(Artigo)Heidegger e a Poesia Em Nauro Machado

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    Resumo

    O objetivo deste artigo traar um paralelo interpretativo entre a filosofiaheideggeriana, sobretudo em seus conceitos mais conhecidos, e a poesia de

    Nauro Machado. Analisam-se, comparativamente, os principais conceitos,como estar-no-mundo (facticidade), ser-no-mundo (existencialidade) evir-a-ser (angstia). Demonstra-se como cada um destes conceitos soextremamente elucidativos em uma abordagem existencialista da poesia de

    Nauro Machado, com nfase, sobretudo, no conceito de angstia, tema centralda lrica do poeta.

    PalavRas-chave: poesia, filosofia, facticidade, existencialidade, angstia.

    IntRoduo

    Dada a possibilidade de convergncia, propomos, neste texto,uma interseco entre o pensamento de Martin Heidegger e a poesiade Nauro Machado. Partimos da reflexo do filsofo alemo, para

    proceder a um transporte sistematicamente quase integral dos conceitosdo primeiro, com o propsito de elucidar a perquirio potica dosegundo. Com base nesse pressuposto, cabe observar que se trata detransporte que pode ser igualmente realizado no sentido de verificarmosa aplicao de uma reflexo filosfica em outros campos da atividadehumana. bvio, limita-se a a aplicao ao universo de conceitosoperacionais que, com efeito, permitem que tal procedimento no recaiaem trusmos e falcias da ordem do senso comum.

    O discurso filosfico e o texto potico evidentemente no seintercambiam e nem se excluem de forma necessria ou imperativa,

    * Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paran, Irati, Paran, Brasil. E-mail: [email protected]

    Recebido em 5 de fevereiro de 2012Aceito em 14 de maro de 2012

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    entretanto tambm no esto postos como smiles um do outro. O quedesejamos se que possvel , ao realizarmos uma intersecoentre ambos, verificar como reflexo e linguagem so, conforme o

    prprio Heidegger, possibilidades de desvelamento do Ser atravsdos entes. Em certo ponto da reflexo heideggeriana, a filosofia e a

    problematizao filosfica em torno da linguagem deixam de servistas, rompendo com a tradio platoniana, como possibilidade nicaou superior a outras formas de desvelamento do Ser, de modo que a

    poesia, assim como a arte em geral, a mstica, entre outros, passam aser resgatadas como formas legtimas de tal desvelamento, retornandoassim ao lugar de discurso de onde haviam sido expulsas pelo filsofoateniense.

    Alm de Martin Heidegger, no h outro filsofo que tenhachegado ao grau de abstrao que propicia a compreenso das distnciase aproximaes entre a poesia e a filosofia, pelo menos no com umaviso instrumental dos conceitos, mas a partir de uma cosmovisoque nasce justamente de uma problemtica e, sobretudo, da vivnciaexistencial.

    Desse modo, o principal objetivo e objeto deste artigo aproposta ou tentativa de demonstrar um vnculo ou relao de coernciaentre a potica de Nauro Machado e a filosofia do Ser de Heidegger,

    demonstrando igualmente, alm dos pontos de convergncia, como otema da angstia candente em ambas as obras. Com isto, nossainteno fazer notar ao leitor como a conjurao de certos conceitostornados caducos ou obsoletos pela historiografia e filosofia modernas como oZeitgeist(Esprito do Tempo) revela-se no apenas ineficaze obtusa por vezes, mas, sobretudo, preconceituosa, ao repelir a

    possibilidade de uma conscincia histrica coletiva que, medianteoposio ou confluncia, realiza assim mais um desvelamento do Seratravs dos entes histricos. Tomando isto como ponto de partida,

    comecemos antes por situar a reflexo heideggeriana na construo dotexto.Desde a antiguidade clssica, e mesmo antes desta, a filosofia

    ou mais propriamente o homem questiona a razo de ser e deexistir dos seres humanos, pondo em foco a nossa funo e posioneste mundo e tendo diante de si um futuro desconhecido governado

    por foras ignoradas e escassamente manipulveis, com uma nica

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    expectativa predeterminada e certa: a morte. Esse questionamentopropiciou o florescimento das mais variadas respostas perturbaointensa, chamada angstia Angst (em alemo), ou La Nause (a

    nusea, em francs) , que se manifesta ao homem quando este, deforma deliberada ou provocada, sai de si mesmo e comea a assistir vida e sua sucesso inexorvel, na qual verifica assustado que estmergulhado e da qual os entes ao seu redor seres humanos como ele muitas vezes ou no tm a mnima conscincia ou procuram fugir paraalgum recanto do cotidiano para no ter de pensar em mais nada. Estadvida primria do ser humano possibilitou o surgimento de vriasformas de religiosidade, pois um dos modos de silenciar ou apaziguaresta perturbao ou angstia sobretudo para as grandes massas, que

    no esto isentas de grandes crises de angstia existencial transferira dvida para uma resposta alm-vida ou alm-morte, depositandotodas as inquietudes nas mos de entidades supra-humanas que contmem si a chave de todo questionamento, na forma de uma promessa defelicidade eterna, que perdure alm da existncia humana.

    Esta soluo apareceria muitas vezes como umchamado ou umavoz interior da qual nem mesmo a filosofia heideggeriana escapou ,

    pois as indagaes humanas beiram muitas vezes o desespero devido pura ausncia de respostas e de lgica para todas as mazelas e misrias

    da humanidade. Todas as religies, todas as formas de arte, todas asformas de mstica ou de predestinao, toda a histria da filosofia emesmo da cincia, tudo isso tenta oferecer respostas para essaangstia(Angst, Nause) que atordoa a existncia humana, do mais simples eelementar ser humano at ao mais complexo e profundo.

    No cruzamento de toda essa trajetria filosfica, surge opensamento de Martin Heidegger. Como poucos de sua poca,Heidegger soube perceber a mirade de feixes de angstia que povoam onosso tempo, atravessado de cortes profundos como as grandes guerras,

    o holocausto sem esquecer, claro, a simpatia inicial do filsofo pelonazismo e o desenvolvimento estrondoso do capitalismo e de todas assuas perverses. A filosofia de Heidegger essencialmente existencial,

    pois a existncia a essncia do homem o nico ente que pensa e quesabe que carrega em si as foras que o conduziro ao seu prprio fim ,e a misso que o filsofo deve tomar para si desvelar a existnciae determinar, atravs da reflexo ativa, o ser da existncia. Negando

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    a filosofia kantiana, Heidegger desconsidera a existncia de conceitosa priori, uma vez que todos os conceitos esto postos e se resolvemna existncia, ao longo do existir, no acontecer histrico. Heidegger

    observa igualmente que, ao longo do desenvolvimento da histria dacincia, possvel detectar o movimento que nos revela a possibilidadeda existncia sem a necessidade da cincia. Porm, a sociedade deconsumo, instituda pelo capitalismo, impe-nos uma forma existencialna qual esta possibilidade no est mais colocada ao nosso alcance; ouseja, de tal modo estamos incrustados na rede de significaes do mundotal como o conhecemos hoje que a prpria sociedade de consumo prevque no teremos como escapar, por nossa prpria vontade, de sua malhade representao do real, uma vez que sem a cincia e a tecnologia noconseguimos imaginar outro mundo.

    A cincia e a tecnologia formam e informam, quando no defor-mam, a compreenso que temos da existncia e da realidade, impos-sibilitando ao homem comum sair de si ao encontro do ser, que o permi-tiria, talvez, vislumbrar o Ser. Portanto, o ser humano ou o ser homem,denominado por HeideggerDasein estar em, ser a, ser aqui , ou seja,o homem como um ser-no-mundo, o objeto a partir do qual o filsofoalemo realizar a sua reflexo sobre os modos de desvelamento doser no mundo, ou melhor, na existncia. necessrio que o homem,lanado ao mundo de forma passiva, possa descobrir por livre e

    prpria iniciativa o sentido da existncia, superando a facticidade doestar-no-mundo para que possa atingir o estgio de Existenz, ou seja,a pura existncia do Dasein.1 Com esta proposta, Heidegger desejarever o projeto da metafsica em novas bases, partindo do mtodofenomenolgico de Husserl, seu mestre. A principal crtica de Heideggerse dirige, portanto, filosofia moderna, por ter esquecido o Ser e ter sevoltado exclusivamente para o conhecimento.

    Para Heidegger, em um sintoma tpico da reflexo fenomeno-lgica, a problemtica Sujeito versusObjeto no existe, pois o homemno est separado do mundo, da existncia, da histria e do tempo, emuma atitude de contemplao. O homem parte integrante do mundo,um ente entre os entes do mundo, tendo conscincia de sua finitude ede sua existncia comoser para a morte, diferencial mximo, segundoHeidegger, dos outros entes.

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    Desse modo, para o filsofo alemo, a histria do homem,atravs da cincia, a histria do esquecimento do ser, da motivaoque conduziria o homem a procurar um sentido para a sua existncia,

    nica condio atravs da qual o ser humano poderia afinal abrir umasenda para o desvelamento do Ser. Com isto, retomando a heranadeixada por Rousseau e suas crticas ao Iluminismo, desembocadas nooitocentos sob a forma do movimento romntico, a nica realidade queimporta ao homem, segundo Heidegger, aquela cuja apreenso se dde forma concreta, porm singular, inslita, que o homem pode tomar

    para si subjetivamente. O que interessa, pois, a subjetividade, pois asubjetividade a verdade, a subjetividade a realidade e o universalno passa de mera abstrao do singular (apud Penha, 2001, p. 16).

    Existir , pois, ser no mundo engajado, realizar a possibilidadede sua existncia, o que ser tomado pelos existencialistas, a exemplode Sarte e Camus, como um ato definidor da essncia. Para existir,ser no mundo, conferir essncia existncia, h a necessidade de umato que defina esta ltima. Somente este ato pode, com efeito, atribuiressncia sentido existencialidade humana. O ser humano seria,

    portanto, apenas uma possibilidade do Ser que se determina ao longodo decurso do tempo, porm o ser do ser humano se define no cursoda existncia, que o tempo que lhe cabe em busca do sentido e da

    essncia desta ltima.Heidegger apregoa este retorno s origens da filosofia, propalandoa necessidade de uma busca da essncia do ser. Nauro Machado tambmo faz em sua potica, na medida em que prope que o homem se voltes foras primordiais e primitivas da existncia, sobretudo as sexuais,de sua condio existencial, a fim de viver uma sexualidade ontolgicaque o faa perceber como um ser de carne, ossos, sexo e genitlia, paraque assim tanto a misria quanto a singularidade da existncia possamdespontar acima da banalidade diria.

    Assim como em Heidegger, tambm em Nauro Machado h aluta por retirar o ser humano de seu estado de reificao, diante dascoisas e entes teis que o desviam de um olhar atento para si mesmo. A

    poesia pode sacudi-lo nesta direo, ao passo que a filosofia o capturadefinitivamente. Para tanto, necessrio observar que em Heidegger,assim como em Nauro a angstia revela-se como um ponto nodal das

    preocupaes de ambos, posto que a angstia no simplesmente um

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    estado psquico ou uma emoo ordinria, mas algo que permite apercepo do ser-a, que pe o ser humano em condio de Dasein,diante de si mesmo e do estar-no-mundo, para talvez perceber o ser-no-

    mundo e do ser com o nada.A angstia , assim, o momento privilegiado que permite ao ser

    humano se dar conta de sua existncia, pois justamente o momentoem que o ser se d e se revela; ainda no o Ser, mas uma das formas(a primeira) de o Ser se mostrar, se desvelar ante os olhos e para asubjetividade. A realidade concreta ento surge como algo singular einslito, e o homem se d conta de sua singularidade comoDasein, comoser a, ser aqui, ser no mundo, mudo e atnito. Neste momento, surgea necessidade da Linguagem, pois na palavra, na Linguagem, que as

    coisas, os entes, para Heidegger, chegam a ser; o homem, fazendo-selinguagem do ser, vem ao encontro de si mesmo, vem a si mesmo e,desse modo, o mundo vem ao homem, em toda a sua plenitude sensoriale existencial.

    A Linguagem,2 para Heidegger, a Casa do ser, pois naLinguagem que habita homem como fundamento, por meio da Lin-guagem que o homem apreende a realidade e vela e desvela a si mesmo.Dessa forma, a linguagem constitui o fenmeno mais caracterstico doser e da essncia humanos, uma vez que somente atravs de uma

    linguagem conveniente que se torna possvel o afloramento da verdadede todas as coisas, na qual se revela o fundamento de todo o existente, detodos os entes que existem. Para Heidegger e o seu projeto metafsico,a filosofia necessita retornar ao questionamento do ser e busca dofundamento que o constitui, utilizando a linguagem como instrumento

    para desvelar, uma linguagem em que as relaes entre sujeito e objetono estivessem mais postas, em que o Ser pudesse dar a se conhecer

    plenamente. Para tanto, a linguagem deve retornar ao logos grego,para que ela, como base e fundamento do real, propicie a revelao

    e a exposio dos fenmenos de maneira clara, pois o homem, nicoentre os entes da natureza a possuir uma lngua capaz de nomear oSer, aquele ser que detm o privilgio de resposta de como o ser-a(Dasein) deve ser apreendido em sua manifestao temporal.

    Heidegger se pe contra a interpretao aristotlica de metafsica,na qual o homem perde a sua humanidade intrnseca ao ser posto apenascomo um ente entre os demais. Com isto, o filsofo alemo pretende

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    demonstrar como as relaes entre as coisas existentes so efmeras evinculadas ao modo e ao tempo em que elas surgem. Como decorrnciade sua manifestao temporal, o fenmeno, no tempo, traria consigo

    o prprio sentido do ser, enquanto o homem, portador de linguagem econtemporneo do ser, devido a sua existncia ser contgua ao ser, teriaa chance de compreenso do ser-a manifesto no tempo.

    Para atingir esta compreenso este entendimento doDasein ,torna-se necessrio abandonar a perspectiva do ser-a como umobjeto fixo de estudo, atravs do qual criamos e aplicamos categoriase imperativos reificadores, os quais transformam o ser em uma meracoisa, sujeita experincia puramente concreta. Ao contrrio, sovrios os modos de manifestao do ser e de como este desvelaria a

    sua essncia no tempo, impossibilitando, assim, o projeto aristotlicode classificao em categorias atemporais. Isso se deve ao fato deHeidegger acreditar que o homem o portador da verdade e que esta seencontraria preservado no interior de sua essncia, sendo revelado pormeio de uma reflexo radical cujas origens estariam no pensamento pr-socrtico. Quando Scrates pe em suspenso a validade do mito comomodelo interpretativo para o desvelamento do ser e Plato estabelecea diferena entre uma linguagem verdadeira e uma falsa, expulsandoos artistas e os poetas da repblica ideal e instituindo noes mais

    legtimas de investigao e pesquisa cientfica, a filosofia ocidentalimpede a manifestao de formas vlidas de reconhecimento do ser,provocando, desse modo, o seu progressivo esquecimento e tornando asua verdade imanifesta.

    Antes de partirmos para a anlise do tema em si, convm traar-mos um caminho. Para tanto, tomemos a concepo heideggerianade existncia humana, constituda, conforme o filsofo, por algumascaractersticas fundamentais: a) facticidade; b) existencialidade (outranscendncia); c) a angstia. Estes tpicos sero explicitados para

    passarmos ao ponto nodal deste artigo, que o confrontamento dafilosofia do ser de Heidegger e a poesia existencial de Nauro.

    1. estaR-no-mundo: FactIcIdade

    A facticidade diz respeito ao fato de o homem, ser para a morte,estar jogado, atirado no mundo revelia de sua vontade, sem qualquer

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    participao sua no tocante a escolhas ou decises. Neste sentido, afacticidade do homem a sua presena (pr/ente), um ente que seencontra em um estar-lanado no mundo, carregando em seu ser as

    condies de possibilidade de sua presena. O mundo, no entanto, noqual o homem est lanado, constitudo no apenas pela phisys3 etampouco est reduzido a uma interpretao fsica. Ele representa atotalidade ou o conjunto de condies scio-histricas, socioeconmicase mesmo geogrficas nas quais o indivduo se encontra, como ser-no-mundo, totalmente imerso. Esta facticidade no diz respeito a um acaso,um acidente, uma vez que o estar-lanado no mundo tambm traz comoconsequncia o fato de ser, tendo de ser-no-mundo, negando a reificaoabsoluta e postulando a sua presena como existente, afirmando a sua

    existncia diante da totalidade de entes do universo.A partir de uma interpretao existencialista, esta negao da

    facticidade surge como condio de possibilidade para uma buscade transcendncia. Para a poesia de Nauro, a existncia do homemcomo ser lanado no mundo, vivendo este estar-lanado em sua mate-rialidade fsica, traz consigo a possibilidade do homem, cindido emsua individualidade pela reificao reinante, de estilhaar as forasque comprimem o Dasein, impulsionando o ser para a sua plenitude.Isto se d, entretanto, por uma operao, uma outra espcie de cirurgia

    ou constatao ontolgica que, em Nauro, conforme j referido emsituaes anteriores, parte de esquema de gineceu. Nesse esquema,a sexualidade apresenta as condies para que o ser a perceba a sua

    presena, o seu estar-no-mundo, de uma maneira em que a facticidadedos entes circundantes seja negada pela condio extrema de ser-em-si,sem mais nada alm de sua ostentao:

    Quando, num livro de obstetra, tinha eu talvez to s dez anos ,

    vi a genitlia aberta, abjeta,e vi a imensa sujeio do nus,senti-me ter a alma de poeta:um mar entre dois oceanos.

    Nasceu dali este meu destino,como se daquela cabea,daquele feto de menino,

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    daquela flor to-s crueza,pudesse a dor tambm ser sinoe a misria tambm grandeza!

    (machado, 1987, p. 23)

    Tal como Heidegger, Nauro Machado tambm expe a diferenaradical entre o ser o e o ente. O ser-a aquilo que caractersticodo homem, mas apenas o homem existe como um ser-a capaz derevelar-se, em uma tomada de conscincia como a oferecida por meioda linguagem. O homem tem, portanto, a possibilidade de vir tonade si mesmo e apresentar-se enquanto tal, ou seja, como um ser quese manifesta no tempo, dotado de temporalidade e existncia. Como

    um ser-a dotado de linguagem, o homem rene as condiesnecessrias para uma ocorrncia singular: a manifestao do prprio serno tempo, no mais como um simples objeto de especulao cientficaou filosfica, mas por intermdio de uma subjetividade devastadora eangustiante, na qual sujeito e objeto esto unidos indissoluvelmenteem um pensamento original e originrio. A poesia, portanto, umadas formas mais legtimas de superao da relao sujeito-objetoimposta pela teoria do conhecimento desde quando Plato fez aclebre separao entre uma linguagem verdadeira e uma linguagemfalsa, promovendo assim a expulso dos poetas daplisgrega. Ora, aconcepo heideggeriana de linguagem permite o retorno dos poetas

    para o centro daplis a gora , pois a linguagem potica possibilitauma das formas de desvelamento do ser. A facticidade, por outro lado,que o estar-lanado no mundo, anulada no momento em que ohomem, ao se questionar sobre a materialidade de sua existncia e desua presena fsica, percebe que no foi consultado. A factualidade daexistncia, segundo Heidegger, nos obrigaria a uma condio de ser eter de ser, absolutamente impositiva e castradora da condio humanaessencial:

    Esse fato de ser e ter de ser, aberto na disposio da pre-sena,no aquele fato que, do ponto de vista ontolgico-categorial, ex-

    prime a factualidade pertencente ao ser simplesmente dado. Esse sse faz acessvel numa constatao observadora. Em contrapartida,deve-se conceber o fato aberto na disposio como determinaoexistencial deste ente que , no modo de ser-no-mundo. Facticidade

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    no a fatualidade dofactum brutumde um ser simplesmente dado,mas um carter ontolgico da pre-sena assumido na existncia,embora desde o incio, reprimido. O fato da facticidade jamais pode

    ser encontrado numa intuio. (heIdeggeR, 1997, p. 189)

    O lirismo de Nauro , com efeito, uma negao da facticidadedo mundo, mas tambm uma procura de sua transcendncia por meioda existncia, conforme Hildeberto Barbosa Filho (2005) o menciona.Somente por meio da existencialidade,portanto, que o ser humano

    poderia atingir uma transcendncia da condio de facticidade, de estar-lanado-no-mundo. A obra lrica de Nauro, amplamente conscientedeste compromisso ontolgico, desde o incio lanou os fundamentos

    desta investigao:

    Meu corpo est completo, o homem no o poeta.Mas eu quero e necessrioque me sofra e me solidifique em poeta,que destrua desde j o suprfluo e o ilusrioe me alucine na essncia de mim e das coisas,

    para depois, feliz ou sofrido, mas verdadeiro,trazer-me tona do poemacom um grito de alarma e de alarde:

    ser poeta duro e durae consome todauma existncia.(machado, 1980, p. 5)

    O homem, sado de sua condio de facticidade como estebelo poema o atesta , toma conscincia de sua condio de estar-no-mundo, assume a percepo de seu corpo prova incontestvelde sua individualidade objetiva e tambm subjetiva e parte para a

    procura de uma outra condio de ser: a do poeta. O poeta, como enteliberto das coeres da linguagem ordinria, permite ao homem aceders camadas mais profundas do ser e da essncia humana; para isso,entretanto, faz-se necessrio que o suprfluo e o ilusrio da facticidadesejam literalmente destrudos, a fim de que o poeta possa encontrar aessncia do ser na percepo de si prprio e das coisas ou seja, todosos entes , a verdade e o fundamento do ser, independentemente se feliz

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    ou sofrido. O projeto desta procura ontolgica tem de consumir todauma existncia, pois no se encerraria nesta tomada de conscincia que,segundo Heidegger, ainda no a percepo do ser, mas dos entes, pois

    o ente o particular, o ntico,4enquanto o ser est alm da finitudedo homem, sendo que esse alm no metafsico ou religioso, masno presente, no aqui e agora. Esta tomada de conscincia grito dealarma ou alarde uma transcendncia no sentido da superao dafacticidade na existncia e, portanto, existencialidade.

    2. seR-no-mundo: exIstencIalIdade

    A existencialidade ou transcendncia na verdade o que Heideggerdefine por ser cotidiano, o qual se manifesta por intermdio dos atos dascoisas do mundo, a partir de cada indivduo, como o modo particularde ser do ente que o homem. A existncia uma abertura permanentedo ser-no-mundo e, paralelamente, a expresso da cotidianidade de sua

    presena, tanto em sentido pessoal como em sentido ordinrio: o darepetio de uma rotina. Ora, a existncia como tal j carrega consigoa condio necessria para a sua transcendncia a superao dafacticidade , pois o ser humano, ao tomar a percepo do ser-no-mundo,

    j era existente e, portanto, um ente que era um pr de si mesmo. Noser humano, por conseguinte, encontra-se a antecipao de sua prpriaexistencialidade, de sua transcendncia, como possibilidade. Essa

    possibilidade se manifesta, logo, no cotidiano, pois enquanto estivermosacostumados vida diria e s suas limitaes no perceberemos oque d fundamento s nossas relaes conosco mesmos, com o nossoser. O nosso ser est oculto, portanto, na entificao e reificao docotidiano. O ser humano , consequentemente, um ente cujo ser estsempre em jogo, em possibilidade e em abertura, ao mesmo tempo em

    que tem a percepo de sua diferena em relao aos outros entes. Ohomem, logo, no algo completo, conforme nos adverte Nauro em seupoema Parto (1958), mas um ser que se define ou gerado parido,se seguirmos a metfora naurina em um projeto no caso, um poeta.O homem , assim, um ente inacabado, cuja essncia confudimos coma sua existncia,5somente concebido como um mero estar no mundo,sendo o que Heidegger define comoDasein.

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    Desse modo, a conscincia de ser-no-mundo, conforme a con-cepo heideggeriana, pressupe uma responsabilidade, um verdadeirodesafio capacidade de transformao do ser humano, que necessita

    encontrar um projeto de existncia, a fim de se tornar aquilo queplanejou e que deseja, pois a verdadeira conscincia de ser e estar-no-mundo provm de uma negao da impessoalidade uma vezque esta nos imposta pelo cotidiano em que todas as coisas tm deinserir-se como teis e a afirmao da pessoalidade. Entendamos

    pessoalidade como a manifestao objetiva da subjetividade, no sentidode que as possibilidades de ser devem surgir de uma compreenso ouinterpretao do ser-no-mundo cotidiano, de modo a expulsar os modosde ser completamente impessoais, que anulam a subjetividade.

    Ora, apesar de em muitos momentos a literatura e especialmentea poesia afirmarem justamente o contrrio negao da subjetividadeem prol da objetividade , no resta a menor dvida de que a linguagem

    potica uma das manifestaes humanas que mais tm resistido impessoalidade da linguagem, um projeto essencialmente racionalistaque, ao longo do desenvolvimento da modernidade, vem sendoimplementado por todos a exemplo dos iluministas e dos positivistas que desejam, como Plato, separar uma linguagem verdadeira deuma falsa, incluindo a todas as formas em que o desvelamento do

    ser ocorreria: narrativa, literatura, poesia, msica. A conscincia doprojeto lrico de Nauro, entretanto, um explcito compromisso nosentido da responsabilidade ontolgica com a existencialidade como combate a esta reduo do ser-no-mundo impessoalidade, em queno se manifestaria uma subjetividade pronta a implodir todo o edifcioque anula a particularidade do ser em cada um de ns. Ao contrrio, emtodos os momentos de sua potica, Nauro procura sondar a presenae manifestao do ser em tua totalidade: no prprio movimento dalinguagem que o ser se desdobra, se revela e se desvela, ao renunciar

    solenemente a palavra reificante do ente, que se anula ao renegar odilogo com o que de mais ntimo possumos a voz interior dasubjetividade para assumir um papel redutor de mecanismo acessrioda linguagem tcnica. A existencialidade, em sua tomada de conscincia,faz com que o poeta busque a palavra do Ser, oculta entre as dobras dalinguagem, de modo a que ela se revele como presena, como palavraem que o ser puramente palavra, palavra-ser:

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    difcil o contatoentre mim e o meu ser:

    por dspares, nenhum pacto

    lhes poder acontecer.Soube-os no escuro tato,sem pod-los conhecer;estilete, pedra, cacto,so o espao entre o eue o voc,entre o sentado e o em p,entre o fora e o que dentro desigual no mesmo estar

    como o escuro e a claridade e que so de igual idade

    no meu duplo molestar.(machado, 1977, p. 71)

    Portanto, quando Heidegger afirma que a existncia humana umapossibilidade de ser-no-mundo, significa dizer que nossa obrigao superar a facticidade do estar-lanado por intermdio da existencialidadedo ser-no-mundo. quando o ser humano adquire a responsabilidade dese projetar, a fim de poder ser e, para tanto, precisa fazer da vida um

    projeto de ser, de um vir-a-ser que permita completude e integrao com

    outros modos de ser existentes. Isto, em suma, uma filosofia da ao:somente por meio de um projeto posto em prtica que podemos definirde maneira eficaz a totalidade do ser que nos compete. O projeto lricode Nauro , antes de mais nada, a conscincia inescapvel desta fugaontolgica no plano existencial, onde o ser se d a conhecer:

    [...]entre a terra e o pavor, meu cu devasso,entre o Ser o meu ser, o infindo espao,entre mim e ningum, meu nada, s isso.

    (machado, 1980, p. 17)

    Todavia, vivemos cercados de objetos em pleno cotidiano, obje-tos que so usados sem pensar, sem qualquer reflexo. A partir dessasituao corrente, o Daseinpercebe que est enredado em um mundocheio de objetos teis, de utenslios, de instrumentos (Zeug). Dessasituao imediata, h duas perturbaes que saltam vista: a) quando

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    um objeto se apresenta sem utilidade, ele se encontra na situao deum ente no existente no sentido concreto sem utilidade para a redeinstrumental que o significa. O instrumento deslocado, portanto, da

    rede instrumental que o significa permite a teoria (theorein) no sentidogrego: observar sem interferncia, resultando assim uma situao de

    pura contemplao do objeto em sua condio original de ser-em-si., pois, naquele preciso momento em que o objeto destacado darede instrumental que o Daseinobserva aquele ente no seu ser em si,desprovido de utilidade. Dessa situao de confronto com os objetos e conosco mesmos , destacados de nossa relao de utilidade docotidiano, que provm o espanto, a constatao de ser-no-mundo que

    permite a tomada de conscincia e posteriormente a tomada de uma

    ao por meio de um projeto que definir o nosso ser. A poesia, em suacondio de no utilidade da linguagem, nos devolve condio de ser-em-si, na medida em que nos pe em contato com a nossa no utilidade,de modo a perceber que o ser se manifesta fora da rede intrumentalde objetos cotidianos, de relaes quotidianas desprovidas de umarelao mais profunda com o ser. Com este espanto, vem a percepodo singular, do mpar, o choque com o mundo extrado de sua utilidadecotidiana, posto em si somente, com o seu ser:

    Se escrevo, ou se no escrevo, a mesma trampa.Que eu diga, ou no me diga, tudo igual.O singular nos soca, tapa e tampa.A diferena sempre o desigual.Escreves de gua tua funrea campa.Com gua escrevo: sou pobre animal. desespero: minha ltima rampa

    para querer-me mltiplo, plural!Ver-se criana trgida sacolano mpar segredo dado quela bolafeita incomensurvel noutros ps.Jamais voltar no podes para a frente.O singular todo teu, o teu rente.O singular so os meus dedos. Os dez.(machado, 2002, p. 291)

    Outra questo importante a considerar que, qualquer que seja oprojeto escolhido por um homem entre as muitas possibilidades que lhes

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    so apresentadas, uma certeza paira acima de tudo: a morte. Assim comopara Heidegger, tambm para Nauro a morte uma experincia-limite,a nica que se apresenta como pessoal, incomunicvel e instransfervel,

    pois somente podemos conhecer a morte dos outros, pois para ns aprpria experincia da morte vedada. A morte pode ser vivida nocomo experincia, mas como possibilidade existencial; somente esta

    possibilidade uma vez que est dada desde o princpio da existncia pode, com efeito, conduzir o homem a um amadurecimento diante docotidiano, ultrapassando o limite do estar-lanado no mundo. maisque uma experincia ordinria, como a de um ente que simplesmenteest-a, lanado no mundo, de forma impessoal e sem subjetividade. Ohomem um ser que est lanado para a morte; um ser para a morte,

    que o nada, a possibilidade ltima que define, por si s, a condiohumana e a existncia.

    Uma existncia somente pode ser considerada autntica, segundoa viso heideggeriana, com uma conscincia desperta para a morte, pois este momento indevassvel que define o que a existncia, acima dequalquer outra eventualidade ou situao emprica, na qual o ser temmeios para intervir diretamente. essa conscincia plena que define ohomem:

    Todas as cifras no somam uma s vida.Todas as moedas no impediro que o homemcaminhe resoluto para o ventre da alma.(machado, 1975, p. 81)

    3. vIR-a-seR: angstIa

    Segundo Martin Heidegger, a angstia s se d a partir de umentendimento do tempo, pois uma experincia radical do futuro,

    essencialmente radical, que consiste em antecipar a morte, ter cons-cincia de um ser para a morte. No cotidiano ordinrio, somos levadosa no pensar na morte, mas apenas na rede instrumental de objetosteis, que so impostos ao nosso desejo e s nossas existncias, asquais, mergulhadas na reificao, esquecem-se do ser, do fundamentode nosso verdadeiro si-mesmo. Portanto, a angstia no um merosentimento, tampouco uma patologia a ser combatida como sintoma

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    de um estado depressivo, pois a rede instrumental nos obriga a sufocarnossas sensaes e percepes mais verdadeiras para nos inserirmosentre os acessrios utilitrios e sermos, ns mesmos, teis aos outros.

    O ser humano, a partir de sua individualidade, desde o princpio, posto em uma situao de sacrifcio e anulamento da subjetividade,sendo a todo o momento acossado pelas coeres da sociedade dosoutros, dos eles , que tenta patologizar os sentimentos no teis:angstia, espanto, aflio, medo da morte. Devido esta violncia contraa subjetividade, em nosso cotidiano ordinrio somos obrigados aconduzir uma vida promiscuamente pblica, uma vida igual e limitada vida com os outros. Refere-se a um tipo de coero somenteconduzido no sentido de transformar o indivduo em um ser impessoal

    totalmente alienado e afastado de sua primordial tarefa no mundo:alcanar o desvelamento do ser; enfim, tornar-se si mesmo. O futuro, que a morte, est oculto pela rede instrumental que nos oprime em nossatrama de relaes impessoais com os outros; a morte, portanto, s serevela em uma situao de angstia, como antecipao ou premeditaode uma experincia radical, pela qual, inevitavelmente, todos passaro.

    A angstia deixa-nos perplexos diante da existncia, pois, aocontrrio do que insistentemente a rede instrumental nos mostra, hna verdade uma espcie de iluso de estar no mundo que nos impede

    de ver a realidade. No cotidiano ordinrio, o tempo uma percepoapenas, uma noo de tempo tradicional que, portanto, no serve para

    pensar o homem, j que este uma possibilidade, um ser para o futuro.Qualquer antecipao do futuro, o fazemos a partir do presente, sendoo presente o ponto a partir do qual definimos a nossa ao, o projetoque nos permitir ir ao encontro do nosso ser. Em suma, a angstia o nico sentimento que pode devolver o homem totalidade doser, por intermdio do autoconhecimento e da autorreflexo, formasde desvelamento impedidas de se manifestar em ns em funo das

    coeres impostas pelo cotidiano ordinrio, que nos anula e nos obrigaa sermos impessoais:

    Ocupo o espao que no meu, mas do universo.Espao do tamanho de meu corpo aqui,enchendo inteis quilos de um metro e setentae dois centmetros, o humano de quebra.

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    Vozes me dizem: eh, tu a! E me mandam baterservios de excrementos em papis cadosnuma mquina Remington, ou outra qualquer.

    E me mandam pro inferno, se inferno houvessepior que este inumano existir burocrtico.E depois h o escrnio de minha provncia.E a minha vida para cima e para baixo,

    para baixo sem cima, ponte umbilicalpartida, raiz viva de morta inocncia.Estranhos uns aos outros, que fao eu aqui?E depois ningum sabe mesmo do espaoque ocupo, desnecessrio espao de pernase de braos preenchendo o vazio que eu sou.

    E o mundo, triste bronze de um sino rachado,o mundo restar o mesmo sem minha quota

    de angstia e sem minha parcela de nada.

    (machado, 1971, p. 48)

    Ora, a angstia em Nauro, mais talvez que qualquer outro temaperceptvel, sempre foi tematizada, alm de comentada por todos seusgrandes crticos. A angstia desta lrica aquela que justamente, talcomo em Heidegger, conduz o homem percepo do si-mesmo, de

    sua alienao face s opresses do cotidiano ordinrio. esta angstiaque salta aos olhos, como procura inquietante da essencialidade do ser,ainda que haja a possibilidade, todo o momento posta diante de ns,de nos recolhermos novamente ao esquecimento do mesmo ser. A todoo momento, o cotidiano ordinrio e habitual nos impe retornar a ele,superar a angstia e seu poder de transcendncia em relao ao mundo,abandonarmos o projeto essencial que nos conduz descoberta do si-mesmo e da autenticidade existencial. Estamos sempre cercados pelaimpessoalidade, sobretudo quando somos nivelados pela mediocridade

    e ficamos mergulhados no cotidiano mecnico e repetitivo. Porm, justamente isto que gera no ser humano o sentimento de angstia,uma vez que a precariedade da condio humana patente e visvel,de tal modo que no suportamos a neutralidade e o anulamento dasubjetividade.

    Somente a violncia da angstia cria, portanto, este piscar deolhos, este claro dentro da existncia que ilumina a procura do ser.

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    Lanado pela angstia no universo da impessoalidade, o mundo seapresentar como a realidade do ser-a-com ao mesmo tempo, ao lado,de forma contgua, exatamente como estamos dados no mundo. O ser-

    no-mundo, a partir de uma antecipao de si mesmo, uma preocupaoconsigo prprio, escapa do cotidiano para outra situao, na qual

    procura entender a si e realizar o projeto de uma experincia singular,pois oDasein uma possibilidade, algo em abertura para o ser:

    A dor de ser, do ser fatal senhora,a dor de ser, do ser feroz patroa, instante s, mas que no ser demora,e dura, e fere, para que mais doa. dor da eternidade morta em hora, dor de estar no ser, a coisa toa,a coisa passageira, qual v auroratornada em noite, a que ningum povoa.Somente o verde oculta o verde flor.

    No posso eu ocultar-me noutro sernem pode outro dizer-me em mim: eu sou. ser do ser mortal, ringue, lona:se o incio e o fim so s meus, podeis crerque a dor a ladra da minha alma. A dona.

    (machado, 1975, p. 90)

    concluso

    Ao longo da obra de Nauro, considerando o tpico da angstia,percebe-se que esta se manifesta por uma necessidade premente deinvestigao do eu, que questiona o universo de aparncia e tenso aoseu redor. No que diz respeito questo de uma experincia singular, deum projeto que reconduza o homem ao encontro de si mesmo, ressalte-

    se que esta projeo sobre o mundo e a existncia no solitria, poiso homem um ser-com, em relao com outros homens, conformese percebe no poema anterior. Somente em relao a si mesmo e

    premeditao do seu futuro, em uma constante preocupao e cuidado(Sorge) consigo prprio que o homem pode alcanar a transcendnciado cotidiano habitual, uma vez que um ser incompleto. Alm disso, ohomem tem diante de si inmeras possibilidades de ser a cada momento,

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    para as quais uma infinidade de alternativas est aberta, o que ocasionaum estado tensional entre o que ele o que pode vir a ser.

    Por esta razo, a angstia tanto em Heidegger como em Nauro

    fundamentalmente diversa do temor de um ser para a morte; a angstiano se d atravs de um desespero, ao modo de Kierkegaard, mas

    por meio de uma paradoxal serenidade, pois ela no pode impediro homem de autoconhecimento e de ao. A angstia, aqui, no seconfunde com o nada, pois o nada que se manifesta atravs dela, aomesmo tempo em que o ente em sua totalidade ontolgica. Somenteao adquirir conscincia da determinao do estar-no-mundo por meioda angstia que o homem passa de uma existncia banal e ordinria

    para uma existncia autntica, e faz uma escolha: a vida banal e a vida

    autntica. A linguagem potica que procura o desvelamento do ser noscoloca sempre diante desta escolha, na medida em que ficamos frentea frente com a angstia originria, a qual no desperta em funode uma eventualidade inslita e tampouco um estado em oposio alegria, no sentido da perspiccia e da ateno, mas um sentimentoque pode surgir a qualquer momento em meio ao ser-no-mundo, pois constitutivo de nossa natureza sempre em inquietao.

    No possvel que um homem, em algum momento de sua vida,no deixe abandonar-se ao sentimento de desajuste, de nusea ante uma

    existncia que impe uma forma de ser impessoal, nestes momentosem que nos sentimos simplesmente abandonados e suspensos no nada.Esta angstia est sempre l, oculta pela rede instrumental das relaessociais, de modo que a qualquer instante pode nos assaltar, uma vezque o homem nunca se coloca diante do nada por livre e espontneavontade, por deciso prpria; ela sempre se coloca diante de ns quandotranscendemos a condio de ente em puro estar-a, quando a morte,sbito, est diante de nossos olhos atnitos, sinalizando o nada nossafrente. Como Nauro deixou sugerido em seu livro intitulado Funil

    do Ser, a poesia uma busca, mais que uma inquirio, do que oser existencial: Este volume de poemas curtos reflete uma tentativaexistencial, atravs do que ousei chamar de funil, em busca de meuhipottico ser. Sua forma acompanha assim o ritmo prprio das canesmnimas, no encolhimento cada vez mais estreito da minha finitudetemporal.6 A angstia, pois, como forma de desvelamento do ser,empurra-nos ao horizonte da finitude existencial, cuja temporalidade

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    intrnseca inescapvel, ao modo de um relgio, uma ampulheta cujofunil esgota o tempo de nosso ser a cada segundo. No resta, portanto,nenhuma outra forma de contemplao do si-mesmo que no atravs da

    solido final, que aguarda a todos ns:

    No Contigo:s comigo,

    s meu ser,

    e no Todo que o do lodo

    ainda ter

    tudo em mim:sexo e rim

    e razo,

    mas eternocomo o inverno

    e o vero.(machado, 1981, p. 87)

    BeIng, anguIshandPoetRy: aheIdeggeRIanlectuReoFnauRomachadoswoRks

    aBstRact

    The objective of this article is to draw an interpretative parallel between theheideggerian philosophy, primarily to its most well-known concepts, and

    Nauro Machados poetry. We comparatively analyze the essential concepts,such as stay-in-world (facticity), be-in-world (existenciality) and come-to-

    being (anguish). We demonstrate how each one of these concepts is extremelyelucidating in an existentialist approach to the poetry of Nauro Machado, withemphasis above all on the concept anguish, the central theme of the lyrical ofthe poet.

    keywoRds: poetry, philosophy, facticity, existenciality, anguish.

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    notas

    1 De acordo com o glossrio alemo, emA morada do ser,de Conceio

    Neves Gmeiner,Daseinsignifica existncia, vida. Como verbo: estar pre-sente, ter vindo, existir e, Da-sein, ser-a, formado de Da, a e sein, ser.Separados os dois termos, tornam-se independentes e ganham um novo sen-tido para o termo final Da-sein. Conforme as notas explicativas de Ser etempo, Mrcia de S Cavalcante apesar de o termo Dasein ser traduzidocomo existncia ou ser-a opta pelo termo pre-sena. Citando uma en-trevista conferida por Heidegger ao Der Spiegel (Revista Tempo Brasileiro,n. 50, jul.-set. 1977), afirma que na presena que o homem constri o seumodo de ser, a sua existncia, a sua histria etc..

    2 A Linguagem (com l maisculo) a Casa do ser, segundo Heidegger,

    pois nela habita o homem, ao passo que a linguagem (com l minsculo) apenas a concepo lgica, gramatical, filosfica e cientfica atravs dahistria ocidental. A primeira o fundamento; a segunda, o fundado.

    3 Termos comophysis (em grego, natureza), dasein (em alemo, ser-a),ousia (substncia ou essncia grega) eZeit (tempo, alemo), no soapenas um vocabulrio empregado pelos helenos e alemes em filosofia,mas apropriado pelo pensamento heideggeriano. A linguagem, para Heideg-ger, o elemento mais peculiar da essncia humana, pois somente por meiode uma linguagem adequada possvel o afloramento da verdade de todasas coisas, o fundamento de tudo. A metafsica heideggeriana , portanto, um

    profundo questionamento do ser e uma procura de seu fundamento, utilizan-do a linguagem originria como um instrumento de acesso ao nveis mais

    plenos da essncia humana.

    4 No nvel ntico, o ser-a uma determinao da presena do ser, entre osentes. No estgio ontolgico,o ser-a entendido como existncia dadanum tempo determinado, o a, de modo a dar o fundamento do ser. Porltimo, ao nvel ntico-ontolgico, o ser-a seria determinado pelo ser

    pela sua ao no mundo, a qual o princpio de realizao das ontologiastradicionais. Mesmo levando em considerao estas trs etapas de conheci-

    mento do ser, Heidegger prope uma nova ontologia, cujo fundamento averdade do ser irredutvel sua entificao e atuao cotidiana.

    5 No existencialismo, cuja reflexo bastante tributria das concepes hei-deggerianas de ser, a existncia precede a essncia. Esta, por sua vez, en-contra-se apenas como possibilidade e somente definida pela atuao dohomem no mundo.

    6 Em Nauro Machado,Funil do ser, p. 5.

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