Artigo_intelectuais Do Livro

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  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXXVII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Foz do Iguau, PR 2 a 5/9/2014

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    Intelectuais do Livro: Espaos de Formao e Autorreflexo

    do Espao Editorial no Brasil e na Argentina1

    Jos de Souza MUNIZ JR.2

    Universidade de So Paulo, So Paulo, SP

    Resumo

    Brasil e Argentina so dois dos pases latino-americanos onde a edio de livros se

    consolidou de maneira mais efetiva. Este trabalho comparativo se debrua sobre a formao

    recente, nos dois pases, de espaos por meio dos quais a prtica editorial busca converter-

    se em atividade intelectual/acadmica. A anlise se detm a trs mbitos de produo de

    conhecimento: (1) as ofertas de formao de profissionais para o setor; (2) as colees de

    livros sobre livros; e (3) os encontros acadmicos dedicados ao tema. As concluses

    parciais indicam que as semelhanas e diferenas entre os dois casos devem ser remetidas a

    problemas de ordem tanto emprica (sobre a formao dos respectivos campos intelectuais)

    como metodolgica (em especial o ajuste das escalas de anlise).

    Palavras-chave: editorao; livros; formao de editores; produo intelectual.

    Introduo

    No muito difcil notar que a evoluo dos espaos editoriais latino-americanos tem

    ocorrido de maneira bastante desigual. Em muitos pases a cadeia do livro incipiente, com

    predomnio da importao em detrimento da produo prpria e forte dependncia de

    outros centros publicadores. Em contrapartida, em pases como Brasil, Argentina e Mxico

    (e, em menor escala, Chile e Colmbia), o setor encontra-se mais desenvolvido: o nmero

    de editoras e livrarias maior embora o consumo per capita de livros deixe a desejar e

    os agentes do mundo editorial situam-se num grau mais avanado de organizao e

    mobilizao. Para Sor (2002, p. 126, trad. minha), os melhores indicadores do

    desenvolvimento do campo editorial nos trs pases

    [...] so os intercmbios diretos (de produtos, tradues, pessoas, projetos etc.) que

    articularam os mercados editoriais e os espaos intelectuais desses pases entre os anos

    1930 e 1950, perodo em que se consolidou a autonomia e institucionalizao dos

    diversos ofcios segmentados da produo, circulao e uso dos livros. O estudo desses

    (e outros) aspectos das prticas editoriais permite descobrir os contornos de um poderoso

    mecanismo ordenador das formas de diversidade cultural e as alternativas de alteridade

    organizadas pelo mundo do livro.

    1 Trabalho apresentado no GP Produo Editorial do XIV Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicao, evento

    componente do XXXVII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao. 2 Doutorando em Sociologia pela Universidade de So Paulo (USP), com estgio na Universidad Nacional de Quilmes

    (UNQ), Argentina. Bolsista da Fapesp (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo). Mestre em Cincias da

    Comunicao e graduado em Comunicao SocialEditorao pela USP. E-mail: [email protected].

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    Embora superada em populao por Mxico e Colmbia, a Argentina ocupa, atrs do

    Brasil, a vice-liderana em nmero de ttulos (novidades e reedies) produzidos entre 2005

    e 2009, e em nmero de pontos de venda das livrarias. Alm disso, Brasil e Argentina

    possuem maior nmero de editoras industriais e de empresas afiliadas s suas respectivas

    cmaras do livro, comparados com outros pases da regio (CERLALC, 2010). Em ambos

    os pases, a quantidade e o grau de diferenciao das entidades civis (cmaras de comrcio,

    sindicatos e associaes de editores e trabalhadores), instituies (rgos ministeriais e

    interministeriais, autarquias, coletivos) e eventos (feiras do livro, premiaes) voltados

    produo e circulao de livros aponta para a existncia de espaos editoriais com algum

    grau de consolidao, narrados por si e atuantes nas disputas que a ele dizem respeito.

    importante notar tambm que o Brasil de longe o principal centro editorial de

    lngua portuguesa. J a Argentina, embora seja hoje suplantada quantitativamente pela

    Espanha, foi entre os anos 1930 e 1950 o principal centro editorial do mundo hispnico3.

    Isso d aos dois pases posies de destaque (ainda que parcialmente residuais) no ambiente

    intelectual latino-americano e em seus respectivos mercados lingusticos. ndice direto

    desse destaque o interesse recente que a produo editorial dos dois pases vem recebendo

    em grandes feiras internacionais do livro (Frankfurt, Guadalajara, Paris, Bolonha). O

    convite reiterado participao como pases convidados de honra sugere que Brasil e

    Argentina, ainda que no tenham o protagonismo dos mercados centrais de lngua inglesa e

    francesa, foram j capazes de construir para si uma histria de trunfos econmicos e

    simblicos, ocupando, assim, posies de relevo na periferia do sistema editorial mundial.

    Para alm desses dados de produo editorial e de desenvolvimento institucional do

    setor em cada pas, interessa-nos compreender como os respectivos espaos editoriais

    nacionais pensam a si mesmos e vo construindo um discurso sobre sua prpria existncia

    dito de outro modo, de que maneira eles vo adquirindo reflexividade4. Uma possibilidade,

    dentre outras possveis, olhar para as iniciativas sistemticas, reiteradas, cumulativas de

    3 De Diego (2006) refere-se ao perodo de 1938 a 1955 como a poca de ouro da indstria editorial argentina. A Guerra Civil Espanhola, ao debilitar a indstria editorial local, abriu possibilidades para o florescimento da atividade em pases

    como Argentina, Mxico e Chile. Dos exilados espanhis que vieram para a Argentina nesse perodo, destacam-se

    importantes editores. Para Soares (2007, p. 397-8), mais do que o incremento quantitativo na produo local, os editores

    do exlio contriburam para uma mudana qualitativa na edio argentina, na medida em que propiciaram novas formas de

    circulao das ideias na Amrica Espanhola, o dilogo direto entre escritores e editores na regio (antes mediado pelos

    agentes europeus), e a transferncias de prticas, conceitos e sensibilidades. 4 Para Bourdieu (1996, p. 121), a reflexividade uma das manifestaes maiores da autonomia de um campo. Deixa-se entrever, por exemplo, na referncia histria interna daquele domnio da vida social e no estabelecimento explcito de

    filiaes e antagonismos nas tomadas de posio dos agentes. Ao analista de um dado domnio da produo simblica

    caberia, portanto, tentar construir metodicamente o espao dos pontos de vista possveis (idem, p. 220). O conceito de campo serve, ento, como instrumento de ruptura com todas as vises parciais [...] que oferece a possibilidade real de assumir um ponto de vista sobre o conjunto dos pontos de vista (idem, p. 235, grifo do autor).

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    converso da vida editorial em atividade intelectual. Um objeto privilegiado, nesse sentido,

    a vida acadmica, aquela que se desenvolve na universidade e em espaos dela derivados

    ou diretamente tributrios. A seguir, analiso trs vertentes por meio das quais essa atividade

    se concretiza, contrastando experincias brasileiras e argentinas: as ofertas acadmicas de

    formao profissional para o setor editorial; as colees de livros sobre livros; e os eventos

    cientficos dedicados ao tema.

    Espaos de formao

    A Cmara do Livro interpela a mais importante universidade do pas para que

    oferea um curso de formao de profissionais para o mercado editorial. Uma sentena

    como esta poderia servir de discurso fundacional tanto para o curso de Editorao da

    Universidade de So Paulo (USP) como para o curso de Edicin da Universidad de Buenos

    Aires (UBA). Junto ao curso de Produo Editorial da Universidade Federal do Rio de

    Janeiro (UFRJ), estes foram os primeiros e mais significativos experimentos de formao

    de jovens trabalhadores para as editoras das trs capitais editoriais, que at ento contavam

    apenas com os egressos de outros tipos de formao.

    Em que pese o atraso argentino de duas dcadas com relao aos casos brasileiros,

    foram essas as primeiras ofertas de ensino universitrio para formar trabalhadores

    qualificados para as editoras em mbito latino-americano. No incio da dcada de 1970

    portanto, na fase que Emanuel Arajo (1986, p. 29) denomina terceiro perodo da

    editorao brasileira, cuja marca caracterstica seria a crescente profissionalizao5 , Rio

    de Janeiro e So Paulo iro sediar essas primeiras iniciativas: de um lado, o curso de

    Produo Editorial da Escola de Comunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro

    (ECO-UFRJ); de outro, o curso homnimo na paulistana Anhembi Morumbi e o de

    Editorao da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo (ECA-USP)6.

    O curso de Edicin da Facultad de Filosofa y Letras da Universidad de Buenos Aires

    (FFyL-UBA) s surgiria em 19927, inspirado em grande parte pela experincia uspiana.

    5 Para o autor, o primeiro perodo comea em 1808, com a instalao da Imprensa Rgia portuguesa, e se estende at a

    primeira metade do sculo XX; caracteriza-se pelo amadorismo e pela dependncia com relao produo editorial

    europeia. O segundo perodo, cujo cone Monteiro Lobato, comearia com a Primeira Guerra Mundial e se caracterizaria

    pela substituio das importaes e por ousados empreendimentos editoriais, como as diversas brasilianas. 6 Deixaremos temporariamente de fora da anlise o caso da Universidade Anhembi Morumbi por se tratar, nesse conjunto,

    do nico caso de universidade privada, o que lhe d configuraes especficas. 7 Na transio, portanto, entre os perodos que De Diego (2006) classifica como de crise (durante a ditadura e a

    redemocratizao) e de concentrao/polarizao da indstria editorial argentina (dcada menemista).

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    Embora tenham surgido com bases parecidas, h duas diferenas notveis relativas ao

    contexto e ancoragem institucional. Isso porque os trs casos brasileiros nascem como

    cursos de comunicao, na voga de criao de ofertas para formar profissionais para a

    crescente indstria cultural brasileira no incio dos anos 1970, num momento em que as

    polticas nacionais de cultura e de educao adquirem um carter de modernizao

    conservadora, com teor nacionalizante, para responder ao desenvolvimento urbano-

    industrial do pas e ao crescimento da cultura de massa (CALABRE, 2009, p. 45-92). O

    curso portenho, em contrapartida, no traz essa marca e acaba por sediar-se numa faculdade

    de filosofia e letras no incio da dcada de 1990, momento em que a indstria editorial

    argentina sofre uma presso dos conglomerados transnacionais por profissionalizar-se.

    Outra diferena que no Brasil tais ofertas so de graduao tradicional, com durao

    mnima de quatro anos, enquanto na Argentina ela surge como tecnicatura, com durao

    menor que a de um curso de graduao propriamente dito.

    No caso da UBA, o foco no aprendizado das rotinas, prticas e processos da edio de

    livros est inscrito nessa configurao do curso como tecnicatura ou seja, como oferta

    profissionalizante. Nos casos brasileiros, tal caracterstica se afirmar a contrapelo da

    formao terica que as faculdades brasileiras de Comunicao Social buscavam ou ainda

    buscam oferecer por meio do ciclo bsico, perodo inicial em que os alunos de todas as

    habilitaes de Comunicao Social compartilham espaos de formao para inserir-se nas

    discusses filosficas, sociolgicas lingusticas etc. pertinentes aos fenmenos miditicos.

    Embora o curso portenho no esteja sediado numa faculdade de comunicao, a

    formao prtica reivindicada por essas propostas pedaggicas parece estar mais ajustada

    ao contexto da UBA, onde a organizao da carreira docente pressupe, alm dos titulares

    de ctedra (que no necessariamente so pesquisadores nem obtiveram mestrado e/ou

    doutorado), os chamados asistentes e jefes de trabajos prcticos, professores e monitores

    ainda em formao e/ou com experincia no mercado profissional. Nos casos da USP e da

    UFRJ, onde a carreira docente tem vnculo mais expresso com a carreira de pesquisador e

    est geralmente atrelada obteno do grau mnimo de mestre ou doutor, os modos de

    contemplar uma formao para o mercado so fundamentalmente trs, aqui elencados em

    ordem decrescente de formalizao no sistema universitrio: a contratao de professores

    que, alm de (ou apesar de) possurem mestrado ou doutorado, tenham experincia no

    mercado; a contratao de professores temporrios (convidados e conferencistas)

    provindos da prtica editorial, sem necessariamente haverem passado pela ps-graduao; e

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    a criao de instncias de dilogo com o mercado, muitas vezes por iniciativa do corpo

    discente, tais como os eventos Editor em Ao, da UFRJ, e Frum de Editorao, da USP

    (este realizado anualmente, de forma ininterrupta, desde 2005).

    Ao contrrio do que ocorre na Argentina, onde o curso de Edicin da UBA segue sem

    similares, no Brasil tal tipo de oferta se multiplicou, se descentralizou e se diversificou

    significativamente. Hoje h ofertas semelhantes (como habilitao de Comunicao Social)

    em So Paulo, Belo Horizonte e na gacha Santa Maria. Considerem-se, igualmente, os

    cursos de Letras que ofereceram ou oferecem concentrao em edio, como os da

    paulistana Mackenzie e os das belo-horizontinas UFMG e CEFET-MG (neste ltimo caso,

    um curso criado especificamente com este foco). Aqui, a diferena entre Brasil e Argentina

    est claramente relacionada distribuio espacial da produo editorial nos dois pases:

    enquanto na Argentina a vida do setor se mantm bastante concentrada na capital, Buenos

    Aires8, no Brasil o relativo protagonismo das cenas editoriais locais (tais como as de Minas

    Gerais e do Rio Grande do Sul9), para alm do eixo Rio de Janeiro-So Paulo, de algum

    modo permitiu a multiplicao e a descentralizao das ofertas.

    necessrio destacar que nenhum dos trs projetos formativos em destaque (USP,

    UFRJ, UBA) logrou tornar-se centro hegemnico de pesquisa sobre o mundo do livro em

    seus pases. Talvez pelo compromisso, assumido fortemente nos trs casos a partir dos anos

    1990, de fornecer trabalhadores ao mercado de trabalho, ajudando a profissionalizar o setor

    editorial, o mbito da pesquisa tenha quase sempre ficado em segundo plano. Essa nfase

    percebe-se claramente no recrutamento do corpo docente nesse perodo: os professores so,

    via de regra, profissionais do mundo editorial que iniciam carreira na universidade s vezes

    antes mesmo de cumprir o trajeto esperado na ps-graduao (mestrado e doutorado). Disso

    decorre que a gama dos autores que constituem as bibliografias mnimas sobre edio em

    ambos os pases raramente sejam os docentes desses cursos10. Ainda que tais universidades

    tenham se constitudo como loci de formao de especialistas em mercado editorial, histria

    8 A hegemonia portenha vem de longa data: em 1936, dos 823 ttulos registrados, 746 (90,6%) vinham da cidade de

    Buenos Aires; em 1937, quando se registraram 817 obras, 726 (88,8%) vinham de editoras portenhas. As cidades de Santa

    Fe, Rosario, Crdoba e La Plata, que apresentaram nesses anos os maiores nmeros depois da capital, somaram juntas

    menos de uma centena de registros em ambas as medies (cf. GARCA, 2000, p. 36-7). Entre 1936 e 1984, a proporo

    de ttulos publicados em Buenos Aires variou entre 80,8% e 95,9% (idem, ibidem, p. 94-5). Na atualidade, ainda que siga

    sendo o grande central editorial do pas, essa diferena vem diminuindo: em 2010 vieram da capital argentina 49% dos

    ttulos e 75% dos exemplares produzidos no pas. Ainda assim, o nmero de instituies que editaram mais de 10 ttulos

    na cidade era de 215, contra 212 em todo o restante do pas (cf. GOBIERNO..., 2010). 9 Propostas semelhantes de formao ocorreram em estados com menor tradio editorial, tais como Bahia e Amazonas,

    mas foram descontinuadas aps alguns anos de funcionamento. 10 Exceo seja feita ao historiador argentino Leandro de Sagastizbal, professor do curso de Edicin da UBA, editor

    profissional e autor de La edicin de libros en la Argentina: una empresa de cultura (Buenos Aires: Eudeba, 1995) e

    Disear una nacin: un estudio sobre la edicin en la Argentina del siglo XIX (Buenos Aires: Norma, 2002), dois ttulos

    importantes do conjunto de histrias da livro na Argentina.

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    do livro e assuntos correlatos, comum que tal formao se d em outras disciplinas

    (sociologia, histria, letras, economia, antropologia, educao etc.). nessas reas (onde a

    tradio de pesquisa mais consolidada) e nos programas de ps-graduao em

    comunicao (onde a pesquisa torna-se uma prerrogativa) que ir se estabelecer a maioria

    dos pesquisadores da edio, do livro e da leitura.

    Cumpre notar, por fim, que cursos como os da UBA, da USP e da UFRJ raramente

    puderam formar editores no sentido estrito publishers ou responsveis por delinear linhas

    editoriais. O que, sim, lograram foi diversificar a formao de profissionais (coordenadores,

    editores assistentes, preparadores, copidesques, revisores, editores de arte, designers etc.).

    Por isso, ainda que estejam bastante atadas ao compromisso profissionalizante, tais ofertas

    indiretamente funcionaram como polos de demanda de conhecimento especializado. Atuam,

    assim, como condicionantes positivos da formao de bibliotecas especializadas nos

    temas pertinentes ao mundo da edio e do livro. Esse desenvolvimento se d em duas

    instncias: o das bibliotecas propriamente ditas das instituies de ensino, que precisam dar

    conta de uma bibliografia mnima para os cursos oferecidos; e o das bibliotecas (sries e

    colees) que vo se formando pela iniciativa de professores, editores e professores-

    editores, com vistas a complementar as bibliografias j existentes, suprindo suas ausncias e

    dando novos direcionamentos aos intentos autorreflexivos do campo.

    Livros sobre livros

    justamente a nfase na formao de editores profissionais que, no caso uspiano, vai

    tornar possvel a formao de um primeiro catlogo estvel sobre edio, livro e leitura.

    Afinal, exatamente numa disciplina de prtica profissional a Com-Arte, que surge na

    dcada de 1970 como produtora de apostilas e anos depois se torna a editora-laboratrio

    oficial do curso que se comea a formar uma espcie de bibliografia bsica da rea, com

    autores nacionais. A partir da segunda metade da dcada de 1980, a editora comea a

    publicar, ora sozinha, ora em coedio com a Edusp: livros organizados sobre o tema, em

    geral resultantes de eventos promovidos na prpria universidade11; monografias de pesquisa

    11 Editorao: mercado de trabalho e regulamentao da profisso (1986), Polticas editoriais e hbitos de leitura (1987)

    e Livros, editoras e projetos (1997), organizados respectivamente pelos professores Silvia Lustig, Jos Carlos Rocha e

    Jerusa Pires Ferreira.

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    sobre o mercado editorial brasileiro12; e os depoimentos da srie Editando o Editor13,

    projeto de histria oral concebido pela professora Jerusa Pires Ferreira.

    Paralelamente, pela iniciativa de um dos professores coordenadores da Com-Arte,

    Plinio Martins Filho, vo se formando outras bibliotecas de editorao na Edusp e na

    Ateli Editorial, casas editoriais em que o ex-funcionrio da Perspectiva passa a atuar na

    dcada de 1990 na qualidade de diretor-presidente e proprietrio, respectivamente. No caso

    da Edusp, alm das obras coeditadas com a Com-Arte, destacam-se as obras com vis

    histrico14. J na Ateli, alm de alguns ttulos de histria editorial, h obras relacionadas

    ao design e bibliofilia15. Pelo papel desempenhado como editor dedicado aos temas da

    edio e do livro, bem como por seu trabalho frente do curso de Editorao da USP,

    Martins ocupa um papel central na consolidao desses estudos no Brasil. Embora no

    tenha atuao regular como pesquisador16, a orientao de seus catlogos ajudou a conectar

    a crescente produo acadmica sobre livros e edio aos pblicos interessados no tema

    dentre os quais, o corpo discente dos cursos de Editorao e Produo Editorial.

    Tal nfase s encontra paralelo na Editora da Unesp, tambm sediada em So Paulo,

    cujo diretor-presidente o professor de filosofia Jos Castilho Marques Neto17. Tal como a

    Edusp, a Editora da Unesp contribuir fortemente para a difuso da historiografia francesa

    do livro e da leitura18, que se tornou central nesse campo de estudos no Brasil, bem como

    autores de outras tradies19. Quando confrontados, os catlogos desenhados por Marques

    Neto e por Martins Filho denotam distintos direcionamentos: enquanto na Editora da Unesp

    12 Mercado editorial brasileiro (1996), de Sandra Reimo; Em busca de um tempo perdido (1999), de Sonia Maria de

    Amorim; Editoras universitrias no Brasil (2001), de Leilah Santiago Bufrem; A tipografia em So Paulo (2008), de

    Cybelle de Ipanema; Brasilianas (2010), de Gustavo Sor; Tipgrafos e editores (2010), de Caroline Rozendo; Paula

    Brito: editor, poeta e artfice das letras (2010), de Jos de Paula Ramos Jr.; e Repensando o negcio do livro (2011), de

    Hlio Puglia Fernandes e Marilson Alves Gonalves. 13 At o momento foram publicados sete livretos de depoimentos: Jac Guinsburg (1989), Flvio Aderaldo (1991), nio

    Silveira (1992), Arlindo Pinto de Souza (1995), Jorge Zahar (2001), Claudio Giordano (2003) e Samuel Leon (2010). 14 Destaca-se a histria editorial do britnico Lawrence Hallewell, O livro no Brasil (1985, em coedio com a T.A.

    Queiroz Editor), que sob a gesto de Martins Filho ganha em 2005 uma edio revista e ampliada, alm de uma verso de bolso. Tambm se podem mencionar: A revoluo impressa, volume organizado por Robert Darnton e Daniel Roche; O dinheiro e as letras (2010), de Jean-Yves Mollier; e O imprio dos livros (2011), de Marisa Midore Deaecto (2011). 15 A editora conta atualmente com mais de 20 ttulos na linha geral de Design e livros sobre livros. Para detalhes, ver http://www.atelie.com.br/livros/design-livros-sobre-livros/ (acesso em 2 dez. 2013). 16 Sua dissertao de mestrado (Edusp: de Coeditora a editora Um projeto editorial, concluda em 1987) e sua tese de doutorado (Manual de Editorao da Edusp, defendida em 2006) so trabalhos de reflexo sobre sua prpria atuao

    frente da Edusp. Caracterizam-se, sobretudo, pelo registro de resultados da prxis profissional, e no como trabalhos nos

    moldes atuais da pesquisa cientfica. 17 Alm de suas funes na universidade e na editora, Castilho Neto atuou como secretrio executivo do Plano Nacional

    do Livro e Leitura (PNLL) e o atual presidente da Associao Brasileira de Editoras Universitrias (ABEU). 18 Publica, por exemplo, quatro ttulos de Roger Chartier (que antes j havia aparecido no catlogo da editora UnB, com A

    ordem dos livros): A aventura do livro (1998); Os desafios da escrita (1992); Leituras e leitores da Frana no Antigo

    Regime (2004); e Inscrever e apagar (2007). Mencionem-se tambm o clssico O aparecimento do livro (1992), de

    Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, e O amor s bibliotecas (2011), de Jean Marie Goulemot. 19 Dentre os casos nacionais, destaca-se Impresso no Brasil (2011), organizado por Anbal Bragana e Mrcia Abreu,

    coeditado com a Biblioteca Nacional. No caso dos estrangeiros, pode-se mencionar Mercadores da cultura (2013), do

    socilogo ingls John B. Thompson.

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    prevalecem as obras de carter mais propriamente acadmico ou cientfico, em particular os

    ltimos desenvolvimentos historiogrficos e sociolgicos sobre livro e leitura, nas colees

    geridas pelo professor da USP essa nfase disputa espao com obras de carter testemunhal,

    ensastico ou biblioflico. O investimento menos objetivista/cientificista de Martins Filho

    encontra-se sintetizado na revista LIVRO, de existncia recente, que abre espao para

    contribuies extra-acadmicas e cujo objetivo maior reside na valorizao do suporte

    impresso diante das mudanas a que temos assistido no campo da produo editorial20.

    De maneira pontual, outra editora vai contribuir com a importao de correntes

    historiogrficas do livro: a Companhia das Letras, que publicou quase toda a obra do

    historiador britnico Robert Darnton21. Figura, assim, como linha de fora complementar e

    concorrencial da Editora da Unesp, principal publicadora de Roger Chartier no Brasil.

    Outras obras isoladas sobre edio, livro e leitura vo surgir em outras editoras brasileiras,

    mas sem a sistematicidade das iniciativas supramencionadas.

    Na Argentina, ainda que se comece a formar uma bibliografia de estudos do livro e da

    leitura, no existem colees ou propostas similares s que se formaram no Brasil. A

    contribuio mais relevante nesse sentido ser a coleo Libros sobre libros, do Fondo de

    Cultura Econmica. Foi nessa coleo que, dentre outras coisas, publicou-se Editores y

    polticas editoriales en Argentina, 1880-2000 (2006), obra de referncia organizada pelo

    professor Jos Luis de Diego22. Ao lado de outras obras como esta, de vis histrico ou

    reflexivo23, figuram ttulos de carter instrumental, voltados aos negcios ou ao

    aperfeioamento profissional24. A conformao do espao editorial argentino se v atada,

    aqui, a um circuito transnacional: a coleo supracitada conduzida por Toms Granados

    Salinas desde a matriz mexicana do FCE que, no obstante, visa claramente a uma

    circulao em mbito latino-americano.

    20 Extrado de: . Acesso em: 20 jul. 2014. 21 Boemia literria e revoluo (1987); O beijo de Lamourette (1990); Edio e sedio (1992); O iluminismo como

    negcio (1996); Os best-sellers proibidos na Frana pr-revolucionria (1998); A questo dos livros (2010). 22 O livro organizado por De Diego segue a trilha aberta por Domingo Buonocuore, com Libreros, editores e impresores

    de Buenos Aires (1974), e continuada por Leandro de Sagastizbal (autor de La edicin de libros en Argentina, publicado

    em 1995, e de Disear una nacin, de 2002), qual seja, a busca de uma histria geral do livro na Argentina. Contudo, pelo

    alcance que obtiveram, tais contribuies no so comparveis ao xito da obra de Hallewell, O livro no Brasil, lanada

    em 1985. O historiador britnico logrou no s documentar a histria editorial brasileira, como ajudou a abrir caminhos

    para uma rea que, hoje, conta com certo desenvolvimento acadmico e institucional. Alm disso, tais projetos no se

    inscrevem em colees temticas, tal como vem ocorrendo no Brasil com boa parte dos estudos de histria editorial. 23 La aparicin del libro (2005), de Lucien Febvre e Henri-Jean Martin; El negocio de la Ilustracin (2006), de Robert

    Darnton; Libros en llamas (2007), de Lucien X. Polastron; La imprenta como agente de cambio (2010), de Elizabeth

    Eisenstein; e Una historia de la Feria de Francfort (2011), de Peter Weidhass. 24 Por exemplo: Editar para ganar (2003), de Thomas Woll; Marketing editorial: la gua (2003), de David Cole; La

    librera como negocio (2004), de Giorgio Brunetti et al.; El arte de vender libros (2004), de Herbert Paulerberg; Derecho

    de autor para autores (2004), de Jos Luis Caballero Leal; Cmo seleccionar ttulos rentables (2004), de Leonard

    Shatzkin; Gestin de proyectos editoriales (2005), de Gill Davies; Manual de edicin literaria y no literaria (2005), de

    Leslie T. Sharpe e Irene Gunther.

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    A ausncia de colees sobre o mundo do livro na Argentina contrasta com o

    expressivo desenvolvimento dessa nfase tanto no Brasil, como se marcou acima, como na

    Espanha, com a qual o pas austral chegou a disputar a hegemonia do mercado editorial em

    lngua espanhola. No pas peninsular, digno de nota o catlogo da Ediciones Trea25, que

    enfatiza a histria editorial espanhola, com menor repercusso para o mbito latino-

    americano, mas tambm alguns manuais e estudos de carter mais geral.

    Apesar dessas diferenas, percebe-se que tanto no Brasil como na Argentina a gama

    de autores nacionais da rea vem, sobretudo, de outros espaos que no os cursos de

    formao de editores. Outra semelhana notvel o papel dos recursos pblicos na criao

    dessas bibliografias. No Brasil, sero fundamentais os recursos destinados s editoras da

    USP e da UNESP e FAPESP, financiadora de muitas dessas obras, como autarquias do

    governo estadual de So Paulo. No caso hispano-americano, destaca-se o FCE, que, embora

    seja um organismo autnomo e funcione nos moldes de uma empresa privada, seria

    impensvel sem os aportes do governo nacional mexicano. Em todo caso, a diferena do

    FCE com relao s outras iniciativas uma posio menos vinculada aos espaos

    universitrios parece ter condicionado a formao de um catlogo menos acadmico e

    mais instrumental. Todavia, essa diferena pode estar relacionada tradio do FCE de

    publicar obras na rea de gesto e economia, bem como a uma maior aproximao

    mexicana com a bibliografia de management editorial e livreiro de origem norte-americana

    no Brasil e na Argentina esse tipo de bibliografia est quase ausente.

    Eventos cientficos

    medida que os estudos temticos se adensam e seus artfices passam a cobrar

    reconhecimento da universidade e das sociedades cientficas, cresce a demanda por espaos

    que permitam dar vazo a essa produo. Se assim com as colees de livros sobre livros,

    tambm o que acontece com os eventos acadmicos que vo surgindo, crescendo e se

    tornando regulares, em qualquer disciplina cientfica.

    Na Argentina, a publicao de artigos sobre o mundo do livro tem permanecido em

    carter no sistemtico, em revistas e anais de eventos sobretudo em disciplinas como

    Histria, Letras, Sociologia e Antropologia. Raras vezes institui nichos prprios dentro

    25 O catlogo de Cultura escrita y bibliologa conta atualmente com 56 ttulos, alm da revista Cultura Escrita & Sociedad: Revista internacional de Historia social de la Cultura Escrita. Disponvel em: . Acesso em 20 jul. 2014.

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    dessas disciplinas, uma vez que os trabalhos comumente se vinculam a linhas temticas de

    histria das ideias e histria intelectual, teoria e histria da literatura, sociologia da cultura,

    histria da educao etc.

    J no Brasil, em que pesem as expressivas contribuies dessas reas disciplinares, a

    Comunicao se soma e passa a cobrar para si o papel de articular institucionalmente, desde

    uma perspectiva inter ou transdisciplinar, a formao e a pesquisa em produo editorial. O

    primeiro passo nesse sentido, como mencionado anteriormente, foi a criao dos cursos de

    graduao em Editorao ou Produo Editorial, desde o incio da dcada de 1970. Bem

    mais tarde, em 1994, surge o Ncleo de Pesquisa em Produo Editorial26 no seio da

    Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao). Este espao

    se torna, gradativamente, um polo para onde convergem os pesquisadores do tema, que a

    dividem espao com aqueles que investigam outras modalides de produo simblica. Pela

    quantidade e diversidade de trabalhos que rene, o evento tornou-se uma instncia central

    de divulgao e articulao para os pesquisadores dedicados aos temas de edio, livro e

    leitura em nvel nacional. A vinculao a uma sociedade cientfica j estabelecida permitiu

    manter a regularidade e a ritualidade dos encontros o que no ocorreu com outros eventos

    realizados sobre o tema, tanto no Brasil como na Argentina.

    No pas vizinho, apenas recentemente se produziu um encontro com essa proposta: o

    Primer Coloquio Argentino de Estudios sobre el Libro y la Edicin, realizado em 2012 na

    cidade de La Plata27, que ainda no adquiriu continuidade. Participaram cerca de 60

    pesquisadores (sendo 11 deles estrangeiros), que compareceram por meio de convite dos

    organizadores. As caractersticas do conjunto dos pesquisadores argentinos presentes a esse

    colquio contrasta com as caractersticas dos pesquisadores brasileiros que comparecem aos

    encontros do NP Produo Editorial, onde a seleo por chamada aberta parece ter levado a

    uma maior diversidade regional e institucional, ainda que os estados de So Paulo e Rio

    Janeiro concentrem a maior parte dos trabalhos, seguidos por Minas Gerais, Rio Grande do

    Sul e Bahia28.

    Apesar de que a Comunicao seja a disciplina acadmica que tenha tomado as rdeas

    do processo de consolidao dessa rea de estudos no Brasil, o universo da pesquisa sobre o

    mundo do livro seguem sendo bastante interdisciplinar, tanto aqui como na Argentina.

    Pesquisadores de Letras, Antropologia, Educao, Sociologia, dentre outras reas,

    26 Entre 1994 e 2000, chamou-se GT Produo Editorial, Livro e Leitura, tendo adquirido a atual denominao em 2001. 27 Ver . Acesso em: 12 jul. 2014. 28 Cf. BRAGANA (2010), levantamento que abarca o perodo entre 1994 e 2009.

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    comparecem a esses eventos e tambm a eventos de suas respectivas disciplinas, com

    contribuies aos estudos sobre edio, livro e leitura. Em ambos os pases, destaca-se

    nesse conjunto o contingente dos historiadores, o que pode estar relacionado expressiva

    acolhida que o tema dos livros e da edio obteve nessa disciplina, se comparada s

    outras29. Isso explica que outros eventos pontuais tais como as duas edies do Seminrio

    Brasileiro Livro e Histria Editorial, em 2004 e 2009, e o I Congresso Latino-Americano da

    Sharp (Society for the History of Authorship, Reading and Publising) possuam clara

    vinculao com a Histria, embora tenham tambm carter fortemente interdisciplinar, com

    a participao de pesquisadores de outras reas.

    Tal como acontece com as colees de livros sobre livros, o conjunto de

    pesquisadores presentes aos eventos acadmicos da rea tem pouca correspondncia com o

    conjunto de docentes dos cursos superiores de Editorao e Produo Editorial. Isso se deve

    no somente ao teor profissionalizante de tais ofertas, como foi dito anteriormente, mas

    tambm ao reduzido nmero de ofertas desse tipo (e, logo, ao reduzido tamanho do corpo

    docente) e dedicao de tais docentes a outras reas temticas.

    Consideraes finais

    Segundo Bourdieu (1996, p. 336), a evoluo dos diferentes campos de produo

    cultural para uma maior autonomia acompanha-se [...] de uma espcie de volta reflexiva e

    crtica dos produtores sobre sua prpria produo, que os leva a extrair-lhe o princpio

    prprio e os pressupostos especficos. As ofertas de formao de editores, as colees de

    livros sobre livros e os eventos acadmicos sobre livro, edio e leitura, explorados acima,

    so alguns dos ndicios objetivos por meio dos quais possvel mostrar de que modo os

    espaos editoriais brasileiro e argentino vo adquirindo uma discursividade especfica. Se,

    por um lado, a edio de livros pode ser tomada como lugar de amplificao e legitimao

    das vozes de diferentes espaos sociais, nesse entrecruzamento ela acaba por forjar uma

    voz prpria, uma identidade para alm daqueles campos de onde provm autores e obras

    (literatura, religio, filosofia, cincias, educao etc.) e daqueles campos que buscam impor

    seus prprios critrios para a atividade editorial por meio de seus grupos de interesse

    (econmicos, polticos, religiosos etc.).

    29 Para esclarecer esse vnculo, seria necessrio recorrer recepo de autores como Lucien Fbvre, Roger Chartier,

    Robert Darnton em mbito latino-americano, tanto antes como depois de suas respectivas publicaes em portugus e em

    espanhol. Tambm possvel destacar, nesse sentido, as relaes que historiadores franceses como o prprio Roger

    Chartier e Jean-Yves Mollier tm mantido com os pesquisadores latino-americanos de histria do livro e da edio.

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    Ainda que esteja bastante longe de configurar propriamente uma disciplina cientfica,

    a Editorao passa por um forte processo de institucionalizao no Brasil nos anos 1990. Os

    indcios mais fortes so o surgimento das colees sobre livro, leitura e edio (para no

    falar das obras avulsas) e a criao do Ncleo de Pesquisa Produo Editorial da

    Intercom. Na Argentina, as iniciativas semelhantes carecem ainda de regularidade e

    sistematicidade. Sintetiza Alejandro Blanco (2006, p. 51, trad. minha):

    Uma disciplina se institucionaliza [...] quando pode ser estudada como um tema

    maior, mais que como matria adjunta; quando ensinada por professores

    especializados no tema e no por professores que fazem disso uma tarefa

    subsidiria de sua profisso principal; quando existem oportunidades para a

    publicao em revistas especializadas, em vez de revistas consagradas a outros

    temas; quando existe financiamento e proviso logstica e administrativa para a

    pesquisa [...] atravs de instituies estabelecidas, no lugar de que esses recursos

    venham do prprio pesquisador; e quando existem oportunidades estabelecidas e

    remuneradas para sua prtica, assim como uma demanda relativa aos resultados da pesquisa. A apario de sociedades cientficas , igualmente, outro elemento

    que subjaz ao processo de institucionalizao de uma disciplina, ainda que com

    frequncia seu carter e sua composio experimentem mudanas medida que

    o tamanho, contedo e complexidade da disciplina se transformam. Finalmente,

    e medida que o desenvolvimento de ferramentas e problemas comuns parte

    de um processo de institucionalizao disciplinar, o surgimento de livros de

    referncia sobre o tema um claro indicador dessa institucionalizao.

    Evidentemente, os estudos do livro e da leitura nos dois pases esto bastante distantes

    de cumprir todos esses requisitos. Seguem constituindo um tema especfico (e com pouco

    prestgio) dentro das disciplinas j constitudas; encontram bem mais oportunidades de

    publicizao em revistas e eventos consagrados a outros temas do que nos poucos espaos

    autocentrados; representam ainda poucas oportunidades de atuao profissional estvel.

    Contudo, tais estudos no Brasil foram indiretamente beneficiados pelo estabelecimento da

    Comunicao como disciplina acadmica o que no ocorreu na Argentina, onde o ensino

    e a pesquisa em Editorao no tm ancoragem disciplinar to definida. No Brasil, ainda

    que a Editorao permanea como sub-rea pouco desenvolvida e pouco povoada dentro da

    tradio (inter)disciplinar da Comunicao, tal enraizamento ajudou a garantir,

    principalmente a partir dos anos 1990, a continuidade dos esforos de institucionalizao

    das atividades intelectuais dedicadas ao tema tanto no ensino como na pesquisa.

    De todo modo, essa diferena no parece suficiente para esclarecer realidades to

    distintas. Salta aos olhos que os estudos do livro e da edio tenham logrado maior

    desenvolvimento no Brasil do que na Argentina, seja em seus aspectos institucionais, seja

    no mbito da produo acadmica propriamente dita. Desde a perspectiva comparada aqui

    proposta, a diversificao, o crescimento e a diferenciao das iniciativas brasileiras

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    contrastam fortemente com o carter concentrado e rarefeito das iniciativas acadmicas

    argentinas. O que explicaria tal diferena, se considerarmos a rica tradio editorial

    argentina, assim como os expressivos ndices de alfabetizao, escolarizao e leitura do

    pas vizinho? A meu ver, dois fatores devem ser considerados.

    O primeiro, de teor histrico, est relacionado ao desenvolvimento do sistema

    universitrio nos dois pases. Se bem o pas vizinho tenha conseguido universalizar o acesso

    ao ensino superior e tenha experimentado, nos anos 1990, uma importante ampliao da

    oferta nas universidades nacionais, tais processos devem ser lidos luz de esforos mais

    amplos de recuperao, dado o desmantelamento do sistema universitrio durante os

    perodos totalitrios de sua histria recente. No Brasil, o crescimento e desenvolvimento

    das universidades teve altos e baixos, mas manteve alguma regularidade no mesmo perodo,

    inclusive durante a Ditadura Militar. Note-se, tambm, que a interferncia ideolgica e a

    perseguio poltica foram bem mais fortes na Argentina, onde, alm da censura aos

    contedos e da expulso de professores, muitos cursos foram fechados. Isso explica o fato

    de que, ainda hoje, os esforos de consolidao e crescimento da produo intelectual no

    sistema universitrio argentino ainda esbarrem na prpria necessidade de retomar aes que

    foram enfraquecidas, ou mesmo interrompidas, nas dcadas anteriores.

    O segundo fator, de natureza metodolgica, diz respeito ao ajuste de escalas

    necessrio a um estudo desse tipo. Se, por um lado, o Brasil figura no mapa-mndi como

    territrio unificado poltica e linguisticamente, pas de dimenses continentais e vasta

    populao, relativamente isolado dos outros pases de lngua portuguesa, a Argentina cuja

    populao equivale a um quinto da populao brasileira e seu mundo intelectual tornam-

    se bem mais inteligveis luz das relaes e dos fluxos que historicamente manteve com

    sua comunidade lingustica. Afinal, os pases de lngua castelhana constantemente atuaram

    ora como mbitos de concorrncia simblica e comercial ao livro argentino, ora como

    mercados consumidores de sua produo editorial, ora ainda como fornecedores de capitais

    ao mercado local (caso das muitas editoras mexicanas, colombianas e espanholas presentes

    em solo argentino). Disso derivam tanto a necessidade de olhar para fenmenos ocorridos

    para alm de suas fronteiras, como a dificuldade de forjar uma historiografia do livro e da

    edio em bases propriamente nacionais.

    Por isso, para alm das diferenas e semelhanas que a comparao entre os dois

    pases capaz de mostrar, ela explicita a relativa insuficincia do mbito do Estado-nao

    para revelar processos scio-histricos que constituem os campos intelectuais e os espaos

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    editoriais latino-americanos. Outras escalas ajudam a equacionar a anlise desses espaos.

    De um lado, a escala local permite dar inteligibilidade s disputas que operam nas

    capitais editoriais de cada pas (que onde acontecem muitas das iniciativas intelectuais

    aqui exploradas). No outro extremo, a escala transnacional d conta dos fluxos e dos

    circuitos que conformam cada mercado lingustico e as relaes mais amplas de uma

    repblica mundial das letras (CASANOVA, 2002). Alm disso, o esforo da comparao

    esbarra na complexidade de oper-la de modo sincrnico: a despeito dos paralelismos que

    se possa encontrar entre a histria social, econmica, poltica e cultural dos dois pases, h

    processos importantes que apenas se tornam comparveis quando se operam deslizamentos

    temporais entre uma realidade e outra.

    Por fim, preciso marcar que uma anlise mais detalhada desse universo exigiria

    olhar para outros mbitos por meio dos quais a atividade editorial busca converter-se em

    atividade intelectual ou ao menos autorreflexiva: os congressos de editores e livreiros; as

    publicaes peridicas das cmaras, sindicatos e associaes do setor; a imprensa

    especializada em mercado editorial; as ofertas de formao tcnica e instrumental em

    espaos extrauniversitrios, bem como as iniciativas em nvel de ps-graduao lato sensu;

    as dissertaes e teses produzidas sobre o tema e no publicadas; os trabalhos publicados

    em perodicos acadmicos; os livros publicados de maneira esparsa, fora das colees

    temticas; os grupos de pesquisa formais e os agrupamentos informais (colgios invisveis,

    escolas, linhas, fraes). o conjunto desses mbitos de produo de saberes sobre a

    edio, o livro e a leitura que vai configurando um lxico e uma sintaxe prprios desse

    universo uma instituio discursiva (SALGADO, 2011).

    Neste artigo, busquei apenas indicar algumas linhas a serem seguidas com o objetivo

    de compreender de que modo vo se configurando espaos sociais organizados em torno do

    livro e da edio, pensados por si mesmos e por outros espaos como conjuntos mais ou

    menos homogneos e autnomos, condicionados pelos campos de poder mas dotados de

    alguma espessura prpria. Estas so algumas das questes que busco explorar em minha

    pesquisa de doutorado, ainda em andamento, dedicada s mudanas do espao editorial no

    Brasil e na Argentina desde a redemocratizao.

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