intolerante, violento, que linchava negros;logo os negros no tinham acesso a nada naquele pas. Todavia, o queestamos vendo concretamente o seguinte: como diz Thomas Skidmore,os Estados Unidos esto se transformando em um pas multirracial, ondeo tempo todo se fala numa perspectiva que visa contemplar os latinos, osmexicanos, os indgenas, os negros, os asiticos e os brancos. Eu noestou dizendo que aquilo seja um paraso, mas em amplos setores dasociedade h presso para que haja uma integrao ao mercado detrabalho, acesso aos benefcios, acesso aos cursos superiores, possi-bilidades de ascenso social, possibilidades de uma maior rentabilidade,possibilidade de acesso aos espaos de poder da sociedade.

    Eu perguntei anteontem, quando estava no Ministrio da Justiaem Braslia, a duas professoras norte-americanas do Bates College, umainstituio do ensino superior do Estado do Maine, um Estado bem prximoao Canad, um Estado muito branco, da chamada Nova Inglaterra. OMaine um lugar tradicionalmente muito racista, vamos colocar nestestermos. Um lugar bem plantado do mundo dos protestantes brancos, umEstado majoritariamente branco. Nesse Estado do Maine, a meta dessasduas professoras, que so da rea de ao afirmativa, de num prazo decinco anos, comeando agora, ter 25% de estudantes no-brancos noCollege. Isto , transformar o College num espao multirracial: colocarndios, negros, asiticos, latinos para que este college tenha mais prestgio.Se ele continuar branco como est agora, ele estar perdendo prestgio.

    A no h nenhuma discusso do capital, nenhuma propostasocialista, nenhuma proposta renovadora da ordem do capital; todo mundopode acumular riqueza. Mas, digamos assim, celebra a diversidade. Sejacomo for, pelo menos alguns passaram a ser bilionrios: ndios bilionrios,latinos bilionrios, negros bilionrios. Seria este mais ou menos o idealque est sendo colocado para aquele college do Maine.

    Agora, eu quero contrastar isso com o que acontece no Brasil. Oque ns fizemos aqui? O que os professores de Cincias Sociais, Histria,Cincia Poltica, Filosofia, Antropologia, Sociologia, Psicologia falam?Como estamos ns?

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    A Universidade de Braslia tem 1400 professores, apenas 14 sonegros. Num universo de 1400, 1% de negros. Lembrem-se que o DistritoFederal tem 63% de pretos e pardos. O Distrito Federal a terceiraregio metropolitana mais negra do Brasil, depois de Salvador e So Lusdo Maranho, mais do que o Rio de Janeiro. Isso um dado que assustaporque as pessoas no param para ver isso a. Isso saiu num dado daCmara dos Deputados, no ano 2000. Como possvel essa ausncia?Tem mais um agravante, desses 14 professores, ns conhecemos apenasquatro que se reconhecem como negros, dez no querem se auto-identificar. Mas tudo bem. Isso outra questo, as pessoas tm o direito,lutaram para chegar a ser um professor universitrio, sofreram muitopara chegar l e, por enquanto, no querem se apresentar diante dosseus colegas desse modo porque em geral so professores que estoisolados num colegiado. No sei como o cotidiano desses professores,mas o fato que eles procuram no participar muito desses debates.

    A PUC/Minas, vamos compar-la com a frica do Sul. A PUC/Minas uma universidade gigantesca, que tem 35 mil alunos, a quintamaior universidade do pas. Ela j tem inclusive vestibular especficopara os moradores das periferias de Belo Horizonte. H tambm umgrande movimento na PUC/Minas por aes afirmativas. Ela tem 2 milprofessores, s 25 so negros. Ficamos mais ou menos no 1% que estavana UnB.

    E o professor Joaze me entregou agora os dados sobre a UFG. Eusei que esses dados no so precisos, no so exatos, mas mesmo quetenhamos uma margem de erro de 10% a 20%, a gente precisa ter umaimagem desse panorama. Os dados so fundamentais, porque elesacabam com mitos, acabam com retricas. De 1130 professores, oprofessor Joaze calcula mesmo que ele erre 10 para mais 10 paramenos , eles so apenas 15. Ainda no chegam a 2%.

    O professor Joo Batista Borges Pereira, da USP, deu-me umdado que revela decididamente o grau de excluso racial nas nossasuniversidades. A FFLCH, a Faculdade de Filosofia e Letras e CinciasHumanas da USP um dos nossos principais centros de reflexo sobreo pas, onde esto Roberto Schwartz, Marilena Chaui e tantos nomesconhecidos nacionalmente, como Antonio Candido , de 504 somenteum negro. Esse nico negro africano, no nasceu no Brasil, no seformou no Brasil. Ento podemos considerar que, com a morte de Milton

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    Santos, a FFLCH, a principal faculdade de referncia, que escrevecontinuamente livros sobre a nao, sobre a sociedade brasileira, sobre opensamento social brasileiro, branca! uma faculdade branca, esta a leitura que os brancos esto fazendo da histria do Brasil, dosbandeirantes, da cordialidade brasileira, da mestiagem brasileira, damodernizao, das caractersticas da literatura brasileira. um grupo de504 brancos que descrevem o Brasil.

    A grande mudana de uns quatro anos para c que antes aacademia brasileira no tinha cor. A cor no era colocada nem pensadacomo uma questo. As nossas universidades no so multirraciais demodo algum. O nosso plantel acadmico completamente branco. Apartir dos ltimos quatro anos, comeamos a ler racialmente as nossasuniversidades. Esta que a grande mudana na maneira de falar e deescrever a nossa realidade. At ento no tinha cor, o CNPq no tinhacor. O CNPq era apenas universalista, os melhores entravam. Temcinqenta anos que tem o mesmo perfil, no muda. E eu ainda dou maisum argumento para dizer como difcil mover isso. Recentemente, saiuum livro chamado Cientista do Brasil, composto de entrevistasconcedidas por cientistas brasileiros de todas as reas, para fazer umperfil dos 65 anos da SBPC. Esse livro tem as fotos de todos os cientistasbrasileiros que eles escolheram. Tem um nico negro, que no ano passadofaleceu, Milton Santos. Tinha um em 65, todos os outros eram brancos.Interessante que nesse depoimento o prprio professor Milton Santosno fala de suas origens. Ele no quis abordar a questo racial. Ele sabemuito bem o que deve ter sido viver no mundo branco dos professoresuniversitrios: um peixe completamente fora dgua. Ele preferiu no seconstruir desse modo. Mas no deixa de ser dramtico. A jornalista fez apergunta e ele se esquivou. Ele no quis falar sobre isso.

    A a e gente pode generalizar. Para chegar s cotas, para que osalunos negros entrem na universidade, ns temos de dizer que quem vaidecidir as cotas sero brancos. Esse ponto fundamental. Se vocsaumentam esse panorama, vocs vero a excluso dos negros de qualquerrea do saber no Brasil. Por qu? O Museu Nacional branco, o MuseuGoeldi branco, todos os pesquisadores de Maguinhos so brancos, todosos pesquisadores da Coope da UFRJ so brancos, todos os pesquisadoresdo Impa (Instituto de Matemtica Pura e Aplicada) tambm so brancos,

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    da Oswaldo Cruz, do Butant, so brancos. Para onde voc olhar, acincia brasileira est inteiramente branca. Isso foi construdo assim, fazmais de quarenta anos.

    Ento, como vamos mudar isso? Por isso, a luta na UnB todifcil, a luta na UFG tambm no vai ser fcil, na USP que nem sequercomeou, na UFRJ que nem sequer comeou tambm, porque nem sequerentrou na conscincia das pessoas que ns estamos pior que a frica doSul, que ns estamos pior que os Estados Unidos. As pessoas no queremadmitir o que ns construmos durante o sculo XX. Por qu? Porque oscientistas sociais ajudaram a mentir.

    O que acontece que formar esse quadro no fcil, a gente estfalando de um assunto que quase ningum fala. como se fssemosdescrever pela primeira vez uma paisagem. Imaginem agora se eucomeasse a dizer como a Nova Guin. A Nova Guin caracterizadapor um tipo de pntano muito profundo. H rvores de cinqenta metrose montanhas. Logo em seguida tem muitos vales etc. Fica complicado.Mas se todos os dias uma pessoa comeasse a falar de repente como a paisagem da Nova Guin, fica mais fcil. Como muitos imaginam osEstados Unidos, sem nunca ter ido l. Simplesmente porque se nomeiammuito as paisagens. Ento eu sinto que falar que as universidades brasileirasso brancas algo parecido com isso, um argumento que poucasvezes invocado. Inclusive porque os professores no gostam de dizerque uma pessoa branca, nunca se fala de branco no Brasil. No estamosacostumados a ver o Brasil polarizado. Porm, na realidade, o Brasil uma sociedade polarizada nas reas de poder, onde as decises sotomadas; nas reas de prestgio e nas reas de concentrao de renda, oBrasil polarizado. o Brasil branco que o que diz o Ipea. Existemdois brasis, o Brasil rico de brancos e o Brasil pobre de negros. Isso estno texto do Ricardo Henrique, no site do Ipea. Aps uma anlise dosdados, esta concluso a que Ricardo Henriques chega. A dificuldadeest, em primeiro lugar, em falar deste assunto. Porque existe um discursoque j foi construdo e que diz o oposto, a saber, que o Brasil foi integradoao longo do sculo, desde o final da escravido.

    Construmos uma auto-representao falsa acerca das nossasrelaes raciais, a questo que colocamos agora saber como vamossair disso. Ento, eu quero dizer como isso foi construdo. Se vocs

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    quiserem somente os dados dos alunos para ter idia do que significaentrar na universidade no Brasil, ento eu vou dar um exemplo: o Sigma,um dos principais colgios particulares de Braslia, que tem um doscursinhos preparatrios mais poderosos, que mais leva estudantes paraUnB, tem 3 mil alunos. No ano passado, tinha dois negros, uns meninosque tocavam maracatu. De 3 mil alunos, apenas dois negros, o que isso? Onde estamos? Nem a frica do Sul assim. Como pode existirum colgio que de 3 mil alunos s tem dois alunos negros, numa cidadede 63% de negros? Isso no deveria sequer ser permitido, j entraria napauta dos direitos humanos, isso no est apenas na pauta de mercado.Existem alguns pases do mundo que no permitem um negcio desses.O colgio devia ser obrigado a integrar os alunos. Na verdade, h muitotempo um colgio como o Sigma deveria ter sido forado a reservar umnmero de vagas para os alunos negros de Braslia. No deveria serpermitido por razes de direitos humanos, porque est formando umagerao de pessoas insensveis aos negros. Como uma pessoa que viveem uma cidade com 63% de negros, que na hora que se formou, ele noteve nenhuma relao afetiva com nenhum negro? Um juiz de direito,um mdico, qualquer cargo que tenha relao com o pblico, como elevai tratar um negro? Se os negros so seres que no tm registro napaisagem pessoal e existencial de um jovem do Sigma? Essa realidadeto comum no Brasil predispe negativamente qualquer pessoa brancaem relao aos negros, assim natural que essas pessoas se oponham implementao de aes afirmativas no Brasil. Ento, j da parte dosestudantes, para vocs verem, temos uma resistncia contra as aesafirmativas.

    Da parte dos professores, tem-se uma resistncia clara. Eles noquerem distribuir os privilgios que eles detm para qualquer um. Daparte dos estudantes, eu acho que eles poderiam incorporar as demandasmais facilmente. O estudante, em geral, est mais aberto para a novidade,poderia incorporar mais facilmente. A questo com os estudantes asensibilidade. Como transformar essa sensibilidade? Por qu? Porquens temos em cidades como Braslia, So Paulo, Rio de Janeiro, Goiniauma casta de jovens de classe mdia que vive num Brasil completamentebranco. Pessoas que nasceram em um condomnio ou em conjuntoshabitacionais de brancos ricos. Foram a um jardim de infncia branco, escola branca, discoteca branca, aos clubes brancos, quando vo ao

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    shopping esto ligados somente aos brancos, passam no vestibular pormeio de um cursinho branco. Todos os seus colegas so brancos. Arelao que essas pessoas tm com os negros uma relao sempremarcada pela desigualdade: o negro a pessoa que cuida dos seus carros, o porteiro. Os negros no fazem sentido para essas pessoas brancas,no habitam a imaginao dos brancos numa situao de igualdade. Issofoi construdo no Brasil principalmente nos ltimos quarenta anos e paradesmontar essa estrutura no fcil.

    Falando dos Estados Unidos, Thomas Skidmore diz o seguinte: elecansou de ver brasileiros nos Estados Unidos falando que o Brasil eraum pas integrado e os Estados Unidos eram um pas polarizado. Atrajetria de pesquisador dele, Skidmore, diz que os Estados Unidos agoraso um pas multirracial e o Brasil est ficando cada vez mais polar.

    Ento, para concluir, estou dizendo o seguinte. A excluso racialnas universidades brasileiras cresceu nos anos 60 e principalmente nosanos 70. O estrago em cima da comunidade negra feito pela ditadura foimaior do que em qualquer perodo anterior. O estrago que os negrossofreram, que os brancos imputaram aos negros de 1888 a 1964, foimenor que o de 1964 a 2000. A minha hiptese a seguinte. No censo de1950, no se tinha, entre mdicos e engenheiros, nem mil profissionaisnegros contra 40 mil brancos, esses dados podem ser conferidos no livrode Clvis Moura, que se chama O negro de bom escravo ao cidado.O censo de 1950 mostra que os negros estavam excludos absolutamentedo convvio social no Brasil. Naquele censo, os pardos eram 48%. Ento,foi naquele censo que se construiu a imagem do Brasil como um pasmoreno, um pas mestio. Toda essa teoria da morenidade foi construdacom esse discurso dos anos 50. A veio o censo de 1960 e s recentementeeu fiquei sabendo de uma informao que para mim crucial. Logodepois de ter sido feito a coleta de dados para o censo de 1960, os militarestomaram o poder em 1964 e pararam o processamento das fitas. Elesproibiram o processamento dos dados, ento o Brasil ficou com o censode 1950 vigente. O numero de mulatos muito alto em 1950 porque estecenso reflete um imaginrio social que enaltecia a morenidade. Em 1960,os militares no deixaram processar o quesito cor. Em 1970, eles fizeramalgo pior, eles tiraram o quesito cor dos questionrios do IBGE. Ento,nos anos 60, 70 e incio dos anos 80, ns ficamos falando que o Brasil eraum pas moreno, porque no tnhamos nenhum dado, isto era pura

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    ideologia construda pelos cientistas sociais em cima de uma realidadeimaginria dos anos 40. Os dados que dispnhamos eram do censo de1950, que refletia os valores, ideais, esteretipos dos anos 40. Assim, eramuito confortvel dizer que no Brasil no tinha problema negro,simplesmente porque no existiam dados que refletiam os anos 70 e 80.Nos anos 70 e 80, o Brasil era um pas de mulatos, de morenos. Da aidia das mulatas do Sargentelli, da toda a apologia mulataria. Notinha problema nenhum. ramos o paraso racial.

    Paremos, por um momento. Durante os anos 60 e 70 durante aditadura militar , o Brasil expande seu sistema universitrio como nunca.Ela passa de uns 80 mil universitrios para uns 500, 600, 700 mil nosprincpios dos anos 70. Um crescimento incrvel. O Brasil se endividainternacionalmente e funda vrias universidades federais. Ao lado dafundao das universidades, h o crescimento do CNPq, que passou ainvestir nessas dcadas pesadamente para o desenvolvimento das ps-graduaes em todo o pas, em todas as reas. Assim, nesse perodo,cresceu o CNPq, cresceram Manguinhos, Goeldi, o Museu Nacional;enfim, as principais instituies de pesquisa do nosso pas. O resultadodesse crescimento espantoso que o nosso parque acadmico ao ladodo parque acadmico da ndia e da Austrlia passa a ser um dos maioresdo Terceiro Mundo.

    A minha teoria a seguinte: nosso parque acadmico cresceu nosanos 70 e se consolidou sem nenhum negro no meio. Jogando todos osnegros do lado de fora. Pois foram os brancos que tomaram todo essedinheiro e fundaram todas essas universidades. Foram os professores daUSP, que formou uma leva de universitrios que depois se tornaramprofessores das universidades federais. Os formados na UFRJ forampara outras universidades. Ou seja, das antigas universidades federaissaram os brancos que foram reproduzindo aquele saber construdo nasmais fortes. Ento, uma grande rede da academia se formou totalmentebranca. O que acontece agora? Agora ns temos uma segunda geraode professores, de pesquisadores que tm suas redes de pesquisa jconsolidadas. como se fosse construir um edifcio nos anos 60 e naquelemomento os negros no ajudaram a construir o edifcio. Os brancosconstruram o edifcio e ocuparam todos os apartamentos. Como os negrosvo entrar l? J tem uma lista de espera de pessoas brancas que querementrar nesses apartamentos. Pois, cada professor, que tem a sua rede de

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    assistentes de pesquisas fazendo mestrados e doutorados, dar prefe-rncia sua rede. Assim, evidente que, no primeiro concurso que tiver,eles vo tentar colocar o aluno deles l, o ex-aluno que est na rededeles. Ento, esse jogo para deixar os negros do lado de fora. Por isso,eles so 1% dos professores universitrios e continuaro assim por cemanos se for necessrio e se no for feito nada. No vejo, sem uma aodramtica, como vamos mudar esse quadro. Eu no vejo, concretamente,nenhuma sada, a no ser a instalao imediata de cotas em todos osnveis para conscientizar as pessoas de que as universidades brasileirasnunca foram dos negros e de que nunca o negro esteve integrado nasociedade brasileira.

    A diferena que no estamos mais na poca da retrica. Noestou interessado mais em discutir com o Roberto DaMatta se a teoriadele do tringulo das raas funciona ou no. Pois j tenho dados. Eu nopreciso mais desse tipo de argumento. Eu quero que ele me responda oque ele vai fazer quando descobrir que a UFF, onde ele d aula, s tem1% de negros, o que ele vai fazer? Eu no quero saber para que serve ateoria dele. Quero que ele me responda seguinte pergunta: ele vaicolocar cotas para professor l? Eu quero perguntar aos professores doMuseu Nacional que o principal plo da Antropologia brasileira e temalgo em torno de trinta professores e no tem um dedicado aos estudosafro-brasileiros se eles vo colocar cotas para professor l. No incrvel? H quinze etnlogos. evidente que tm de estudar os ndios.Mas por que no estudam os negros? Como foi possvel para o MuseuNacional durante os ltimos trinta anos nem sequer se colocar em questoa respeito da ausncia de um especialista em estudos afro-brasileiros? por isso que os professores universitrios tm uma grande responsa-bilidade perante a mudana. Porque evidentemente o Estado vai entregarem grande parte essa discusso para os professores universitrios. Aeles sero incumbidos de devolver nao uma proposta.

    O aluno Sales, que vocs conhecem, que doutorando emSociologia na UNB, est aplicando neste momento um questionrio arespeito de como os professores percebem a ao afirmativa. Se esto afavor ou contra as cotas. Quais as aes afirmativas que eles maisaconselhariam? Sabe de um fenmeno incrvel? Os professores da Socio-logia e da Antropologia esto se recusando a fazer entrevistas. Eles no

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    querem dizer o que acham das aes afirmativas. Isto para mim umdado importantssimo.

    Na ABA, vou dar mais um exemplo, para dizer como os cientistassociais esto se silenciando a respeito dessa questo. Termino de vir deuma reunio da Associao Brasileira de Antropologia e eu estava namesma mesa com o professor Alex, da UFG. Assim, peo a vocs quepeguem a circular da ABA do ms passado e leiam a carta que opresidente da ABA mandou. A carta diz assim: tivemos a reunio daAssociao Brasileira de Antropologia com grande sucesso, havia 1500pessoas participantes dessa reunio, da ele diz quantas dessas pessoasvieram de So Paulo, do Rio de Janeiro; enfim, de cada uma das regiesdo pas. Quantas vieram da USP, da Unicamp, de Braslia, dos diversoslocais. Do Centro-Oeste, Nordeste, Norte e Sul. Do Uruguai, Argentinae do Chile. Sabe o que interessante? Fizemos uma pesquisa de quantosnegros havia na reunio da ABA, havia 10 de 1500 e esse dado noapareceu no site da ABA. Como possvel que depois de dois anos quea questo racial, a questo da ao afirmativa e das cotas estarem nosjornais o tempo todo e a ABA no debater este tema? Como no atentarpara o fato de que a reunio da ABA uma reunio de brancos? Vamoster de ensinar aos meus colegas antroplogos que o Brasil tem 47% denegros? Ser que a associao no percebeu que havia menos de 1% denegros presentes na sua reunio? escndalo de novo! A associaotem de revisar a maneira como ela est se reproduzindo. uma associaobranca. claro que no quer responder pergunta sobre ao afirmativa.Assim, estamos comeando a visualizar que estamos lutando contra umsistema que se estabeleceu baseado nos privilgios de uma minoria eque esse sistema no quer ser interpelado, porque, se ele for interpelado,vai ter de admitir que se reproduzem na base social privilgios. Ento,como no querem entregar esses privilgios, no discutem.

    Finalizo falando sobre a UnB, onde propusemos cotas.Quando cresceu o nmero de universidades no pas, cresceram

    as vagas nas universidades que foram sendo instaladas. Cresceram asbolsas de pesquisa para a ps-graduao. As redes que estavamestabelecidas por brancos na UFRJ e na USP se multiplicaram por outroslugares e foram ajudadas pelo fato de que o racismo era proibido comotema pela ditadura, uma vez que a democracia racial era ideologia doEstado. Era muito mais difcil falar desse assunto. Ento, aqueles que

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    sabiam que o Brasil estava excluindo os negros se sentiram cmodos emcalar a boca porque estavam recebendo benefcios. Os professores foramconiventes com o silncio imposto pela ditadura militar ao racismobrasileiro. Muito fcil! A conivncia permanece at hoje e ns noestamos mais na ditadura, mas estamos no mundo do privilgio. Naquelemomento, eles foram coniventes porque estavam ganhando uma sriede benefcios. Agora que eles esto no momento de passar o benefciopara a prxima gerao, a que eles no querem saber mesmo. Ento, aquesto que ns sabemos que os negros esto excludos, sabemos quea excluso sistemtica e que ela fruto da reproduo de nosso sistema.

    Ento, o que acontece? Na UnB, estamos propondo, aps estaanlise, 20% de cotas do vestibular para negros. E diferente de afro-descendentes. A nossa idia de que seja para negros, que a pessoaassuma o nus de ser negro. Eu acho perigoso que seja para afro-descendentes, porque a pessoa vai jogar com as ambigidades do sistema.

    O vice-reitor da UnB j chegou a admitir que na UnB tem maisafricanos do que brasileiros negros. A pessoa pensa que o negro que sev no campus da UnB est falando um idioma estrangeiro, porque toraro ver um negro na UnB que se pensa que um africano. Ento, ovice-reitor j est consciente que isto um grande problema. A UnB jest sendo construda como uma universidade racista e bom que assimo seja. Porque ela . Assim ela tem de enfrentar esse problema e melhorar.

    Fizemos um debate em maro. Nesse debate, chamamos EdnaRoland, uma autoridade internacional que foi relatora da conferncia deDurban; chamamos o Ivair dos Santos, do Ministrio da Justia; RobertoMartins, do Ipea. O Conselho Universitrio so cinqenta membros.Nessa reunio com o fim de discutir cotas, apareceram dois professores.Os professores resolveram no comparecer reunio, este foi o artifciodeles. Agora, no ms de julho, fizemos a segunda rodada, convidamosJoaquim Barbosa Gomes, que um jurista brasileiro e ex-aluno da UnB.Ele o nico negro nos tribunais superiores, o nico negro na partesuperior do Poder Judicirio, ele tem um livro escrito sobre aoafirmativa. Joaquim Barbosa falou e defendeu novamente o nosso projetode cotas perante oito professores dos cinqenta do Conselho Universitrio.Ento, o reitor no tem como pr em pauta a votao, porque aquelesque tm de votar no querem ouvir os argumentos. Em geral, osargumentos contra as cotas so argumentos muitos dbeis. Ento, como

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    eles no tm argumento, a arma maior no ir, no comparecer para verse esse assunto morre, para ver se ele desaparece e os privilgios conti-nuam do jeito que esto. No que as pessoas so contra as cotasporque tenham algum argumento verdadeiro. Elas simplesmente socontrrias porque, se abrirem cotas para os negros, vo diminuir as cotaspara as pessoas brancas: os filhos deles que querem entrar na univer-sidade. simples, eles vo perder uma parte dos privilgios que noquerem perder.

    Por isso, a palavra cota fundamental, porque o que maisincomoda as pessoas, incomoda porque ela no tem mais eufemismo.No vai entrar de outro modo a no ser empurrando. preciso colocarum argumento que deixe as pessoas envergonhadas pela excluso queelas provocam ao longo de um sculo. Um desses argumentos o deque existem apenas 14 professores negros entre 1400 na UnB. Muitaspessoas esto pasmas diante disso. Como diz a professora Rita Segato,no fundo os professores no querem aprovar as cotas para os estudantesporque, se os estudantes entrarem agora, daqui a 10-15 anos eles volutar para ser professores tambm. E isso que eles no querem, pois jtm as vagas reservadas para os seus colegas brancos, os ex-alunosbrancos deles. No fundo, eles no querem a discusso de cotas porqueeles no querem negros na categoria de professores, no querem dividiresse espao de privilgios.

    Esta a avaliao que fao. A situao est melhor porque oexemplo da UERJ encurrala esse discurso, o exemplo da Uneb encurralaesse discurso. Na semana que vem, a UFMG comea a discutir cotas. AUFRJ barra essa discusso, mas um dia tem de chegar l. Tem de chegar USP. E exemplos como o daqui mostram que essa discusso lentamentepode chegar na UFG. Um dia, o Conselho da UFG vai ter de colocar issoem pauta. Ento falar sobre isso o ponto mais importante. Com isso eutermino, muito obrigado.

    Abstract

    This article is based on a lecture given on August 15, 2002, when the ProjectMiddle Passage: qualification of black students for academic research at the FederalUniversity of Gois was initiated. The author argues for the necessity of quotas inBrazilian universities in order to reverse the situation of absence of black students fromhigher education. The argument is aimed at the formation of faculty opinions because

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    professors are the people who will have to decide whether or not to adopt affirmativeaction measures in Brazilian universities.

    Keywords: Af firmative Action; Quotas; Federal Universities.