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 Textos livres UNISUAM | Centro Universitário Augusto Motta 104 Revista Semioses | Rio de Jane iro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral Adaptação, versão ou recriação? Mediações da leitura literária para jovens e crianças Paula Mastroberti Doutoranda em Letras/PUCRS RESUMO: O objetivo nesse ensaio é, em primeiro lugar, ir em busca de um diag- nóstico, por meio de uma abordagem semiótico-comparativa, para o  status fun- cional de um texto qualificado como adaptação, tendo em vista a confusão por vezes estabelecida entre esse conceito e o de tradução; ambos serão reavali ados no interior  do atual contexto plurimidiático. Nesse contexto, verifiquei outras defini- ções associadas - versão, releitura ou recriação -, sobre as quais há ainda pouca conversa quando tratamos da classificação e da avaliação qualitativa e funcional das adaptações literárias infantis e juvenis. A partir disso, reflito sobre adaptação enquanto gênero produzido por um setor editorial para o leitor iniciante, enquanto se coloca, na verdade, a serviço das mediações pedagógicas relacionadas à leitura literária. Ambas as reflexões serão feitas no sentido de estabelecer um diálog o com a tese defendida em 2006 na Faculdade de Letras da PUCRS pelo Prof. Dr. Diógenes Buenos Aires de Carvalho,  A adaptação literária para crianças e jovens: Ro binson Crusoé no Brasil. Palavras-chave: Adaptação e leitura literária - literatura i nfantil e juvenil - Litera- tura e outras linguagens narrativas ABSTRACT: This essay seeks for a diagnosis to the functional status of the text qualified as adaptation and, to do so, uses a semiotic-comparative approach, keep- ing in mind the misunderstanding there is between in the latter concept and the concept  of  translation. Both are reevaluated inside the present plurimedia context.  In this context, I am able to ver ify other related def initions: versio n, re-reading or remake - about which there is still scarce study, especially concerning classifica- tion or qualitative and functional evaluation of the literary adaptations for teens and children. Based on this initial effort, I draw some ref lections about adaptation  as a  genre produced by the publishing segment to the inexper ienced reader, meanwhil e it actually is at the serv ice of pedagogical mediations related to the literary reading.  All this groundwork is drawn aiming to estabilish a dialogue with the thesis de-  fended by Di ogenes Buenos Ai res de Carvalho , A adaptação literária para crianças e jovens: Rob inson Crusoé no Brasil, in 2006, at the Pontifice Cathol ic University of  Rio Grande do Sul, Brazil. Keywords:  Adaptation and literary reading  - literature for youth and childhood - literature and other narrative languages

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    Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral

    Adaptao, verso ou recriao? Mediaes da leitura literria para jovens e crianas

    Paula Mastroberti Doutoranda em Letras/PUCRS

    RESUMO: O objetivo nesse ensaio , em primeiro lugar, ir em busca de um diag-nstico, por meio de uma abordagem semitico-comparativa, para o status fun-cional de um texto qualificado como adaptao, tendo em vista a confuso por vezes estabelecida entre esse conceito e o de traduo; ambos sero reavaliados no interior do atual contexto plurimiditico. Nesse contexto, verifiquei outras defini-es associadas - verso, releitura ou recriao -, sobre as quais h ainda pouca conversa quando tratamos da classificao e da avaliao qualitativa e funcional das adaptaes literrias infantis e juvenis. A partir disso, reflito sobre adaptao enquanto gnero produzido por um setor editorial para o leitor iniciante, enquanto se coloca, na verdade, a servio das mediaes pedaggicas relacionadas leitura literria. Ambas as reflexes sero feitas no sentido de estabelecer um dilogo com a tese defendida em 2006 na Faculdade de Letras da PUCRS pelo Prof. Dr. Digenes Buenos Aires de Carvalho, A adaptao literria para crianas e jovens: Robinson Cruso no Brasil.

    Palavras-chave: Adaptao e leitura literria - literatura infantil e juvenil - Litera-tura e outras linguagens narrativas

    ABSTRACT: This essay seeks for a diagnosis to the functional status of the text qualified as adaptation and, to do so, uses a semiotic-comparative approach, keep-ing in mind the misunderstanding there is between in the latter concept and the concept of translation. Both are reevaluated inside the present plurimedia context. In this context, I am able to verify other related definitions: version, re-reading or remake - about which there is still scarce study, especially concerning classifica-tion or qualitative and functional evaluation of the literary adaptations for teens and children. Based on this initial effort, I draw some reflections about adaptation as a genre produced by the publishing segment to the inexperienced reader, meanwhile it actually is at the service of pedagogical mediations related to the literary reading. All this groundwork is drawn aiming to estabilish a dialogue with the thesis de-fended by Diogenes Buenos Aires de Carvalho, A adaptao literria para crianas e jovens: Robinson Cruso no Brasil, in 2006, at the Pontifice Catholic University of Rio Grande do Sul, Brazil.

    Keywords: Adaptation and literary reading - literature for youth and childhood - literature and other narrative languages

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    Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral

    INTRODUO

    Falar em adaptao, no que concerne a lite-ratura infantil ou juvenil, quase falar do mes-mo objeto; sabemos que o gnero, determinado por um destinatrio hipottico - o leitor infantil ou leitor juvenil padronizado pelo olhar adulto e para aqum de suas pluralidades subjetivas, gostos, experincias, gneros e saberes - nasce ligado a uma inteno pedaggica; a escritura literria infantil e juvenil teria comeado, sem dvida, a partir da ideia de adaptare, ou seja, quando algum ou algo se adequa ou adequa-do, se ajusta ou ajustado, a um determinado contexto ou meio a fim de sobreviver (no senti-do biolgico) ou de ser aceito ou compreendido (no sentido sociocultural).

    crescente, contudo, a confuso no que tange a classificao de um texto como adapta-tivo - qual a diferena entre adaptar e traduzir, sobretudo para o leitor infantil? Ou ainda: no seria todo texto infantil uma tentativa de adap-tao, no sentido em que o autor deve traduzir sua voz discursiva de adulto para tornar-se compreensvel e agradvel criana? A essa confuso conceitual, eu ainda poderia acres-centar aquela gerada pelos recursos funcionais da adaptao propriamente dita - porque e quando adaptar um texto classificado como adulto para jovens leitores? E, por fim: qual seria o seu papel em termos de iniciao na leitura literria, sobretudo nos dias de hoje, quando temos acesso s mais variadas mdias que igualmente atualizam inmeras obras da literatura para, entre outras, histrias em quadrinhos, filmes e at mesmo musicais broadway?

    Meu objetivo nesse ensaio , em primeiro lugar, ir em busca de um diagnstico, por meio de uma abordagem semitico-comparativa, para o status funcional de um texto qualificado como adaptao, tendo em vista a confuso por vezes estabelecida entre esse conceito

    e o de traduo; ambos sero reavaliados no interior do atual contexto plurimiditico. Nesse contexto, verificamos outras definies associadas a toda espcie de ps-produo1 (BOURRIAUD, 2009) - verso, releitura ou recriao -, sobre os quais h ainda pouca conversa quando tratamos da classificao e da avaliao qualitativa e funcional das adapta-es literrias infantis e juvenis. A partir disso pretendo refletir, numa segunda instncia, so-bre adaptao enquanto gnero produzido por um setor editorial para o leitor iniciante, cuja inteno, porm, colocar-se a servio das mediaes pedaggicas relacionadas leitura literria. Ambas as reflexes sero feitas no sentido de estabelecer um dilogo com a tese defendida em 2006 na Faculdade de Letras da PUCRS pelo Prof. Dr. Digenes Buenos Aires de Carvalho, intitulada A adaptao literria para crianas e jovens: Robinson Cruso no Brasil.

    Em sua tese, Carvalho se prope a emular, entre outros, uma delimitao vlida de adap-tao enquanto gnero, alm de oferecer uma cartografia de entrecruzamentos histricos e locais, mostrando o seu irrevogvel vnculo com a pedagogia do literrio. O conceito de adaptao proposto por Carvalho apresenta-se, portanto, dentro de uma funcionalidade prtica sociocultural; o autor-adaptador esta-ria, atravs dos recursos de sua escrita prpria, calibrando uma cultura escritural consagrada, porm inacessvel compreenso de uma tipologia de leitor ainda no plenamente ope-rante dos signos da linguagem. Para Carvalho, entretanto, essa funo extra-literria - que condiciona o gnero no s por sua distncia histrica da fonte, mas tambm por uma viso cultural e social que o define e localiza em assimetria evidente entre o objeto de origem, o mediador e seu destinatrio - no desqua-lificaria o texto adaptativo enquanto ele se mostrar permevel s qualidades universais da obra-fonte e observar:

    Paula Mastroberti

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    [] adequao do assunto, da estrutura da histria, da forma, do estilo e do meio aos interesses e s condies do leitor in-fantil, o que no representa a escolha por um gnero inferior. Ao aproximar o texto do universo do seu receptor, postula-se a possibilidade de estabelecer o dilogo entre os mesmos e, por conseguinte, tor-nar possvel criana o acesso ao mun-do real, organizando suas experincias existenciais e ampliando seu domnio lingustico, bem como enriquecendo seu imaginrio. (CARVALHO. 2006: 49.)

    Carvalho afirma que o uso da adaptao li-terria se justifica em virtude da sua contribui-o para com a variedade temtica e de assun-tos a serem abordados pela literatura destinada criana e ao jovem, trazendo preocupaes universais para seus contextos histricos e cul-turais e proporcionando interaes entre cultu-ras e localidades. Nota-se, ao longo de todo o estudo, a preocupao do autor com relao qualidade estilstica do texto adaptativo e com a responsabilidade do mediador interferente (no sentido em que todo autor-adaptador, em sua legitimidade de profissional da escrita, est imbudo de autoridade para escolher o que dever ou o que no dever permanecer da fonte original).

    E no que consiste, afinal, uma adaptao? Seria um novo texto? Um subtexto? Um pa-ratexto ou uma parfrase? Conteria elementos de intertextualidade? Seria o adaptador um tradutor intrasemitico - uma vez que tra-duz dentro da prpria lngua - ou um traidor - porque filtra a linguagem com base em crit-rios adultos sobre o que imagina ser um texto infantil/juvenil? Carvalho cita, como refern-cia de adaptao, os textos de Monteiro Lo-bato gerados a partir da literatura estrangeira, traduzidos por ele mesmo e alterados pelo seu prprio estilo de escrita e a inter-relao com o mundo do Stio do Picapau Amarelo. As quali-

    dades justamente citadas com respeito ao pro-cedimento lobatiano de traduzir e de recontar histrias, tendo por base os estudos de Marisa Lajolo, Gabriela Bhn e Adriana Silene Vieira que geram a confuso entre os termos tradu-zir e adaptar, confuso essa investigada pelo autor e que derivar na concluso da instabi-lidade do seu objeto de estudo (CARVALHO, 2006, p. 73 e p. 381) e da difcil delimitao entre os modos de transferncia dos discursos-fonte por seus derivados - ou da interferncia dos ltimos sobre os primeiros:

    [...] a adaptao literria para crianas e jovens um processo instvel, tendo em vista que o uso de procedimentos narra-tivos tais como o corte, a segmentao, a reduo de elementos, a mudana ou manuteno da perspectiva narrativa, a simplificao das aes, a representao do tempo e do espao mais prxima ou mais distante do original, depende do cruzamento da leitura da obra e do leitor-alvo que o adaptador realiza, tendo como parmetro o carter emancipatrio da obra fonte. (CARVALHO, 2006, P. 381. Grifo meu.)

    essa instabilidade que eu me proponho discutir aqui - quem sabe desconstruir - tendo por base os estudos semiticos e comparati-vos. Pois antes de tudo, antes de investigar a funo adaptativa e mediadora a servio da leitura literria, talvez seja fundamental, em primeira instncia, reavaliarmos as aplicaes dos termos adaptao e traduo, para depois propor a reavaliao conceitual acerca de toda ps-produo gerada como inscrio numa rede de signos e de significaes j existentes e reconhecidas.

    Comecemos pela operao de traduzir, associada aqui ao de adaptar. Tecnicamente, traduo toda transposio de uma lngua estrangeira para a lngua local. Sua associa-

    Adaptao, verso ou recriao? Mediaes da leitura literria para jovens e crianas

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    Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral

    o traio (expressa no adgio traduttore, traditore em italiano, e na confuso causada pelos verbos em ingls to traduce [trair] e to translate [traduzir]) concerne mais relao entre obra traduzida e leitor, no entre obra e tradutor, uma vez que este a leu na lngua origi-nal e a conhece, potencialmente, em seu pleno sentido; desse ponto de vista, traduzir jamais ser o mesmo que adaptar (embora se possa traduzir e adaptar ao mesmo tempo), pois a adaptao no pretende substituir sua fonte, mas possui um carter transitrio strictu sensu (como etapa ou degrau de acesso a uma leitura posterior), enquanto que a leitura de uma tra-duo tende a ser definitiva. A confuso entre ambas as operaes, portanto, no reside nelas mesmas, mas nos seus agenciamentos, princi-palmente em relao literatura infantil: em geral, muito do que se traduz de literatura es-trangeira para esse segmento acaba por derivar em adaptao, seja nos nveis histricos ou so-cioculturais (hbitos e falas locais ou costumes de uma outra poca que devem ser adequados compreenso do jovem contemporneo e lo-cal). Assim, a traduo adaptativa ser, desde o princpio, traidora, ao interditar ao leitor uma aproximao direta com culturas estrangeiras e passadas (sobretudo se essa informao for obliterada nos peritextos editoriais - caso no incomum nas tradues, mesmo integrais, de literatura infantil/juvenil). Tambm aqui no se poder confundir traduo adaptativa com transcriao, expresso adotada por Harol-do de Campos quando na traduo de poesia estrangeira, j que a primeira evocar sempre um destinatrio impotente ou incompetente e a segunda exigir um leitor esteta e compara-tivo.

    Na semitica, o termo traduo aplicado por Julio Plaza (PLAZA, 2003) com refern-cia s correspondncias possveis entre signos, mdias e cdigos diversos; contudo, Plaza ca-tegorizar a traduo intersemitica em uma tipologia de base peirceneana, centralizada

    a partir do que ele chama de transduco: transcriao, transposio e transcodificao. Na primeira, a abordagem de ordem icnica (transduco propriamente dita); na segunda, temos uma transduco nos nveis indiciais; na terceira, teremos uma transduco na or-dem do simblico (entre cdigos lingusticos). H ainda outras subdivises feitas com base na semitica peirceneana cuja resenha no ser possvel fazer no curto espao destina-do a esse ensaio. Embora apresente uma boa soluo para anlise dos processos de ps-produo de uma obra original que servir de ponto de partida para uma outra realizada em mdia diferente, permanecemos diante do mesmo impasse j referido com relao adaptao: evidente que o termo traduo, ao ser neutralizado diante das tantas catego-rias propostas por Plaza, no d conta dos fenmenos que esse autor procura abarcar. A operao de traduzir, ao assumir suas tantas variaes, no translada (o verbo ingls to translate mostra-se aqui bastante apropriado) os significantes estticos, antes os trans/recon/figura, correndo o risco de revelar-se como traio (traducement) entre cdigos, mdias e linguagens. Esclareo: nunca obteremos uma traduo fiel de uma mdia ou de uma lingua-gem para outra; as especificidades de cada me-dium proporcionaro (inter)faces diferentes de um mesmo contedo, modificando o contedo em si mesmo (tornando-o algo novo, jamais um derivado tradutivo). Ora, se forarmos o sentido do termo adaptao em direo ao de traduo, o risco ser o mesmo, com um agravante: a adaptao traidora engana o lei-tor, ao prometer uma riqueza que no possui e ao oferecer nada em troca que no seja um anncio ou amostra da fonte original.

    A insero dos estudos semiticos, alm de iluminar os conceitos traduo e adaptao tal como mencionados - ligados sobretudo s operaes realizadas com obras estrangeiras2 - me permitir a abertura a uma discusso

    Paula Mastroberti

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    Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral

    crtica, em nveis comparativos, abarcando as demais ps-produes narrativas dirigidas ao pblico infantil e juvenil para outras mdias, no sentido de melhor localizar as diferenas entre o que e o que no uma adaptao lite-rria, qual a sua identidade e qual a sua funo em contexto plurimiditico.

    At aqui estive restrita a uma definio de adaptao conforme o que lhe atribudo em mbito literrio; porm, com frequencia nos servimos dele quando nos referimos aos modos transductivos de uma mdia para outra. Agora o momento de propor uma outra de-finio - conciliatria, talvez. Quero propor o termo verso, em substituio ao de adapta-o latu sensu. Digo verso em sua acepo tcnica: contrria traduo, uma verso a transposio de algo em nossa lngua para uma lngua estrangeira. Ora, o adaptador, como vi-mos, algum autorizado a operar sobre um dado objeto artstico ou cultural para adequ-lo a algum incapaz de usufru-lo por falta de domnio pleno do cdigo. J um tradutor , em geral, algum que estudou um determi-nado idioma, mas no vive imerso nele3; do tradutor exigimos habilidade para encontrar o significante certo na sua lngua primeira para traduzir a outra, que lhe segunda. O mesmo profissional pode, entretanto, versar uma obra em sua lngua para a estrangeira: mas tal pro-cedimento em sentido oposto implica um des-locamento - ele deve se colocar num lugar que no o seu de origem (ou, pelo menos, no constitui seu cotidiano lingustico): o lugar do falante e leitor estrangeiro. A operao versa-tiva assemelha-se, assim, muito mais quela que concebemos como a adaptativa ideal, pois o autor-adaptador - adulto, sempre - deve deslocar-se em direo ao local infante, de modo a versar uma dada obra em linguagem adequada e sensvel a este ltimo.

    H um outro fator importante para levar-mos em considerao o termo verso como

    mais apropriado: ele me permite utiliz-lo para anlise de todo fenmeno de transduc-o miditica de uma narrativa literria para quadrinhos, filmes, animaes ou jogos. Essas verses, por se servirem de outras linguagens ou media (impressos, analgicos e digitais), podem transfigurar completamente a fonte li-terria, caracterizando assim o que eu chama-ria de releitura ou recriao (mais uma vez, no podemos confundir essas expresses com transcriao, cuja proposta , acima de tudo, corresponder, ainda que por vias prprias, aos significados estticos e poticos de sua fonte). Levando adiante minhas conjecturas, eu diria que h duas polaridades versativas a partir de um objeto narrativo original: a verso adap-tativa e a verso recriativa. Essa polaridade deve ser entendida como arbitrria: impossvel encontrar um objeto versado como adaptao ou recriao puras, mesmo em mdias diver-sas. Elas podem ser pensadas tambm confor-me o foco de anlise: se o destinatrio ou se os modos de ps-produo. Por exemplo, o texto literrio Peter Pan e Wendy, publicado em 1911, j ele mesmo, uma verso adap-tativa - ainda que feita pelo prprio autor, James M. Barrie - do texto dramtico que o antecede para um leitor de livros infantis da poca; contudo, se eu pens-lo como uma ps-produo cuja voz narrativa metadiegtica e a presena do ltimo evento, em que Wendy aparece adulta, se apresentam como interfe-rncias sobre a fonte original, a verso literria adquirir feies recriativas. Derivaes eco-nmicas da verso literria, redirecionadas a um pblico em faixa etria inicial, constituiro uma verso adaptativa; j o desenho animado Peter Pan da Disney e o filme Peter Pan de P. J. Hogan, de 2003, constituem verses para o cinema em que o primeiro reduz a histria a uma aventura fantstica e divertida, excluindo os aspectos irnicos e amargos; j o filme de Hogan, em contrapartida, ao configurar Wen-dy como uma menina que deseja ser pirata, interfere no sentido original da personagem

    Adaptao, verso ou recriao? Mediaes da leitura literria para jovens e crianas

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    Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral

    para satisfazer uma platia de meninas cujo sonho de maturidade no se limita a ser boa me e dona-de-casa. Ainda assim, essas in-terferncias de carter adaptativo, ao serem processadas num contexto semitico prprio de cada medium (as configuraes grficas do desenho animado da Disney, a escolha dos atores e dos figurinos no caso de Peter Pan de Hogan, incluso de trilha sonora e de efeitos especiais, entre outros), no impedem que os atestemos como verses predominantemente recriativas.

    Se ficarmos somente no interior da litera-tura narrativa, tambm possvel e necessrio reavaliar o termo adaptao, substituindo-o ora por verso adaptativa, ora por verso recriativa: s assim poderamos fazer jus s reescrituras lobatianas e a tantas outras que ul-trapassam o simples versar, mas transfiguram a obra no interior do verbal, para transform-la em algo que, mesmo novo, presta homenagem quilo que lhe deu origem, atravs da inter-textualizao; alm de algumas verses de Lobato de clssicos como Peter Pan ou Dom Quixote, textos como Ulysses, de James Joyce e Doutor Fausto de Thomas Mann seriam, igualmente, exemplos de forte carga recria-tiva. Nos gneros infantil e juvenil, teramos nos contos populares, anedticos ou maravi-lhosos um fenmeno mais complexo, dado que so retirados da tradio oral, cuja fontes so indefinidas. A ausncia de um original ou de um autor-fonte torna os contos populares passveis de serem contados e recontados nas mais variadas formas e estilos, e foram muitos que o fizeram, como sabemos, gerando obras s quais cabe muito mais cham-las verses recriativas do que adaptativas (pois afinal, no h propriamente um domnio autoral a ser investigado). A depender dos modos e medidas em que esses contos so ajustados para apreciao do infante, teremos verses mais ou menos recriativas, mais ou menos adaptativas de contos e lendas. Em Hans C.

    Andersen ou Joo Simes Lopes Neto, o es-tilo prximo prosa potica indica um maior carga recriativa; em contrapartida, poderamos nos referir s compilaes dos irmos Grimm, de Silvio Romero e de tantos outros estudio-sos do conto popular, como mais prximas verso adaptativas, j que procuram preservar as caractersticas das fontes orais locais. Em Charles Perrault ambas as categorias se equili-bram, pois se nota, em suas ps-produes dos contos populares franceses, tanto a inveno (no estilo e na prpria narrativa, ao incluir elementos no pertencentes tradio oral) quanto uma adequao a uma proposta tico-pedaggica com finalidade de educar o jovem da poca.

    Fazendo uso da semitica, posso estender o conceito de verso ao livro ilustrado ou aos quadrinhos, inferindo que todo material hbrido verbal e grfico-visual constituir uma verso recriativa, se concebido a partir de um discurso primeiro estritamente literrio e no em conjunto a ele (como ocorre com algumas produes grficas para as faixas etrias iniciais e na associao entre roteiristas e desenhistas para produo de HQs): temos o caso, por exemplo, das edies ilustradas da Cosacnaify, Salamandra/Moderna e Arx/Saraiva, para Alice no pas das maravilhas de Lewis Carroll, publicadas no Brasil entre 2009 e 2010, que, literalmente, versam4 a obra para trs ambientes grficos distintos, pro-pondo, dessa maneira, trs leituras diferentes. Uma verso de um texto-fonte para recriao ilustrativa poder ser tambm adaptativa ao servir-se de um texto integral de domnio do leitor adulto: penso aqui em obras de autores renomados como Machado de Assis (Conto de escola, ilustrado por Nelson Cruz, Editora Cosacnaify) e Julio Cortzar (Discurso do urso, ilustrado por Emlio Urberuaga, Editora Record) revertidos para o pblico infantil com ilustraes adequadas faixa.

    Paula Mastroberti

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    Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral

    Longe de se constituir uma traio s origens, reescrituras, filmagens, jogos, qua-drinhos, ilustraes - entre outros produtos da cultura plurimiditica - so verses em que a predominncia do carter recriativo devem torn-las reconhecidas por aquilo que so: ps-produes inter ou intrasemiticas que atualizam um original, reinventando-o para a contemporaneidade; ao faz-lo, instigam e seduzem o leitor por si mesmas, sem deixar de excitar a curiosidade sobre a obra que lhes anterior. Pela liberdade com que lidam com os dados significativos e estticos j existentes, satisfazem leitura e emancipam a subjetivi-dade leitora para o narrativo-literrio e no atravs dele. Pois antes de servir de passagem para a formao de um indivduo socialmente ajustado e competente, a arte narrativa, seja ela original, seja ela versada para qualquer suporte, linguagem ou mdia de fruio, deve oferecer-se como um fim em si mesmo e no como ponte de acesso para um sujeito em evo-luo linear (progressivo em direo a uma suposta emancipao), externo s operaes e agenciamentos subjetivos da arte e da cultura.

    Se a emancipao atravs da leitura li-terria dicotomiza a relao sujeito/leitura, ocasionando os equvocos relacionados a sua pedagogizao - quando o que desejamos a autopoiese leitora (em que se produz e in-corpora a operao leitora como produo de subjetividade) -, ento me parece claro que, toda vez que uma verso se anula em nome de uma inteno puramente tradutiva (incluindo tradues no interior da prpria lngua, pois estou adotando aqui traduo em seu sentido semitico), ela corre o risco de traio. Minha posio nesse sentido se justifica, em primeira instncia, numa experincia pessoal: trata-se de um (res)sentimento que me possuiu na maturidade, quando descobri que muitos dos clssicos lidos na infncia no eram originais, mas textos-amostras. Minha sensao a de ter sido enganada em minha subjetividade

    infantil leitora - jamais ultrapassada, mas incorporada, como diriam Gilles Deleuze e Felix Guattari5 (DELEUZE; GUATTARI, 2010) e portanto, parte presente e constituinte dos meus atuais processos de leitura da arte e da cultura. Ainda que eu reconhea a minha incompetncia para a leitura dos seus textos-fontes naquele momento, imagino se no teria sido melhor a opo por obras originais e pr-prias para minha idade, deixando os chamados clssicos para mais tarde. preciso levar em considerao a poca da minha infncia (dca-da de 60 at meados de 70) quando, claro, era ainda muito limitada a produo de textos ori-ginais para leitores infantis, valendo portanto a defesa de Carvalho quanto necessidade de uma variedade temtica. Hoje em dia, porm, a produo de textos adaptados latu sensu para um leitor iniciante me parece inoperante - algo que o prprio Lobato j intua, em suas verses que mais recriam o original do que o adaptam.

    Percebo, no trato com jovens e crianas de idades diversas, que muito mais estimulante trazer um filme, uma histria em quadrinhos ou qualquer narrativa que estabelea uma re-lao criativa e intertextual com obras antigas do que me servir de uma amostra literria. Na experincia plurissemitica possvel estabe-lecer uma relao muito mais rica e interativa entre obras, mdias e leitores. preciso, as-sim, quebrar preconceitos infundados como o de que, se em contato com uma recriao, a criana ou o jovem abandonaro a inteno de ler, no futuro, o original; ou a de que, se crian-a assistir o filme, no vai querer ler o livro. Se o sucesso de sagas como Harry Potter, O senhor dos anis ou Crnicas de Nrnia e at mesmo a vampiresca srie sangue-com-acar Crepsculo podem nos atestar algo, a da ocorrncia de um fenmeno de convergncia entre as mdias, suportes e linguagens, reali-zadas pelos e nos leitores, e no o contrrio (JENKINS, 2009).

    Adaptao, verso ou recriao? Mediaes da leitura literria para jovens e crianas

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    Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral

    Voltando tese de Carvalho e a sua pre-ocupao quanto instabilidade do objeto de estudo: essa instabilidade se deve, claro, a um conceito ali emulado, mas tambm a sua precariedade funcional, propenso inopern-cia, dados os entornos miditicos atuais que permitem aos jovens fazer convergir universos e optar por uma ou mais vias de acesso arte e cultura, sincronizando todas as experin-cias. Do meu ponto de vista, prefiro defender a idia de que tanto a produo, quanto a aplicao metodolgica de amostras literrias que nada proporcionam em termos de fruio esttica - ao apagar os rastros estilsticos do autor original, pouco oferecendo em troca que a mera descrio diegtica -, s teriam validade quando na carncia de outros recur-sos para excitar a experincia leitora (o que, vamos e venhamos, no mais o caso. Esta-mos no sculo XXI, e a publicao de obras originais dirigidas especialmente aos jovens e s crianas to grande e variada que no ser por falta dela que recorreremos a um gnero meramente mostrurio). Para alm disso, ha-ver sempre o fantasma da traio, sempre que uma verso for pensada como traduo - feita por algum supostamente competente em uma dada linguagem para medi-la compreenso

    dos supostamente ignorantes da lngua culta. A leitura de obras antigas - essas presos a um conceito discutvel de cnone, e que no caso das verses muitas vezes se circunscreve quelas de domnio pblico - importante, mas deve ser feita em tempo prprio - tempo que cabe ao jovem determinar.

    NOTAS

    1Termo tcnico utilizado para definir os tratamentos dados a um material registrado como, por exemplo, no caso de um filme, legendas, efeitos especiais, cartazes. Nicolas Bourriaud o utilizar para definir a inveno de protocolos de uso para os modos de representao e as estruturas formais existentes. Trata-se de tomar todos os cdigos da cultura, todas as formas concretas da vida cotidiana, todas as obras do patrimnio mundial, e coloc-los em funcionamento. (BOURRIAUD, 2009, p.14)

    2Vide Apndice III da tese de Carvalho: Levantamento bibliogrfico de adaptaes brasileiras. (CARVALHO, 2006, p. 434.)

    3 Alguns tradutores de obras infantis, como Tatiana Belinky, so de ori-gem estrangeira. Contudo, ao se naturalizarem brasileiros, perdem o contato cotidiano com a lngua de origem e passam assumir a lngua local como sua.

    4 Versar tambm pode referir-se ao derramar de um contedo num re-cipiente, de modo a tomar a forma do ltimo. No caso, o texto literrio, contedo alogrfico por excelncia, toma a forma do objeto autogrfico - o livro ilustrado - que o recebe e substancia.

    5 Para Felix Guattari, tanto quanto para Gilles Deleuze (DELEUZE, Gil-les; GUATTARI, Flix, 2010), a produo de subjetividade somatria e articulada, ou seja: medida em que o ser humano envelhece, todas as produes de subjetividade, sejam elas inconscientes ou conscientes, agregam-se e formatam uma subjetividade mltipla, dinmica, rizom-tica. Assim, a subjetividade infantil est presente no adulto da mesma forma que, na criana, h pelo menos o germe para produo de uma subjetividade adulta.

    REFERNCIAS

    BOURRIAUD, Nicolas. Ps-produo: como a arte reprograma o mundo contemporneo. Trad.: Denise Bottmann. So Paulo: Martins Fontes, 2009.

    CARVALHO, Digenes Buenos Aires de. A adaptao literria para crianas e jovens: Robin-son Cruso no Brasil. Tese de doutorado. Faculdade de Letras da Pontifcia Universidade Cat-lica do Rio Grande do Sul, 2006.

    Paula Mastroberti

  • Textos livres

    UNISUAM | Centro Universitrio Augusto Motta112

    Revista Semioses | Rio de Janeiro | Vol. 01 | N. 08 | Fevereiro de 2011 | Semestral

    DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. O anti-dipo. Trad.:Luiz B. L. Orlandi. So Paulo: 34, 2010.

    JENKINS, Henry. Cultura da convergncia. Trad.: Susana Alexandria. So Paulo: Aleph, 2009.

    PLAZA, Julio. Traduo intersemitica. So Paulo: Perspectiva, 2003.

    (Artigo recebido em 28 de janeiro de 2011 e aprovado para publicao em 10 de fevereiro de 2011.)

    Adaptao, verso ou recriao? Mediaes da leitura literria para jovens e crianas