Artigo11 Arte Afro-brasileira

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    Apontamentos acerca do Ensino de Arte Africana e Afro-Brasileira

    Francielly Rocha Dossin1

    Resumo

    O presente artigo visa refletir sobre a implantao da lei federal n 10.639/03, que estabeleceua obrigatoriedade do ensino de cultura africana e afro-brasileira no Ensino Bsico, atravs dosdesafios presentes e de propostas terico-metodolgicas para o Ensino.As observaes aquiexpostas recaem sobre a prtica do ensino de arte, onde as visualidades de matrizes africanasdevero se fazer presente.

    Palavras-chave

    Ensino de Arte, Arte africana, Arte Afro-brasileira

    Abstract

    This article aims to reflect on the deployment of federal law N. 10.639/03 that establishedmandatory teaching of African and Brazilian-African culture in Basic Education in Brazil,through the proposed challenges and theoretical and methodological proposals. The view

    presented here fall on the practice of art education, where African visualities of matricesshould be present.

    Key words

    Art Education, African Art, African-Brazilian Art.

    Em 2003, foi promulgada a lei federal n 10.639, que modificou a Lei de Diretrizes e

    Bases da Educao Nacional (LDB), estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de cultura

    africana e afro-brasileira nas escolas pblicas e privadas de todos os Estados 2. A lei estipula,

    alm da obrigatoriedade, a competncia e o contedo a ser ministrado:

    O contedo programtico a que se refere o caput deste artigo incluir o estudo daHistria da frica e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra

    brasileira e o negro na formao da sociedade nacional, resgatando a contribuio dopovo negro nas reas social, econmica e poltica pertinentes Histria do Brasil (LFn 10.639/03).

    1Mestre em Artes Visuais e Bacharel em Artes Plsticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail:

    [email protected] Consequentemente alterada pela lei federal 11.645 de 2008, que inclui a obrigatoriedade do ensino de Histriae da Cultura Indgena no currculo oficial da rede de ensino.

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    O inciso segundo prev que os contedos referentes Histria e Cultura Afro-

    Brasileira sero ministrados no mbito de todo o currculo escolar, em especial nas reas de

    Educao Artstica, de Literatura e Histria Brasileiras. Ou seja, o esforo deve ser conjunto,

    sendo que os professores das disciplinas de Artes, Literatura e Histria devem prestar especial

    dedicao questo.

    Embora a lei traga um texto sucinto, as Diretrizes curriculares nacionais para a

    educao das relaes tnico-raciais e para o ensino de histria e cultura afro-brasileira e

    africana, aprovadase homologadas em 2004, podem guarnecer o professor que ainda no

    tenha tido oportunidade de adentrar ao debate. Ao longo deste artigo iremos referenciar

    alguns princpios das diretrizes.

    Embora a existncia da lei j se configure como uma grande conquista, sua existnciano garante sua efetivao. Muitos professores e instituies ainda desconhecem seu texto ou

    ignoram sua obrigatoriedade. Passados oito anos, a implantao da lei ainda apresenta

    desafios. E so grandes os desafios frente ideologia eurocntrica to enraizadana postura

    pedaggica.

    Para que a lei se torne realidade nas salas de aula, importante enfraquecer a

    resistncia que muitos professores e instituies parecem demonstrar. A escola ainda o local

    de transmisso da cultura na qual o aluno est inserido, neste quesito inclui-se ostatus quo.No se faz necessrio um olhar mais apurado para perceber o conservadorismo de muitos

    professores e instituies de ensino, que na prtica cotidiana acabam por promover a

    manuteno dos papis de gnero, sociais e raciais.

    Contra essa resistncia demonstrada por muitos docentes necessrio um trabalho

    amplo, para possibilitr-lhes reconhecer a importncia de incluir a temtica africana e afro-

    brasileira nos currculos, no apenas pela necessidade de cumprir uma lei, mas como

    estratgia para a construo de uma sociedade mais igualitria e democrtica. Por isso, aaplicao das diretrizes demanda que as instituies promovam um amplo debate, para elas

    que se tornem conhecidas pelos docentes, alm dos necessrios cursos de formao.

    Da mesma forma, importante possibilitar aos professores desvelarem mitos como o

    da democracia racial e do embranquecimento, para que possam identificar formas de excluso

    e discriminao vivenciadas por estes grupos, ao longo da histria brasileira, e, mesmo na

    escola. Atravs desse desvelamento, os docentes podero tambm compreender as

    especificidades do racismo brasileiro, possibilitando o desenvolvimento de valores e aes

    pedaggicas que favoream o respeito pluralidade tnico-racial.

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    Segundo as diretrizes (2005, p. 15) para empreender a construo dessas pedagogias,

    fundamental que desfaam alguns equvocos. Por isso, os primeiros passos devem rumar

    para um maior conhecimento sobre continente africano, sobre os processos identitrios no

    Atlntico negro, especialmente no Brasil, e sobre os mitos engendrados na sociedade

    brasileira, a fim de evitar distores. As diretrizes, segundo o prprio documento, so

    dimenses normativas. Embora aberta a reformulaes a partir de novas experincias,

    regulam caminhos, oferecendo referncias e critrios to necessrios a esses primeiros passos

    na aplicao da lei; por isso importante que os professores tenham acesso ao seu texto.

    Silva (1997), em pesquisa anterior a lei, traz um retrato da situao poca. A autora

    aponta para a dificuldade de aceitao da identidade afro por grande parcela dos estudantes

    brasileiros, o que resulta em problemas j conhecidos no cotidiano escolar: repetncia, evasoescolar e o impedimento do exerccio da cidadania. Esses so problemas ainda existentes, os

    quais a lei visa diminuir, e com quais os professores devem se preocupar caso queiram ser

    importantes agentes de transformao na nossa sociedade.

    Para investigar a aproximao do professor de Arte com os fundamentos da Lei

    10.639/2003, a professora e pesquisadora Maria Cristina Rosa realizou, durante o ano de

    2005, entrevistas com 15 professores de Artes Plsticas da rede municipal de ensino de

    Florianpolis. O projeto inicial previa identificar o reconhecimento da lei por parte dosprofessores e em seguida buscaria observar e analisar um conjunto de seis aulas de cada

    professor que estivesse, no ano de 2005, trabalhando em sua prtica com contedos da cultura

    e histria da frica.

    Porm, as entrevistas revelaram que no havia aproximaes suficientes entre os

    professores e os contedos propostos na lei 10939/2003. Os depoimentos demonstraram que,

    at aquele momento, no houvera investimentos na discusso e debates das Diretrizes

    Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-raciais. Nem mesmo formaoespordica ou continuada no trabalho. Seque a constatao da pesquisadora,

    No momento atual os profissionais da rea de Artes Plsticas privilegiam a Arteeuropia, como a nica matriz formadora do pensamento artstico nacional. Namaioria das vezes a Arte europia e a Arte estadunidense so as nicas referncias

    presentes, tanto na formao de professores quanto na prtica pedaggica escolar.Isto acontece por existir um grande investimento por parte dos cursos formadores nombito da Arte americana e europia. (ROSA, 2011, p. 9)

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    A disciplina de Arte no Brasil j possui uma trajetria, contando com vrios cursos de

    licenciatura no pas e com iniciativas e nomes de relevncia mundial, como Ana Mae

    Barbosa. No obstante, segundo Rosa,

    Entre as principais dificuldades encontradas pelo professor uma merece destaque porestar singularmente ligada ao debate acerca da implantao da lei 10639/2003.Trata-se da matriz terica dominante nas Artes plsticas, produzidas na Europa e nosEstados Unidos, enfatizando a cultura branca, masculina e dominante na formaodo professor. Esta evidncia dificultou o alargamento do conceito de Arte inibindo oreconhecimento das manifestaes artsticas de outros grupos culturais diferenciados(Ibidem, p. 11).

    Dessa forma, a autora constata que so em disciplinas como a antropologia que

    professor de arte acaba tendo mais sucesso em encontrar subsdios para suas aulas.

    Observao semelhante faz a pesquisadora Almeida, embora um pouco mais recente:

    A efervescncia desta discusso [das artes de africanas e suas matrizes] no mbitodos estudos da msica, da literatura e da comunicao no atingiu ainda o sistemadas artes. A prpria criaes do Museu Afro Brasil uma mostra de que existemaes nesse sentido, mas a reflexo ainda est nos seus primrdios. Sero os estudossobre artes visuais e as prprias produes plsticas os ltimos redutos doeurocentrismo como valor? (Almeida, 2007, p. 221).

    Converge tambm a fala da pesquisadora Ramos,

    A histria do sistema das artes, a Teoria e Histria das Artes, a criao dos espaosexpositivos e museolgicos e, recentemente, a criao do novo museu de Paris, oQuai Branly, destinado finalmente a valorar as artes outras, nos revelam evidnciasde segregao esttica, que foi tambm segregao lingstica, religiosa, econmicae social de populaes no-europias. A saber, no-brancas, no-crists, no-alfabetizadas nos sistemas de escrita cursiva, no-civilizadas (RAMOS, 2007, p.4).

    Percebemos nas observaes das autoras acima o cenrio excludente criado nas Artes

    Visuais. Esse eurocentrismo acaba se refletindo nos livros didticos. Embora o livro didtico

    no seja usualmente adotado no Ensino de Arte, ele muitas vezes uma das fontes utilizadas

    pelos professores para suas prticas. Analisando esses livros Silva contabilizou que:

    Livros didticos de Educao Artstica, adotados por 30% de professores da redepblica e consultados por 70% destes, so totalmente omissos no que se refere produo cultural e artstica do negro. [...] A bibliografia disponvel para o ensino da

    Arte omissa no que se refere arte africana e incompleta quanto afro-brasileira.Os professores de educao artstica se formam sem nunca terem tido sequer umadisciplina com contedos relativos a esttica negra ou s razes africanas. Tem-se,ainda, em nossa produo simblica, o agravante da ideologia do

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    embranquecimento e do mito da democracia racial imposta pelos setoreshegemnicos da sociedade (SILVA, 1997, p. 44).

    Portanto, importante que os professores em sala de aula e em formao tenhamcontato com novas leituras e vises sobre as artes visuais. Tal necessidade explicada por

    Ramos,

    O objeto em si no tem valor, o valor sempre atribudo de acordo com asnecessidades ou interesses de cada cultura no seu tempo e espao determinado.Assim, sem que haja um interesse da filosofia em rever seus conceitos, significaese valores a respeito das estticas de outras culturas - alm de historicamente admitira determinao dessas na Teoria da Arte ocidental -, no haver um reconhecimentosignificativo dos objetos estticos recolhidos nas expedies e nem mesmo a

    aceitao cultural e social dos outros povos. (RAMOS, 2007, p. 8)

    H estudos capazes de munir os professores e pesquisadores para uma nova percepo

    das artes extra-ocidentais. So ainda poucos e ainda mais raros em lngua portuguesa.

    Entretanto, no Brasil, depois da lei federal n 10.639/03, vm surgindo cada vez mais

    publicaes que auxiliam nessa tarefa.Muitas desses novos olhares no vm propriamente da

    rea da arte, como os Estudos Culturais e Ps-coloniais, mas esses novos cabedais tericos

    vm influenciando e modificao a prpria teoria e histria da arte.

    importante ter em mente que a lei em questo vai ao encontro dos Parmetros

    Curriculares Nacionais para a disciplina de Artes. Basta lermos:

    A educao em arte propicia o desenvolvimento do pensamento artstico e dapercepo esttica, que caracterizam um modo prprio de ordenar e dar sentido experincia humana: o aluno desenvolve sua sensibilidade, percepo e imaginao,tanto ao realizar formas artsticas quanto na ao de apreciar e conhecer as formas

    produzidas por ele e pelos colegas, pela natureza e nas diferentes culturas. (PCN)

    Pois, se a formao dos professores at ento era euro-centrada, como se cumpria o

    que previa o PCN? Se se desconheciam, especialmente, as artes africanas e afro-brasileiras,

    como mostra a pesquisa de Rosa (2011), como os professores possibilitavam a seus alunos

    afro-descendentes expressarem-se e desenvolverem um pensamento artstico apartado de sua

    prpria esttica? Como eles possibilitavam conhecer e respeitar as formas produzidas entre

    colegas, se na aula apenas uma matriz artstica era apreciada?

    Os Parmetros Curriculares Nacionais para as disciplinas de Artes enfatizam a

    pluralidade. Observamos como as leis 10.639/03 e 11.645/08, vieram contribuir para o

    prprio ensino de arte, pois se os alunos descendentes de africanos ou indgenas no se

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    reconheciam nas aulas, como a arte poderia contribuir para sua autoexpresso e

    desenvolvimento plstico? Naturalmente, no lhes pode ser negado conhecer a arte de matriz

    europeia, e mesmo que se identifique com ela, da mesma forma que no pode ser negado aos

    alunos descendentes de europeus conhecerem as artes africanas, afro-brasileiras e indgenas.

    a partir desse dilogo que poder se construir uma educao para relaes tnico-raciais mais

    igualitrias.

    No Ensino de Arte, o multiculturalismo permeia o debate daqueles que procuram por

    uma educao mais democrtica, como explica Barbosa (1998, p.80): Hoje a necessidade de

    uma educao democrtica est sendo reivindicada internacionalmente. Contudo, somente

    uma educao que fortalea a diversidade cultural pode ser entendida como democrtica.

    Segundo Paulino Cardoso, o termo multiculturalismo surgiu na Amrica do Norte na tentativade atender as demandas que exigiam novas relaes de gnero e tnica. Para o autor (2007),

    A palavra multiculturalismo um termo tpico da nossa contemporaneidadeglobalizada, teve origem nas sociedades norte-americana e canadense e foi umaresposta de mulheres, nativos americanos e afrodescendentes pelo fim de toda formade intolerncia e por polticas pblicas capazes de garantir os direitos civis bsicos atodos.

    O PCN j nos deixa claro que o ensino de Arte se mostra como um excelente caminho

    para lograr os objetivos pautados nas diretrizes (2004). Existe uma vasta produo artstica, de

    grande fora esttica, espera de professores que as descubram e as compartilhem com seus

    alunos e pares. fato que a cada ano surgem publicaes que podem auxiliar nas prticas

    pedaggicas; no obstante, o professor no pode deixar de ser tambm pesquisador.

    Procurando por obras e expresses artsticas, analisando-as, desenvolvendo meios e criando

    atividades para realizar com seus alunos.

    Arte Africana

    Ao longo da histria a representao da frica tem sido incessantemente recriada e

    desconstruda, tornando um recurso de disputas, e formada de diferentes maneiras nos mais

    diversos discursos. Tendo isso em vista, o professor de arte no deve se preocupar na

    preservao de possveis essencialismos, mas sim com a criatividade com que expresses

    africanas se mostram e se transformam. Criatividade, no em seu sentido moderno de

    originalidade e novidade, mas resignando capacidade de criar.

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    Impor s artes africanas essencialidades um dos erros de se pensar nas artes

    extraeuropeias como arte primitiva, pois dessa forma a arte ser entendida como algo

    esttico, quando na verdade sempre esteve em constante movimento e mudana; o termo

    primitivo pressupe tambm uma arte produzida sem a conscincia artstica, idia essa

    desconstruda atravs de vrias pesquisas que demonstram inmeros vocbulos que

    sociedades africanas mantinham para pensar sua arte e sua esttica (SILVA; CALAA,

    2006).

    Quando se fala em Arte Africana vem em mente todo o estaturio chamado no

    ocidente de dolos e fetiches, alm das mscaras africanas. Todos esses objetos, sob o olhar

    eurocntrico, so carregado de preconceitos e enviesamentos, que impedem uma apreciao

    valorizada dessa arte. Esse primeiro olhar lanado s artes africanas se deve ao olharetnogrfico moldado ao lema conhecer para dominar, se referindo s artes sempre como

    rituais ou religiosas.

    Tampouco devemos comparar as artes produzidas nas sociedades africanas com a arte

    feita para um mercado, para um museu, apenas para o regozijo do artista, ou para o ensino

    religioso, ou demarcao de status, funes que a arte europia teve ao longo da histria. A

    arte das diversas sociedades africanas tem em comum o fato de ser construda de forma

    especial, a fim proporcionar integrao num conjunto de produo, ou, como explica Som,O objeto africano sempre posto em situao, no em cena. (apud RAMOS, 2007, p. 9).

    As mscaras africanas so as expresses mais comuns quando encontramos temas

    africanos sendo trabalhados nas aulas de artes visuais, muitas vezes sem problematiz-las.

    Dessa forma, estaremos perpetuando os enviesamentos acima citados. As mscaras so as

    expresses mais conhecidas da frica e quase sempre logram grande envolvimento dos

    alunos quando trabalhadas em sala de aula. Entretanto, esse pode ser um bom elemento para

    comearmos um trabalho que favorea realmente um conhecimento da frica, no momentoem que essa produo pode demonstrar a riqueza esttica que pulula no continente. Atravs

    dessa riqueza, por exemplo, se podem demonstrar diferenas na produo artstica, na

    organizao scio-poltica e nas filosofias dos diversos povos, pois cada um deles

    desenvolveu formas bastante especficas.

    Se a arte moderna na Europa s se configurou como conhecemos por seu contato com

    objetos africanos, tambm na frica esse momento foi de contato contnuo devido ao

    colonialismo, e, naturalmente, tambm em suas artes ocorreram mudanas. Esses encontros

    estticos podem ser interessantes para demonstrar e problematizar as transposies globais, que

    construram e constroem o continente africano, e confrontar ideias como de autenticidade e outras

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    imagens atribudas frica. Essas transposies esto presentes nas poticas diaspricas do

    Atlntico Negro. Dispora que, segundo Gilroy,

    [...] um conceito til porque ele especifica a pluralizao e o trao no idntico(nonidentity) das identidades negras sem celebraes precipitadas. O conceitoimplica a possibilidade de traos comuns que no podem ser dados como garantidos.A identidade tem de ser demonstrada em relao possibilidade alternativa dediferenciao, visto que a lgica da dispora impe o sentido de temporalidade eespacialidade, o qual ressalta o fato de que ns no somos o que ns fomos (Gilroyapud COSTA, 2006, p. 116).

    O que Paul Gilroy chama de Atlntico Negro (2001) so vnculos criados a partir da

    experincia comum e moderna de marginalizao e sofrimento que liga a frica s Amricas e

    Europa pela dispora de seus povos. O Atlntico Negro, segundo o autor, especifica as realizaes

    estticas e antiestticas, em uma forma distinta de recordar, ou como explica Paul Gilroy (2001:

    35), [...] negros dispersos nas estruturas de sentimento, produo, comunicao e memria.

    Como apontam as Diretrizes, a produo cultural oriunda da dispora africana deve

    igualmente ser contemplada em sala de aula:

    Divulgao e estudo da participao dos africanos e de seus descendentes nadispora, em episdios da histria mundial, na construo econmica, social ecultural das naes do continente africano e da dispora, destacando-se a atuao denegros em diferentes reas do conhecimento, de criao tecnolgica e artstica, deluta social. (BRASIL, 2005, p. 22-23).

    Yinka Shonibare, MBE. "The Swing (after Fragonard)/ O balano (depois de Fragonard)", 2001.Fonte: ;.

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    Pensar a dispora possibilita colocar essas imagens engendradas de diversas formas e

    momentos histricos sob outra perspectiva. Como lembra Gilroy (2001, p.19), ao aderir

    dispora, a identidade pode ser ao invs disso [algo esttico e limitado], levada

    contingncia, indeterminao e ao conflito. E justamente essa indeterminao, conflito e

    confuso em torno das questes identitrias que poticas diaspricas muitas vezes colocam

    em questo.

    Yinka Shonibare, por exemplo, nasceu na Inglaterra e cresceu na Nigria; durante

    seus estudos artsticos em Londres, viu-se obrigatoriamente diante de questes acerca da

    africanidade, dasque era cobrado por sua origem africana. Shonibare trata o assunto com

    ironia, para interrogar pretensas identidades autnticas, lana mo de toda iconografia da

    aristocracia do sculo XVIII e da era vitoriana para problematizar a identidade inglesa ou oinglesamento (Englishness) que em alguns trabalhos como Diary of a Victorian Dandy

    personificado por personagens clssicos da poca, como o Dorian Gray de Oscar Wilde.

    Em O balano o artista faz uma releitura da obra do francs Fragonard, levando a

    frica e a Revoluo Francesa aos frvolos jardins do rococ. A obra parece insinuar, tal

    qual uma vanitas, advertncias em relao aos excessos das elites que, sendo sempre

    sustentados pela espoliao e explorao, podem resultar na guilhotina. O golpe derradeiro

    contra o mito da autenticidade reside em seu uso estratgico do tecido africano. O famosotecido de fibra e estampa tipicamente africano guarda na verdade a histria da globalizao e

    suas transposies. Pois dentre outras informaes, sabemos que o tecido de fabricao

    holandesa e feito a partir dos batiks indonsios. Depois de baixas vendas na Europa, as

    fbricas comearam a vender os tecidos frica, onde se popularizou apenas no sculo XX.

    Como explica Shonibare, o que supostamente africano carrega todas essas transposies

    globais, a autenticidade no est ligada a origem, mas sim s imagens que se criam e que se

    atribuem (Guye, 2008).

    Arte Afro-Brasileira

    O debate acerca da arte afro-brasileira , sem dvida, longo e apresenta um desafio

    complexo. A dificuldade surge j na nomenclatura e definio do que seria a arte afro-

    brasileira. No obstante, a dificuldade presente no percurso deve servir para nos instigar e no

    paralisar. Existe j uma bibliografia capaz de auxiliar o professor a conhecer as produes

    artistas brasileiras de matrizes africanas. Como explica Conduru,

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    Essa empreitada parece, contudo, um tanto difcil, pois, corroborando amarginalizao sociocultural dos afro-descendentes, as articulaes entre arte e afro-

    brasilidade so desvalorizadas no sistema de arte no Brasil: museus, mercado,historiografia, ensino. Entretanto, preciso reconhecer que j h caminhos trilhados,experincias realizadas, espaos abertos, a ocupar. (CONDURU, 2007, p. 101).

    Na literatura existente sobre a arte afro-brasileira, constam entre os principais autores:

    Abdias do Nascimento, Alejandro Frigerio, Dilma de Melo Silva, Emanuel Arajo, Marta

    Helosa Leuba Salum, Maria Helena Ramos da Silva, Maria Ceclia Felix Calaa, Kabengele

    Munanga e Roberto Conduru. Mesmo no pertencendo exclusivamente rea artstica,

    podemos incluir pesquisadores das cincias humanas e sociais que deram grandes

    contribuies para o estudo artstico realizado por descendentes de africanos, como Roger

    Bastide, Mariano Carneiro da Cunha e George Nelson Preston.No ensino das artes visuais, a vida e a obra de artistas podem ser uma boa porta de

    entrada para se trabalhar com a cultura e arte afro-brasileira, pois possibilitam colocar em

    dilogo as expresses afro-descendentes locais e transnacionais. Como escreve Lins (2008),

    as obras podem ser entendidas como espaos ntimos de criao do artista por meio dos quais

    ele se relaciona com o mundo social que o circunda, ou seja, o espao onde convivem e

    confrontam: individualidade, mscara social e recursos poticos e retricos. Buscar artistas

    prximos do contexto dos alunos pode demonstrar especificidades locais e coloc-lo emdilogo com outros artistas; demonstrar o corolrio universal que a questo racial impe sob

    a gide da dispora, da matriz cultural africana e da discriminao. Esses problemas sero

    percebidos atravs do olhar de cada artista.

    As diretrizes citam o destaque que se deve dar s realizaes, expresses e

    acontecimentos de cada regio e localidade, a fim de aproximar o tema da realidade do aluno.

    Em Florianpolis, por exemplo, viveu Valda Costa, hoje quase desconhecida. A vida da

    artista e suas relaes com outros artistas da cidade ilustram bem a posio do artista afro-

    descendente no modelo modernista, e sua arte desvela um olhar sobre a cidade de

    Florianpolis bastante prprio da artista que viveu no Morro Caixa e era apaixonada por moda

    e carnaval.

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    Valda Costa,sem ttulo, 1985. leo s/eucatex, 30 x 24 cm.Coleo particular. Fonte: LINS, Jacqueline Wildi. Para uma histria das sensibilidades e das percepes:vida e

    obra em Valda Costa. 2008. 294 f. Tese (Doutorado em Histria Cultural) Programa de Ps-Graduao emHistria, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianpolis, 2008.

    Grafite deRizo, Rz, Vald, Fela, Ldro e Aipmo retratando Nega Tide, Avez- Vous, Mestre Gentil doOrocongo, Pai Leco, Joo Cndido, Antonieta de Barros, Mestre Dica da Coloninha e Cruz e Sousa. Largo da

    alfndega, Centro, Florianpolis. Fonte:http://www.copalord.com.br/home.html

    Outro exemplo o grafite que foi promovido pela Escola de Samba Embaixada Copa

    Lord, no dia 20 de novembro de 2010, durante o evento "Semana da Conscincia Negra -

    Dilogos com as Comunidades" (organizado pela Coopir e com o apoio da Cufa/SC), no

    Largo da Alfndega. Na ocasio, os grafiteiros Rizo, Rz, Vald, Fela, Ldro e Aipmo

    retrataram oito personalidades cuja contribuio se destacou no mbito cultural afro-

    catarinense. Na ordem que se encontram na imagem, foram retratados: Nega Tide, Avez-

    Vous, Mestre Gentil do Orocongo, Pai Leco, Joo Cndido, Antonieta de Barros, Mestre Dica

    da Coloninha e Cruz e Sousa.

    Seria demasiado extenso enumerar as mltiplas possibilidades de propostas

    pedaggicas que podem ser delineadas a partir desse trabalho em grafite. O professor, de

    acordo com seu objetivo, pode desenvolver inmeras atividades com seus alunos tendo esse

    grafite como referencial. Pode-se, a partir dele, trabalhar a linguagem do grafite e suas

    especificidades, como o spray, os tags, o molde vazado. A histria do grafite possibilita

    pensar as questes de discriminao que envolvem a dispora africana e une povos no

    Atlntico Negro atravs da identificao e da luta antirracista. Do grafite pode-se trabalhar

    http://www.copalord.com.br/home.htmlhttp://www.copalord.com.br/home.htmlhttp://www.copalord.com.br/home.htmlhttp://www.copalord.com.br/home.html
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    tambm o espao urbano como local de prticas artsticas diversas, de convivncia de

    diferenas, de segregao espacial. Pode-se tambm propor aos alunos que pesquisem a

    biografia dos retratados: Quem foram? Qual contribuio deram cultura afro-catarinense?

    Pode-se convidar um grafiteiro para falar aos alunos sobre sua arte, pode-se fazer um passeio

    na cidade para observar a arte urbana, inclusive o grafite de Rizo, Rz, Vald, Fela, Ldro e

    Aipmo. Essas so apenas algumas das possibilidades de prticas pedaggicas, o professor-

    pesquisador pode desenvolver muitas outras, inclusive estabelecendo relaes com outros

    contedos que tenha previsto, como pintura mural e arte colaborativa, entre outros.

    Essas so apenas algumas observaes acerca da implantao da lei atravs das

    diretrizes que foi possvel realizar nesse curto espao. As diretrizes um importante

    documento que pode auxiliar o professor em sua lida em sala de aula, porm no exime oprofessor de sua atuao como pesquisador. Cabe ao professor procurar identificar, conhecer,

    e transpor seu conhecimento para a sala de aula.

    Referncias bibliogrficas

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  • 7/26/2019 Artigo11 Arte Afro-brasileira

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