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Artigos São Paulo / OUTUBRO 2018 1 Artigo publicado no livro “Estudos de Direito Tributário 40 anos de Mariz de Oliveira e Siqueira Campos Advogados”, São Paulo, 2018, p. 297-318. Autor: Henrique Coutinho de Souza A MODULAÇÃO DE EFEITOS TEMPORAIS DAS DECISÕES EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA: UM ESTUDO SOBRE OS ARGUMENTOS CONSEQUENCIALISTAS ECONÔMICOS NO DIREITO TRIBUTÁRIO 1. Introdução Nos últimos anos, diversos conflitos judiciais em matéria tributária, submetidos à apreciação do Supremo Tribunal Federal, são acompanhados de discussões em torno da modulação temporal dos efeitos da decisão proferida pela Corte. Antes mesmo de a decisão quanto à constitucionalidade da exigência tributária ser proferida, os entes fazendários antecipam-se em apontar os impactos financeiros da discussão aos cofres públicos, em caso de êxito dos contribuintes. Trata-se, pois, do intitulado argumento ad terrorem, por meio do qual se suscita a queda da arrecadação das receitas públicas, ou os efeitos econômicos deletérios para as finanças públicas, como elemento persuasivo para a atribuição de efeitos prospectivos à decisão que declara indevida a cobrança de um tributo instituído ao arrepio do texto constitucional. Na maior parte das vezes, esses impactos sequer são suportados por estudos ou dados analíticos capazes de comprovar a sua veracidade. Isso significa, em outros termos, que os argumentos consequencialistas – ou seja, o

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Artigo publicado no livro “Estudos de Direito Tributário 40 anos de Mariz de Oliveira e Siqueira Campos Advogados”, São Paulo, 2018, p. 297-318.

Autor: Henrique Coutinho de Souza A MODULAÇÃO DE EFEITOS TEMPORAIS DAS DECISÕES EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA: UM ESTUDO SOBRE OS ARGUMENTOS CONSEQUENCIALISTAS ECONÔMICOS NO DIREITO TRIBUTÁRIO

1. Introdução Nos últimos anos, diversos conflitos judiciais em matéria tributária,

submetidos à apreciação do Supremo Tribunal Federal, são acompanhados de discussões em torno da modulação temporal dos efeitos da decisão proferida pela Corte. Antes mesmo de a decisão quanto à constitucionalidade da exigência tributária ser proferida, os entes fazendários antecipam-se em apontar os impactos financeiros da discussão aos cofres públicos, em caso de êxito dos contribuintes.

Trata-se, pois, do intitulado argumento ad terrorem, por meio do

qual se suscita a queda da arrecadação das receitas públicas, ou os efeitos econômicos deletérios para as finanças públicas, como elemento persuasivo para a atribuição de efeitos prospectivos à decisão que declara indevida a cobrança de um tributo instituído ao arrepio do texto constitucional.

Na maior parte das vezes, esses impactos sequer são suportados por

estudos ou dados analíticos capazes de comprovar a sua veracidade. Isso significa, em outros termos, que os argumentos consequencialistas – ou seja, o

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apelo a considerações de possíveis efeitos da decisão – são invocados pelos entes fazendários como elementos de persuasão do julgador, mas sequer são passíveis de enfrentamento pelos contribuintes, dada a ausência de suportes empíricos ou estatísticos que lhes sirvam de lastro.

O presente artigo se propõe a analisar a modulação dos efeitos das

decisões proferidas pelo STF em matéria tributária, seus fundamentos e sua evolução na jurisprudência da Corte. Analisaremos também, à luz da teoria da argumentação jurídica, os riscos da adoção de argumentos consequencialistas no processo decisório, sobretudo aqueles que envolvem os impactos da decisão para os cofres públicos, bem como os seus nefastos efeitos para a segurança jurídica.

O estudo buscará dialogar também com as contribuições de Ricardo

Mariz de Oliveira para o tema da segurança jurídica, no artigo intitulado “Formalismo e substantivismo tributário. Dever moral e obrigação jurídica. E a segurança jurídica?”1.

É nesse cenário que será analisado o instituto da modulação dos

efeitos temporais da decisão, buscando responder às seguintes indagações: em que casos é possível a modulação dos efeitos da decisão em matéria tributária? É cabível a modulação de efeitos com base em argumentos consequencialistas de cunho econômico?

2. Os argumentos consequencialistas na argumentação

jurídica O consequencialismo é a consideração, no processo decisório, de

influências e projeções dos efeitos econômicos, sociais e culturais, que podem ser evitados ou potencializados por uma decisão judicial.

1 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Formalismo e substantivismo tributário. Dever moral e obrigação jurídica. E a segurança jurídica? Tributação brasileira em evolução: estudos em homenagem ao Professor Alcides Jorge Costa. In: PRETO, Raquel Elita Alves (Coord.). São Paulo: IASP, 2015, p. 490-518.

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Sua origem2 remonta à escola filosófica pragmática, originada nos Estados Unidos no final do século XIX, quando filósofos, como Charles Sanders Peirce, George Herbert Mead, John Dewey e William James, insurgiram-se contra o modelo racionalista até então predominante na tradição filosófica, introduzindo a consideração das consequências de ordem pragmática, rompendo-se com as teorias racionalistas e normativas da ação. Como aponta William James3, o pragmatismo firmou-se como filosofia de resultados, decorrente da experiência empírica, até a sua superação por escolas logicistas, que introduziram maior rigor na identificação da verdade de um conceito.

As bases filosóficas do pragmatismo irradiaram-se para diferentes

campos do conhecimento humano. Sua adoção nas ciências jurídicas ganha destaque, sobretudo, com Richard Posner, para quem o juiz deve buscar a decisão que leve às melhores consequências para as partes em situações semelhantes, buscando generalidade, previsibilidade e imparcialidade4.

É no contexto do pragmatismo que se desenvolve o

consequencialismo, por meio do qual se sustenta que, no processo justificativo de uma decisão judicial, deverá o julgador atentar-se para as melhores consequências universais, após as ponderações e considerações de efeitos econômicos, sociais ou culturais. Os argumentos consequencialistas, portanto, podem integrar o processo de justificação de uma decisão judicial.

A justificação das decisões judiciais e os diferentes argumentos que

lhes servem de fundamento estão diretamente ligados à teoria da argumentação jurídica, haja vista que, ao emitir juízos decisórios, os julgadores devem justificar a escolha de uma das soluções jurídicas conflitantes, demonstrando ser aquela a decisão mais adequada para a situação discutida. A argumentação faz parte do discurso jurídico, composto de linguagem, racionalidade e convencimento. Os participantes de um processo apresentam argumentos, e a fundamentação é

2 Sobre a evolução do consequencialismo, conferir: ANDRADE, Fábio Martins de. Modulação em matéria tributária: o argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 41-73. 3 JAMES, William. Pragmatismo. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 174. 4 POSNER, Richard. Law, Pragmatism and Democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2003, p. 12.

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requisito essencial da decisão judicial. Como leciona Luís Roberto Barroso5, a argumentação é o processo racional e discursivo de fornecer razões para a defesa de um ponto de vista, para demonstração da correção e da justiça da solução proposta.

A teoria da argumentação jurídica desenvolveu-se, inicialmente, no

quarto final do século passado, como um movimento de rejeição à lógica formal e dedutiva, com destaque para obras como Tópica (1953), de Viehweg, Lógica do razoável, de Recaséns Siches, Nova retórica (1958), de Chaïm Perelman, e Lógica não formal (1958), de Toulmin. Nas décadas seguintes, a teoria foi aprimorada por juristas como Aarnio, Alexy, MacCormick, Peczenik e Wróblewsky. Pela teoria da argumentação jurídica, o Direito não pode ser estudado apenas como um produto acabado, criado por uma ação legislativa, mas sim como um processo discursivo por meio do qual se chega à decisão judicial, e que precisa ser fundado em uma perspectiva racional, oferecendo resposta para os operadores do Direito.

A atividade da argumentação, contida no discurso jurídico, é

encarada sob o ponto de vista normativo e, assim, entendida como uma atividade regrada, sujeita a avaliação. O processo de justificação das decisões judiciais não se presta a questionar a validade da decisão, mas apenas verificar se, normativamente, as razões apresentadas são capazes de convencer os seus destinatários, oferecendo razões para sua correção.

Nesse contexto, Chaïm Perelman6 desenvolveu uma teoria

normativa da argumentação, segundo a qual os julgamentos jurídicos não são arbitrários e relegados à ideologia do intérprete, mas sim direcionados a um regramento em que os julgadores apontam a solução adequada para o caso concreto. Reconhece-se, portanto, a insuficiência da lógica formal para resolver determinadas controvérsias jurídicas, de modo que o raciocínio silogístico não basta para a solução de certos casos jurídicos. O valor de um argumento é determinado pela capacidade de convencimento de um auditório universal,

5 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 378. 6 PERELMAN, Chaïm. Justice, Law and Argument – Essays in Moral and Legal Reasoning. Netherlands: D. Reidel Publishing Company, 1980, p. 128-129.

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mediante critérios de racionalidade e objetividade na argumentação7. Alexy8 salienta que o processo de justificação de uma decisão judicial deve buscar um modelo por meio do qual se prestigie não apenas as convicções de uma determinada comunidade, como ainda possibilite um critério de correção.

Em linha com esse entendimento, Neil Maccormick9 sustenta que a

persuasão está vinculada à existência de argumentos justificados e, assim, com a capacidade de oferecer razões que sejam universais para a justificativa da decisão adotada10. Nesse diapasão, o jurista escocês aponta que o julgador deve também ponderar as consequências, pautado em valores expressos no texto constitucional, e que constituiriam elementos jurídicos válidos dentro do sistema jurídico, identificados a partir de regras de reconhecimento, mediante critérios de justiça e de senso comum11.

Assim, à luz da teoria da argumentação jurídica, a mera indicação da

regra jurídica aplicável a um caso concreto não exaure o processo de justificação de uma decisão judicial. Como sustenta Guastini12, nos ordenamentos jurídicos modernos, os juízes, ao contrário do legislador, têm a obrigação de justificar a decisão e demonstrar ao público a sua justificação, que constitui parte integrante da decisão, sob pena de ser considerada arbitrária.

7 No mesmo sentido: ALEXY, Robert. A theory of Legal Argumentation: the Theory of Rational Discourse as Theory of Legal Justification. Trad. Ruth Adler e Neil Maccormick. Oxford: Oxford University Press, 1989, p. 155-173. 8 ALEXY, Robert. Op. cit., p. 11. 9 MacCORMICK, Neil. Rhetoric and the Rule of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005, p. 255. 10 Nesse sentido: “To decide a case and to justify the decision requires that it be universalized, at least implicitly, and the merit of rival possible universal (even if universal but narrowly defined) propositions of law assessed qualitatively. [...] the universalized decision does become a kind of rule for everyone else. At least it becomes a rule that other judges should follow or overrule except where they can distinguish it” (MacCORMICK, Neil. Op. cit., p. 102-103). 11 MacCORMICK, Neil. Legal Reasoning and Legal Theory. Clarendon Law Series, Oxford University Press: Oxford, 1978, p. 129-151. 12 GUASTINI, Riccardo. Interpretare e Argomentare. Trad. Silvina Álvarez Medina. Milano: Giuffrè, 2011, p. 231.

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No mesmo sentido, Larenz13 alude à necessidade de se fornecer fundamentos que justifiquem uma afirmação, demonstrando a pertinência de um argumento em relação à conclusão formulada, visando persuadir racionalmente os interlocutores quanto ao acerto desta conclusão. Prossegue o jurista alemão14 ao sustentar que a argumentação jurídica possui uma série de condições limitativas, como a vinculação à lei, a vinculação aos precedentes, a chancela dogmática da ciência jurídica e as restrições decorrentes das normas processuais.

Desse modo, deve o julgador identificar a regra jurídica aplicada e,

igualmente, justificar os argumentos que levaram à convicção quanto à interpretação da regra, bem como a subsunção do caso concreto à norma jurídica interpretada.

Nesse contexto, diferentes argumentos podem justificar uma

determinada decisão. É por tal razão que se faz importante não apenas o estudo dos argumentos, mas também a sua classificação e hierarquização, a partir de critérios que sejam minimamente objetiváveis, de modo a possibilitar o controle argumentativo. O tema foi objeto de minudente estudo realizado por Humberto Ávila15, ao analisar a importância do uso da argumentação jurídica na celeuma jurídica relativa à imunidade do livro eletrônico. Conforme exposto pelo autor, os argumentos fluem em diferentes direções, não sendo possível afirmar, aprioristicamente, que a linguagem, o sistema, o legislador constituinte ou mesmo que determinada consequência venha a determinar qual interpretação é a mais adequada. Tal entendimento levaria à conclusão de que os argumentos são unidirecionais, quando, na verdade, são multidirecionais e multidimensionais.

Com efeito, com vistas a hierarquizar e classificar os argumentos,

Humberto Ávila16 aponta para a prevalência dos argumentos institucionais

13 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. Trad. José Lamego. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2012, p. 212. 14 LARENZ, Karl. Op. cit. p. 213. 15 ÁVILA, Humberto. Argumentação jurídica e a imunidade do livro eletrônico. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 19, mar. 2001. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/revfacdir/article/view/71526/40588>. Acesso em: 17.06.2017, p. 157-180. 16 Ávila, Humberto. Op. cit., p. 174-177.

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sobre os argumentos não institucionais. Os argumentos institucionais, pois, são aqueles que têm como ponto de referência o próprio ordenamento jurídico, e, portanto, são determinados por atos institucionais, como os atos parlamentares, administrativos ou judiciais. A prevalência desses argumentos institucionais justifica-se pelo princípio democrático e pelo princípio da separação de poderes, que reconhecem no poder parlamentar a representatividade democrática para a tomada de decisões. Assim, os argumentos linguísticos (como os sintáticos e os semânticos) e sistemáticos (como os contextuais ou jurisprudenciais), porque diretamente reconduzíveis ao ordenamento jurídico posto, são dotados de maior força persuasiva na teoria da argumentação jurídica, exigindo um ônus argumentativo maior para serem derrotados. Na escala de prevalência dos argumentos proposta por Humberto Ávila, tais argumentos prevalecem também sobre os argumentos transcendentes (como os históricos e genéticos), que buscam recompor o sentido das normas por meio de sua atualização no tempo. Em último plano, na hierarquia dos argumentos proposta pelo professor, encontram-se os argumentos não institucionais ou pragmáticos, como os argumentos consequencialistas. Isso porque esses argumentos não são reconduzíveis ao ordenamento jurídico, decorrendo de um apelo ao sentimento de justiça que a própria interpretação evoca, e, por isso, possuem menor capacidade de objetivação. Pela falta de referência a pontos de vista objetivos ou objetiváveis, os argumentos não institucionais nunca serão conclusivos, porque são manipuláveis arbitrariamente conforme os interesses em jogo.

É importante destacar que, como ressalva Humberto Ávila, a

proposta de hierarquização dos argumentos não pode ser rígida nem inflexível, pois antes da interpretação não se sabe qual dos argumentos será mais seguro, ou mesmo qual deles será mais importante para a interpretação. Em alguns casos, são os elementos linguísticos e sistemáticos que irão decidir qual das alternativas interpretativas deverá ser escolhida. Em outros, pela vagueza desses elementos, só os argumentos históricos poderão resolver a questão interpretativa. A pertinência dos argumentos depende da própria controvérsia jurídica posta à prova.

Seja como for, não se pode negar que, do ponto de vista jurídico, os

argumentos de cunho consequencialista, como a suposta perda de arrecadação originada com a declaração de inconstitucionalidade de um tributo, são dotados de menor força persuasiva, quando comparados aos argumentos que levaram o julgador a extirpar determinado tributo do ordenamento pátrio. A perda de

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arrecadação e os impactos aos cofres públicos são ínsitos à agressão causada ao ordenamento jurídico, que exige a devolução aos contribuintes dos valores pagos pela instituição de um tributo inconstitucional. Trata-se de argumentos consequencialistas ad terrorem, na maior parte das vezes desacompanhados de estudos que respaldem suas conclusões, e que acabam por desconsiderar os efeitos que a própria instituição do tributo tido por inconstitucional teve sobre os agentes econômicos. Como exposto, os argumentos não institucionais são facilmente manipuláveis por aqueles que os invocam. E, nesse cenário, quando os entes tributantes suscitam a perda de arrecadação e os impactos aos cofres públicos, os contribuintes poderiam também apelar aos nefastos efeitos que a tributação inconstitucional produziu no planejamento de suas atividades empresariais. Ou, ainda, por meio de uma imersão nas ciências econômicas, demonstrar os impactos indiretos produzidos nos agentes econômicos pela cobrança de um tributo que se revelou incompatível com o ordenamento, a partir da função indutora ínsita à tributação17, e, então, questionar as projeções de fluxos arrecadatórios estimados pelos entes tributantes. Como se vê, a depender do critério tido como relevante pelo intérprete, diferentes consequências poderão advir da declaração de inconstitucionalidade de um tributo, razão pela qual esse argumento deve possuir menor força persuasiva na tomada de uma decisão.

Tais conclusões parecem alinhar-se ao estudo de Ricardo Mariz de

Oliveira, no artigo intitulado “Formalismo e substantivismo tributário. Dever moral e obrigação jurídica. E a segurança jurídica?”. O jurista, sem descartar qualquer método hermenêutico na compreensão e intelecção das normas, reconhece nas fontes formais do Direito o ponto de partida para a construção do sentido normativo. Para o autor, o sistema tributário brasileiro é formalista18, a começar pela rigidez das normas constitucionais versando sobre tributação, alicerçadas no princípio da legalidade, que historicamente se encontra jungido à imposição de limites ao poder dos soberanos e da nobreza. A distinção entre argumentos institucionais e não institucionais – como os políticos e morais – também é enfrentada por Mariz. O autor reconhece a separação de um “terreno pré-jurídico, no qual a moral deve ser considerada como diretriz das decisões dos poderes constituídos”19, que não se confunde com o plano jurídico, em que 17 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 27-32. 18 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Op. cit., p. 516. 19 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Op. cit., p. 513.

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os “fundamentos o que informam não permitem que a moral se imponha sobre a legalidade da obrigação tributária”. Assim, para o jurista “a moralidade não se opõe – ou não deve se opor – à legalidade, mas se equilibra com ela na busca do bem comum, o qual, contudo, é objeto definido e prescrito pelo direito, e não obtido a partir da convicção subjetiva do servidor público”20. Ao reconhecer o primado da legalidade e da segurança jurídica, a ruptura com a ordem jurídica deve ser rechaçada, como ocorre com a instituição de um tributo inconstitucional, razão pela qual não se pode cogitar a manutenção dessa tributação – ao arrepio do direito posto – pela adoção de argumentos que transcendem os jurídicos, como os políticos, morais ou econômicos. Retomaremos esse ponto adiante.

3. A modulação dos efeitos da decisão que declara a

inconstitucionalidade de norma: evolução legislativa e jurisprudencial

Historicamente, dois são os modelos básicos de controle de

constitucionalidade de leis21: (i) o americano, que atribui eficácia ex tunc à declaração de inconstitucionalidade de uma lei; e o (ii) austríaco, que atribui eficácia ex nunc à declaração de inconstitucionalidade de uma lei. Além desses sistemas, há diversos países que adotam sistemas mistos.

No Brasil, tradicionalmente22, por influências dos constitucionalistas

clássicos americanos, adotou-se23-24 o entendimento de que a declaração de

20 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Op. cit., p. 510. 21 Sobre o tema, conferir: BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 322-355. 22 A título ilustrativo, pode-se citar a decisão proferida na Representação n. 971, do Rel. Min. Djaci Falcão, de 03.11.1977. 23 Rui Barbosa assim asseverava em 1910: “Uma coisa é declarar a nulidade. Outra, anular. Declarar nula uma lei é simplesmente consignar sua incompatibilidade com a Constituição, lei primária e suprema” (BARBOSA, Rui. O direito do Amazonas ao Acre setentrional. Rio de Janeiro: s/ ed., 1910, p. 103). 24 Pontes de Miranda aludia à eficácia constitutiva negativa da decretação de inconstitucionalidade in concreto, enquanto a suspensão da lei inconstitucional tem eficácia declarativa (MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. 1, de 1969. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, v. 3, p. 623).

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inconstitucionalidade tem eficácia ex tunc. Como aponta Ana Paula Ávila25, a teoria da nulidade da norma inconstitucional acabou se tornando um dogma na jurisprudência do STF e perdurou por muitas décadas.

Aos poucos, esse entendimento passa a sofrer temperamentos.

Assim, começam a repercutir as teorias que visavam preservar certos efeitos produzidos pela norma inconstitucional no passado, e que fossem dignos de proteção jurídica, o que, invariavelmente, acaba passando pela consideração de elementos consequencialistas da decisão.

Em 1974, o Ministro Bilac Pinto, nos autos do RE 78.594/SP26,

observou que a inconstitucionalidade não pode ter os seus efeitos “sintetizados numa regra única, que seja válida para todos os casos. A natureza civil ou penal da lei, por exemplo, tem importantes consequências na conceituação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade”. Nesse julgamento, declarou-se que a citação e a penhora realizadas por oficial de justiça, investido no cargo com base em lei inconstitucional, não eram nulas, haja vista que o citado conseguiu defender-se amplamente no processo.

Igualmente, em 15.04.1986, nos autos do RE 105.789, de relatoria

do Ministro Carlos Madeira, reconheceu-se a inconstitucionalidade de lei que atribuía gratificação a magistrado, mas atribuiu-se eficácia prospectiva à decisão. Na ocasião, entendeu-se que o desfazimento dos efeitos produzidos pela norma inconstitucional implicaria a redução dos vencimentos dos magistrados, inadmissível pela Constituição. Dessa forma, manteve-se a produção dos efeitos da lei inconstitucional para que a sua declaração de inconstitucionalidade não resultasse em nova violação ao texto constitucional.

Contudo, essas decisões são esparsas e, de modo geral, pode-se dizer

que, entre as décadas de 1970 e 1990, sobretudo em matéria tributária, prevaleceu o entendimento de que a declaração de inconstitucionalidade – seja no controle concentrado ou difuso – opera-se com eficácia ex tunc.

25 ÁVILA, Ana Paula de Oliveira. A modulação de efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade: ponderação e regras de argumentação para a interpretação conforme a constituição do artigo 27 da Lei n. 9.868/99. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 47. 26 RE 78.594/SP, Ac. da 2ª Turma, de 07.06.1974, Rel. Min. Bilac Pinto, RTJ 71/570.

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Igualmente, ao longo desse período, o STF desconsiderou os

argumentos consequencialistas de cunho econômico em matéria tributária. Nesse contexto, importante destacar que, em 1992, no julgamento versando sobre FINSOCIAL27, o STF declarou constitucional o tributo, mas afastou o aumento da alíquota. O caso envolvia a destinação de recursos à saúde pública e, no voto desempate do Ministro Sydney Sanches, o argumento consequencialista de risco de lesão aos cofres da previdência foi enfrentado e expressamente rechaçado28 pelo Tribunal, por entender que não seria possível sacrificar outros princípios da Constituição, em nome do interesse público de preservação do Tesouro e da Previdência.

Em 1995, no julgamento da contribuição social sobre autônomos e

empresários, o STF manteve a eficácia ex tunc à declaração de inconstitucionalidade do tributo29. Contudo, o Ministro Maurício Corrêa, que acabou vencido na ocasião, manifestou-se30 pela necessidade de atribuição de eficácia prospectiva a essa decisão, por entender que os resultados consequenciais da decisão imporiam drásticas restrições ao orçamento da seguridade social, que já sofreria com notória insuficiência de caixa.

Com a repercussão das teorias que visavam acomodar a preservação

de determinados efeitos produzidos por uma lei inconstitucional, aos poucos o ordenamento jurídico pátrio foi alterado. Inicialmente, introduziu-se, pela EC n.

27 RE 150.764, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 16.12.1992, RTJ 147/1024. 28 Nesse sentido, destaca-se o seguinte excerto do voto do Ministro Sidney Sanches: “não há possibilidade de se salvar o dispositivo, por mais nobre que seja o propósito interpretativo da Corte, ainda que para preservar o respeitabilíssimo interesse público do Tesouro, da Previdência e da Seguridade Social”. 29 ADI 1.102, Pleno, Rel. Min. Maurício Correa, j. 05.10.1995. 30 Destaca-se o seguinte excerto do voto do Ministro Maurício Corrêa: “[...] parece-me de inteira procedência a irresignação ministerial quanto aos efeitos retroativos que a Corte tem emprestado à declaração de inconstitucionalidade, principalmente, quando, como na espécie, os resultados consequenciais da decisão impõem drásticas restrições ao orçamento da seguridade social, abalada por notória insuficiência de caixa. Creio não constituir-se afronta ao ordenamento constitucional exercer a Corte política judicial de conveniência, se viesse a adotar a sistemática, caso por caso, para a aplicação de quais os efeitos que deveriam ser impostos, quando, como nesta hipótese, defluísse situação tal a recomendar [...]”.

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3, de 1993, a ação declaratória de constitucionalidade de lei, figura sem paralelo no direito comparado. Já na Revisão Constitucional de 1994, tentou-se introduzir uma alteração no art. 103 da Constituição Federal, que possibilitaria ao STF, por maioria de dois terços dos seus membros, que a declaração de inconstitucionalidade somente produzisse efeitos a partir do trânsito da decisão.

Essa alteração não foi acolhida, mas essas discussões acabaram

levando à introdução do art. 27 da Lei n. 9.868/99, de inspiração no Direito alemão, que disciplina que, “ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o STF, por maioria de 2/3 de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de momento que venha a ser fixado”.

No entanto, a introdução desse dispositivo legal não teve imediata

aplicação na jurisprudência do STF. Referido comando legal foi alvo de ADINs, até hoje não apreciadas pelo STF. Por outro giro, como visto, mesmo antes da introdução do art. 27 da Lei n. 9.868/99, em determinadas situações excepcionais, o STF já havia se pronunciado pela possibilidade de atribuição de efeito ex nunc à declaração da inconstitucionalidade. Vale destacar que, consoante se depreende da literalidade do dispositivo, manteve-se hígida a regra de retroatividade dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Introduziram-se, apenas, algumas situações excepcionais em que a eficácia temporal dos efeitos da declaração pode ser modificada pelo STF.

Com a superveniência dessa alteração legislativa, o Supremo

Tribunal Federal aos poucos passa a adotar a técnica da modulação – inclusive no controle difuso de constitucionalidade –, com base em argumentos consequencialistas, principalmente com a mudança na composição da Corte, a partir de 2003.

A título ilustrativo, quando o TSE manifestou sua posição em favor

da fidelidade partidária, o STF, em decisão de 200731, entendeu que os políticos só perderiam o mandato se mudassem de partido após a decisão do TSE, de modo a preservar a segurança jurídica.

31 MS 26.604, Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 04.10.2007.

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Também em 200732, o STF analisou processo que envolvia

munícipio criado com base em lei declarada inconstitucional, entendendo pela necessidade de manutenção da lei inconstitucional por mais 24 meses, tempo razoável para que o legislador estadual contornasse a inconstitucionalidade e instituísse o município em consonância com a lei complementar que regula a matéria. O argumento para a aplicação da modulação foi a consequência perniciosa33 que adviria da eventual declaração de inconstitucionalidade da lei estadual, em razão de todas as relações jurídicas estabelecidas no âmbito do município.

4. A modulação de efeitos temporais das decisões do STF em

matéria tributária Inicialmente, cabe destacar que, por meio do art. 27 da Lei n.

9.868/99, o Supremo Tribunal Federal pode34: (i) conceder eficácia pro futuro ao seu julgado, fixando um marco, no futuro, até o qual a norma declarada inconstitucional deverá ser aplicada; (ii) conferir eficácia ex nunc à declaração de inconstitucionalidade, validando todos os efeitos já produzidos pela norma inconstitucional no passado; ou (iii) atribuir eficácia ex tunc mitigada, de modo a atenuar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, estabelecendo um momento no passado a partir do qual a decisão surtirá efeitos, ou, ainda, limitando o alcance da declaração de inconstitucionalidade a uma determinada situação jurídica.

Na seara tributária, todos os cenários acima já foram adotados pelo

STF, em diferentes contextos ou matérias. A título ilustrativo, pode-se apontar:

32 ADI 2.240/BA, Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 09.05.2007. 33 Nesse sentido, destaca-se o seguinte excerto do Ministro Gilmar Mendes: “A declaração de inconstitucionalidade e, portanto, da nulidade da lei instituidora de uma nova entidade federativa, o Município, constitui mais um dentre os casos, retirados de exemplos do direito comparado, em que as consequências de decisão tomada pela Corte podem gerar um verdadeiro caos jurídico”. 34 SARMENTO, Daniel. A eficácia temporal das decisões no controle de constitucionalidade. In: SAMPAIO, José Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (Coord.). Hermenêutica e jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 33.

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i) eficácia pro futuro: nos autos da ADI 4.425, que julgou a EC n. 62/2009 (emenda dos precatórios), o STF atribuiu sobrevida a diversos dispositivos declarados inconstitucionais, mantendo a vigência do regime especial de precatório por cinco exercícios financeiros, a contar de primeiro de janeiro de 2016; nos autos da ADI 4.171, em que se discutiu a incidência do ICMS em operação de combustíveis, o STF declarou a inconstitucionalidade de alguns dispositivos do Convênio CONFAZ n. 110/2007, sendo a decisão modulada para produzir efeitos apenas seis meses a contar da publicação do acórdão;

ii) eficácia ex nunc: nos autos da ADI 4.481, em que se discutiu lei

estadual que concedeu benefício de ICMS sem convênio CONFAZ, o STF modulou a decisão para que seus efeitos somente fossem produzidos a partir da sessão de julgamento; nos autos do ARE 709.212, em que o STF alterou seu entendimento quanto à aplicação do prazo prescricional trintenário para a cobrança do FGTS, a Corte atribuiu eficácia prospectiva à decisão, de modo que o prazo prescricional quinquenal somente passou a ser aplicado para momentos posteriores à data do julgamento;

iii) eficácia ex tunc mitigada: nos autos do RE 593.849, versando

sobre ressarcimento de créditos de ICMS em regime da substituição tributária, o STF modulou a decisão para resguardar o direito à restituição dos valores recolhidos no passado apenas aos contribuintes que já tinham ações ajuizadas até a data do julgamento, de modo a impedir os demais contribuintes de reaverem os valores do passado (ou seja, para estes, a decisão teve apenas caráter ex nunc); nos autos do RE 556.664, em que se discutiu o prazo decadencial decenal previsto nos arts. 45 e 46 da Lei n. 8.212/91, o STF modulou a decisão para declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos apenas para os contribuintes que possuíam ações judiciais ou processos administrativos em curso até a data do julgamento, de modo que os contribuintes que não possuíam

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discussões em andamento e quitaram os tributos com base em lei inconstitucional foram prejudicados. Nessas duas ocasiões mencionadas, apenas parte dos contribuintes que se submeteram à norma inconstitucional foi contemplada com a eficácia ex tunc da decisão, ao passo que, para os demais, a decisão projetou-se apenas para o futuro, com eficácia ex nunc.

Como se nota, esse dispositivo atribui muitos poderes ao STF,

possibilitando que a Corte defina, ao seu talante e por dois terços de seus membros, o momento a partir do qual sua decisão produzirá efeitos.

Mais do que isso, como bem alerta Ana Paula Ávila35, tais poderes

são conferidos por meio de conceitos jurídicos indeterminados, como o excepcional interesse social e razões de segurança jurídica. Aponta a autora, portanto, que se faz necessário recorrer à argumentação jurídica e a seus limites institucionais para demonstrar a necessidade de o controle da constitucionalidade assentar-se em considerações de ordem jurídica, necessariamente constitucional, e não política, de modo a obedecer a uma hierarquia de valores tutelados pela própria Constituição Federal.

Como já exposto, não se pode conceber a prolação de decisões

judiciais que não forneçam critérios ou elementos que possibilitem o controle argumentativo, sob pena de configurarem-se arbitrárias. Ora, com muito mais fundamentos, em se tratando de uma situação excepcional em que uma norma violadora da Constituição terá seus efeitos – ou parte deles – preservados, há que se exigir que a Corte ofereça aos jurisdicionados, de forma fundamentada, os elementos que preencham os conceitos jurídicos indeterminados do “relevante interesse social” ou das “razões de segurança jurídica”.

Em outros termos, não basta o STF pronunciar-se, de forma

genérica, sobre a modulação dos efeitos temporais de suas decisões. Devem, pois, ser analisadas as razões jurídicas e constitucionalmente relevantes, as situações consolidadas no tempo, os direitos fundamentais em jogo, as expectativas e interesses de indivíduos afetados pelas normas controladas, e o

35 ÁVILA, Ana Paula de Oliveira. Op. cit., p. 61.

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próprio interesse público na preservação da segurança jurídica. O grande problema da atribuição de tais poderes à Corte é que, ao se romper o dogma da nulidade da norma inconstitucional, rompe-se também a supremacia da Constituição, pois se reconhece como eficaz uma norma que contrariou o texto constitucional.

Daí a necessidade de interpretação do art. 27 da Lei n. 9.868/99, em

consonância com os valores albergados pela Constituição. Há que se ressaltar, nesse espectro, que o dispositivo deve ser interpretado como uma exceção à regra da nulidade da norma constitucional, conferindo uma alternativa para situações em que a retroação dos efeitos leve a um resultado ainda mais inconstitucional.

Assim, é imperioso que a adoção desse dispositivo – para fins de

modulação temporal da declaração de inconstitucionalidade – seja cercada de muita cautela, sob pena de causar maior ofensa à segurança jurídica, em razão da incerteza gerada, não apenas às autoridades públicas, mas aos próprios cidadãos.

O uso desmedido dessa situação excepcional pode, antes de

preservar a segurança jurídica, causar um cenário de maior instabilidade institucional, resultando em dúvidas quanto à orientação a ser seguida. Também pode ocasionar prejuízo à confiabilidade e calculabilidade do Direito, por impossibilitar que o cidadão tenha conhecimento sobre as consequências advindas da prática de atos contrários à Constituição Federal.

Ocorre que, a despeito do evidente caráter excepcional das situações

que autorizam a modulação temporal da declaração de inconstitucionalidade, os entes fazendários, em matéria tributária, trilharam o caminho oposto. A partir da aplicação gradual desse instituto pelo STF, as Fazendas Públicas louvaram-se do argumento ad terrorem para, em quaisquer circunstâncias, suscitarem a necessidade de preservação do tributo cobrado sob a égide da lei inconstitucional, sob pena de serem causados prejuízos irreparáveis aos cofres públicos. Esse argumento de cunho consequencialista será abordado no próximo tópico. Por ora, importa-nos a análise da jurisprudência do STF versando sobre a modulação dos efeitos temporais das decisões em matéria tributária.

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A partir da análise dos casos em que houve modulação em matéria tributária, ou mesmo daqueles processos em que a modulação foi afastada, não é possível inferir qualquer racionalidade que permita conclusões quanto aos critérios que devem nortear a identificação do “relevante interesse social” ou “razões de segurança jurídica”, para fins de aplicação do art. 27 da Lei n. 9.868/99.

A título ilustrativo, nem mesmo os requisitos necessários à

configuração de jurisprudência consolidada, a ensejarem a modulação com base em “razões de segurança jurídica”, são claros na jurisprudência da Corte. Nos autos do RE 370.682, em que se discutia o direito ao crédito de IPI em operações isentas e não tributadas, os contribuintes obtiveram decisão desfavorável, reconhecendo a constitucionalidade da vedação ao crédito desse imposto. Assim, os contribuintes postularam a modulação dos efeitos da decisão, haja vista a existência de julgados do Pleno do STF contrários aos interesses fazendários desde 1998 (operações isentas) e 2002 (operações sujeitas à alíquota zero). Esse posicionamento jurisprudencial somente foi alterado em decisão do Plenário de 2007. Contudo, o STF não modulou a decisão, prestigiando os interesses fazendários, sustentando que as decisões anteriores da Corte não teriam transitado em julgado, razão pela qual os contribuintes não estariam preservados pela segurança jurídica, já que não teria ocorrido mudança jurisprudencial de decisão definitiva do STF.

Já nos autos do ARE 709.212, a mudança de jurisprudência do STF

de mais de 20 anos, que se operou quanto à aplicação do prazo prescricional trintenário para a cobrança do FGTS, foi crucial para a atribuição de eficácia prospectiva à decisão, de modo que o prazo prescricional quinquenal somente passou a ser aplicado para momentos posteriores à data do julgamento, modulando-se os efeitos da decisão.

De um modo geral, como aponta estudo levantado por Eurico di

Santi36 em julho de 2014, nos casos em que o STF declarou inconstitucional, uma

36 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Modulação de efeitos no controle de constitucionalidade de normas que instituem tributos: Na jurisprudência do STF, a segurança jurídica está em respeitar a legalidade como limitação constitucional ao poder de tributar. Fiscosoft, 03.07.2014. Disponível em: <http://artigoscheckpoint.thomsonreuters.com.br/a/6i4s/modulacao-de-efeitos-no-controle-de-constitucionalidade-de-normas-que-instituem-tributos-na-jurisprudencia-do-stf-a-seguranca-juridica-esta-em-respeitar-a-legalidade-como-limitacao-constitucional-ao>. Acesso em: 17.06.2017.

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lei que instituiu ou majorou tributo, não houve modulação dos efeitos da decisão. Ou seja, o STF restaurou o estado de constitucionalidade, atribuindo eficácia ex tunc plena à declaração de inconstitucionalidade.

É o caso, por exemplo, das discussões sobre empréstimo

compulsório sobre aquisição de veículos e combustíveis, a inconstitucionalidade majoração das alíquotas do FINSOCIAL, da progressividade do IPTU, da exigência de ICMS-importação de pessoas físicas, do alargamento da base de cálculo do PIS e da COFINS, do FUNRURAL sobre receitas de comercialização de produtos rurais e da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/COFINS-importação. Igualmente, de um modo geral, nos casos em que se declarou a constitucionalidade de lei que instituiu ou majorou tributo, o STF não admitiu a modulação dos efeitos, também preservando o estado de constitucionalidade. É o caso, por exemplo, do FINSOCIAL sobre receita bruta de prestadores de serviço, creditamento de IPI sujeitos à alíquota zero, isentos e não tributados, e COFINS das sociedades de profissão regulamentada.

Em que pesem tais considerações, no que concerne à declaração de

(in) constitucionalidade de lei que institui tributo, também se verifica que a existência ou não de jurisprudência consolidada sobre a matéria, ainda que debatidas, não impactaram sobremaneira nas análises do STF, excetuado o caso anteriormente mencionado, versando sobre o prazo prescricional para cobrança de valores devidos ao FGTS.

Em aprofundado estudo sobre o tema, Daniela Gueiros Dias37, em

uma abordagem empírica, analisa os casos em que se discutiu a modulação dos efeitos de decisões do STF em matéria tributária, no período entre novembro de 1999 a outubro de 2015. A autora constata a existência de 31 julgados versando sobre o tema. Neles, em 25 julgados houve utilização de argumentos consequencialistas relativos a: (i) arrecadação/finanças; (ii) enriquecimento ilícito; (iii) ação oportunística/incentivo à adoção de comportamentos; (iv) impacto no exercício de direito de terceiros; (v) promoção/preocupação com o

37 DIAS, Daniela Gueiros. Consequencialismo judicial na modulação de efeitos das decisões declaratórias de inconstitucionalidade nos julgamentos de Direito Tributário. In: Coleção Jovem Jurista. Rio de Janeiro: Escola de Direito FGV Direito Rio, 2016. Disponível em: <http://hdl.handle. net/10438/17509>. Acesso em: 17.06.2016, p. 45-156.

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diálogo institucional; (vi) aumento/existência de múltiplos litígios e morosidade do Judiciário; (vii) tratamento isonômico dos contribuintes/proteção da concorrência; e (viii) equilíbrio de mercado, consumo interno e inflação e efeitos sobre o capitalismo. A autora conclui que, na maioria desses casos, esses argumentos foram desacompanhados de estudos, documentos ou dados capazes de lhes servir de suporte.

Diante desse cenário, o que se verifica em matéria tributária é que,

na jurisprudência do STF, inexiste uma preocupação com a definição dos critérios que devem nortear a aplicação do art. 27 da Lei n. 9.868/99, para fins de configuração do “relevante interesse social” ou de “razões de segurança jurídica” que autorizam a modulação dos efeitos da decisão.

Com essas considerações, não se busca afirmar que a modulação

temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade seja sempre inconciliável com a Constituição Federal, em matéria tributária. Como destaca Humberto Ávila38, o Supremo Tribunal Federal pode proceder à modulação quando a lei declarada inconstitucional tiver por objetivo a promoção de um ideal constitucional, cuja realização é determinada pela instituição de um princípio e, com isso, houver a possibilidade de promoção gradual desse ideal. E, ainda, quando o legislador tiver a liberdade de escolher um dentre todos os meios necessários à sua promoção. Nesse caso, o STF manterá o efeito positivo – embora insuficiente – da lei reputada inconstitucional.

Isso, porém, não ocorre quando a Constituição, em vez de impor a

realização de fins, sem a predeterminação dos meios, institui regras de competência, como no caso do Sistema Tributário Nacional. Nesses casos, a declaração de compatibilidade de uma norma com a Constituição não pode ser usada, pois somente a declaração de nulidade da lei é que restaura a ordem constitucional. Como há regras de competência, não há dever de ação do Estado. O poder de tributar pode ou não ser exercido, inexistindo imposição constitucional à busca por um ideal. Desse modo, o não exercício do poder de tributar não gera uma inconstitucionalidade. É diferente, pois, do que ocorre em matéria de obrigações estatais ou de proteção a direitos fundamentais. Nesses casos, o Estado tem o dever de adotar os meios necessários, que contribuam para a promoção dos ideais constitucionais. 38 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 556-562.

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Além disso, como no exercício do poder de tributar o legislador deve

escolher o meio predeterminado pela Constituição Federal, ao Poder Judiciário cabe apenas verificar se a competência foi exercida conforme a regra constitucional. Não há espaço, portanto, para o Poder Judiciário encontrar uma decisão política conformadora com os ideais constitucionais. Assim, como o Estado não tem o dever de agir, nem liberdade para tanto, a própria declaração de nulidade da lei restabelece o estado de constitucionalidade. A eliminação da lei apenas conduz à falta de exercício da competência tributária.

Outra questão analisada por Humberto Ávila39 e Misabel Derzi40 diz

respeito à impossibilidade de o princípio da segurança jurídica ser invocado pelo Estado para manutenção de tributo cobrado com base em lei inconstitucional. Isso porque, como sustentam os juristas, esse princípio é protetivo de direitos dos indivíduos frente ao Estado, e não instrumento de aumento do poder estatal. A Constituição, por meio de diversos dispositivos constitucionais, busca limitar o poder de tributar, como medida protetiva às liberdades do contribuinte. Além disso, a proteção à confiança visa proteger o indivíduo contra a restrição a direitos fundamentais, ao passo que, na tributação, ocorre justamente o contrário, pois a manutenção do tributo inconstitucional implica justamente maior restrição a direitos fundamentais do contribuinte, como a liberdade e a propriedade.

Adotadas essas premissas, entendemos que a modulação dos efeitos

pode ser usada em matéria tributária, mas desde que em casos extraordinários e excepcionais, visando tutelar outros princípios e garantias plasmados no texto constitucional, e nunca em desfavor do contribuinte. Assim, pode-se adotar a modulação temporal, em favor do contribuinte, para proteção à confiança, à segurança jurídica ou a outros direitos fundamentais, em casos em que há uma aparência de legitimidade do ato legal impugnado, de modo a contribuir para existência de um estado de confiabilidade e calculabilidade do Direito, configurando instrumento de supremacia da ordem constitucional, mas nunca de sua transgressão. 39 Op. cit., p. 553-556. 40 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar. São Paulo: Noeses, 2009, p. 495.

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Em quaisquer hipóteses, a modulação somente deverá ocorrer

mediante garantia de contraditório, possibilitando um controle argumentativo da modulação, por versar sobre debate distinto em relação ao mérito. Outrossim, deve haver fundamentação expressa de qual é a norma constitucional que está servindo de justificativa para a modulação, comprovando-se os efeitos negativos decorrentes da decretação da nulidade ex tunc.

A título ilustrativo, defende-se, no presente estudo, a preservação de

lei cuja interpretação já se estabilizou e consolidou na jurisprudência41, de modo que a quebra de orientação jurisprudencial consolidada no tempo deve produzir efeitos ex nunc, sob pena de violação à segurança jurídica. Sem observância aos requisitos acima, o controle de constitucionalidade não se torna calculável, tornando-se incompatível com a própria segurança jurídica.

5. A impossibilidade de modulação dos efeitos das decisões

em matéria tributária pela adoção de argumentos consequencialistas de cunho econômico

Consoante exposto, nos últimos anos, as Fazendas Públicas

passaram a suscitar a queda da arrecadação das receitas públicas, ou os efeitos econômicos deletérios para os cofres fazendários, como elemento persuasivo para a atribuição de efeitos prospectivos à decisão que declara indevida a cobrança de um tributo. É dizer: com o instituto da modulação, sustentam os entes fazendários a manutenção dos efeitos da cobrança de tributo instituído ao arrepio da Constituição Federal, à luz de argumentos consequencialistas de cunho econômico, consubstanciados nas consequências deletérias que a devolução dos tributos recolhidos teria para os cofres públicos. Passamos, então, a analisar a viabilidade de adoção desse argumento para fins de modulação temporal da declaração de inconstitucionalidade de lei que institui tributo.

41 Sobre o tema, Ricardo Lobo Torres sustenta a necessidade de modulação – prospective overruling – em caso de alteração de posicionamento jurisprudencial, “no caso de formação de substancial corrente de jurisprudência contrastante e de fixação de rationale no sentido de universalização”, sob pena de um “consequencialismo de sinal trocado” (TORRES, Ricardo Lobo. O consequencialismo e a modulação dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal. Direito Tributário Atual. São Paulo: Dialética, 2010, v. 24, p. 463).

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O argumento versando sobre perda de arrecadação e os impactos

aos cofres fazendários, em matéria tributária, já foi analisado em algumas ocasiões pelo STF. Nos autos do ED no RE 595.838, em que se discutia a incidência da contribuição previdenciária pela tomadora de serviços prestados por sociedades cooperativas, o Ministro Dias Toffoli sustentou que a perda de arrecadação para o ente fazendário, estimada para o caso concreto em R$ 7,78 bilhões, não seria suficiente, por si só, para justificar a modulação. Tal posição foi acompanhada pelos demais ministros, que afastaram a modulação nessa hipótese.

Nos autos do ED no RE 559.937, em que se discutia a inclusão do

ICMS nas bases de cálculo da contribuição ao PIS/COFINS-importação, o mesmo Ministro Dias Toffoli reiterou que a perda de arrecadação para os órgãos fazendários, de aproximadamente R$ 17,5 bilhões, também não seria suficiente para a modulação. No entendimento do ministro, por se tratar a modulação de medida extrema, seria necessária a comprovação de outro risco gravíssimo à ordem social. Tal posicionamento foi acompanhado pelos demais ministros. No entanto, nos autos dos REs 556.664, 559.882 e 560.626, em que se discutia o prazo decadencial para cobrança de contribuições previdenciárias, a Procuradoria da Fazenda Nacional suscitou, em tribuna, um impacto aos cofres da Seguridade Social da ordem de R$ 96 bilhões. Esse dado foi suscitado sem qualquer prova documental que pudesse comprová-lo. O STF acabou por declarar inconstitucional o prazo decadencial previsto na Lei n. 8.212/91, mas modulou os efeitos da decisão. Todavia, a fundamentação e os argumentos utilizados na decisão foram bastante deficientes. Considerando que a jurisprudência de todos os Tribunais pátrios e do próprio STF era pacífica no sentido de inconstitucionalidade – pois, desde 1969, sempre se entendera que a fixação de prazo decadencial em matéria tributária demandaria lei complementar –, a modulação exigiria um ônus argumentativo que evidenciasse a necessidade de sua aplicação ao caso concreto, o que não ocorreu. Sustentou o Ministro Gilmar Mendes que os dispositivos impugnados “invadiram conteúdo material sob reserva de lei complementar”, mas acolheu “parcialmente o pedido de modulação de efeitos, tendo em vista a repercussão e a insegurança jurídica que se pode ter na hipótese”. A segurança jurídica, portanto, foi invocada sem que fossem demonstrados elementos que justificassem a sua proteção. Ou seja, em caso envolvendo a Seguridade Social, modularam-se os efeitos da decisão em

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razão do impacto de R$ 96 bilhões, a despeito da existência de jurisprudência sobre a matéria, consolidada há longa data, contrariamente aos interesses fazendários. Nessa modulação, apenas os contribuintes que possuíam ação judicial ou processo administrativo em curso, na data do julgamento, foram contemplados pela decisão que declarou a inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei n. 8.212/91. Os contribuintes que pagaram tributo com base na lei inconstitucional, mas não ajuizaram ação, acabaram prejudicados.

Os impactos para os cofres fazendários também serviram de

fundamento para a modulação dos efeitos das decisões versando sobre a inconstitucionalidade da emenda dos precatórios (ADI 4.425), sendo atribuída uma sobrevida de cinco anos ao regime especial previsto na EC n. 62/2009. Na ocasião, não foram invocados dados numéricos quanto aos impactos da arrecadação, mas tão somente o risco de insolvência dos entes federativos, caso declarada a inconstitucionalidade da emenda dos precatórios.

Como se nota, o STF já se rendeu ao argumento consequencialista de

cunho econômico, ainda que de forma velada e travestida de suposta ofensa à segurança jurídica. Contudo, rechaçamos a possibilidade de que a perda de arrecadação ou os impactos aos cofres públicos sirvam de fundamento para a modulação temporal dos efeitos da decisão que declara inconstitucional um tributo. Isso porque, como já alertado por Humberto Ávila42:

– não há relevante interesse social a ser preservado, pois, a

rigor, não há exercício concreto de direitos fundamentais, mas mero exercício do poder de tributar, o qual, pela própria Constituição Federal, deve ser exercido pelo ente tributante dentro das regras de competência tributária, sob pena de ofensa às normas constitucionais que regem o Sistema Tributário Nacional;

– sendo exercida a competência tributária de forma ilegítima,

não pode a União Federal pretender beneficiar-se da própria conduta, contrária à Constituição Federal;

– admitir a modulação dos efeitos pela perda de arrecadação

42 ÁVILA, Humberto. Op. cit., p. 547.

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levaria à conclusão de que, quanto maior a arrecadação resultante da lei inconstitucional – ou seja, quanto maior a lesão causada à ordem constitucional e aos contribuintes –, maior seria a chance de ela ser declarada constitucional;

– o cenário acima levaria a um estímulo ao desrespeito à ordem

constitucional, pois quanto maior a violação aos direitos dos contribuintes, maiores as chances de uma norma ser reputada constitucional;

– a modulação é uma técnica oriunda do direito germânico, que

se presta a preservar outras normas constitucionais, que poderiam ser violadas caso a inconstitucionalidade fosse declarada com eficácia ex tunc; nesse contexto, manter a tributação inconstitucional revela-se mais atentatório à Constituição do que os interesses decorrentes dos impactos causados aos cofres públicos43; e

– no contexto da ponderação necessária à escorreita aplicação

da técnica da modulação, cumpre esclarecer que a Constituição, em diversos dispositivos, busca limitar o poder de tributar, como medida protetiva às liberdades do contribuinte; assim, a partir da carga valorativa extraída do próprio texto constitucional, verifica-se que autorizar a tributação de forma inconstitucional acaba por ser mais atentatório à Constituição do que os supostos interesses envoltos à perda de arrecadação, haja vista a possibilidade de o ente tributante instituir outros tributos para recomposição da perda arrecadatória, desde que com amparo nas normas constitucionais; desse modo, a proteção estabelecida constitucionalmente aos direitos individuais dos contribuintes sobrepuja-se a qualquer interesse que pode decorrer da manutenção de uma tributação contrária às normas constitucionais.

43 DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar. São Paulo: Noeses, 2009, p. 238.

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Além das considerações anteriores, é preciso retornar às lições do início do presente estudo. Sob a perspectiva da argumentação jurídica, como sustentado, os argumentos consequencialistas são dotados de menor força persuasiva, porquanto podem ser manipulados por quem os suscita, levando a diferentes resultados a depender dos critérios tidos por relevantes pelo intérprete. Conforme anteriormente apontado, no que concerne ao argumento dos impactos aos cofres públicos, poder-se-ia, igualmente, levantar conjecturas acerca dos efeitos indiretos provocados nos agentes econômicos pela tributação que se revelou inconstitucional, e, ainda, os diferentes efeitos produzidos pela decisão, em caso da arrecadação da exação incompatível com a ordem jurídica.

Ademais, tais argumentos não podem ser reconduzidos diretamente

ao ordenamento jurídico, mas tão somente de forma indireta, mediante estudos e dados empíricos que revelem os efeitos provocados pela decisão no plano social, para, somente então, viabilizar a subsunção a algum preceito do ordenamento pátrio. Ocorre que, consoante exposto, nos casos submetidos à apreciação do STF, os argumentos consequencialistas de cunho econômico, concernentes aos impactos para os cofres públicos, quase nunca são acompanhados de estudos e dados analíticos que lhes suportem. Ou seja, além de os argumentos não poderem ser contraditados, o que sustenta os entes fazendários é a prevalência apriorística de seus interesses em detrimento dos contribuintes, com base em elementos que, a par de não poderem ser discutidos no plano jurídico, sequer são comprovados no plano empírico.

Nesse contexto, como anteriormente sustentado, e com amparo nas

lições de Ricardo Mariz de Oliveira44, os argumentos de cunho político, morais ou econômicos melhor se amoldam ao plano pré-jurídico, haja vista que, no plano jurídico, deve impor-se a legalidade da obrigação tributária, sob pena de flagrante cenário de insegurança jurídica. Assim, considerando que, em matéria tributária, nosso ordenamento assume uma feição formalista, viabilizar a manutenção da arrecadação decorrente da exigência de tributo instituído ao arrepio da Constituição não pode ser admitido, a pretexto de suposto impacto aos cofres públicos, porquanto a lesão causada ao ordenamento revela-se mais atentatória do que os efeitos que se busca preservar com a manutenção da arrecadação. Já foi exposto que as normas constitucionais estão amparadas no

44 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Op. cit., p. 513.

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princípio republicano, no princípio democrático e no princípio da separação de poderes, já que o poder parlamentar é dotado de autoridade e representatividade para tomada de decisões políticas. Nesse cenário, admitir que o Poder Judiciário possa fazer incursões nas ciências econômicas, para daí extrair possíveis consequências de suas decisões, e então autorizar a manutenção de efeitos da arrecadação decorrente da cobrança de um tributo incompatível com o ordenamento, acaba por: (i) solapar garantias do Estado Democrático de Direito, prestigiando a conduta mais nociva ao ordenamento; (ii) contrariar as próprias funções institucionais do Poder Judiciário, que é a conformação da ordem jurídica ao estado de constitucionalidade; e (iii) resultar em flagrante cenário de insegurança jurídica e instabilidade institucional, por não dotar os jurisdicionados de previsibilidade quanto ao cumprimento das normas do direito positivo, colocando em dúvida a própria credibilidade do sistema jurídico.

6. Conclusão Com base em todo o exposto, conclui-se que, na jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal, inexistem critérios claros quanto aos requisitos necessários à modulação temporal dos efeitos de decisões em matéria tributária. A análise das decisões proferidas pela Corte não oferece elementos sobre o que vem a configurar “razões de segurança jurídica” ou “relevante interesse social”, para fins de aplicação do art. 27 da Lei n. 9.868/99.

De um modo geral, nos julgados proferidos até hoje pelo STF em

matéria de modulação na seara tributária, prevaleceu o sentido de restaurar o estado de constitucionalidade, mantendo-se a eficácia ex tunc da declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei que institui tributo. O ponto mais criticável das decisões recai sobre a inexistência de enfrentamento, de forma precisa e fundamentada, das razões de segurança jurídica ou de interesse social que justificariam a adoção da modulação, ou mesmo a sua rejeição. É o que se verifica, por exemplo, na criticável decisão versando sobre o prazo prescricional e decadencial das contribuições previdenciárias, em que a necessidade de preservação da segurança jurídica foi utilizada como fundamento para ocultar a adoção do argumento consequencialista de cunho econômico, quais sejam os impactos para os cofres da Seguridade Social.

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No que concerne especificamente aos argumentos consequencialistas de cunho econômico, o que se verifica é que, na maior parte das vezes, as Fazendas Públicas invocam a perda de arrecadação e os impactos aos cofres públicos desacompanhadas de dados analíticos ou estudos que corroborem a necessidade de modulação da decisão, para fins de preservação dos efeitos da cobrança da exação tida por inconstitucional. Isso significa, em outros termos, que tais argumentos sequer podem ser contraditados pelos contribuintes, dada a ausência de suporte que lhes sirva lastro.

Por todas as razões expostas ao longo do presente estudo,

entendemos que esses argumentos não podem servir de fundamento para a modulação dos efeitos temporais de decisão que julga determinado tributo inconstitucional. Isso porque, sob uma perspectiva da argumentação jurídica, trata-se de argumento passível de manipulação por quem o invoca, demandando a imersão em outras ciências, para que, somente indiretamente, seja reconduzido ao ordenamento jurídico, razão pela qual possui menor força persuasiva, já que se distancia dos princípios democrático, republicano e da separação de poderes, ínsitos ao Estado de Direito.

Ademais, admitir a modulação com base em argumentos

consequencialistas de cunho econômico, para manutenção da arrecadação decorrente de cobrança de um tributo inconstitucional, revela-se incompatível com o Sistema Tributário Nacional, sendo possível, na Constituição Federal, inferir uma carga valorativa que busca limitar o poder de tributar, como medida protetiva às liberdades do contribuinte. Assim, autorizar a tributação de forma inconstitucional acaba por ser mais atentatório à ordem jurídica do que os supostos interesses envoltos à perda de arrecadação, em razão da possibilidade de o ente tributante instituir outros tributos para recomposição da perda arrecadatória. Entendemos que a modulação dos efeitos pode ser usada em matéria tributária, mas desde que em casos extraordinários e excepcionais, visando tutelar outros princípios e garantias plasmados no texto constitucional, e nunca em desfavor do contribuinte. Assim, pode-se adotar a modulação temporal, em favor do contribuinte, para proteção à confiança, à segurança jurídica ou a outros direitos fundamentais, em casos em que exista uma aparência de legitimidade do ato legal impugnado, e de modo a contribuir para existência de um estado de confiabilidade e calculabilidade do Direito, configurando instrumento de supremacia da ordem constitucional, mas nunca

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de sua transgressão. Em quaisquer hipóteses, deve haver fundamentação expressa de qual é a norma constitucional que serve de justificativa para a modulação, comprovando-se os efeitos negativos decorrentes da decretação da nulidade ex tunc.