Upload
leka-loka
View
2
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Artigo sobre girls Artigo sobre girlsArtigo sobre girls.
Citation preview
RECONHECENDO A QUEBRA DE PARADIGMAS: OS DIREITOS
SEXUAIS E REPRODUTIVOS DA MULHER COMO DIREITOS
HUMANOS E FUNDAMENTAIS
Mayara Alice Souza PEGORER
RESUMO: O presente trabalho parte da transformação histórica e conseqüente quebra do
paradigma da mulher como mãe/procriadora, que restringia seu papel dentro da sociedade,
para sua elevação a sujeito de direitos, diante da crescente relevância da atuação feminina,
demonstrada nos movimentos sociais e outros tantos acontecimentos. Por conseguinte, foca os
chamados direitos sexuais e reprodutivos femininos: um conjunto de direitos correlatos que
envolvem desde os direitos à vida e à dignidade, até o direito à liberdade de reunião e
participação política. Assim, demonstra como tais direitos devem ser vistos sob o enfoque de
direitos humanos e fundamentais, por sua base valorativa e a positivação nas legislações
internacional e nacional, ora devendo ser vistos como direitos de primeira (direitos de
liberdade), ora de segunda (direitos sociais) dimensões. Por fim, demonstra a necessidade da
atuação estatal através de sua abstenção ou atuação assistencialista, dependendo do direito em
que se consubstancia, através do desenvolvimento de políticas públicas nas áreas precípuas de
educação, saúde, trabalho e segurança, para que se assegure seu pleno exercício diante de
necessidades específicas e da atuação conjunta do Estado, sociedade e família.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos fundamentais. Direitos sexuais e reprodutivos da mulher.
Políticas públicas.
INTRODUÇÃO
A eleição de uma mulher como presidente do Brasil é reflexo de uma situação
inconteste: nunca os direitos das mulheres estiveram tão em voga. Discute-se cada vez mais a
implementação de políticas públicas de proteção principalmente contra a violência doméstica
e na área da saúde.
Isto é fruto de históricas lutas incansáveis, com o empreendimento de movimentos
sociais e eventos consubstanciados em ideais políticos, econômicos e filosóficos que
resultaram em uma quebra de paradigmas do papel feminino na sociedade e conseqüente
reconhecimento de uma gama de direitos. Dentre eles, os direitos sexuais e reprodutivos,
objeto deste trabalho.
Mestranda do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná,
Campus de Jacarezinho/PR. Bolsista da CAPES.
Contudo, há que se ressaltar preliminarmente que, como se verá, os direitos sexuais e
reprodutivos, justamente por estarem de certa forma inseridos no contexto de saúde sexual e
reprodutiva, envolvem um universo maior e mais complexo, tal como questões de aborto,
esterilização, erro médico, métodos de fertilização, métodos contraceptivos, união de pessoas
do mesmo sexo, bissexualidade, transexualidade, sua titularidade, dentre outros, razão pela
qual este artigo procurou delinear a área de pesquisa ao âmbito da mulher, focando-se na
formação e conceituação destes direitos frente aos direitos humanos e fundamentais sob olhar
feminista, diante do valor da mulher em todos os aspectos.
É sob esse prisma que a pesquisa se desenvolve, levantando e respondendo as
problemáticas: os direitos sexuais e reprodutivos femininos são direitos humanos e
fundamentais? Em caso positivo, como se dá o papel do Estado frente sua consecução?
1 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
Inicialmente, para que se possa chegar aos conceitos de direitos reprodutivos e
sexuais, culminando por visualizá-los sob a perspectiva dos direitos humanos na vertente
feminina, com todas as suas implicações dentro do Estado Democrático de Direito, há que se
reportar a todo um contexto histórico de seu surgimento, seus precedentes (quando ainda não
haviam se consubstanciado, não passando de meras “fagulhas” na luta das mulheres por
outros direitos correlatos), pontuando os marcos essenciais ao seu reconhecimento, a exemplo
das lutas travadas pelos movimentos feministas e os eventos internacionais em prol das
necessidades das populações.
Em realidade, foi a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada
em 1948, que os direitos humanos das mulheres começaram a ganhar espaço, principalmente
motivados por problemas relativos à discriminação de gênero, crescimento demográfico e,
essencialmente, acerca da condição feminina perante o mundo. (BRAUNER, 2003. p.04)
Seja qual for a teoria adotada para explicar a percepção do papel feminino dentro da
sociedade, a concepção de gêneros diante de diferenças (que mais do que o aspecto biológico,
alcançam os âmbitos psíquico e moral analisados sob a perspectiva de uma conjuntura, diante
das relações sociais, do emprego das culturas e seus efeitos nas instituições e organizações
sociais, econômicas e políticas) somente encontrou alicerces com a ascensão de valores e
conseqüente surgimento de vários movimentos sociais que importaram na conscientização
feminina de lutar para seu reconhecimento igualitário.
Partindo-se de uma análise social da História, Brauner (2003, p. 02) ressalta que essa
“consciência de gênero” despontou no calor das revoluções burguesas entre as mulheres da
Inglaterra e França, principalmente quando na Revolução Francesa, em 1789, época em que
podem ser observadas as primeiras manifestações em prol dos direitos das mulheres,
inspiradas nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, e que serviram de bases para o
despontar do movimento feminista hodierno.
Em um apanhado histórico, nota-se a persistência da crença de que a mulher assumia
um papel inferior ao homem, pela “vulnerabilidade” que lhe era inerente, impingindo-lhe
somente algumas funções dentro da vida social, tal como a maternidade. Este entendimento
era apregoado pela Igreja Católica Romana (MATTAR, 2008), fundado na crença de que o
próprio Deus, ao criá-la, teria dado todas as condições biológicas para que exercesse
exclusivamente este papel. Ora, essa espécie de “marginalização” do papel feminino,
caracterizado pela submissão ao homem, segundo o entendimento de muitos, possui origem
bíblica, na figura de Eva, criada por Deus de uma costela de Adão, para que fosse sua
companheira. (GOMES, 2003, p. 51-52)
Analisando o estudo de Engels, Gomes (2003, p. 52) revela que o renomado
pensador apontou como marco ideológico dessa “escravização do sexo feminino” o despontar
das primeiras noções de propriedade privada, por se tratar de momento em que se procedeu à
“divisão sexual do trabalho e consequentemente de posses, sendo imprescindível para os
homens – agora proprietários – uma descendência segura para herdar seus bens e, para tanto,
mulheres subservientes, guardadas como fiéis reprodutoras”, estabelecendo-se a monogamia
como coincidente à primeira luta de classes, qual seja, a opressão do sexo masculino sobre o
feminino.
Por certo que esta visão do papel feminino como objeto submisso ao homem,
resguardando-se à procriação, como se observa do breve levantamento histórico feito por
Gomes (2003, p. 52-54) com base em diversos autores, é recorrente desde a antiguidade
grega, o Império Romano, a Idade Média, o advento do capitalismo industrial, chegando à
concepção hodierna. Desta forma, descreve o autor que, “ao lado da Igreja e de um Estado
patriarcal, a ciência, epistemologicamente masculina, ajuda a legitimar a condição de
subalternidade feminina, segundo ideologia de um determinismo biológico”, sendo que este
pensamento de cunho científico se baseia, por exemplo, em postulados freudianos e em
estudos de Richard Dawkins:
É lei da natureza que, sendo cada espermatozóide tão pequeno, um macho possa
produzir vários milhões deles, todos os dias. Isso quer dizer que ele é
potencialmente capaz de gerar muitos filhos num período de tempo curto,
fecundando diferentes fêmeas. Essa possibilidade natural existe porque cada novo
embrião recebe alimento adequado da mãe,que é quem vai gestar e nutrir a cria.
Logo, a função maternal estabelece limite ao número de filhos que a fêmea pode ter
ao longo da vida, mas o macho pode produzir, teoricamente, quantidade ilimitada de
filhotes. Como literalmente afirma Richard Dawkins, a exploração da fêmea começa
aqui.
O comprometimento da fêmea com a gestação – e, no seu rastro, a desigualdade de
condições entre machos e fêmeas para replicação dos próprios genes – é o
fundamento genético-biológico que, na espécie humana, deu origem às diferenças de
socialização, convivência e atribuições entre homens e mulheres, denominadas
diferenças de gênero. [...] (HERMANN, 2008, p. 25)
Assim, o papel de mãe da mulher foi sendo idealizado até a forma como concebemos
hoje na sociedade, criando o estereótipo de que mãe perfeita é aquela que coloca os interesses
do filho acima de todas as coisas. Todavia, este entendimento passou a ser questionado na
medida em que a figura da mulher dentro de uma sociedade intrinsecamente machista sofreu
profundas alterações, vindo a influenciar na atuação materna. A mulher passou a buscar não
somente sua realização afetiva mas também profissional para se postar dignamente e
igualitariamente dentro da sociedade, sem deixar de lado seu papel de mãe, mas questionando
essa visão idealizadora de doação total ao lar (que ainda continua). Este foi e é um dos pontos
que culminaram no surgimento do movimento feminista.
Outro ponto importante a ser destacado é que, a despeito do pensamento conservador
que emanava da legislação e do Direito, que, calcado nas ideias aqui já apresentadas, colocava
o homem no centro de proteção e titular dos direitos, os movimentos feministas surgidos
passaram a realizar uma construção lógica, de maneira a possibilitar a aplicação dos direitos
existentes às mulheres. (MATTAR, 2008)
Foi através desse rompimento dos obstáculos filosóficos e psicológicos que a mulher,
como agente transformador da sociedade, despontou, começando por romper as esferas
pública e privada, através de um processo lento e constante de conscientização e
posicionamento feminino, conquistando direitos rudimentares como o voto, o acesso à
educação, ao trabalho e à participação das decisões familiares. (GOMES, 2003, p. 55)
No Brasil, essa “marginalização” feminina não fora diferente, persistindo desde o
período colonial até depois do Brasil República (BUGLIONE, 2001), o que pode ser
percebido pela simples análise da legislação da época.
Foi através do movimento feminista no Brasil que sucumbiu o modelo familiar
apregoado no Código Civil de 1916, tirando da clandestinidade a família monoparental, e
culminando no marco brasileiro de reconhecimento (substancial) da igualdade entre os sexos,
consubstanciado pela Constituição Federal de 1988, que buscou a adequação jurídica à nova
situação da mulher ante a sociedade, destacando-se, ainda, por abranger e ressaltar os direitos
das minorias esquecidas na História brasileira.
Ressalta-se que, além do movimento feminista, ganhou relevância a questão
demográfica, que buscava analisar a relação entre população e desenvolvimento através do
controle das taxas de fecundidade e natalidade e discussão da necessidade da intervenção
estatal na capacidade e liberdade reprodutiva, tolhendo, portanto, o poder de escolha feminino
para confiá-lo quase que totalmente ao Estado, traduzindo-se em uma questão meramente
politicoeconômica.
Compreendendo de que se tratavam de medidas cujo pano de fundo, isto é, a saúde
da mulher, era apenas um pretexto para seus fins políticos e econômicos, a ONU desenvolveu
Conferências Internacionais de População e Desenvolvimento, seguidas de tantos outros
eventos de caráter mundial e instituições de preservação e incentivo de discussão destas
questões, como quanto ao planejamento familiar.
Não obstante esse longo percurso histórico, o reconhecimento dos direitos
reprodutivos e, por conseguinte, dos direitos sexuais como direitos humanos somente se deu
em 1994, após cerca de 200 anos de debates acerca das supracitadas questões econômicas e
demográficas, com a realização da Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento, na cidade do Cairo, Egito, vindo tal concepção a ser reafirmada em 1995,
quando na Cúpula Mundial de Desenvolvimento Social e na IV Conferência Mundial sobre a
mulher, Desenvolvimento e Paz, realizadas em Copenhague e Pequim, respectivamente.
(ADVOCACI, 2003. p.50)
Seu Plano de Ação buscou incorporar todas as recomendações anteriores de Comitês
realizados pelas Nações Unidas quanto às saúdes sexual e reprodutiva, determinando ainda o
reconhecimento pelos Estados-Partes de outros direitos ligados à integral promoção do bem-
estar das pessoas, zelando por sua efetiva implementação legal (ADVOCACI, 2003, p. 13),
culminando por conceituar, alheio a qualquer imposição religiosa, o cidadão como sujeito de
direitos e deveres, “com a ampliação dos sujeitos de direito incluídos nas relações da vida
reprodutiva e sexual: os adolescentes, as mulheres solteiras, os homens e as pessoas da 3ª
idade, há uma ampliação da própria idéia de humanidade – pauta das discussões.”
(BUGLIONE, 2001)
Em síntese:
Mereceram destaque especial no Plano de Ação tanto os objetos de proteção do
direito – a sexualidade e a reprodução – como os sujeitos de direitos – casais,
mulheres, homens, adolescentes e pessoas idosas. Programas e políticas públicas
voltadas para esses sujeitos de direitos foram inseridos no Plano de Ação e
recomendada a adoção de normas legais que garantam o exercício pleno dos direitos
reprodutivos e dos direitos sexuais de homens e mulheres.
O Plano de Ação da Conferência do Cairo, portanto, além de legitimar, através de
um documento de consenso internacional, o conceito de direitos reprodutivos [como
se há de ver mais adiante no presente trabalho], estabeleceu as bases para um novo
modelo de intervenção na saúde reprodutiva, ancorado em princípios éticos e
jurídicos comprometidos com o respeito aos direitos humanos. (ADVOCACI, 2003,
p. 15)
Ademais, apesar de o mesmo não possuir força de lei (como ocorre, por exemplo,
quando se está diante de Pactos e Convenções devidamente recepcionados pelo ordenamento),
caracteriza-se pela força normativa que o permeia, na medida em que se presta a servir de
fonte de interpretação e diretrizes para que se possa implementar leis internacionais quanto às
políticas públicas. (ADVOCACI, 2003, p. 34)
1.1 Primeiros conceitos
Através deste breve retrospecto histórico, procura-se demonstrar que a concepção
dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher foi possível somente com a mudança de
pensamento e postural cultural, econômica e social, influída pelo movimento feminista, outros
movimentos de cunho social e pelas conferências que questionaram a atuação estatal no livre
arbítrio de planejamento sexual e reprodutivo.
Assim, parte-se para a definição dos direitos sexuais e reprodutivos, descrevendo-os
como conceitos plurívocos calcados nas relações equitativas entre os gêneros:
De um lado, aponta para a dimensão individual desses direitos, afirmando o direito à
liberdade, privacidade, intimidade e autonomia, o que compreende a garantia do
livre exercício da sexualidade e da reprodução humana, sem qualquer tipo de
discriminação, coerção ou violência. [...]
Por outro lado, o efetivo exercício dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos de
forma consciente, responsável e satisfatória, demanda políticas públicas específicas
que assegurem um conjunto de direitos indispensáveis para o seu livre exercício.
(ADVOCACI, 2003. p. 50-51) [grifo nosso]
Nesta perspectiva, deve-se entendê-los ora como forma de liberdade individual de
homens e mulheres para que decidam se e como desejam reproduzir-se (também chamado de
direito à procriação), sem qualquer interferência do Estado para regular ou controlar a
sexualidade e reprodução, ora como dever dos Estados em garantir outros direitos correlatos
que assegurem seu livre e seguro exercício, tal como o desenvolvimento de políticas públicas
para a promoção e garantia da igualdade de gêneros, para a eliminação da discriminação
social, a coibição e eliminação de qualquer tipo de violência, para o acesso à educação sexual
e reprodutiva, para o estímulo à responsabilidade social e pessoal do homem ao que concerne
ao seu comportamento sexual, sua fertilidade e frente a seus filhos e companheiras e, por fim,
para a promoção de serviços de saúde sexual e reprodutiva, por meios sociais e legais, com
acesso de todos (ADVOCACI, 2003. p. 50-51), garantias e métodos de asseguramento estes
que serão analisados em momento oportuno no presente trabalho.
Pela visão apresentada, já se poderia concluir que a conceituação dos direitos sexuais
e reprodutivos “incorpora a visão integral dos direitos humanos, conjugando e interagindo
direitos civis e direitos sociais de forma indivisível” (ADVOCACI, 2003. p.56), mostrando-se
muito recente no Direito, uma vez que se encontram essencialmente inseridos em âmbito da
saúde pública, de maneira multidisciplinar, o que, infelizmente, determina seu “tratamento
ainda muito superficial e esparso”. (BRAUNER, 2003. p.13)
Em verdade, apesar de conceitos extremamente ligados, não são dependentes entre
si, uma vez que a atividade sexual não pressupõe fins reprodutivos, bem assim a reprodução,
diante das inúmeras inovações tecnológicas, pode advir de outras intervenções que não a
relação sexual propriamente dita. Ademais, os direitos reprodutivos envolvem uma
complexidade maior, na medida em que emergem não tão somente do exercício de uma
sexualidade sadia, como também da diversidade sexual, da livre escolha da sexualidade diante
de um relacionamento hetero ou homossexual, sem discriminação, coerção ou violência.
(CORRÊA; JANNUZZI; ALVES, 2003, p.10-11)
Portanto, nota-se que até o momento não se pode traçar uma definição precisa dos
direitos sexuais e reprodutivos, os limites de sua extensão, motivo pelo qual ainda segue o
desafio de identificar seu conteúdo, bem assim os pontos e formas de atuação estatal, diante
da constante evolução social, econômica e política, e especificidades de cultura, gênero e
classe.
2 CARACTERIZANDO-OS COMO DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS
A caracterização dos direitos reprodutivos e sexuais como direitos humanos e
fundamentais, deve pautar-se a priori no valor fundamental da dignidade da pessoa humana
que traduzem (direitos do homem), bem assim em sua previsão em documentos
internacionais, conforme exaustivamente demonstrado no primeiro tópico (direitos humanos)
e na legislação interna, como se verá no tópico a seguir (direitos fundamentais).
Entretanto, é a partir da ideia de princípios que os direitos sexuais e reprodutivos
podem ser analisados dentro do que hodiernamente se entende como direitos humanos e
fundamentais, tendo em pauta, além do princípio da indivisibilidade, outros como a
universalidade, a diversidade e o princípio democrático. (ADVOCACI, 2003, p. 52)
Neste momento, não se pode olvidar que princípios nada mais são do que
“verdadeiras cláusulas abertas”, que por sua generalidade e abstração transcrevem valores
fundamentais a serem aplicados no ordenamento, permitindo “ao intérprete uma maior
maleabilidade na sua aplicação”, sem que a legislação necessite sofrer constantes mudanças.
(BREGA FILHO, 2002, p. 52)
Dora, em artigo da obra “Direitos Humanos, ética e direitos reprodutivos” (DORA;
SILVEIRA, 1998, p.40-41), especificando tal princípio da universalidade ao campo
reprodutivo, explica:
É indiscutível que todas as pessoas, em todos os lugares do mundo, são da raça
humana, e, nesta condição, todos portadores do mesmo direito à proteção e respeito.
Poder-se-ia dizer, também, que não há nada mais universal do que a reprodução
humana. Mas se é verdade que a reprodução humana é um dos aspectos mais
naturais e universais da vida, também ela não o é de uma forma muito profunda.
Não existe a possibilidade de que se defina um padrão acerca de como os seres
humanos devem reproduzir-se, quantos filhos devem ter, de que forma devem
comportar-se na sua vida reprodutiva, o que radicaliza a concepção de que os seres
humanos merecem respeito, seja nas circunstâncias em que forem. Radicaliza a
concepção de universalidade e exige sua tradução concreta para todos os contextos,
seja a tradição dos países islâmicos, ou as modernas tecnologias reprodutivas.
E desta forma, na mesma obra (DORA; SILVEIRA, 1998, p. 41), continuando a
empregar a universalidade em âmbito reprodutivo, a autora conclui que:
Esse debate sobre a universalidade no campo da reprodução, na forma como
acontece diferentemente, a partir de regionalidades, etnias, idades e classes sociais,
não está resolvido. Existem alguns princípios que se deve resguardar em relação às
diferenças de contexto, que remetem novamente ao ponto da autonomia e da
liberdade. Uma das perguntas postas talvez seja o que é autonomia e liberdade, quais
as características que compõem essa noção? o que significa? que sentido tem para
todas as mulheres do mundo? A todo momento retoma-se este ponto, como por
exemplo, na discussão sobre a legalização do aborto no Brasil, “as mulheres são
sujeitos moralmente autônomas para decidir”, ou não?, “é o Estado que deve
decidir?” Sobre as tecnologias reprodutivas, a mesma questão, os profissionais que
trabalham nas pesquisas, e os indivíduos que querem usufruir, são moralmente
responsáveis para tomar todas as decisões, ou o Estado deve interferir legislando,
estabelecendo limites? [sic]
De fato, os princípios anteriormente listados foram estabelecidos pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, sendo reiterados 45 (quarenta e cinco) anos depois,
com a Declaração dos Direitos Humanos de Viena, aprovada em 1993 na Conferência
Mundial de Direitos Humanos (parágrafo 5º.: “Todos os direitos humanos são universais,
interdependentes e interrelacionados”), a qual ainda inovou ao declarar explicitamente os
direitos femininos como “partes inalienáveis, integrais e indivisíveis dos direitos humanos
universais” (ADVOCACI, 2003, p. 52/53), expressão esta utilizada na Plataforma de Ação de
Pequim, documento elaborado pelos Estados signatários da V Conferência Internacional das
Nações Unidas sobre a Mulher, realizada em Pequim, no ano de 1995.
No que tange ao princípio da diversidade, nota-se a necessidade de enxergar o sujeito
de direitos, neste caso em específico a mulher, de acordo com suas peculiaridades e
particularidades, uma vez que acabam exigindo do Estado uma resposta de igual forma
específica e diferenciada a suas necessidades, como instrumento de promoção à igualdade
material e reflexo do “caráter bidimensional da justiça: como instrumento de redistribuição e
como reconhecimento de identidades”. (ADVOCACI, 2003, p. 53)
Por fim, o princípio democrático, expresso na Convenção sobre Direitos Civis e
Políticos de 1966, deve ser observado para que
[...] celebre o exercício dos direitos políticos, quando contemplados na visão integral
dos direitos humanos, enfatizam a necessidade de que seja assegurada a ativa
participação dos beneficiários das políticas e programas públicos, na identificação de
prioridades, na tomada das decisões, no planejamento, na adoção e na avaliação de
estratégias. Consagram-se, deste modo, a exigência de transparência,
democratização e accountability no que se refere às políticas públicas.
(ADVOCACI, 2003, p. 54)
Conclui-se, pois, que os princípios acima listados ratificam a plena correspondência
dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos e fundamentais, bem assim a
necessidade de perspectiva da diversidade (classes, etnias, gêneros, idades, etc) para o
reconhecimento social e jurídico efetivo destes direitos em todas as nações, a despeito de sua
cultura, para que possa ser posta, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana.
Concatenando tais informações aos conceitos trazidos em princípio, por envolver
uma gama de direitos correlatos, os direitos sexuais e reprodutivos devem ser abarcados ora
como individuais ora como sociais, razão pela qual se passa a analisar sua previsão no
ordenamento.
2.1 Incidência no ordenamento jurídico pátrio: uma previsão abrangente
Analisando a legislação brasileira, nota-se que os direitos sexuais e reprodutivos
encontram respaldo em vários dispositivos constitucionais interpretados de maneira
sistemática, calcados em princípios maiores, tais como a cidadania e a dignidade da pessoa
humana (artigo 1º., incisos II e III, da Constituição Federal) e os objetivos essenciais da
República no princípio da convivência livre, justa e solidária e na promoção do bem comum,
isentos de preconceitos e discriminações, contidos no artigo 3º., incisos I e IV, do Texto
Constitucional.
Outrossim, o artigo 5º. §2º. da Constituição Federal determina que “os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte”, o que culmina, por sua adoção, à observância pela aderência às normas de
proteção internacionais dos direitos sexuais e reprodutivos, já descritas no primeiro capítulo.
Ademais, no mesmo dispositivo ainda se notam preceitos como a proteção à honra,
intimidade e vida privada (inciso X, constantes ainda como direitos da personalidade no
Capítulo II, do Código Civil de 2002), o princípio da igualdade de gêneros (inciso I) e a
proibição de atos atentatórios aos direitos e liberdades fundamentais. (BRAUNER, 2003.
p.13)
Por sua vez, ao fazer uma coletânea das disposições constitucionais correlatas aos
direitos sexuais e reprodutivos, Ventura descreve:
A Constituição define a livre união de homem e mulher como família, reconhece a
família monoparental e a igualdade de direitos e deveres na sociedade conjugal. Sob
a denominação de planejamento familiar, garante a norma constitucional um
conjunto de direitos ligados à reprodução humana, fundados no princípio da
dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, atribuindo ao Estado o
dever de propiciar os recursos educacionais e científicos para sua promoção, e
garantir seu exercício sem coerção ou violência.
[...] Reconhece como problema nacional a violência no âmbito das relações
familiares e a violência e exploração sexual da criança e do adolescente, firmando o
compromisso de criar mecanismos para coibir e punir severamente. (VENTURA,
2002, p. 101)
Tratam-se todas estas disposições citadas, pois, de previsões abrangentes, traduzindo
valores fundamentais que servirão de alicerce para o desenvolvimento dos direitos sexuais e
reprodutivos, começando pela demonstração de simples prerrogativas nos direitos sociais, tais
como o atendimento em caixas especiais (ou prioridade no atendimento em filas caso o
estabelecimento não possua caixas especiais), assento preferencial, etc.
Explicitamente, os direitos sexuais e reprodutivos somente encontram previsão na
chamada lei “Maria da Penha” ou “Lei de Violência Doméstica” (Lei n. 11.340 de 07 de
agosto de 2006), uma legislação recente que representa em sua totalidade um avanço
incontestável na proteção dos direitos da mulher, abarcando situações das mais diversas em
âmbito doméstico (na unidade de convívio permanente entre pessoas, mesmo que
temporariamente agregadas ou sem qualquer vínculo afetivo ou familiar), familiar (decorrente
de parentesco natural, por afinidade ou civil) e por relação íntima de afeto, presente ou
pretérita, ainda que sem coabitação ou parentesco (PORTO, 2007, p.25), a serem protegidas
através de mecanismos também descritos pela lei, como a criação de Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher, o atendimento policial capacitado e/ou especializado,
assistência judiciária integral, especializada e humanizada, imposição emergencial de
restrições não-privativas de liberdade ao agressor, traduzidas em medidas protetivas de
urgência e abertura para maior atuação do Ministério Público, dentre outros tantos.
Já através da proteção implícita ou reflexa dos direitos sexuais e reprodutivos da
mulher, pode-se relevar a proteção à maternidade no artigo 6º. da Constituição Federal,
colocando-a no rol exemplificativo dos chamados “direitos sociais”
Seguindo, Pirotta e Piovesan apontam como contida no Título VIII (Da Ordem
Social) a maior parte das normas constitucionais relacionadas aos direitos reprodutivos.
(OLIVEIRA; ROCHA, 2001, p.161)
No que concerne à legislação trabalhista, encontram-se várias previsões que visam
assegurar melhores condições da mulher exercer seus direitos enquanto figurando como
trabalhadora, cujo papel de fundo são os referidos direitos sociais pois, como bem colocam
Pirotta e Piovesan, “visam coibir a discriminação no trabalho por questões ligadas à
reprodução e minimizar a incompatibilidade entre as atividades profissionais e a procriação”.
(OLIVEIRA; ROCHA, 2001, p.161)
Ademais, a CLT guarda um espaço especial para descrever a proteção à maternidade
(como dito, direito social constante no artigo 6º. da Constituição Federal), constante nos
artigos 391 a 400 da referida legislação.
Outro benefício da vertente trabalhista e previdenciária é o auxílio natalidade, pago
pelo Instituto Nacional de Seguro Social – INSS, pago por ocasião do nascimento do filho
(inclusive em caso de natimorto), e cujas peculiaridades estão constantes no artigo 196 da Lei
8.112/90 no que se refere aos servidores públicos civis da União, das autarquias e das
fundações públicas federais, além da cláusula de estabilidade da gestante, presente no artigo
10, inciso II, alínea “b”, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
A previsão também se dá quanto ao planejamento familiar, constante no artigo 226, §
7º. da Constituição Federal (dispositivo legal que Miriam Ventura aponta, em sentido estrito,
como “conceito normativo dos direitos reprodutivos no ordenamento jurídico nacional”
(VENTURA, 2004, p. 49), que na verdade não deve ser tomado como prerrogativa exclusiva
da mulher mas, como o próprio dispositivo declara, do casal. Tal sua importância que inspirou
a confecção da Lei n. 9.263 de 12 de janeiro de 1996, que conceitua o planejamento familiar
“como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de
constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”,
restringindo a interferência governamental para controle demográfico (artigo 2º., caput e
parágrafo único).
Sua abrangência dentro das regras gerais estabelecidas pelo Sistema Único de Saúde
se dá com serviços de assistência à concepção e contracepção, atendimento pré-natal,
assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato, controle das doenças sexualmente
transmissíveis, controle e prevenção do câncer cérvico-uterino, do câncer de mama e do
câncer de pênis, além de ações preventivas e educativas, com capacitação de funcionários,
tudo às expensas estatais ou ainda em instituições privadas, filantrópicas ou não. Ademais,
delimita situações para esterilização voluntária, caracterizando os crimes e as penalidades
correspondentes.
Quanto à questão da reprodução assistida, nota-se que se encontra em tramitação
projeto de lei do Senado Federal n. 90/1999, de autoria de Lúcio Alcântara que, apesar de
tratar de questão intimamente ligada à saúde sexual e reprodutiva da mulher,
[...] não reflete avanços desejados no campo dos direitos sexuais e reprodutivos,
mantém uma perspectiva sexista, restringe a noção de família, contempla questões
técnicas que rapidamente serão ultrapassadas pela ciência, dentre outras questões.
Há uma intensa discussão na mídia em torno das questões éticas das novas técnicas
de reprodução assistida, mas pouca mobilização social e debate público em torno do
projeto, acompanhado mais intensamente pelo setor privado de saúde. (VENTURA,
2002, p. 104)
Desta forma, ainda não há no Brasil lei federal que regulamente esta prática, sendo
regida tão somente pela Resolução n. 1.358 do Conselho Federal de Medicina, diante de
parcas remissões do artigo 1.597, incisos III a V do Código Civil.
Por fim, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), que “não se refere
especificamente à mulher, mas, indiretamente, possui dispositivos que por mais que visem à
tutela da criança, não deixam também de abordar os direitos da gestante e da parturiente”
(CARRERA, 1999. p. 35), dispondo sobre eles em seus artigos 8º., 9º. e 10.
No que concerne à legislação penal (a par das disposições especiais contidas na Lei
n. 11.340/06, evidenciadas anteriormente), nota-se que, de maneira geral, todos os delitos
listados como “crimes contra os costumes”, constantes no Título VI do Código Penal, podem
ser vistos como formas de proteção aos direitos sexuais femininos, porquanto, via de regra,
permitem o posicionamento da mulher como sujeito passivo. É o que ocorre também em
outros tantos tipos penais que tutelam a intimidade e liberdade sexual de maneira genérica.
No entanto, até pouco tempo existia um tipo específico, qual seja, o artigo 213 do
Código Penal, que descrevia o delito de estupro, tutelando o bem jurídico da liberdade sexual
da mulher, “ou seja, a faculdade que tem a mulher de escolher livremente seu parceiro sexual,
podendo recusar inclusive o próprio marido, quando assim o desejar”, uma vez que o dito
“débito conjugal” não assegura ao marido ou companheiro tal prerrogativa, mas sim tão
somente a de mote para requerer o fim da sociedade conjugal, descaracterizando-se o que se
costumava alegar antigamente como um exercício regular de direito. (BITENCOURT, 2009,
p. 01-02) Com o advento da Lei 12.015 de 7 de agosto de 2009, o delito de estupro teve seu
tipo “incorporado” ao delito de atentado violento ao pudor, passando a tutelar sob a
denominação de estupro a liberdade sexual de qualquer indivíduo, independentemente do
gênero.
Da mesma forma, outros delitos que asseguravam proteção específica à mulher
tiveram suas redações alteradas, passando a abranger qualquer pessoa como sujeito passivo,
como no caso dos artigos 231 e 215 do Código Penal, ou ainda foram revogados, como o
delito de sedução (artigo 217 do Código Penal).
Não obstante a previsão expressa do Código Penal, criminalizando o aborto (artigos
124 a 127), o mesmo Codex traz nos incisos de seu artigo 128 modalidades de aborto legal,
quais sejam, o aborto terapêutico (curativo) ou profilático (preventivo), caso em que se
justifica como estado de necessidade (“I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante”),
e o aborto sentimental, humanitário ou ético que, segundo Greco, apesar de se caracterizar
como causa de exclusão de ilicitude por força estrita de redação legal, não se encaixa em
quaisquer de suas ocorrências (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de
dever legal e exercício regular de direito), mas como hipótese de inexigibilidade de conduta
diversa (GRECO, 2009. p.252-255).
Trata-se este segundo caso de gravidez resultante de violência sexual (anteriormente
tipificada como estupro), cuja interrupção seja fruto da vontade pelo pleno e inequívoco
consentimento da gestante ou seu representante legal se incapaz, visando, pois, assegurar a
liberdade da mulher quanto ao direito de procriar.
Não obstante o rol trazido ser tido como taxativo, buscam-se novas interpretações
que se coadunem aos direitos humanos e princípios constitucionais, de maneira que se
abarque novas situações sociais, tal como frisa Ventura:
Essa interpretação harmônica com os princípios da dignidade humana vem
permitindo um pequeno avanço na jurisprudência. Um exemplo é a jurisprudência
que amplia os permissivos penais para a realização do aborto, permitindo o aborto
nos casos de anomalia fetal grave que inviabilize a vida extra-uterina, afastando o
princípio da taxatividade do direito penal nesses casos. (2004, p. 139)
Outras passagens penais de proteção à sexualidade e reprodução da mulher podem
ser evocadas, ressaltando-se uma construção doutrinária no Direito Penal que por vezes fora
utilizada no Tribunal do Júri, a chamada legítima defesa da honra. Por ela, tentou-se justificar
o homicídio motivado por ciúme ou infidelidade da mulher, colocando como mote a
preservação da honra e da moral do homem traído, o que hoje já não pode subsistir diante da
igualdade de gêneros e do princípio da proporcionalidade (como equiparar os bens jurídicos
vida e honra?).
Em matéria civil, a exemplo do que ocorre em âmbito penal, nota-se influência da
mudança do valor social do papel feminino, de modo que, por exemplo, suprimiu-se no
Código Civil de 2002 o defloramento da mulher ignorado pelo marido considerado no Código
Civil de 1916 (artigo 219, inciso IV) como erro essencial sobre a pessoa do cônjuge,
ensejando a anulação do casamento, dispositivo esse que viola o princípio basilar da
dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, a liberdade sexual da mulher.
Outros tantos exemplos podem ser suscitados, em especial no âmbito de Direito de
Família, como a lei n. 11.804 de 05 de novembro de 2008, que instituiu os alimentos
gravídicos e que, a exemplo do que ocorre com as previsões contidas no Estatuto da Criança e
do Adolescente, busca uma proteção primária ao nascituro, cujos direitos desde sua
concepção são postos a salvo pelo artigo 2º. do Código Civil. Contudo, a proteção da mulher
grávida, isto é, de seus direitos reprodutivos, se dá de maneira reflexa, na medida em que
dispõe sobre a segurança econômica que lhe auxiliará em gozar de saudável gestação,
resguardando seus interesses.
Enfim, frisa-se não ser objeto deste trabalho esgotar e perquirir com profundidade
todos os temas e dispositivos citados, o que requereria um estudo específico apartado, mas tão
somente trazer uma visão ampla através de sua exemplificativa listagem e breve abordagem
dos dispositivos legais que trazem como foco a proteção da reprodução e sexualidade
feminina, de maneira a demonstrar a extensão dos direitos reprodutivos e sexuais na
legislação brasileira.
3 DA NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO E ASSEGURAMENTO ESTATAL E AS
PROBLEMÁTICAS DA EDUCAÇÃO, DA SAÚDE, DA SEGURANÇA E DO
TRABALHO
Partindo da lógica estabelecida de que os direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres traduzem uma gama de outros direitos, de liberdade e sociais, muitas vezes previstos
de forma implícita ou reflexa na legislação, conclui-se que o Estado deve assumir diferentes
posicionamentos: quando em face de sua vertente libertária, deve abster-se de intervir
diretamente, limitando-se a assegurar seu pleno exercício; já frente à vertente social, deve
assumir-se como Welfare State, Estado do Bem-Estar, promovendo o acesso de todos os
titulares.
Portanto, quando os direitos sexuais e reprodutivos se traduzem como liberdades
públicas, serão assegurados por intermédio do emprego de técnicas de defesa pelos cidadãos
(individual ou coletivamente), porquanto sem elas de nada valem os eventuais mecanismos
judiciais cabíveis.
Dentro das referidas técnicas, o Sá (1999, p. 47-55) destaca a igualdade de instrução,
o senso de responsabilidade e formação de si mesmo (para a criação de um espírito crítico), a
informação e até mesmo a teoria da resistência às leis injustas, que abarca como escalas a
resistência passiva (simples não obediência), defensiva e ativa (que busca a revogação da lei
ou demissão do governo quando parlamentar), como métodos efetivos de defesa diante da
atuação exacerbada do poder estatal.
Já quando os direitos sexuais e reprodutivos apontam como sociais, requer-se uma
atuação positiva do Estado que se traduzirá no oferecimento de políticas públicas, que lhe
darão “legitimidade para agir sobre um grupo de indivíduos ou sobre um dado segmento da
sociedade, na tentativa de praticar ações interventivas que interfiram positivamente nas
condições de vida desses indivíduos ou segmentos sociais”. (AMORIM, [2008?], p.04)
O Estado deve, pois, desenvolver mecanismos que, com a participação da família e
da sociedade, consigam resguardar os direitos sexuais e reprodutivos sob todos os seus
aspectos, seja pela previsão explícita (a exemplo da anteriormente citada Lei Maria da Penha),
através dos direitos correlatos (direito à vida, saúde, informação, etc.) ou pela proteção reflexa
(como nas normas contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente).
Não basta, portanto, a simples criação legislativa. A ação estatal deve monitorar a
implementação destes direitos e seu alcance abrangendo medidas educativas, legislativas,
judiciais, dentre outras, dotadas de efetividade e adequação, de acesso não somente à mulher,
sua beneficiária direta, mas para toda a coletividade indistintamente, diante da
responsabilidade de apoio e preservação que também assume.
Quando se analisam os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, quatro áreas
precípuas de atuação de políticas públicas sexuais e reprodutivas devem ser pontuadas:
educação, saúde, segurança e trabalho.
De fato, há dificuldade no reconhecimento da vinculação do respeito aos direitos
sexuais e reprodutivos com o controle da sexualidade e da capacidade de reprodução através
da educação e socialização das pessoas, os quais apontam o nível de realização da mulher
com seu corpo, vivendo feliz com sua sexualidade e organizando sua vida reprodutiva.
Isso só será possível com o pleno “acesso à informação, à qualidade de vida, à
instrução, à saúde, englobando assistência integral, a contracepção, creches, escolas e auxílios
sociais” (BRAUNER, 2003, p. 09), enfim, da atenção à educação sexual a ser desenvolvida
primeiramente no seio familiar, bem assim nas escolas, de maneira a incutir no indivíduo,
desde o processo de sua formação psicológica e emocional, a consciência acerca de seus
direitos sexuais e reprodutivos, possibilitando o pleno exercício na fase adulta, o que se
refletirá, principalmente, em seu planejamento familiar, além do direito alheio, desenvolvendo
seu senso de respeito e cidadania.
A educação sexual e reprodutiva serviria, pois, para fulminar os resquícios da
ideologia machista que permeou a sociedade, fazendo com que a mulher compreenda desde
cedo sua inserção social isonômica, bem assim se conscientize de seu corpo e dos cuidados a
tomar na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis ou de uma gravidez indesejada,
tendo pleno acesso a métodos contraceptivos. Trata-se, assim, de um processo de
conscientização, investindo-se em prevenção e informação com o uso maciço dos meios de
comunicação e linguagem acessível como instrumento para atingir, em especial, a população
mais jovem.
De outro lado, quando se fala em saúde sexual e reprodutiva o primeiro ponto
relevado é a mortalidade materna, de números ainda alarmantes, que poderia ser combatida
com uma ação mais abrangente do Governo, aumentando-se a cobertura de pré e pós-natal, o
incentivo dos anticoncepcionais como método de planejamento familiar em detrimento da
laqueadura, a qualificação dos profissionais, campanhas de conscientização e acesso a
tratamentos e medicamentos, dentre outros.
Além da mortalidade materna, outros pontos a serem abordados dentro da temática
saúde seriam o câncer de mama, o HIV e a falta de acesso contínuo a métodos
anticoncepcionais seguros e eficientes.
Pelo SUS (Sistema Único de Saúde), por exemplo, a atuação efetiva se daria com o
acesso ao pré-natal de qualidade, com facilidade no agendamento das consultas e do parto de
maneira humanizada, com profissionais aptos e empenhados, bem assim condições de
interrupção da gravidez quando permitido em lei.
Mas a pura e simples implementação destas ações nas áreas de educação e saúde não
é suficiente, porquanto necessário relevar os aspectos sociais que entravam sua abrangência e
efetividade. Trata-se de especificidades que não podem ser descartadas: a perspectiva da
diferença múltipla, com ações voltadas em específico para as mulheres negras, índias,
muçulmanas, homossexuais, portadoras de deficiência, dentre outras minorias étnicas e
culturais, a fim de proporcionar um atendimento sistematizado, mais abrangente e efetivo.
Outro fator a ser relevado, por sua vez, é a segurança, principalmente quando em
pauta a violência sexual de gênero, pois, ainda que a Lei Maria da Penha tenha sido a
legislação brasileira pioneira em prever expressamente os direitos sexuais e reprodutivos da
mulher, visando coibir a violência em âmbito doméstico e familiar, e pressupondo a
implantação de um mecanismo auxiliar, consubstanciado na criação de Juizados Especiais que
tratem exclusivamente desta temática, calcado em sanções mais severas ao agressor e em um
aparato de auxílio à agredida, como por atendimento de Equipe de Atendimento
Multidisciplinar, o sistema carece de subsídios para a implementação de todas essas garantias,
de maneira que não são raras as situações de necessidade de intervenção do Poder Judiciário
(relevando-se o papel do Ministério Público e, porque não dizer, do Juiz, pela adoção do
ativismo judicial por exemplo, assunto tão em voga atualmente, que se traduz na assunção de
uma posição ativa pelo magistrado, suprindo as omissões e deficiências dos serviços
públicos).
Certamente é a mesma situação do fator trabalho. Fora visto que o Direito do
Trabalho é terreno fértil na proteção dos direitos da mulher (justamente pelo papel que
assumiu), servindo-se de inúmeras previsões. O que também ocorre é a negligência em sua
implementação, de maneira que a mulher continua sofrendo para tomar o lugar que lhe é
justo, sendo por vezes hostilizada no mercado de trabalho, sofrendo assédios morais e sexuais
pelos empregadores, e padecendo pelo descumprimento de todas as garantias que a lei lhe
assegura por sua condição gravídica, situações que encontram seus reflexos mais profundos
no planejamento familiar.
CONCLUSÃO
1 A partir do presente trabalho, nota-se que a discussão acerca dos direitos
reprodutivos e sexuais surgiu historicamente de maneira velada, na medida em que a mulher
sempre fora vista em posição de inferioridade com relação ao homem, tendo como função
primordial a procriação.
2 Os Governos focavam tão somente uma solução ao problema demográfico e não os
direitos individuais que transpareciam, sem fazer a distinção entre reprodução e sexualidade,
condicionando-os a interesses político-econômicos através da promoção do controle natalista.
3 Com a mudança na conjuntura advinda de avanços teóricos, calcados na concepção
dos direitos humanos e na igualdade material dos gêneros (principalmente pelos movimentos
feministas), reconheceram-se os direitos sexuais e reprodutivos da mulher nas Convenções e
documentos de cunho internacional.
4 Os direitos sexuais e reprodutivos podem ser definidos como um conjunto de
direitos correlatos, possibilitando a livre escolha de como e se a mulher deseja se reproduzir, e
diferenciados pelo advento dos métodos contraceptivos e das técnicas de reprodução assistida.
5 Trata-se de direitos humanos e fundamentais pois estão ligados a valores
intrínsecos ao homem, principalmente a dignidade da pessoa humana (Direitos do Homem),
ter sua previsão em legislação de caráter internacional (Direitos Humanos) e no ordenamento
interno (Direitos Fundamentais).
6 Tais direitos encontram inúmeras previsões no ordenamento jurídico brasileiro,
explicitamente na Lei n. 11.340/06, implicitamente (pelos “direitos correlatos”) ou
reflexamente (a exemplo das disposições que tem como bem jurídico imediato a criança e,
mediatamente, a mulher grávida).
7 Por se encaixarem ora como direitos de igualdade, ora como direitos sociais,
exigem do Estado tanto uma posição passiva quanto ativa, derrubando, assim, as barreiras
entre o público e o privado, e estabelecendo uma atuação conjunta com a família e a
sociedade pela conscientização, informação e criação de mecanismos de proteção.
8 Dentre as áreas de atuação estatal, destacam-se a educação, saúde, segurança e
trabalho da mulher, sempre tendo em perspectiva o princípio da diversidade, atendendo às
especificidades de cultura, etnia, ocupação, etc.
9 O que falta é o empreendedorismo, a “quebra de tabus”, a criação doutrinária e a
comoção social, cobrando dos representantes uma atuação garantista e participando, através
do “empoderamento”, para que efetivamente a mulher possa, enfim, assumir a posição de
titular de direitos sexuais e reprodutivos, no pleno exercício da cidadania e da democracia.
BIBLIOGRAFIA
ADVOCACI. Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos. Direitos sexuais e direitos
reprodutivos na perspectiva dos direitos humanos. Síntese para gestores, legisladores e
operadores do direito. Porto Alegre: Advocaci, 2003. 118 p.
AMORIM, Conceição de Maria. Programa de atenção integral à saúde da mulher – PAISM:
entre as diretrizes nacionais e a realidade em Imperatriz. [2008?] Disponível em:
<http://www.followscience.com/library_uploads/43345c5673a207342e455322c519d4f5/251/
programa_de_atencao_integral_a_saude_da_mulher_paism_entre_as_diretrizes_nacional_e_a
_realidade.doc>. Acesso em: 28 ago. 2010.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. v.04: parte especial. 3 ed. rev. e
atual. São Paulo: Saraiva, 2009. 374 p.
BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana: conquistas
médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 230p.
BREGA FILHO, Vladimir. Direitos fundamentais na constituição de 1988: conteúdo jurídico
das expressões. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. 136 p.
BUGLIONE, Samantha. Reprodução e sexualidade: uma questão de justiça . Jus Navigandi,
Teresina, ano 5, n. 49, fev. 2001. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1855>. Acesso em: 07 abr. 2010.
CARRERA, Francisco. A mulher à luz da lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do
Adolescente. In: SÉGUIN, Elida. O direito da mulher. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999.
144 p. p.33-42.
CORRÊA, Sônia; JANNUZZI, Paulo de Martino; ALVES, José Eustáquio Diniz. Direitos e
saúde sexual e reprodutiva: marco teórico-conceitual e sistema de indicadores. Associação
Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP). Disponível em:
<http://www.abep.org.br/fotos/Dir_Sau_Rep.pdf>. Acesso em: 15 fev. 2010.
DORA, Denise Dourado, SILVEIRA, Domingos Dresch da (Org.). Direitos humanos, ética e
direitos reprodutivos. Porto Alegre: Themis, 1998. 143 p.
GOMES, Renata Raupp. Os “novos” direitos na perspectiva feminino: a constitucionalização
dos direitos das mulheres. In: WOLKMER, Antonio Carlos, LEITE, José Rubens Morato
(Org). Os “novos” direitos do Brasil: natureza e perspectivas: uma visão básica das novas
conflituosidades jurídicas. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 51-74.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, vol. III. 6 ed. Niterói, RJ: Impetus,
2009. 768 p.
HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha Lei com nome de mulher: considerações à Lei n.
11.340/2006: contra a violência doméstica e familiar, incluindo comentários artigo por
artigo. Campinas, SP: Servanda Editora, 2008. 262 p.
MATTAR, Laura Davis. Reconhecimento jurídico dos direitos sexuais: uma análise
comparativa com os direitos reprodutivos. Sur, Rev. int. direitos human., São Paulo, v. 5, n.
8, jun. 2008 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-
64452008000100004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 08 abr. 2010.
OLIVEIRA, Maria Coleta; ROCHA, Maria Isabel Baltar da. (Orgs.) Saúde reprodutiva na
esfera pública e política na América Latina. Campinas, SP: Editora da Unicamp/Nepo, 2001.
331 p.
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência doméstica e familiar contra a mulher: Lei
11.340/06: análise crítica e sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. 120
p.
SÁ, José Anselmo Cícero de. Liberdades públicas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999. 142 p.
VENTURA, Miriam. Estratégias para promoção e defesa dos direitos reprodutivos e sexuais
no Brasil. In: DORA, Denise Dourado (Org.). Direito e mudança social: projetos de
promoção e defesa de direitos apoiados pela Fundação Ford no Brasil. Rio de Janeiro:
Renovar; Fundação Ford, 2002. p. 91-121.